cozinha a muitas mĂŁos nĂł coletivo
cozinha a muitas mĂŁos Ceci Nery e Thiago Flores
nĂł coletivo
Cozinhas Compartilhadas A produção da alimentação é política e cultural, revela as distintas formas de fazer e de habitar das pessoas, suas escolhas e práticas que afetam diretamente o cotidiano e a relação estabelecida com o território e redes formadas pelos processos até chegar a comida ao prato. A coleção Cozinhas Compartilhadas sistematiza práticas e investigações em torno de produções culinárias em determinados contextos para compartilhá-las e desdobrá-las em outras conversas, estimular a troca e a experiência com o outro, buscando sempre construir conhecimento a partir das relações tecidas entre pessoas. Cada publicação traz uma vivência particular do Nó Coletivo, formado por Ceci Nery, Paula Lobato e Thiago Flores, em torno do cozinhar em um contexto específico.
Cozinha a Muitas Mรฃos 07
Cozinhas de vizinhanรงas
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Cozinha Comum Escola de Arquitetura
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Mudanรงa de sala
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Cozinha Dona Lourdes
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Fazer sem projeto
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Depoimentos
Cozinhas de vizinhanças Durante um trabalho realizado em 2012 no Edifício Maletta, importante complexo habitacional e comercial localizado no centro da cidade de Belo Horizonte, parte importante da história da cidade, conhecemos Dona Esmeralina, senhora que reside no condomínio desde os anos 70. Entre conversas sobre suas histórias e memórias relacionadas a residir ali, Esmeralina nos contou que quando se mudou com seu marido do interior para a capital fazia, para complementar a renda da casa, almoço para a vizinhança. Diariamente recebia moradores e trabalhadores da região que convidava através de bilhetes deixados por debaixo de portas residenciais e de escritórios. Ao abrir as portas de seu pequeno apartamento, Dona Esmeralina o transformava diariamente em um lugar de encontro, onde se reuniam até 30 pessoas para refeições partilhadas no ambiente doméstico aberto ao público. Relações se constituíam a partir da partilha do almoço. Na falta de ambientes de socialização e reunião no centro urbano, sua residência atendia a demanda daqueles que queriam fazer do momento do almoço ser mais pessoal, em contraposição ao anonimato usual dos restaurantes e refeitórios. 7
A alimentação na cidade contemporânea se tornou um produto, consumido em um cotidiano que pela pressão do tempo nos dá poucas possibilidades de escolha, nos alienando das questões relacionadas à comida: como se deu o preparo, o que se come, de onde é essa receita, como esse alimento chegou ao prato? Cozinhas domésticas permitem, além desse diálogo, outras trocas de experiências e saberes, além da construção de vínculos afetivos mediados pela refeição. Assim como Esmeralina outras tantas pessoas transformam temporariamente seus espaços domésticos com usos público temporários, criando um tempo-espaço de oportunidade de se conhecer quem divide a cidade com você. Nos anos 90 o condomínio do Edifício Maletta proibiu essa prática por trazer fluxo de pessoas estranhas para dentro do prédio. Esmeralina nos convidou para um almoço em sua casa, que, para nossa surpresa, compramos em um restaurante no próprio edifício no qual ela conhecia todos funcionários e algumas pessoas sentadas na mesa, subimos com as marmitas para sua casa. Hoje ela não cozinha mais. 8
Na Ocupação Eliana Silva um grupo de mulheres de luta imaginam e articulam projetos de interesse coletivo: creche comunitária, horta cooperativa, festas comunitárias, oficinas, biblioteca, parquinho, aulas e várias trocas da ordem do cotidiano, mobilizadas por afetos e urgências, que as aproximam e as fortalecem. Essas mulheres nos contaram que onde hoje é a creche da comunidade existia uma cozinha comunitária, sempre a primeira construção erguida em qualquer processo de ocupação por moradia. Segundo elas, após ocupar um terreno a cozinha é estruturada em15 minutos e as voluntárias já começam a produzir as refeições diárias para todas as famílias (300 no caso da Eliana Silva), enquanto as pessoas não têm suas cozinhas individuais estruturadas. A partir da cozinha elas constroem uma rede de fornecedores com comerciantes locais que doam o que iria para o lixo dos açougues, sacolões e mercados, além de apoiadores de outros lugares da cidade que enviam mantimentos não perecíveis. A cozinha se torna o foco de resistência da comunidade em processo de ocupação. As famílias precisam de alimentação e as crianças de cuidado até conseguirem cada uma erguer seu lar, ainda que de forma provisória. Em sua obra, o sociólogo Richard Sennet 10
busca compreender quais são as condições que facilitam a troca, a sociabilidade, a solidariedade e a cooperação entre os indivíduos de uma sociedade(1). Seu percurso no texto o leva à figura da Casa Comunitária e da Oficina. Na primeira acreditavase no desejo individual, “dava ênfase às trocas frouxas e não rígidas, fazendo da informalidade uma virtude”, acreditando que por estarem juntas as pessoas desenvolveriam as habilidades necessárias para associaremse, mesmo não havendo um programa para isso. Enquanto na Oficina “a cooperação seria gerada e forjada pela experiência direta e pelo contato diário com outros como iguais”, o fazer junto faz conviver as diferenças de um grupo. Assim, na cozinha comunitária, o fazer culinário aproxima as pessoas, sem apagar suas individualidades, permitindo ainda trocas informais que aprofundam os laços entre os sujeitos. Evidencia-se o lugar político da cozinha: lugar de reunião, trocas informais e tomada de decisões em várias escalas. Quando cada pessoa conquista sua cozinha individual o equipamento coletivo fica em desuso e ganha outra função que atenda uma nova necessidade comunitária. Ainda assim os vínculos de cooperação e solidariedade forjados dentro da cozinha entre aquelas 11
cozinha comunitária Ocupação Paulo Freire
que se engajaram em seu funcionamento são preservados e parecem essenciais para a articulação dos projetos comunitários que vingam ou germinam hoje na ocupação. Para as artistas Carol Goodden, Tina Girouard e Gordon Matta-Clark, mais do que focos de resistência e sociabilidade, essas cozinhas compartilhadas também se inserem na esfera do sensível, podendo ser pensadas enquanto proposições e práticas existentes numa fronteira borrada entre artes, ativismo e cotidiano. Em 1972 esse grupo de artistas fundou um restaurante inserido na vizinhança do Soho, com o nome de FOOD. O estabelecimento era considerado por eles como uma obra de arte viva, diariamente ativada por práticas experimentais e feitura de comida que cativavam um público bem diverso de artistas da cidade e residentes locais. Cada preparo era tido como uma performance, fruto do cruzamento de pesquisas e práticas de artistas que fortaleciam seus laços no restaurante. Experimentavam juntos formas de fazer na cozinha, propondo pratos, situações e transformações diversas, como por exemplo comer usando como suporte os vidros de janela, ou transformar os ossos de galinha 13
em artesanatos no fim da refeição. Enquanto espaço comunitário o FOOD teve como potência mobilizar vários afetos e criar vínculos entre vários artistas, funcionando também como um dispositivo de diálogo ao ativar encontros e trocas de outra ordem, que se expandiram para além da situação criada pela refeição. Para Rancière há uma configuração da esfera do sensível que fixa “um comum partilhado e partes exclusivas”(2). O filósofo observa que as práticas estéticas tem o potencial de reconfigurar esse recorte de tempos e lugares, que exclui aqueles que “em função daquilo que faz, do tempo e do espaço que essa atividade se exerce” não podem tomar parte no comum. As propostas da ordem do sensível trabalham construindo outras formas da partilha estética, onde indivíduos antes excluídos de um território subjetivo podem vir a tomar parte e participar de uma construção comum. Food, assim como todas outras cozinhas compartilhadas é um ponto de encontro e contato que torna possível a formação de novas associações entre indivíduos que irá reconfigurar as relações existentes entre eles, ativando desdobramentos imprevisíveis. 14
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fachada do restaurante FOOD
O bairro da Mouraria em Lisboa é historicamente ocupado por imigrantes. Se antes o maior fluxo de imigração era moura, hoje o bairro mistura uma grande diversidade de descendências: chineses, brasileiros, marroquinos, cabo verdeanos, camaronenses e várias outras nacionalidades, além de portugueses empobrecidos, dividem o mesmo território. Redes são estabelecidas entre indivíduos que partilham do mesmo traço étnico, construindo espaços de identificação (restaurantes, bares, lojas específicas de uma cultura), em uma certa disputa de territórios onde carecem lugares de convívio entre as diferenças. No meio de várias lojinhas e residências peculiares se encontra um espaço diferenciado em sua proposta: a Cozinha Popular da Mouraria. Fundada em 2012 pela jornalista Adriana, financiado por um programa governamental, a Cozinha Popular da Mouraria é uma cozinha compartilhada de bairro. Com uma equipe de 3 cozinheiras fixas (idosas aposentadas e moradoras do bairro), o lugar oferece almoços a preços populares para todas as pessoas. Diariamente a cozinha se reinventa através de parcerias com outros agentes do bairro e de fora dele: 16
Cozinha Popular da Mouraria
cozinheiros convidados que trazem para o espaço compartilhado receitas de sua cultura a serem experimentadas coletivamente, remunerados por isso. Semanalmente eventos festivos reúnem, além da comida, outras manifestações culturais das culturas vizinhas: danças, músicas, jogos, etc. Mensalmente uma comidaria pública é realizada na rua como uma festa para todos moradores da Mouraria. A cozinha aqui é o espaço de comunhão das diferenças, de contato e troca entre as diversas culturas que habitam a vizinhança. A crítica Miwon Kwon, ao analisar proposições artísticas de base comunitária, categoriza as interações entre artista e comunidade (3). Dentro dessas categorias ela aponta aqueles projetos que propõem uma construção junto a uma comunidade, já existente e consolidada, que muitas vezes irá através do trabalho se afirmar ou dar visibilidade a uma pauta específica; e a categoria de comunidades inventadas que, podendo ser temporárias ou terem continuidade, reúnem, através de uma proposta de ação, indivíduos que partilham de um interesse comum. A própria ideia de “comunidade” geralmente adotada pelos profissionais da arte (artistas, curadores e galeristas) é contestada pela autora, que 18
aponta como problema a falsa unidade e coesão que as pessoas acreditam ter um grupo devido a apenas um traço partilhado entre eles. Na cozinha da Mouraria há uma comunidade definida pelo bairro, mas compreende-se que há dentro dela várias comunidades identificadas pela nacionalidade e pelos traços culturais. A cozinha tem o potencial de reconfigurar as relações entre essas coletividades e propor uma outra ordem inventada, efêmera, que permite atravessamentos culturais e étnicos, articulando outras relações de vizinhança a partir da construção e trabalho coletivos e de eventos. No ambiente universitário a cozinha abre possibilidade para se desenvolver outras propostas de alimentação e pautar questões relacionadas a produção da comida na cidade, como é o caso do People’s Potato, em Montreal, Canadá. Diariamente um grupo de estudantes remunerados juntamente com os voluntários do dia preparam mais de 500 refeições gratuitas, com receitas veganas e alimentos reaproveitados de sacolões e mercados parceiros do projeto. Constroem um ambiente de integração e educação alimentar, oferecendo também oficinas aos interessados. A alimentação se torna uma pauta dentro da universidade. 19
São muitas as possibilidades da cozinha atuar como agregador social e fortalecer vínculos em vizinhanças das mais diversas escalas, das mais próximas as mais distantes, pelo interesse e construção comum. Em cada uma dessas cozinhas visitadas a cooperação e troca se dá em diversas instâncias através do fazer. A Cozinha Dona Lourdes é um espaço abrigado dentro da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fruto de construção coletiva sempre em progresso, que pretende a autonomia alimentar dos alunos e um experimento de comunidade (ou uma comunidade experimental). Lá eles podem preparar seus próprios alimentos no dia a dia da faculdade, o fazer coletivo, tanto no preparo das receitas como na gestão e construção do espaço. Além disso, potencializa a produção de relações e conhecimentos a partir da abertura da cozinha para outros usuários de fora da faculdade. São eventos, oficinas e almoços coletivos, que possibilitam novas conversas, atravessamentos e proposições, fortalecimento de relações e vínculos na discussão sobre alimentação e tantos outros temas que a acompanha. Essa publicação registra a história dessa cozinha acompanhada de especulações, receitas e diagramas a respeito de seu funcionamento ao longo de três anos. 20
People’s Potato
Pão simples O processo de feitura do pão é coletivo, envolve várias mãos e umas boas horas na sua produção. Amassar o pão é um trabalho duro e compartilhar o fazer nos levou não apenas a colaboração e distribuição de esforços mas a momentos de trocas pelos diálogos estabelecidos enquanto o pão estava crescendo. Oficinas de pães foram formas de envolver várias pessoas na feitura da comida e aproximá-las da cozinha.
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cartaz campanha orรงamento participativo, 2013
Cozinha Comum Escola de Arquitetura A história da Cozinha Dona Lourdes começa quando, em 2013, o Diretório Central Estudantil da UFMG (D.C.E.) abriu um Orçamento Participativo que visava financiar projetos estudantis nas unidades de ensino da universidade. Reunimos um grupo de alunos da Escola de Arquitetura e Design (E.A.D.) que, influenciados pelas discussões sobre espaços coletivos e produção da comida na cidade, resolvemos submeter o projeto Cozinha Comum E.A.D.. A ideia nesse tempo era de construirmos coletivamente um espaço para uso cotidiano na faculdade para a produção de comida de forma autônoma, barata e com maior qualidade do que a que era oferecida pelo restaurante da faculdade e pela vizinhança da Savassi, bairro com alto custo de vida da cidade de Belo Horizonte. O projeto teve grande adesão dos alunos e ganhou a votação para o financiamento. Após a aprovação do projeto iniciamos uma mobilização para envolver mais pessoas em sua concepção, uma vez que a intenção inicial era desse ser um espaço de todos. Criamos um grupo no Facebook e iniciamos reuniões abertas. Nessas reuniões decidimos instalar 25
a cozinha no D.A. da Escola de Arquitetura, área da faculdade que é de gestão partilhada pelos alunos. Esse espaço foi escolhido devido a dificuldade de se conseguir outra sala, pois passaria pela grande disputa existente entre os setores da universidade por espaços. Juntos decidimos por não comprar equipamentos e fazer uma cozinha pronta, mas sim usarmos uma parte do dinheiro vindo do edital para fazer um primeiro evento, o chá de panelas para equipar a cozinha coletivamente, pois acreditávamos que dessa forma mais alunos iriam se engajar e se sentir responsáveis pela construção do espaço. O evento foi preparado a muitas mãos e a comida não poderia ser feita de um jeito diferente. No dia anterior nos reunimos e pensamos juntos cardápio, cada um trazendo saberes e gostos particulares, receitas e ideias. Assim foi construída a Cozinha Comum no D.A., e o seu primeiro ano de existência foi um grande experimento de autogestão. O uso da cozinha nesta etapa se dava de forma expontânea em pequenos usos cotidianos e pontualmente a partir de oficinas ou eventos.
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cartaz chรก de panela, maio de 2014
cozinha D.A.
Localização da Cozinha O Diretório Acadêmico foi o primeiro local ocupado pela Cozinha Comum na Escola de Arquitetura. Durante o período de construção da cozinha ela mudou de localização dentro do prédio de forma estratégica como veremos nas páginas seguintes. O presente mapa deve ser consultado para orientar o leitor que não está familiarizado ao espaço do prédio de Arquitetura e Design da UFMG, localizando cada espaço da cozinha em relação aos demais ambientes da Escola. Escola de Arquitetura e Design da UFMG
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Mudança de sala No início de 2015 um grupo de alunos da Escola de Arquitetura e Design reivindicou o uso de um espaço que era usado como depósito da faculdade, antigo lugar do bandejão da unidade, batizando de Peixaria, na intenção de ser um lugar para incubar ideias e projetos. No processo de ocupação decidiram levar os equipamentos da cozinha para esse lugar, pois era mais amplo e equipado com pia. Passaram a utilizar da cozinha para preparar coletivamente comida para reuniões e mutirões de organização do espaço. A Cozinha Comum passou a ser utilizada mais frequentemente de forma coletiva, mediando o encontro e troca entre os alunos Nesse mesmo período outros alunos desenvolveram como trabalho de uma disciplina de microeconomia, a ideia de fazer um “almoço com conversa”, evento no qual recebíamos um convidado para comer conosco na Cozinha Comum enquanto batia um papo sobre algum tema. O preço do prato cobria os ingredientes e remunerava o visitante. 32
almoรงo na Peixaria
Na metade de 2015 pensamos em uma forma de tornar mais intenso o uso da cozinha. A ideia era recuperar o local como oportunidade de encontro e conversa durante um almoço produzido coletivamente e oferecido a um preço acessível. Através de mobilização pelas redes sociais iniciamos o projeto “almoço todo dia”. Num primeiro momento tentamos nos organizar através de uma planilha na qual cada aluno colocaria seu nome em um dia da semana no qual se responsabilizaria por cozinhar e poderia tirar algum dinheiro desse trabalho. Assim cada dia teria um grupo fixo de pessoas responsáveis pela produção da comida. Já na segunda semana essa ferramenta se mostrou falha, as pessoas não podiam se comprometer de forma tão rigorosa com cozinhar, além disso, quando se tornava uma obrigação, perdia seu sentido, pois não era possível haver uma remuneração real pelo empenho e tempo empregados no preparo. Mesmo existindo a planilha, os alunos que haviam colocado seu nome não compareciam no dia, e outros que passavam a se interessar pela ideia começavam a puxar almoços eles mesmos, chamando os amigos boca a boca ou pelo 34
cartaz almoรงo todo dia, agosto de 2015
almoรงo servido no gramado interno
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grupo do Facebook. Os pratos eram decididos a partir do que havia de estoque na cozinha, estimulando troca de saberes e a inventividade culinária dos alunos. Durante o preparo mais pessoas chegavam e assumiam funções na cozinha, ou propunham novas receitas para incrementar o cardápio. A prática da xêpa (coletar restos de alimento do sacolão ao lado da Escola de Arquitetura para reaproveitá-los), possibilitou que esses almoços fossem servidos a um preço barato (colaboração de 5 reais) e ainda viabilizou a criação de um caixa para o projeto. Para isso dois alunos deviam ir ao sacolão para pegar os sacos de comida, levar até a Peixaria, separar e estocar o que estava em condição de uso. Os almoços chegaram a acontecer três vezes por semana, atendendo aproximadamente 30 alunos por dia. Preparar e comer coletivamente possibilitou diversos encontros e trocas entre as pessoas que participaram deles Ao se cozinhar a tantas mãos e para tantas pessoas exercita-se várias habilidades de cooperação e negociação. Richard Sennet diz que nas oficinas, quando as pessoas trabalham juntas, “gestos de movimento, expressão facial e som dotam o triângulo social (autoridade merecida, respeito 37
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colocar poucos * assustar: minutos na água fervendo
Goulash de beterraba da Zizi No primeiro dia que a Zizi, vizinha da Escola de Arquitetura, cozinhou com a gente ela nos trouxe temperos de seu sítio e receitas e dicas para trabalhar com a xêpa, uma delas é o goulash de beterraba, simples de preparar e muito nutritivo.
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mesa coletiva de almoรงo
mútuo e cooperação) de uma vida perceptível aos sentidos” (4), o trabalho coletivo exercita nas pessoas a habilidade de se adaptar ses próprios gestos corporais aos do outro e à concepção arquitetônica do próprio espaço”. Pensando na cozinha a feitura do almoço a muitas mãos não apenas exercita habilidades sociais entre as pessoas mas também a capacidade de se espacializar a atividade e atuar de forma ativa no espaço arquitetônico. Através dos almoços também criamos amizade com uma vizinha da faculdade, Alzira, ou Zizi como nos falou para chamá-la. Ela ouviu dois alunos conversando sobre a cozinha um dia na gráfica próxima a faculdade e se interessou em ir um dia conhecer o espaço e cozinhar. Foi feito o evento “almoço com Zizi”, quando recebemos ela e ela trouxe ervas do quintal de seu sítio e alguns equipamentos para cozinha. Nesse dia disse que nos entregaria um relógio, pois não pode faltar um em uma cozinha. Nos ensinou algumas receitas com o que tínhamos de xêpa armazenada no dia, o almoço foi batata assada com os temperos da horta de Alzira, goulash de beterraba batida com manjericão e legumes grelhados. Ela se tornou uma amiga, voltou na cozinha alguns dias e nos levou o relógio prometido. 42
Em um dos eventos de almoço com conversa recebemos a pró-reitora de extensão da UFMG, Claudia Mayorga, para a partir das iniciativas da Peixaria e da Cozinha Comum conversar sobre extensão universitária. Ouvindo nossa experiência Claudia exaltou que as atividades desenvolvidas na Peixaria, como oficinas, cinema, debates, e o funcionamento da cozinha, apontam uma outra forma de se compreender extensão dentro da universidade pública, revertendo a ideia de irmos ao território de uma alteridade para criar a situação da alteridade adentrar a universidade e se produzir conhecimento por meio das trocas que ocorrem nesse encontro. A pró-reitora demonstrou muito interesse em fomentar o projeto, perguntou aos estudantes se seria interessante ter um projeto de pesquisa e bolsista envolvendo as iniciativas. Os alunos presentes disseram acreditar que era melhor não haver esse tipo de ajuda, pois isso tornaria alguém responsável pelo funcionamento das coisas, e ameaçaria a espontaneidade com a qual acontece o engajamento e as ações. Para eles a gestão deveria se dar sem hierarquias, de forma colaborativa. Na prática, contudo, os alunos que dispõem de mais tempo ou interesse 43
para se dedicar ao projeto ganham maior voz em determinado período. Ainda assim a falta de vínculos formais facilita que essa “autoridade” ocorra de forma merecida (5) e que haja uma rotatividade de protagonismo durante o processo, no qual uma vez que um grupo de atores se desmobilizam e o projeto se fragiliza outro grupo se articula para dar continuidade. Ainda que tenha apresentado muitos ganhos em relação a cooperação e trabalho em equipe e em relação a própria autonomia alimentar, a gestão compartilhada do espaço nesse momento apresentou sérios problemas que contribuíram para a desmobilização em torno da cozinha. A limpeza e organização da cozinha não era feita de forma adequada, acreditamos que isso se dava a três motivos, o primeiro é a escala do espaço. Por ser muito grande e também receber outros usos a sala dificultava a estruturação de um ambiente de cozinha, as poucas mesas, utensílios e equipamentos se perdiam no meio de um lugar tão amplo. Segundo pela localização da pia, no fundo da sala, em um ambiente mal iluminado e separado do restante do espaço. Por fim por deficiência da própria organização entre os alunos, muitos não tinham tempo para participar da limpeza pois tinham de ir ao trabalho logo depois da refeição e outros já estavam cansados por ter participado do preparo, 44
quando não havia uma negociação entre as pessoas que participavam do momento para decidir sobre a limpeza, as louças ficavam sujas, às vezes por um longo período até o almoço seguinte, o que levou ao estrago de muitos equipamentos. O horário da refeição muitas vezes também se tornava um problema, pois o preparo podia começar tarde ou demorar a ser feito sendo servido apenas depois das 13 horas, impossibilitando a participação de quem trabalhava. Além disso, a localização desse espaço nos fundos da faculdade, longe de qualquer fluxo de alunos, dificultava o acesso da comunidade de forma geral. A frequência dos almoços coletivos foi reduzida ao fim do semestre de 2015/2, além dos desgastes com a gestão e limpeza do espaço, a dinâmica foi afetada pela proximidade das entregas finais da universidade. No semestre seguinte o sacolão anunciou que não daria mais xêpa para os alunos devido a problemas com vigilância sanitária, interrompendo os almoços por um longo período. Durante o primeiro semestre de 2016 a cozinha não teve um uso intenso, sendo usada para eventos pontuais e muito prejudicada pelo uso de marcenaria que alguns professores estimulavam ocorrer no espaço. 45
Dicas para aproveitar a xĂŞpa
almoรงo na Peixaria
Cozinha Dona Lourdes No fim do primeiro semestre de 2016 um grupo de alunos insatisfeitos com o que o abandono pelo qual passava a cozinha comum e a própria peixaria começaram a pensar em formas de criar uma nova mobilização em torno do espaço. Foram realizados mutirões para organizá-lo e tentar envolver novos agentes em sua gestão e uso, contudo o fim de semestre dificultou um engajamento da comunidade em geral. Ao fim do semestre chegou um ponto crítico no qual alunos de uma disciplina que estava usando o espaço como oficina largaram uma enorme bagunça que teve de ser organizada pelas faxineiras da escola. No início do segundo semestre de 2016 decidimos tentar dar um novo começo a cozinha. Percebemos que não era um bom caminho tentar criar uma ordem na Peixaria e inibir o uso que já vinha ganhando como oficina. Em paralelo a esses acontecimentos, em 2015 uma outra sala da faculdade havia sido reformada como parte do tcc de dois alunos para ser usada como Oficina, a antiga sala de xerox da unidade, gerida por uma simpática senhora chamada Dona Lourdes que, mesmo depois de deixar a faculdade, continuou a apelidar o lugar. A 50
escolha do espaço para oficina apresentou alguns problemas: seu espaço pequeno, a proximidade dos espaços de convivência que eram afetados pelo barulho e a ocorrência de um roubo de equipamento na sala. Devido a isso a maior parte dos alunos usavam o espaço da Peixiaria para trabalho em madeira e ferro e o espaço da Oficina ficava subutilizado. Todas essas circunstâncias nos levaram a pensar que a sala da Dona Lourdes poderia ser um melhor espaço para a cozinha e toda a atividade de oficina poderia oficialmente ser transferida para a Peixaria. Acreditávamos que a mudança para um espaço menor e mais próximo do fluxo cotidiano de aluno facilitaria mudanças para a resolução dos problemas de gestão mencionados anteriormente. O grande problema nesse momento era a ausência de pia na sala, levando ao uso de um tanque externo ao espaço. Fizemos um evento de teste para experimentar como a cozinha funcionaria instalada na sala. Levamos alguns utensílios, o fogão e mesas para o espaço e criamos no Facebook o evento “Cantina Experimental”. A ideia era ser um dia de produção contínua de comida para todos os turnos, a serem servidos em troco de contribuição espontânea de quem participasse. 51
cartaz Almoço Montação, agosto 2016
No dia 10 de agosto de 2016 realizamos uma oficina de amassar pão para assá-los para o dia seguinte. Na localização mais central o cheiro da comida e o som da sala atraía pessoas curiosas que se juntavam ao evento para partciipar da feitura. No dia do evento iniciamos cedo o preparo de lanches. Durante o processo outros alunos apareciam, perguntavam o que podia ser feito e ajudavam em algum preparo ou iniciavam um novo. Na parte da manhã foi produzido e servido salada de frutas, pão, guacamole. Logo após o intervalo das aulas alguns alunos ficaram para conversar sobre as experiências que já tivemos com a cozinha da faculdade, descritas aqui até então, pensando nos problemas e potenciais de cada período, tentando compreender o que seria necessário para o bom funcionamento da cozinha agora. Levantamos a necessidade de a cozinha ter mais visibilidade, um uso mais cotidiano e contínuo pela comunidade, ser mantida limpa e organizada e de onde poderiam vir os ingredientes utilizados. Na hora do almoço, tivemos a visita de um grupo de 4 pessoas vindas de Betim que ficaram sabendo do evento através do Facebook, os vizinhos Eduardo, Dona Maria, Vanuza e Karina. 53
Compartilharam conosco uma grande variedade de folhas vindas do quintal de Maria, com as quais nos ensinou a fazer uma torta verde. Os visitantes se interessaram pela conversa sobre a cozinha de gestão compartilhada, Vanuza nos contou de suas experiências em uma comunidade no interior de São Paulo, onde cozinhavam coletivamente e em silêncio, em uma espécie de meditação; Karina trouxe a experiência da faculdade de Viçosa, com vários canteiros produtivos e refeitório que produz apenas com ingredientes vindos de agricultura familiar. Também contaram da própria experiência deles de partilha e cooperação: entre o muro da casa de Maria e Eduardo fizeram um buraco, para trocarem coisas. Eduardo dá a Maria os restos do galinheiro e da compostagem para ela adubar o quintal. No meio do terreno, um poço artesiano garante a água para todos. Uma vida de cooperação e partilha, através da ajuda de ganho mútuo entre os vizinhos. A experiência da cozinha ativa durante todo o dia e em especial a conversa com os visitantes de Betim nos fizeram pensar os potenciais de se ter uma cozinha comunitária dentro da faculdade. Por um lado permite uma autonomia alimentar por parte dos alunos, e a experiência de gerir um espaço e produzir 54
almoรงo coletivo na sala Dona Lourdes
visitantes de Betim cozinhando com aluna
comida coletivamente. Mas além disso, há a possibilidade de encontro e trocas, formais e informais, entre alunos e com pessoas vindas de fora. Um espaço para se experimentar, conversar e aprender. De forma similar ao que Vanuza falou sobre a comunidade em que morou “Considera-se que tudo que se faz no dia é passível de aprendizado. A gente aprende com as atividades do dia-a-dia.”, a cozinha é também o espaço pedagógico, que permite a entrada de outros saberes dentro da universidade. Esse evento teve como fim provocar os alunos a respeito do novo local. Ao fim do dia deixamos os materiais da cozinha na nova sala. Durante a semana ela já foi apropriada por vários alunos para preparos de lanches e almoços. Ao mesmo tempo a Peixaria passou a ser utilizada de forma mais intensa como oficina devido a disciplinas com teor prático para as quais precisavam de produzir objetos em madeira e a sala era um espaço adequado para isso. Em duas semanas a experiência de mudar de sala se mostrou muito bem recebida pela comunidade, com os espaços funcionando muito bem, foi decidido então mudar a cozinha de forma definitiva, levando a geladeira e demais utensílios que ainda estavam na Peixaria para o novo espaço e rebatizando a Cozinha Comum de Cozinha Dona Lourdes. 57
Pão de Mandioca da Penha (doce) e da Rondinélia (salgado) Aprendemos a receita de pão de mandioca com as moradoras das ocupações Eliana Silva e Paulo Freire, em 2016, durante o preparo de um café da manhã coletivo para o Verão Arte Contemporânea. O pão foi nesse evento preparado de duas maneiras, a receita salgada da Rondinélia, moradora da Eliana Silva e a doce da Penha, moradora da Paulo Freire, ocupação vizinha. A cozinha foi uma forma de integrar as moradoras dos dois territórios e pensar na possibilidade da produção de alimentos como geradora de renda.
Cozinha Dona Lourdes
Fazer sem projeto Com a mudança para a nova sala os alunos da faculdade começaram a se apropriar de forma mais constante da cozinha. Se na Peixaria a intensificação do uso da cozinha ocorreu por meio dos almoços coletivos com caráter eventual o que demandava grande energia e reunia grandes grupos, no novo espaço começaram a predominar pequenos preparos como lanches, bolos, cafés e almoços para um grupo reduzidos. Como o espaço é central, torna-se menos importante as chamadas por facebook, ainda que sejam necessárias quando se pretende fazer um evento específico ou uma mobilização. A nova localização também favoreceu uma ampliação no número de alunos que de alguma forma se apropria da cozinha, seja para esquentar uma marmita, resolver seu lanche do dia, dar oficinas, preparar comidas ou apenas socializar. Com um uso intensificado e um maior número pessoas utilizando a cozinha surgiram novas demandas de espaço e gestão. No momento de inauguração o novo espaço contava com os equipamentos da cozinha (fogão, geladeira, panelas, utensilios), uma bancada 62
fixa instalada na reforma que a sala havia passado para receber a oficina, pontos de tomada, um quadro branco, uma mesa de granito, duas antigas pranchetas e duas mesas criadas por alunos em uma disciplina. Nesse mesmo período uma disciplina da faculdade estava sendo ofertada com a temática “cozinhas com potencial de vizinhança”. Os alunos estavam acompanhando e participando das experiências realizadas nessa mudança de espaço e visitando outras cozinhas na cidade, para a partir disso desenvolverem trabalhos que pensassem como uma cozinha poderia mediar relações dentro de um território. Um grupo de alunas decidiu que iria dentro da disciplina desenvolver ideias e intervenções na própria cozinha da faculdade, potencializando o seu uso. As alunas se engajaram no processo de pensarmos a cozinha. Já havíamos durante o primeiro mês do semestre experimentado formas de usar o espaço e testando suas possibilidades compreendemos quais eram os pontos de sua estrutura espacial que dificultavam o uso e levavam aos conflitos já mencionados sobre sua gestão (limpeza, 63
organização….). Realizamos uma reunião aberta para se pensar o projeto a muitas mãos, outros alunos interessados tomaram parte do processo e juntos discutimos, a partir de nossa experiência sobre o espaço, transformações pontuais que poderiam ser executadas para suprir deficiências estruturais. Com essa primeira reunião tiramos uma lista de pequenas intervenções a serem executadas em um primeiro momento: mobiliários para organização do espaço, intervenção gráfica para sinalização, ganchos para pendurar coisas, prateleiras, uma pia e um ponto d’água provisórios até a faculdade providenciar a instalação regular. Calculamos que com a verba no caixa da cozinha, adquirida com os almoços coletivos realizados na Peixaria, seria possível realizar algumas primeiras intervenções. As prateleiras seriam executadas depois de arrecadado mais dinheiro, em um sistema de oficina de marcenaria oferecida pelo aluno Caio Brant para a construção do mobiliário. Também desenhamos uma reforma para o quadro de avisos do lado externo da sala, para comunicar um calendário da cozinha passível de apropriação por qualquer aluno ou grupo interessado de fazer um preparo coletivo no espaço. 64
Os alunos da Escola de Arquitetura raramente são provocados a pensar criticamente o próprio espaço cotidiano. A formação aponta para uma atuação sempre no território do outro, fragilizado, dependente, reforçando uma distância entre o profissional e aqueles para quem presta serviço. Ainda que esse tenha sido um exercício pequeno, revela uma transformação na postura dos estudantes quando o projeto lida com um território que faz parte de seu dia-a-dia e o exercício do projeto se dá coletivamente, com outras pessoas da mesma área. A ideia de projeto é de antemão descartada, a conversa já se inicia com a discussão de mudanças pequenas, que garantam flexibilidade de uso ao espaço, sejam reversíveis e possam ser executadas com mutirão de alunos. O pensamento espacial torna-se tático, as decisões são tomadas somente após experimentar o espaço com o próprio corpo individualmente e coletivamente para a partir daí compreender as intervenções necessárias. As primeiras mudanças no espaço foram executadas no dia 27 de setembro de 2016. Foram instaladas prateleiras, ganchos, um pendurador e a pia. 65
Primeiro Mutirão Cozinha Dona Lourdes
Intervenções na Cozinha Dona Lourdes
Depoimentos O desenvolvimento da Cozinha Dona Lourdes ocasionou várias situações, dentro e fora da faculdade, que pouco a pouco expandiram o grande coletivo de alunos engajados de forma ativa e propositiva na construção e uso do espaço. Cada um desses somou novas ideias e perspectivas a esse projeto que é essencialmente coletivo. Se agora para nós ele ganha o formato de um trabalho de conclusão de curso, sabemos que é um registro pessoal e pontual de um projeto que irá se transformar de acordo com os interesses individuais e coletivos e as várias linhas de pesquisas que alunos da EAD e parceiros externos experimentarem com ele. Convidamos alguns colegas que, em diferentes momentos se engajaram e ainda participam dessa construção para compartilhar de seus pontos de vista pessoais, em que a cozinha foi transformadora para eles e o que conseguem vislumbrar para seu futuro.
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Depois da cozinha dona lourdes, meu cotidiano é outro. acredito que de muitos alunos. minha alimentação, minha vivência na escola de arquitetura, minha noção de coletivo (antes não praticada de modo tão intenso). a cantina conflitava com a minha perspectiva de alimentação saudável: poucas opções vegetarianas, além do preço pouco acessível aos estudantes. certa vez, cozinhei na peixaria, mas comecei a participar mesmo da cozinha dona lourdes alguns almoços antes do mutirão, e desde o primeiro, me afetei pelo cozinhar, pelo conversar, pelo compartilhar... além da proposta política das discussões sobre de onde o alimento veio, como aproveitá-lo ao máximo, e quais seus benefícios. e despertou, não só em mim, a potência de ter uma cozinha (compartilhada) dentro da faculdade. entre trocas, afetos, temperos, a manutenção básica de saúde se misturou ali com a criação de desejos, e a prática da co-responsabilidade. Ana Cecilia Souza
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Minha irmã define as pessoas pelos animais que elas mais gostam, tenho diversos amigos que definem os outros pelos signos, eu sempre separei pessoas de quartos, salas e até banheiros. Eu sou uma pessoa de plantas e salas, de conversas em poltronas confortáveis de frente a uma estante com livros. Eu sempre pensei que definitivamente não era uma pessoa de cozinha, sempre briguei para comer menos, ir contra a corrente, sorvete de almoço, liberdade, pão com açúcar puro. Meus pais são pessoas da cozinha, meu pai trabalhou em restaurantes a vida toda, como chef, garçom, metre, dono e gerente. E minha mãe acompanhava ele, ajudando. Eu nunca quis aprender nada. Eu nunca soube o que era uma abobrinha, até que fizeram uma cozinha na arquitetura. Confesso que me interessei por ela subverter todas as ideias, legumes freegans, um almoço com 5 proteínas, mas hoje recebo convites para casa de amigos, sou quase uma especialista. Encontrei uma liberdade em outro lugar, mais saudável, mais leve, ela tem uma consistência das ruas. Camila Felix
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Cozinhar, assim como construir, é, também, se rebelar. Construir onde se mora e cozinhar o que se come são poderosos meios de insurgência. O poder dessas práticas está justamente na força de nos fazer questionar as massificações e as automatizações que controlam nossos desejos e são causadas tanto pela indústria alimentícia quanto pela da construção civil. A cozinha comum, de primeira, nos desautomatiza simplesmente por ser cozinha onde se prepara e não somente onde se esquenta algo pré-preparado ou congelado, onde se faz por si e para si e onde se come e se compartilha, aberta e colaborativa, que se propõe em lugares inusitados e se faz assim muito poderosa porque ressignifica e nos faz pensar nossas práticas alimentares cotidianas e relacioná-las também aos espaços que ocupamos. Wesley Henrique Souza
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A Cozinha Dona Lurdes é um potente espaço para o encontro na Escola de Arquitetura. Através dos banquetes e refeições, o ato de cozinhar se mostra como um facilitador de conversas e aproximação entre diferentes pessoas, sejam estudantes, funcionários, vizinhos etc. A partir das receitas e dicas compartilhadas, podemos trocar experiências relacionadas a diferentes temporalidades e territórios, além de contribuir para autonomia alimentar de cada um que já passou por lá. A Cozinha – que já transitou por diversos lugares dentro e fora da Escola – também promove sentimento de pertencimento ao espaço compartilhado, pois distribui a responsabilidade entre todos que se relacionam com espaço tão dinâmico. Andre Siqueira
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As novas instalações da cozinha estão ainda sendo experimentadas por quem utiliza o espaço. Existe um tempo entre a realização da intervenção e os usuários encontrarem sua forma de se utilizar a nova estrutura e respeitar algumas regras de organização do espaço coletivo. O espaço também segue sendo apropriado e reconfigurado por cada usuário. Em um almoço com sarau as grades da cozinha foram transformadas em varal de receitas e poemas. Durante as semanas seguintes, o adesivo colocado na geladeira para anotarmos as datas do que foi estocado se tornou um mural de recados. Enquanto for utilizado e apropriado o espaço nunca estará em uma condição de projeto concluído. Seguirá recebendo novas intervenções, adaptações e gambiarras de acordo com a evolução das necessidades dos usuários. Entendemos que essa reforma foi uma primeira intervenção para atender o que era prioridade agora. Experimentando o espaço no dia-a-dia e com uma posição crítica de atores que intervêm na construção de seu espaço cotidiano, a cozinha seguirá como um arquitetura em processo, viva, sempre reconfigurada e reimaginada pelos sujeitos que a utilizam. E talvez só assim sempre exista e resista a cozinha na escola de arquitetura, sendo um projeto em devir. 77
cozinha dona lourdes depois de mutirĂŁo
lista de fotografias capa - detalhe cozinha Dona Lourdes pág.9 - almoço na casa de Esmeralina pág12 - cozinha comunitária Ocupação Paulo Freire pág15 - fachada do restaurante FOOD pág17 - refeitório da Cozinha Popular da Mouraria pág 21 - People’s Potato pág 33 - almoço coletivo na Peixaria cozinha D.A. pág 36 - almoço servido no gramado interno pág 41 - mesa coletiva de almoço pág 48 - almoço na Peixaria pág 55 - almoço coletivo na sala Dona Lourdes pág 56 - visitantes de Betim cozinhando com alunas pág 61 - Cozinha Dona Lourdes pág 78 - cozinha Dona Lourdes depois de mutirão autorias págs 9,12, 33, 48, 56, 78 e capa - Nó Coletivo pág 15 - thegourmand.co.uk pág 17 - fb.com/CozinhaPopularDaMouraria pág 21 - peoplespotato.com págs 41 - Luisa Greco págs 55, 60 - Iara Pezzuti todos desenhos e diagramas são de autoria dos autores
notas (1) SENNETT, Richard; Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012 (2) RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2012. (3) KWON, Miwon. One place after another: site specific art and location identity. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2002. (4) SENNETT, Richard; Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação. Rio de Janeiro: Record, 2012 (5) idem. obra sob domínio público permitido seu compartilhamento, cópia - incluindo fotocópia (xerox) - distribuir, exibir, reproduzir a totalidade ou as partes desde que não tenha objetivo comercial e sejam citados os autores e a fonte.
Agradecemos imensamente todas as pessoas que compartilharam conosco a construção desse espaço, as vivências de cozinha e toda produção de receitas, afetos e saberes que nele aconteceram. Aline Furtado, Alice Werner, Amanda Lage, Ana Cecília Souza, Ana Lacerda, Ana Leticia Roosevelt, Ana Pitzer, André Siqueira, André Inoue, André Victor, Aninha Costa, Aninha Horta, Ariel Garcias, Belisa Murta, Bernardo Carvalho, Brenda de Castro, Caia, Caio Nepomoceno, Caio Brandt, Camila Bastos, Camila Félix, Camila Oddi, Carol Mattos, Carol Smokowski, Claudia Mara, Clycia Cardoso, Cuca Rezende, Daniela Ponce, Emídio Souza, Eric Crevels, Estevam Gomes, Felipe Carnevalli, Felipe Jawa, Felipe Melo, Fernanda Comparth, Fernanda Gomes, Flavia Prazeres, Gabriel Braga, Gabriela Alcantara,Gabriela Rezende, Gisele Carraro, Higoor Lima, Iara Pezzuti, Igor Guelfo, Ika Okamoto, Isabela de Moura, Isabela Resende, Isabela Izidoro, Isma Costa, Jessica de Castro, Júlia Braga, Júlia Candelária, Júlia Passos, Júlia Rabelo, Juliana Hermsdorf, Kauê Lima, Lívia Sales, Larissa Reis, Laysla Araújo, Leticia Notini, Lucas Kroeff, Ludmilla Aquino, Luís Marques, Luisa Greco, Luísa Silva, Maíra de Oliveira, Márcia Irrazabal, Maria Carolina, Maria Clara Cerqueira, Maria Clara Oliveira, Maria Eduarda Croys, Maria Soalheiro, Mariana Bubantz, Mariana Oliveira, Marília Pimenta, Marllon Morais, Matheus Lira, Mayumi Amaral, Miguel Velloso, Nicoly Fujii, Nuno Neves, Patrícia Cioffi, Patricia Nardini, Paula Lobato, Pedro Flora, Pedro Heliodoro, Pedro Pessoa, Pedro Teixeira,Pedro Velloso, Rafa Pachamama, Raquel Byrro, Renata Ribeiro, Rodrigo Bastos, Sarah Kubitschek, Saulo Freitas, Thais Rubioli, Thomaz Yuji, Vinícius Luíz, Vitor Lagoeiro, Vitor Mattos, Vitória Ramirez, Wesley Souza.
E todos outros alunos que usaram e virão a usar a cozinha, e dão vida e continuidade a essa história.
As práticas e registros presentes nessa publicação levam um tempero de conversas, ideias e feituras em parceria com: Adriano Mattos, Afonso Scliar, Ana Cimbleris, Ana Xavier, Bruno Araujo, Camila Morais, Cesar Guimarães, Claudia Mayorga, Daniel Taranto, Dani Rodrigues, Debora Moura, Denismar do Nascimento, Dona Eudir, Elisa Vianna, Emanuelle Souza, Esther de Oliveira, Fernando Carvalho, Francisco Magalhães, Frederico Canuto, Igor HJ, Isabela Lopes, Ivie Zappellini, Kaka, Jango Nery, Joseane Jorge, Junia Ferrari, Laís Grossi, Leonardo Péricles, Lucas Mourão, Marcella Arruda, Marcela Brandão, Marcos Enamorato, Mari Siricutito, Mariana Moura, Marília Augusta Duarte, Marcus Maia, Margarete Leta, Natacha Rena, Núria Manresa, Patrícia Brito, Pedro Pedro, Poliana Souza, Rafa Barros, Rafa Machado, Rafa RG, Renata Marquez, Ricelle Alonso, Rita Velloso, Roberta Guizan, Rondinélia Pereira, Silvia Herval, Tatiana Veloso, Thaís Geckseni, Wellington Cançado, Zora Santos.
Nó Coletivo Ceci Nery + Paula Lobato + Thiago Flores
desenvolve práticas espaciais transdisciplinares de autoria compartilhada que visam empoderamento e emancipação cidadã em contextos diversos. fb: https://www.facebook.com/ncoletivo/
Coleção Cozinhas Compartilhadas - Volume 02: Cozinha a Muitas Mãos Ceci Nery e Thiago Flores Ceci Nery e Thiago Flores Orientadores: Junia Ferrari e Wellington Cançado Produção Gráfica: Thais Geckseni Pesquisa:
Autoria e Design Gráfico:
Esta publicação foi impressa no mês de janeiro de 2017, em Belo Horizonte, Minas Gerais Brasil, pela Àster Graf. O corpo do texto é na fonte Futura IGC e foi impresso sobre papel Pólen 90g e a capa sobre papel Concetto 250g.
cozinhas compartilhadas 2016