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oxid a çã o
de
um
combustível que nasce o fogo. No caso do segundo disco da Francisco, El Hombre, foi a pressão de morar
#87 // ANO 13
expediente
na caótica São Paulo de 2019 que NOIZE COMUNICAÇÃO
NOIZE FUZZ
catalisou a combustão de ideias e
Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha
Editores Gustavo Brigatti Joana Barboza Leonardo Baldessarelli
sentimentos que provocou o álbum
Gerente Financeiro Pedro Pares Gerente de Planejamento Cássio Konzen
Gerentes de Projetos Brenda Beloni Caio Pereira Jordana Monteiro Thais Martins
Diretor de Criação Rafael Rocha
Atendimento Interno Ingrid Mônaco
RH Taisla Heres
Redação Camila F Oliveira Guilherme Flores Rodrigo Laux Tássia Costa Vanessa Castro Vinícius Rocha
legado do produtor Carlos Eduardo
Assistentes de Arte Guilherme Ferreira Maicon Pereira
Planejamento Gabriela Etchart Julia Brito Taína Cíceri Thiarles Wäcther
últimos dias e RASGACABEZA é dedicado
Produção Cristal Caetano Dani de Mendonça Malena Thailana
Coordenação de Mídia Ágatha Donini
Coordenação de Arte Jaciel Kaule Diretor de Arte Felipe Alves
Coordenação de Vídeo Lucas Tergolina Vídeo Humberto Ferreira Mateus Ramos Pedro Krum Shandler Franco Thaíse Silva
Repórter Brenda Vidal Community Manager Ana Paula Pause Hayane Leotte
começa aqui, traz uma homenagem ao
Miranda, que infelizmente nos deixou há um ano. Ele esteve bem próximo à Francisco, El Hombre durante seus
a ele e a todos entes queridos da banda que se foram há pouco.
Já o lado B remete a um estado de frenética correria. Trazemos uma
Community Manager Débora Martins Fernanda Herter Liliane Fraga
desenvolveu
Gerente de Planejamento Marcel Maineri
Diretor de Arte Árthur Teixeira
funcionar. O lado A da revista, que
matéria sobre o intrigante Corrido,
Novos Negócios Leandro F. Gonçalves
Coordenação de Projeto Helene Hoy Karen Rodriguez
dá pane e, subitamente, para de
Coordenação de Community Manager Maurício Teixeira
GRITO
Editor Ariel Fagundes
Às vezes, a máquina não aguenta,
Mídia Camila Ferrareli
Foto Carlo Barros
NOIZE RECORD CLUB E NOIZE.COM.BR
RASGACABEZA.
gênero musical do México que se durante
a
Revolução
Mexicana e, com o tempo, se tornou a trilha preferida do crime organizado de lá. Trazemos ainda uma entrevista com Orishas feita com ajuda da própria Francisco, El Hombre.
Coordenação de Projetos Carolina Farias Gerente de Projetos Gabriel Dias
Ponha seu novo disco na agulha, siga as páginas e deixe sua cabeça se
Planejamento Matheus Barbosa Matheus Gugelmim
rasgar ao meio.
Estagiário Planejamento Rafael Kronitzky Redação Camila Benvegnú Pedro Veloso
Ariel Fagundes
NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn
4A
noize.com.br
Colaboradores
Brenda Vidal
Leonardo Lucena
Francisco, El Hombre Jornalista vivendo um ritmo que
Artista visual focado na cena
Juliana
só a música pode acompanhar.
independente, já trampou com
Strassacapa, Mateo Piracés-
Apaixonada por cultura, arte e
nomes como Francisco, El Hom-
negritude.
bre, Braza, MMGL e Bike. Um
Formada Ugarte,
por Sebastián
Piracés-
Ugarte, Andrei Kozyreff e Rafael
Catavento e uma abelha da
Gomes, a banda acabou de
Honey Bomb Records.
lançar o seu segundo álbum completo, RASGACABEZA. Aqui, dividem conosco os discos, livros e filmes que rasgaram suas cabeças e ainda entrevistam a lenda do rap cubano Orishas.
Jornalista
com
Isabela Yu
Gustavo Brigatti
passagens
Mais um jornalista matando um
pelas redações da MTV Brasil
leão por dia na publicidade.
e das revistas ELLE e L’Officiel.
Música, cultura pop e abismos.
Gosta tanto do impresso que faz de tudo na Revista Balaclava.
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Bandas que você
não conhece mas
deveria
Y La Bamba yl a b a m b a .c o m
_ o que, quem? “Y La Bamba tem sido muitas coisas, mas no coração disso tudo está o senso inquisitivo de si mesma da cantora e compositora Luz Elena Mendoza”. Esse trecho da bio no site oficial da banda é a síntese para você se conectar à proposta. É um grupo com 11 anos de existência e cinco discos na carreira, mas a figura que dá a direção e que permanece nas diversas formações e fases do projeto é Luz Elena.
T E XTO _
F OTO _
Brenda Vidal
Steffannie Wal k/Reprodução
noize.com.br
“A composição inimitável de Mendoza é impulsionada por uma voz de tremer a terra e letras incisivas que falam sobre a dualidade entre o machucado e a cura” _ mood: Espiritual, confessional, catártico, spanglish . Luz Elena é a capitã, Y La Bamba é o navio; a jornada se dá pelas profundezas do interior e a bússola é o coração. Nos três primeiros discos, Alida St (2008), Lupon (2010) e Court the Storm (2012), é tudo bem folk latino, algo que vai da psicodelia de Edward Sharpe and the Magnetic Zeros ao intimismo da Feist. Já era interessante, mas ainda não era tão Luz Elena. A partir do elogiado Ojos Del Sol (2016), ela tomou as rédeas, começou a se envolver com a produção e o projeto foi ganhando um caráter mais autêntico e íntimo, que encontra seu auge em Mujeres (2019). Y La Bamba é uma banda já antiga, mas em uma fase completamente nova. Sob a luz de Luz, há uma maior fluência entre folk americano, dream pop lo-fi e referências de música mexicana. Luz é uma norte-americana filha da diáspora latina: seus pais são do estado de Michoacán, México. Entre versos em espanhol e inglês, sua música é a forma de alinhavar as complexas experiências de ser uma mulher latina de origem mexicana nos Estados Unidos com um cenário de crescente xenofobia.
(NPR
World
Cafe,
2019)
_ qual a vibe? Mergulho interior. Pra quando está reflexivo pensando na vida, nas memórias, nos traumas, nas lembranças. É pra fazer as pazes com os seus demônios - ou fazer eles se mandarem também. Pode ser meio bruxona moderna, pra acender os incensos e energizar os cristais. Tem músicas individuais e coletivas, vai da compreensão de si até um levante feminista. Em algumas faixas é super dançante também. Tem dor, tem cura, tem intensidade.
_ por onde começo? Ouça disco Mujeres e assista ao clipe de “Boca Llena”, codirigido e idealizado pela própria Luz. Confira também a performance ao vivo da banda no canal da KEXP no YouTube, e, se você entender bem inglês, dê uma atenção especial pro papo entre Luz e a apresentadora, a DJ Sharlese, sobre raça e identidade. Ao final, você vai ficar como essa carinha aqui “ :’)”.
7A
_ como soa? Depende. Até o terceiro disco, o som vai corresponder bastante a uma expectativa geral sobre “folk latino”. Em Ojos del Sol e Mujeres , a pegada é mais psicodélica e multifacetada: vai de faixas prontas para uma marcha revolucionária, passando por distorções lo-fi até folks mais calminhos. É bem emocional: dialogando com a herança da família, as relações com os pais, o machismo na criação, a força da união das mulheres, as lembranças dos verões em San Joaquin Valley ao som de mariachis, ela mergulha em memórias ora acolhedoras, ora d e s c o nfo r tá ve i s . Um jogo entre luz e sombra, com músicas para dias de chuva e outras para dias de sol.
T E XTO _
F OTO _
Isabela Yu
Lucca Miranda
5 perguntas
para Alexandre Capilé In garage we trust! Capilé está na ativa desde o fim dos anos 90, quando fazia parte das bandas Sugar Kane e Mandioca Radioativa. Quando não está gravando no seu Estúdio Costella – onde a Francisco, El Hombre gravou parte de RASGACABEZA –, pode ser encontrado no palco com a Water Rats, Camarones Orquestra Guitarrística ou Ator Morto. Com os olhos no futuro e a filosofia DIY nas veias, ele vê a importância do músico ocupar outros papéis no mercado. Uma de suas aventuras é o selo Forever Vacation Records, guarda-chuva responsável por abrigar seus projetos e lançar outros grupos, como Deb And The Mentals e Violet Soda.
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Com tantos anos de estrada, o que é necessário para manter a chama da música acesa? Meu amor obsessivo pela música é o que mantém a chama acesa. Para sobreviver no meio musical, a gente tem que ser 360º – compor, tocar, gravar, produzir, vender shows, montar selo, organizar festival… Viver um estilo de vida em que você não sente que está trabalhando, ao mesmo tempo em que nunca está de férias. Quando completei 30 e poucos anos, estava bem desanimado com o som que estava fazendo e com o mercado. Tentei desistir e seguir outra carreira. Isso durou alguns anos, onde aprendi mais sobre quem sou e o que me move. Estava mais perdido do que antes, então voltei para a música ao assumir o Estúdio Costella, passando a me dedicar 100% aos meus projetos musicais. Isso já faz uns sete anos – e daqui não saio mais. Observador e participante da cena independente, você acha que os perrengues mudaram de quando você teve sua primeira banda? Mudaram, mas continuam existindo. Quando comecei, a comunicação na cena alternativa era muito rudimentar. Não tínhamos muitos espaços que apoiavam a música autoral e fazer uma tour pelo Brasil beirava a utopia. Hoje, todo mundo está conectado. A informação rápida permitiu a todos produzir e divulgar seu próprio som sem grandes custos, o que democratizou o sonho de cair na estrada. Por outro lado, saturou o mercado e chamar a atenção das pessoas e construir uma fanbase parece ser muito mais difícil hoje em dia.
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Quais são os desafios de se manter um estúdio? Manter um estúdio depende de muita força de vontade e proatividade. Não são todos os dias em que alguém vai telefonar para gravar um disco. Para você chegar até as pessoas tem que levar o trabalho muito a sério, além de criar um clima inspirador no ambiente. Hoje, é possível gravar discos sem ir a um estúdio, por esse motivo, atrair pessoas tem a ver com a sua personalidade nas produções. O estúdio Costella também é a base para os selos Forever Vacation Records e Flecha Discos, então, produzir e lançar bandas é o que fazemos para manter a estrutura viva. Para viver, hoje, precisamos ser um núcleo cultural, não fazer só uma coisa, fazer o que se pode para movimentar o espaço. Como você escolhe as pessoas com quem vai colaborar? Sempre digo sim para parcerias, não tenho muitas restrições. Claro que, antes de tudo, preciso me identificar com o que vou cantar ou tocar, mas, fora isso, adoro aprender ao colaborar com outros artistas. Como a Francisco El Hombre estava gravando comigo, acabei sendo convidado para cantar na faixa “Chão Teto Parede”. Pensei na linha que gravei assim que ouvi a música. Foi bem natural e acho que funcionou. Eles são tão livres e essa liberdade é contagiante. Quão importante é para o artista ter conhecimento sobre o que vem por trás da música? Não dá para esperar os outros fazerem por você ou, se fizerem, você precisa saber como as coisas funcionam para não ser enganado. Grave seu disco, monte seu selo, sua casa de show… Faça alguma coisa, quem não se mexe, não faz nada.
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T E XTO _
F OTO _
A RT E _
Gustavo Brigatt i
Rafael Kent
Jaciel Kaule
noize.com.br
MIRANDA 10 discos de uma vida de som
Imagine uma linha do tempo da música brasileira. Mas não qualquer música brasileira, só a mais original, disruptiva, ousada e interessante. Estique essa linha do começo dos anos 1980 até o dia 21 de março de 2018, quando partiu desta para uma melhor o principal nome dessa linha: Carlos Eduardo Miranda. Produtor, jornalista, diretor criativo, músico de improviso, executivo diletante e até jurado de shows de talentos, Miranda jogou em praticamente todas as posições da cadeia musical. Seu principal troféu foi ter sido responsável pelo boom da cena independente brasileira nos anos 1990, quando fundou o selo Banguela, mas trabalhou incansavelmente antes e depois. Sempre em busca do talento, estivesse onde estivesse.
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A Francisco, El Hombre foi uma das que chamaram a atenção do gaúcho. Chegaram a trocar muitas ideias sobre o trabalho que a banda estava gestando na época, o agora recém-lançado RASGACABEZA . Mas a parceria não chegou a se concretizar em estúdio: no dia em que morreu vítima de um mau súbito, Miranda enviou mensagens para a banda dizendo que eles já haviam encontrado seu caminho e que o disco seria um sucesso com ou sem ele. Fica o legado de um dos maiores incentivadores não só do rock, mas da música de todos os gêneros produzida no Brasil. De Porto Alegre a Belém, escolhemos 10 álbuns decisivos em que o Miranda se envolveu para contar a história de sua vida. Boa viagem!
Rock Garagem (1984) Vários Artistas
Com Amor Muito Carinho (1988) Graforréia Xilarmônica
Miranda surgiu para a música em cima do palco, na Porto Alegre do início dos anos 1980, quando a capital gaúcha começava a sintonizar o rock em suas frequências moduladas. Em uma cena que se caracterizava pelo dinamismo de formações e pluralidade de subgêneros, ele encontrou seu lugar participando (com maior ou menor protagonismo) de uma série de bandas, sempre dialogando com a experimentação e sem nenhuma paciência para o lugar comum. Revezando-se entre vocal, teclado, guitarra, programação de beats e samples, fez hard rock com pegada metal nos primórdios do Taranatiriça, se meteu com punk rock e póspunk no Atahualpa Y Us Panquis e misturou teatro com new wave na Urubu Rei. Com esta última, aliás, conseguiu um dos poucos registros em disco, na coletânea Rock Garagem. O álbum é considerado a pedra fundamental do que viria a ser conhecido como Rock Gaúcho e traz a faixa "Nega", com Miranda nos teclados e vocais. A Urubu Rei, que tinha em sua formação Castor Daudt na guitarra, Flávio "Flu" Santos no baixo e Biba Meira na bateria, se desmancharia pouco depois de participar dessa coletânea. Por volta de 86, Flu e Castor se juntaram à Biba em outra banda fundamental do Rio Grande do Sul, o De Falla, liderada pelo pupilo e amigo de Miranda, Edu K.
Em meados dos anos 1980, a cena roqueira de Porto Alegre fervilhava. Entre os destaques estavam Os Replicantes, expoente do punk brasileiro que, àquela altura, tinha um fã-clube considerável e tocava em casas clássicas da capital gaúcha, como o bar Ocidente. Miranda, que já havia trabalhado com a banda em seu primeiro single, “Nicotina”, se juntou à trupe para fundar o Vórtex, misto de estúdio, produtora, bar e selo. Pelo Vórtex, foram lançadas fitas cassete de bandas representativas daquela cena, como Os Cascavelletes. Mas talvez o K7 mais importante que o selo lançou ainda com a participação de Miranda na equipe tenha sido a demo Com Amor Muito Carinho, que apresentou a Graforréia Xilarmônica para o grande público. Formada por Carlo Pianta, Frank Jorge e Marcelo Birck, a Graforréia não tinha apenas o nome bizarro: enquanto a sonoridade se inspirava em uma esquecida Jovem Guarda misturada com rock experimental, as letras flertavam com o nonsense, cruzando cultura pop, regionalismo e o duvidoso senso de humor porto-alegrense. Sem contar que, diferentemente de muitos dos envolvidos com a cena do rock no Rio Grande do Sul, o trio realmente sabia tocar música - e Miranda sabia disso. Tanto que viria a trabalhar com a banda novamente em 1995, lançando o primeiro registro oficial da Graforréia, Coisa de Louco II, feito nos estertores do Banguela, seu selo
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descobridor de talentos dos anos 1990. Com o tempo, a banda ganhou uma aura cult, chegando a ter duas músicas suas regravadas pelo Pato Fu, "Eu" e "Nunca Diga", sendo que essa última também já foi tocada pelo Los Hermanos. Raimundos (1994) Raimundos No começo dos anos 1990, o mainstream da música no Brasil estava tomado pelo sertanejo e pelo axé. Sem muito espaço no rádio e na TV, o rock (re)encontrava seu caminho em festivais independentes, espaços alternativos e em bandas que lançavam seus trabalhos em demos caseiras. Nesse momento, Miranda já não morava em Porto Alegre, estava em São Paulo trabalhando como repórter da revista Bizz e vivendo ativamente a cena de música alternativa da cidade, envolvendo-se de forma mais ou menos ativa com o trabalho de vários grupos. Nesses anos em que viveu na redação, ele recebia muitas fitas demo, incluindo as primeiras gravações de grupos ainda anônimos, como Nação Zumbi, Planet Hemp... Seu faro lhe mostrou que alguma coisa estava acontecendo. Durante a gravação do Titanomaquia (1993), Miranda se aproximou do Titãs e resolveu mostrar pra banda essas demos. E os caras piraram. Foi assim que nasceu o selo Banguela. Miranda mostrou para o Titãs (e para a Warner, gravadora à qual o selo era atrelado) que, com o orçamento normal de uma major desse porte para um disco, ele conseguia fazer vários. O primeiro deles foi o álbum de estreia de um grupo de Brasília que unia ritmos nordestinos com hardcore e letras debochadas. Contrato assinado, Miranda botou o Raimundos no estúdio e
sentou atrás da mesa de som deixando que a banda soltasse sua fúria criativa em um disco ousado em conceito e estética. E o tiro foi certeiro: faixas como “Selim”, “Nega Jurema” e “Puteiro em João Pessoa” viraram hinos para aquela geração e, em pouco tempo, o Raimundos virou sucesso de crítica e público, transformando Miranda no olheiro oficial do rock independente brasileiro. Cinco anos depois, Miranda coproduziria ainda Só No Forevis, o disco mais vendido do Raimundos e o último de estúdio com a formação original. Samba Esquema Noise (1994) Mundo Livre S/A Se, com os Raimundos, o Banguela e Miranda tinham seduzido as massas, Samba Esquema Noise, do Mundo Livre S/A, era seu biscoito fino. Um dos fundadores do manguebeat ao lado de Chico Science e Nação Zumbi, o grupo liderado por Fred04 já somava dez anos de atividade sem um registro oficial - até encontrar em Miranda a força necessária para levar adiante a empreitada. No estúdio, sob a batuta do produtor, Mundo Livre S/A misturou samba, rock, punk e funk sem nenhum pudor em faixas como “Musa da Ilha Grande”, “Homero, o Junkie” e “Livre Iniciativa”, que contaram com participações especiais de Nasi (vocalista do Ira!), da atriz Mallu Mader e dos Titãs Paulo Miklos, Charles Gavin e Nando Reis. Considerado um clássico instantâneo e um dos discos mais emblemáticos dos anos 1990, Samba Esquema Noise foi também o primeiro revés do Banguela: custou mais que o previsto e vendeu pouquíssimo, não compensando as horas gastas em estúdio. Mesmo assim, colocou o Mundo Livre S/A na pauta do
noticiário musical e foi uma prova de que o Miranda conseguia enxergar muito além do rock n' roll. Cansei De Ser Sexy (2005) Cansei De Ser Sexy No começo dos anos 2000, a internet ainda engatinhava no Brasil e a troca de arquivos via P2P ainda não havia se consolidado. É nesse cenário que surge a TramaVirtual, braço digital da gravadora Trama que, sob os cuidados de Miranda, se transformaria em um dos maiores distribuidores de música independente do Brasil na época da internet discada. Centenas de bandas encontrariam ali um canal para finalmente se conectarem com o público - e uma delas foi a Cansei de Ser Sexy. Misturando indie rock eletrônico com performances teatrais, o grupo agitava o circuito de inferninhos paulistanos e passou a ser notícia dia sim, dia também, nas colunas de música dos jornais. Miranda não chegou a participar diretamente da produção do disco homônimo de estreia do CSS, mas era entusiasta da anarquia sonora que o grupo produzia e fez uma sugestão inusitada: lançar o CD com um CD-R, para que o comprador pudesse copiar o disco nos gravadores de CD caseiros que já estavam se popularizando e dá-lo para outra pessoa - uma espécie de pirataria incentivada. O álbum fez a banda estourar e engatar turnês pelo Brasil e exterior, em um movimento que animou as grandes gravadoras a olhar a internet não como inimiga, mas como uma aliada. Com a chegada da web 2.0, o site da TramaVirtual foi definhando até morrer, em 2013 - mas a semente plantada por Miranda já havia germinado e não havia mais volta.
Carrosel (2006) Skank A relação de Miranda com o Skank remete aos primórdios da banda mineira, quando Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti eram quatro garotos aficionados por ska, rock britânico e MPB. O próprio quarteto admitiu mais de uma vez: a história do Skank seria bem diferente sem Miranda, cujos contatos na imprensa foram fundamentais para apresentar os mineiros para o eixo Rio-SP e daí para o restante do Brasil. A aproximação entre ambos era inevitável, uma vez que a música produzida pelo Skank era exatamente aquilo que empolgava Miranda: festiva, com sotaque regional, inteligente e diferente de tudo aquilo que era produzido na época. Foi com toques do produtor gaúcho que o Skank começou a virada em sua carreira, com o disco Maquinarama (2000). Seis anos depois, a parceria entrou no estúdio, com Miranda produzindo quatro das 15 faixas de Carrossel: o rock de acento indie "Mil Acasos", a balada sessentista "Lugar", o rock com sotaque folk "Antitelejornal" e a lúgubre "Seus Passos". C_mpl_te (2009) Móveis Coloniais de Acaju O Móveis Coloniais de Acaju surgiu no final dos anos 1990, no boom de bandas que cruzavam influências de indie rock com ska e produziam um som dançante e cheio de fanfarronice com uma pitada de MPB. Depois de lançarem um debut produzido por Rafael Ramos e feito de maneira independente, procuraram Miranda para dar uma burilada no som e crescer em direção ao mainstream. O produtor gaúcho meteu a mão com vontade nos dois discos seguintes do grupo: C_mpl_te, lançado gratuitamente pelo selo virtual que Miranda comandava, o TramaVirtual, e De Lá Até Aqui (2013), que saiu pela Som Livre. Neles, mandou a banda ouvir discos clássicos de punk e ska, aparou os excessos do primeiro álbum e organizou as ideias da trupe bra-
noize.com.br
siliense, conseguindo uma unidade e peso até então inéditos em disco. O toque de Midas de Miranda funcionou tão bem que “O Tempo”, um dos singles de C_mpl_te, virou tema da novela Araguaia, da Rede Globo, e o Móveis virou figurinha fácil nos principais festivais de música brasileiros incluindo o Rock in Rio de 2011. Treme (2012) Gaby Amarantos No segunda metade dos anos 2000, Miranda estabeleceu uma forte ligação com
o Pará. Chegou a se mudar para Belém de mala e cuia para trabalhar, produzindo projetos ligados ao governo do estado e o que mais pintasse. Foi quando teve contato com a Beyoncé do Pará, sucesso local e em certos nichos virtuais. Mas a "Beyoncé" tinha nome próprio e talento para ser mais do que um meme ou uma sombra de artista gringa - só faltava o direcionamento correto. Trabalhando como diretor musical, Miranda aproveitou seu feeling de trabalhar com artistas regionais (mas de grande apelo pop) para estabelecer a identidade que faria de Treme o cartão de visitas de Gaby Amaran-
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tos para o resto do Brasil. O disco de estreia era tudo o que o cenário pop brasileiro precisava na época: ousado na estética sem abandonar suas raízes, mirava a vanguarda sem deixar de ser pop. Tecnobrega, carimbó e guitarrada comandavam, mas o resultado era 100% radiofônico, recomendado para qualquer tipo de paladar sonoro. Gaby subiu para o mainstream do centro do país feito foguete, cavando seu lugar nas rádios, participando de festivais e programas de TV e colocando música em abertura de novela da TV Globo (a faixa “Ex Mai Love” virou tema de Cheias de Charme).
Mahmundi (2016) Mahmundi Outra aposta de Miranda, Mahmundi (nome artístico de Marcela Vale) surgiu com voz própria em 2012 no EP Efeito das Cores. O trabalho chamou a atenção da mídia e do público e, em 2014, ela levou o Prêmio Multishow de Nova Canção com o single “Sentimento”. Não demorou para Miranda convidar a carioca para o selo Stereomono, o braço da Skol Music que era capitaneado pelo gaúcho e tinha em seu cast nomes graúdos do indie, como Boogarins. Sob direção artística do Miranda e produção dela própria, Mahmundi lançou
seu primeiro disco, homônimo. Investindo em beats lo-fi e vocais limpos e super afinados, o álbum respirou a atmosfera pop dos anos 80, mas sem ser saudosista: sob a batuta de Miranda, Mahmundi olhou pra frente, em faixas possantes como “Desaguar” e “Eterno Verão”. Em entrevistas na época do lançamento, ela comentou que um dos pilares da filosofia que sempre norteou o trabalho de Miranda foi fundamental para o sucesso do álbum: liberdade. Segundo ela, Miranda pouco opinou sobre repertório ou arranjos, limitando-se a indicar caminhos e reforçar que ela deveria focar no que fosse sua identidade, sua verdade. Deu no que deu.
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La Cumbia Negra (2016) La Cumbia Negra Entre 2006 e 2018, Miranda trabalhou também como jurado de vários programas de TV, tendo passado pelos canais SBT, Band e RedeTV! - fato de pouca relevância artística, mas que lhe garantiu uma fama nacional que ele nunca havia experimentado antes. Em um dos seus últimos projetos musicais, Miranda saiu dos bastidores para voltar às origens: o palco. Antenadíssimo no avanço da música latina em território brasileiro, decidiu fazer parte da nascente cena que trabalhava a cumbia como seu ingrediente principal. Juntou os guitarristas Guri Assis Brasil e Gabriel Guedes, o baterista Thiago Guerra, Klaus Senna no baixo, Guilherme Almeida nos teclados e assumiu a percussão junto de Igor Caracas. A La Cumbia Negra lançou um único disco, homônimo, mas suficiente para dar o seu recado ao estilo Miranda: era cumbia, mas também rock, psicodelia, distorções… e muita diversão. O disco soa exatamente como a banda é, uma junção de amigos tirando um som sem se preocupar com certo ou errado. Apenas deixando rolar e acreditando que aquela música é o certo a ser feito naquele momento como um testamento para um futuro possível. Não tem como ser mais Miranda do que isso.
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T E XTO _
F OTO S _
A RT E _
Ariel Fagundes
Carine Wal lauer
Rafael Rocha
noize.com.br
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vencê-los no segundo álbum de sua carreira.
Mergulhando no abismo do desconhecido, a Francisco, El Hombre produziu o material mais provocativo de sua carreira. Aqui, a banda conta como criou um álbum feito para rasgar ao meio a sua cabeça. Seja feita a vossa vontade Francisco, El Hombre é o nome de uma figura da cultura popular colombiana e a sua história é famosa no Valle de Upar. A versão mais comum da lenda diz que seu nome era Francisco Moscote e que ele era um músico viajante que se apresentava tocando seu acordeon de cidade em cidade, em uma época longínqua quando artistas como ele eram os responsáveis pelo fluxo de informações no interior do país. Natural de Machobayo, um dia, estava voltando de Guajira para a sua terra natal quando, sozinho na estrada, se deparou com alguém que também trazia um acordeon nas mãos. Sem dizer nada, o estranho começou a tocar, desafiando-lhe com uma técnica muito superior à sua. Francisco estremeceu, mas respondeu à altura, puxando uma melodia que prontamente foi repetida pelo outro músico, mas de forma muito mais elegante e refinada. O duelo seguiu até que Francisco começou a sentir um cheiro forte de enxofre e percebeu que estava frente a frente com o próprio Diabo. Cristão que era, a primeira ideia que teve foi a de tocar a oração do Pai Nosso para afugentá-lo. Porém, Francisco foi além: resolveu cantar e tocar o Pai Nosso ao contrário. As músicas laicas eram dominadas com maestria pelo Demônio, mas como ele poderia responder algo tão santo? A astúcia de Francisco derrotou o Diabo, que fugiu imediatamente. Desde então, Francisco Moscote passou a ser conhecido como Francisco, El Hombre. Essa história tradicional da Colômbia se relaciona a mitos em que heróis de inúmeras culturas enfrentam as forças do Mal e não foi por causa dela que a banda escolheu o seu nome - na verdade, o nome do grupo veio do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, que traz Francisco, El Hombre como um personagem secundário. Porém, curiosamente, a lenda colombiana se conecta de forma profética ao momento atual da banda, que precisou enfrentar seus próprios demônios e apresentar uma resposta inusitada para 20A
“Esse disco começou com medo. Enfrentando várias dificuldades”, diz Sebastián Piracés-Ugarte, que toca percussão, violão e canta na banda: “Agora, a gente tem coisas a perder. O RASGACABEZA surge quando, pela primeira vez na carreira da nossa banda, a gente se viu com enfrentando o medo de criar, de ousar”. Voando em vassouras Formada em 2013, a banda nasceu de forma despretensiosa, como uma expressão espontânea de Sebastián e seu irmão Mateo Piracés-Ugarte, que, apesar de serem mexicanos, estavam morando em Campinas (SP), onde conheceram Rafael Gomes, Juliana Strassacapa e Andrei Kozyreff. A primeira fase de atividade do grupo foi marcada por uma intensa agenda de apresentações feitas em todo e qualquer lugar possível. Pelos anos seguintes, a banda tocou em muitos bares, hostels, festas, praças, onde desse, viajando todos juntos de carro pra cima e pra baixo com o único intuito de espalhar sua música, à época, apelidada por eles de “Pachanga Folk”. Esse nome, que de alguma forma referenciava o disco Patchanka, do Mano Negra (banda que é referência para eles até hoje), foi usado para descrever a sonoridade única da Francisco, que era bem voltada à união de ritmos latino-americanos e brasileiros. Foi com esse espírito que gravaram seu primeiro EP, Nudez (2013), e também o seguinte, La Pachanga! (2015). Tendo os registros como cartão de visitas, o grupo seguiu tocando, tocando e tocando e o fato de cantarem também em espanhol abriu várias portas América Latina afora. Esse processo intenso de viver na estrada tanto estreitou os laços entre os cinco músicos quanto catalisou sua criatividade, como se fosse o fermento de um bolo que cresceria muito no primeiro disco completo da banda, SOLTASBRUXA (2016). - O SOLTASBRUXA foi algo muito único na nossa trajetória porque marca a transição da guerrilha roots passando chapéu, que foi de onde a gente vinha, para o ponto em que a gente está agora, tocando nos principais festivais da América Latina, de certa maneira em um teto do que pode ser a música underground alternativa brasileira. E tudo isso aconteceu em um intervalo de mais ou menos dois a três anos, que chega ao processo do RASGACABEZA . O SOLTASBRUXA nasceu depois de estarmos há três anos na estrada sem muita expectativa, sem muito peso em cima de
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nós, foi uma parada que a gente vomitou, foi a diarreia criativa daquele momento. Já o RASGACABEZA vem com outros pesos, outras expectativas e demandas, outras cargas vindas de fora, o que tem sido muito desafiador. Foi o primeiro disco da banda que a levou a outro patamar. A faixa “Triste, Louca ou Má” entrou na trilha sonora da novela O outro lado do paraíso, da TV Globo, e foi indicada ao 18º Grammy Latino na categoria de Melhor Canção em Língua Portuguesa. Juliana Strassacapa, vocal e percussionista do grupo, explica que o álbum de estreia foi decisivo para que a Francisco, El Hombre entendesse quem eles realmente eram enquanto grupo. Segundo ela, foi a partir desse disco que aprenderam a trabalhar enquanto uma unidade criativa: - Sinto que, na nossa trajetória até o SOLTASBRUXA , a gente estava se encontrando musical e artisticamente. No SOLTASBRUXA , entendemos a nossa identidade enquanto coletivo, como fazer as coisas todo mundo junto de fato. Mas a gente estava mais lançando o anzol no horizonte do que falando especificamente sobre o que a gente era. Estávamos pescando algumas urgências, mas sinto muito mais como uma invocação. O RASGACABEZA eu sinto como um confronto. É como se deparar com um espelho, foi cada um olhando pra si e vendo suas emoções, mas também colocando um dedo na cara na sociedade. Abraçando os extremos Um fato decisivo na história da banda foi o encontro deles com o lendário produtor Carlos Eduardo Miranda. Naturalmente, eles desenvolveram um laço que se apertou rápido e, até o último dia de sua vida, eles estiveram em contato. Famoso por dizer o que pensava, Miranda não incensava o disco de estreia do grupo, pelo contrário, criticava-o duramente. “O Miranda odiava o SOLTASBRUXA”, diz Sebastián, que explica: - Ele gostava, mas ele odiava. Ele falava: “Porra, tem hora em que vocês querem ser pop, mas não são pop de verdade. Tem hora em que vocês querem ser esquisitos, mas não são esquisitos de verdade. Parece que sempre estão no 40, nunca estão nem no 8 nem no 80. Qual é que é? Vocês são 8 ou vocês são 80?”. As palavras do Miranda calaram fundo e fizeram a banda refletir sobre sua obra como um todo. Afinal,
qual era o seu objetivo artístico? Em que espaços do mercado queria transitar? O que queria dizer ao público? Qual é que é? - O Miranda nos deu a noção de que a gente pode ser quem quiser e de que a gente deve ousar, não deve ser 40, deve ser 8 ou 80. O nome original [do RASGACABEZA] seria 8 ou 80 em homenagem a essa tomada de postura. E, se o Miranda nos ensinou uma coisa, foi que às vezes você tem que tacar o foda-se e fazer uma coisa esquisita mesmo. Não podemos ter medo de nos expressar - diz Sebastián. O segundo disco começou a nascer logo após o Carnaval de 2018, foi nesse momento em que os músicos se reuniram para começar a compô-lo. E não demorou para perceberem que o material que estava vindo trazia uma estética bem diferente de tudo que já haviam feito. O disco parecia que seria mais eletrônico e com um discurso mais cru e, ao invés de fazer concessões, o grupo mergulhou de cabeça nessa busca e explorou ao máximo a estranheza que estava chegando. Miranda havia sacado tudo. Além do ímpeto experimental, do desejo de uma comunhão sonora latino-americana e da força política da banda, sempre houve uma potência pop na Francisco, El Hombre. E, no fim de 2018, seguindo a dica dele, o grupo resolveu dar vazão a isso sem o menor pudor no EP FranciscaLaBraza, feito em parceria com a banda carioca Braza. Sebastián conta que, apesar de o RASGACABEZA e o FranciscaLaBraza terem sido produzidos mais ou menos ao mesmo tempo, o fato de eles apresentarem sonoridades tão opostas “foi premeditado”: - Quando a ideia do RASGACABEZA veio foi tipo: “Tá, a gente tem que botar pra fora essa energia brutal, que, por ser tão estranha, talvez vá causar estranheza na cabeça de muitas pessoas. Porém, vamos fazer um experimento? Vamos fazer todo mundo acreditar que a gente tá indo para um lugar mais pop e mais fácil de consumir? Só pra depois dar uma rasteira e mostrar o outro lado?”. Aí a gente fez o rolê com o Braza, ambas as bandas queriam fazer uma música pop, leve, mas sabíamos que o que estava por vir não tinha nada a ver com isso. Quando lançamos “O Tempo é Sua Morada” [primeiro single do RASGACABEZA], lembro que um dos comentários no YouTube foi algo tipo: “Eu até gostava de Francisco, El Hombre, pena que eles agora estão gostando muito de Luan Santana”. Quando li isso, pensei: “Ah! As pessoas estão realmente comprando que a gente tá indo apenas para o pop”. Então, foi um grande experimento social. - Se o FranciscoLaBraza foi o 8 ou 80 do pop, o RASGACABEZA veio ser o 8 ou 80 do outro lado. E um disco não é a morte de uma banda, é uma fase e é pra ser. Então, vamos explorar esse lado que é pesado? Vamos explorar o lado pop? E o lado festivo? Sei lá o que ainda vai vir por aí - completa Mateo Piracés-Ugarte, vocal e violonista da banda. Das entranhas, o som Se no SOLTASBRUXA a banda contou com a ajuda da produção de Curumin (em “Calor da Rua”) e Zé Nigro, no segundo disco foi tudo na base do lema 23A
punk “faça você mesmo”. O Miranda esteve muito próximo, mas sua presença foi mais como a de um guia espiritual do que a de um produtor que pega junto e cria com a banda. Dessa vez, especialmente após a morte de Miranda, no fim de março de 2018, a Francisco, El Hombre estava sozinha. E, por mais difíceis que situações como essas possam ser, a solitude é excelente para se conectar às angústias mais íntimas da alma. O guitarrista Andrei Kozyreff lembra que, durante a gravação do SOLTASBRUXA , todos os membros do grupo se mudaram para São Paulo, onde vivem até hoje, e destaca que isso interferiu diretamente na sua criação. Foi como se o frenesi da capital econômica do Brasil estivesse impresso nas ondas sonoras de RASGACABEZA: “A vivência de São Paulo está muito latente no disco, essa ansiedade de estar na cidade, o medo…”, diz Andrei. Já Sebastián aponta que o álbum teve o mérito de conseguir abordar dois elementos que já estavam presentes na Francisco, El Hombre, mas que ainda não haviam aparecido tão explicitamente: 1) os terremotos emocionais dos músicos e 2) o sentimento do luto. “Nem tudo são flores, nem tudo é tão leve e simples”, diz. Mateo concorda com o irmão e acrescenta que o processo de composição do disco mexeu em suas vísceras e lhe levou a um grave expurgo: - Esse processo foi levantando várias coisas que eu jamais tinha conseguido falar, que nunca foram consideradas sãs, que eu achava que eram erradas e sempre tentei controlar. A letra de “Manda Bala Fogo”, que é muito rápida, saiu assim porque eu “esqueci” de tomar por uma semana meus remédios pra ansiedade e eu não conseguia parar de falar rápido. Já “Parafuso Solto” é sobre eu e a Ju tentando aceitar que o nosso ataque de pânico é a gente tentando segurar tudo que tá sentindo, sendo que o que você precisa é parar de tentar comprimir tudo embaixo do tapete - diz Mateo. Em relação a lidar com o luto, foi um desafio que atingiu especialmente Juliana de forma muito profunda. Sete anos atrás, ela precisou enfrentar a morte da sua mãe e, desde então, esse fato orbita seu universo emocional e criativo. Ju explica que, em “O Tempo é Sua Morada”, ela conseguiu cicatrizar essa dor de um modo que nunca havia conseguido antes: “Falando sobre esse processo, muitas vezes já escrevi coisas que ainda estavam muito imersas em confusões. Mas essa música já é de um lugar de cura”, diz. Todos os fogos o fogo E, se os temas do disco partem de enfrentamentos da banda, tanto internos quanto externos, em relação à criação do seu som não foi diferente. O álbum foi todo produzido por eles mesmos e, em um primeiro momento, a Francisco, El Hombre não estava segura de que isso iria dar certo. Afinal, eles nunca tinham criado beats e coordenado por conta própria tantas sessões de gravação. “Foi muito esquisito”, diz Sebastián, “produzimos coisas no avião, na casa de amigos, pra lá e pra cá, sem muito conhecimento técnico de produção, na tentativa e erro”: - Tudo que é de percussão foi roubado, sampleado, pirateado de algum vídeo que ninguém nunca conheceu e nem vai conhecer do porão dos nossos conhe26A
cimentos de YouTube. A única coisa gravada de bateria é uma virada de caixa que gravamos no Chile - explica. Quanto ao instrumental de baixos e guitarras, boa parte “foi gravado entre a cozinha do Sebastián e meu quarto”, explica Mateo. Já as vozes, sopros, cordas e algumas guitarras foram gravadas no estúdio Costella, em São Paulo. Segundo o baixista Rafael Gomes, a produção caseira levou a banda a se conectar com algumas referências que eles já tinham, mas que não haviam aparecido tanto: - Todos nós, em algum momento, vivemos uma fase mais aprofundada no punk rock, por exemplo. E produzir em casa fez com que a gente trouxesse algumas coisas um pouco mais cruas. Ao mesmo tempo, trouxe a linguagem eletrônica. Não um eletrônico tradicional, mas mais algo tipo um The Prodigy ou Buraka Som Sistema - comenta Gomes. Sebastián assina embaixo: “É um disco extremamente diferente de qualquer outra coisa que a gente fez, ainda que seja mais próximo às nossas raízes mais adolescentes”. E Juliana resume: “Esse disco é uma provocação”: - A gente se provocou muito durante o processo. Nos jogamos no abismo pra lugares muito desconhecidos de produção, de novas sonoridades, novas maneiras de construir música, de assumir um discurso, de falar sobre si, de falar sobre tudo. Uma coisa que me veio na cabeça é que eu e o Gomes, principalmente, temos contato com várias medicinas da floresta e, nesses processos ritualísticos, a gente aprende que não deve engolir tudo, tem que cuspir, vomitar, suar, botar pra fora. Processos de limpeza são muito necessários pra que a gente aprenda o que é que nos nutre realmente. Essa é a provocação: o que você vai engolir? E o que você deveria estar botando pra fora? Isso vale tanto para o núcleo de nós cinco quanto é o que a gente quer provocar nas pessoas nos shows - diz Ju. O fogo é um elemento recorrente nas letras de RASGACABEZA e não resta dúvidas de que uma chama nova acendeu na Francisco, El Hombre. Começou como faísca e, de repente, já era um incêndio sagrado que levaria embora o obsoleto abrindo espaço. Agora, a partir da experiência de dividir o álbum com o público, a banda está escrevendo a introdução de um novo capítulo da sua carreira incandescente.
RASGACABEZA faixa a faixa Juliana Strassacapa, Sebastián e Mateo PiracésUgarte, Rafael Gomes e Andrei Kozyreff mergulham conosco nas oito músicas do seu novo disco.
Lado A 1) CHAMA ADRENALINA :: gasolina “Pra mim, é muito simbólico que a primeira música do SOLTASBRUXA fale: ‘Vejo que a chuva de fogo está por cair’. E ela chegou. O fogo, a loucura, a gente já estava chamando, e ‘Chama Adrenalina’ sintetiza bastante disso, de falar no fogo como ritual, transformação, pulsão de vida, faísca. Já começa com uma provocação pra trazer autonomia e atitude às pessoas e arrancar os véus dos olhos. Já começa com uma voadora”. Juliana. 2) CHÃO TETO PAREDE :: pegando fogo “Nasce de uma brincadeira que o Mateo tinha com um amigo dele que se chama João, só que chamamos ele desde sempre de Chão, era uma brincadeira tipo, ‘Chão-Teto-Parede-
Parede-Teto-Chão’ [cantando]. Mas, no ano passado, em que estava dando vontade de mandar todo mundo se fuder, criamos essa música que é simplesmente um desejo niilista de expressar a vontade que sentimos às vezes de queimar tudo pra depois tudo renascer”, Sebastián. 3) TRAVOU :: tela azul “É muito a ver com São Paulo, é a cidade lhe mantendo a todo vapor. Dizem que São Paulo não dorme, mas, na real, quem não dorme é você. E não é que a cidade te engole, é que você é obrigado a engolir de tudo. E chega um momento em que você trava, dá tilt, seja através de drogas pesadíssimas ou até de internações e burn out total. Tô agora imersíssimo em São Paulo, não consigo parar em nenhum momento, tô super próximo desse burn out , me contempla muito bem, obrigado”, Mateo.
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Ariel Fagundes
4) ENCALDEIRANDO :: aqui dentro tá quente “É uma das mais leves do disco. A gente queria uma que a galera cantasse no show e que o corpo respondesse. Aí falamos: “Se a gente cantar sobre dar um passo pra frente, a galera vai começar a se apertar e fazer com que o fervo do show seja mais intenso. Então, veio o refrão: ‘Aqui dentro tá quente, e tá ficando mais, dá um passo pra frente’. ‘Mas como vai se chamar esse processo de fazer essa sopa quente de pessoas suadas junto se apertando? Parece um caldo, né?’. ‘Encaldeirando!’. Massa! Aí, pensando na letra, podia ser algo tipo: ‘Pode ser, pode pá, pode crer’. Que mostra esse lado blasé que se vê todo dia em São Paulo. ‘Sério que é só isso de letra?’. É! É como se, do improviso, nascesse uma contestação à vida apática e fria”, Sebastián.
Lado B 1) PARAFUSO SOLTO :: ponto morto “Começou a ser escrita em Viçosa (MG), estava quase indo pro lixo quando mostrei pra Ju e ela fez a música virar algo muito mais palpável. A gente conseguiu botar pra fora uma coisa que eu não queria falar, que é como lidamos com ataques de pânico, depressão e tristeza. Quando você consegue colocar pra fora algo tão pra dentro, consegue curar uma parte disso. A música cura”, Mateo. “Mesmo estando há tanto tempo juntos, nunca tinha sentado com o Mateo pra compor só eu e ele. E, nessa época, estávamos passando por um processo de adaptação com medicações, fazendo terapia e passando por um caos emocional bizarro. Estávamos em Montevidéu quando o Mateo desabafou comigo
e eu falei: ‘Mano, compõe, usa esse escape. Se quiser compartilhar, estamos aí’. Foi exatamente o que aconteceu e foi o melhor processo terapêutico para nós dois. Fazer essa música deu uma baixada nos ânimos. Toda vez que a ouço e canto, revisito esse momento num lugar muito mais de cura, de superação de um obstáculo. É um manualzinho de autoajuda de como passar por um ataque de pânico”, Juliana. 2) O TEMPO É SUA MORADA :: celebrar “Era só um riff de baixo que eu estava tocando enquanto a gente conversava e alguém falou: ‘Nossa, tá mó legal isso’. Aí a gente começou a falar da relação da morte e que a gente precisava colocar isso no disco porque tínhamos vivido um processo mó bonito e intenso no México, lembro da Ju pegar um caderno e falar: ‘Ah, tem essa letra’, Rafael. “A gente começou a falar sobre o caráter celebrativo do luto, um lugar que eu nunca tinha conseguido acessar a não ser no México. Sempre vinha acompanhado de muito pesar lembrar da minha mãe e foi bem emocionante compor essa música com todo mundo pensando em seus próprios processos e no que a gente viveu junto lá. Na semana do Dia de los Muertos, a galera tem uma tradição de fazer La Ofrenda, constroem um altar, pegam uma estante de madeira e vão compondo com fotos dos entes queridos que se foram, flores específicas, velas, cigarro, bebida, comida. E o processo de construir tudo isso junto foi muito divertido, muito bonito, celebratório, totalmente diferente de tudo que eu já tinha vivido relacionado à morte. Essa música já nasce apontando pra um lugar de cura”, Juliana. “E é
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super importante dizer que essa música tem dedicatórias. Muitas pessoas se foram entre nós ou estavam aflitas pelo peso do luto e a gente tinha que botar isso pra fora, inclusive uma das pessoas pra quem a gente mandou a música foi a Mônica Benício, viúva da Marielle Franco”, Sebastián. 3) MANDA BALA FOGO :: não preciso de você “Foi a última que entrou pro disco, é um estudo que eu estava fazendo em casa sobre kuduro. Eu tinha acabado de parar de tomar remédio pra ansiedade e não conseguia parar de falar, estava extremamente acelerado, falando muito rápido, nem eu me aguentava. Aí botei esse negócio pra fora, é uma personalidade que eu não esperava que estivesse em mim. Hoje, acho bom que botei pra fora, agora tenho o desafio de sustentar isso, que é uma coisa que está muito dentro de mim e preciso aprender a não esconder”, Mateo. 4) SE HOJE TÁ ASSIM :: imagina o amanhã “Essa música, na real, é um Megazord de outras duas, ‘Caixinha de Fósforo’ e ‘Fuego y Fiesta’. Foi meio que o riff e o beat de ‘Fuego y Fiesta’ e a letra e vários componentes de ‘Caixinha de Fósforo’. Tive a ideia de juntar as duas, aí rolou, é um Megazord que deu muito certo”, Juliana. “Eu acho que é um desenho da cidade de São Paulo, um grande Frankenstein. Fala tanto do lado interno, ou seja, do Clonazepam que você toma de manhã, quanto sobre um rio de merda que envolve toda cidade”, Mateo.
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Uma balada de heróis e anti-heróis
Indo do personagem histórico Pancho Villa ao traficante El Chapo, um dos gêneros musicais mais tradicionais do México atravessa os séculos acompanhando as transformações sociais, políticas e econômicas do país.
Do século XVIII até os dias de hoje, o México viveu intensas transformações: tornou-se independente da Coroa Espanhola, passou por uma ditadura militar que foi desfeita com uma revolução, sofreu alguns golpes de Estado e viu o seu território se converter em palco dos poderosos cartéis de narcotráfico, convivendo com uma sangrenta política de guerras às drogas. Resistindo a tudo isso, os corridos seguem de pé como trilha sonora do país. Você até pode achar que não faz nenhuma ideia de o que sejam os corridos, mas provavelmente já cantou “La Cucaracha” e sabe de forma quase inconsciente o starter pack
tradicional de um cantor do gênero: roupas com estética de vaqueiro - camisas de botão e paletós talvez com uma aplicação de bordado ou franjas -, cintos de fivela e o topo da cabeça coberto por um sombrero ou um chapéu de cowboy. Presente no imaginário coletivo da cultura mexicana, os corridos são um gênero musical de caráter inicialmente regional, mas que não ficou parado no tempo. Com um viés essencialmente narrativo, eles contam e documentam as histórias dos Méxicos que testemunham complexas questões geopolíticas, sociais e econômicas.
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Corridos seculares Também conhecidos como “a balada do Norte”, os corridos surgiram e se desenvolveram inicialmente na região Norte do México em meados de XVIII. Tradicionalmente, seu estilo lírico é considerado uma vertente do romance espanhol, mas existem correntes de pesquisa que atestam origens mestiças, indígenas e regionais para o gênero, como a obra El Corrido mexicano no se deriva del romance español (1963), do pesquisador e escritor mexicano Celedonio Serrano Martinez. Multiculturalidade é a premissa do estilo, como faz questão de ressaltar Juan Carlos Ramírez-Pimienta, doutor em literatura hispano-americana pela Universidade de Michigan, professor e pesquisador de literatura e estudos culturais da Universidade Estadual de San Diego e autor do livro Cantar a los narcos: voces y versos del narcocorrido (2011): “Temos que lembrar que o corrido, em geral, tem suas origens nas fronteiras [com Estados Unidos], principalmente como um produto de um conflito intercultural”, aponta. De natureza épica e narrativa, as canções possuem uma estrutura feita para relatar uma história ou fato e, muitas vezes, expressar um juízo moral sobre o que foi contado. As sonoridades que as embalam derivam de vários gêneros musicais, mas com uma grande influência da polca e da valsa. Tierra y libertad Após a conquista da Independência em 1821, o cenário mexicano era desigual. A dominação política estava concentrada na mão de grandes chefes militares e latifundiários, enquanto povos camponeses e indígenas tinham a mão de obra explorada e enfrentavam misérias. Esse modus operandis permaneceu na ditadura de Porfirio Diaz (1876-1911), que chegou ao ápice da violência com a retirada das terras das comunidades agrárias, promovendo um êxodo rural forçado. Nesse cenário, os corridos tornaram-se uma forma de difusão de notícias principalmente para as comunidades rurais e populares, que, em sua grande maioria, eram analfabetas. Além dos corridistas, os ares da revolução chegavam ao campo através de nomes inconfundíveis como Emiliano Zapata e Pancho Villa. Da insatisfação popular, a oposição ao Porfiriato fez a Revolução Mexicana eclodir em 1910. Aí, os corridos atingiram seu auge enquanto serviço de transmissão dos acontecimentos. Surgiram composições ocupadas por mártires e líderes, em narrativas cheias de fugas, batalhas, pistolas e atos heróicos relatando os conflitos do movimento.
As personas de Zapata e Villa inspiraram diversos corridos clássicos - os corridos villistas, como “El Mayor de Dorados”, “El Tordillo” e “Ahí Viene el Tren”, dedicam-se às façanhas de Pancho e seus seguidores; os zapatistas, como “Soy Zapatista del Estado Del Morelos” e “Corrido del Espectro de Zapata”, a Emiliano. Uma função comum à época era ser um “corridista de estimação”, como acredita-se que Zapata tenha tido: “Generais chamavam seus próprios corridistas de estimação para dar uma versão sobre algum conflito ou narrar seu ponto de vista sobre uma situação”, conta Ramírez-Pimienta. Durante Revolução Mexicana, as mulheres ocuparam papéis importantes para o movimento como soldadas, professoras e com atuação no campo, mobilidade social relatada em alguns corridos da época. Entretanto, Ramírez-Pimienta enfatiza que, no geral, as canções retratam a figura das mulheres por um olhar masculino: "A presença das mulheres nos corridos, no início, foi muito marginal. Elas apareciam como as namoradas, parentes ou mães dos protagonistas. Mas, normalmente, não há uma presença muito positivas das mulheres". O auge dos corridos é contemporâneo a um processo de consolidação e formação da cultura nacional mexicana. A Revolução Mexicana se tornou uma referência recorrente para projetos nacionalistas de veia latina, como o movimento artístico do Muralismo, que surgiu logo após o levante contestando as desigualdades sociais através de pinturas pelas ruas. Na mesma pegada, os corridos são elementos culturais com DNA latino e popular importantíssimos. As façanhas do rei da morfina Dentre os subgêneros dos corridos, os narcocorridos são os mais emblemáticos. Originados na década de 1930, são caracterizados por composições sobre o universo do contrabando e do narcotráfico mexicano. A vertente emergiu no Norte do México, mas também ocupa os territórios do Sul dos Estados Unidos. Na primeira leva de corridos sobre o crime organizado, as narrativas acompanhavam a ação de contrabandistas de tecidos, especiarias, roupas e, posteriormente, tequila, ainda no final do século XIX, como recupera o artigo de Luis Omar Montoya Arias “Cantar a los narcos, voces y versos del narcocorrido”, publicado pela Universidade Autónoma de Nuevo Léon, de Monterrei. Todavia, a primeira canção a falar de forma explícita sobre o tráfico de drogas foi “El Pablote”, composta e interpretada por José Rosales. Gravada em 1931, no Texas, o corrido presta
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uma homenagem a Pablo González, então chefe do tráfico em Chihuahua, estado do Norte do México, em versos como: "Senhores vou cantar para vocês / Com uma expressão muito fina / As façanhas do Pablote / Que era o Rei da Morfina" e “Não havia ninguém para detê-lo / Nem mesmo a polícia”. Em 1930, o governo mexicano coibia o cultivo da maconha e papoula, que tinham suas plantações e suas trocas comerciais localizadas às regiões limítrofes com os Estados Unidos. Os chefões das drogas já davam as caras, mas o mercado do narcotráfico mexicano ainda não havia tomado as proporções homéricas dos dias de hoje. Tráfico, violência e tigres A fase seguinte do narcocorrido se desenvolveu na segunda metade do século XX e reforçou o foco nos personagens em vez de nos acontecimentos. A adrenalina agora não vinha dos ares da revolução, mas sim, dos perigos do narcotráfico organizado, suas hierarquias e da fetichização da vida de luxo dos chefões do tráfico. Uma mudança de temática que foi amparada nas transformações sociais do México em que narcotráfico e corrupção policial levantaram as bases de um próspero e violento sistema. Entre as décadas de 1960 e 80, o mercado de tráfico entre México-EUA entrou em uma dinâmica de gangorra: sobem heroína e maconha, descem dólares - muitos dólares. Nesse contexto, surgiu uma das bandas mais emblemáticas e famosas dos narcocorridos: Los Tigres del Norte. Condecorando os traficantes com título de heróis em letras que celebram ostentação, sexo, perigos e drogas, o grupo é conhecido por clássicos como “La Banda Del Carro Rojo” e “Contrabando Y Traición”, essa última uma composição de Ángel González considerada por muitos canção marco dessa fase dos narcocorridos. Com sua infiltração nas comunidades mexicanas nos Estados Unidos, a banda faz uma conexão importante entre o México que vai além de suas fronteiras, sendo trilha importante daqueles que emigram. Eles fizeram um sucesso estrondoso e também torceram o nariz dos governos locais. Em 1987, autoridades mexicanas listaram 15 canções que deveriam ser censuradas das rádios; 12 eram músicas dos Tigres del Norte. O grupo fez da proibição um negócio: gravou as faixas no disco batizado de Corridos Prohibidos (1989) e com ele conquistou Disco de Platina. O conjunto, ao longo da carreira, ganhou cinco vezes o Grammy Latino e vendeu mais de 35 milhões de cópias. A tática aplicada pelos Tigres del Norte foi absorvida pelo gênero, como salienta Ramírez-Pimienta:
- A maneira como os artistas divulgam seus trabalhos vem evoluindo nos últimos anos. Eu percebo que, se vêm sofrendo censura, conquistam uma maneira de capitalizar isso. O ato de serem censuradas confere um capital simbólico a essas canções, o que faz com que sejam, de alguma maneira paradoxal, ainda mais atrativas. E os produtores de narcocorridos sabem disso. A partir dos anos 1980, o México virou uma das principais rotas de tráfico de cocaína para os Estados Unidos, em associação com a Colômbia. Caro Quintero, que recentemente virou tema da série Narcos México (2018), foi o traficante que ajudou a erguer o cartel de Guadalajara, e ganhou fartas homenagens nos corridos. Nos anos 90, outro anti-herói de destaque foi El Chapo, traficante que comandava um cartel em Culiacán e também apareceu homenageado em narcocorridos depois de sua prisão - fato que, inclusive, gerou comoção popular e passeatas pelo estado de Sinaloa pedindo sua liberdade, por ser considerado um benfeitor das classes mais pobres. No final dessa fase, nos anos 90, surgiram nomes importantes como Antonio Aguillar e Chalino Sánchez. Sánchez é uma dos cantores de narcocorridos que mais viveu na pele o estilo de vida cantado. Conhecido como “El Valiente”, sobreviveu a um atentado no palco, respondendo aos tiros ali mesmo, e morreu em uma possível emboscada em 1992, aos 31 anos, tornando-se uma espécie de mártir na mitologia de heróis e vilões do narcocorrido. Movimento alterado, ostentação e internet Com as novas tecnologias e as novas configurações do narcotráfico - desde o final dos anos 90 organizado em cartéis menores e espalhados pelo país - a tão explosiva Culiacán viu surgir uma nova forma do narcocorrido: o “movimiento alterado” ou corrido alterado. Sob um solo banhado à violência do quase crônico problema do tráfico de drogas no Norte do país, em especial no estado de Sinaloa, o movimento alterado chegou às rádios com letras de violência mais explícita - descrevendo sequestros, execuções e decapitações - algo que não se ouvia nas canções mais antigas. O estilo ganhou força através do empreendimento dos irmãos Adolfo e Omar Valenzuela, de Culiacán. Em 1991, eles fundaram a empresa Twiins Enterprises em Los Angeles, Califórnia, e começaram a reunir e lançar compositores, artistas e bandas que apostam no movimento alterado, a música regional que canta a realidade violenta das ruas de Culiacán, mas também faz um super sucesso na Califórnia.
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Nomes como El Komander, Los Buknas de Culiacán, Los Buitres de Culiacán e Los Buchones, Doble Eslabon, Grupo Viper, Bandera Negra e Los Poderosos de Culiacán são destaques desse “squad alterado”. Foi da união de vários desses artistas que surgiu uma faixa que se tornou um hino do movimento, “Sanguinaries of the M-1”, com versos que anunciam: “Somos sanguinários” e “gostamos de matar”. Mesmo assim, é fato que a Twiins tem lucros altos - mas nunca divulgados - e seus artistas chegam a repetir a façanha de Los Tigres del Norte ao abocanhar prêmios do quilate do Grammy Latino.
As ligações entre cantores, compositores e traficantes são nebulosas, veladas e perigosas. Os principais artistas, em geral, negam quaisquer ligações, mas alguns cantores de corrido alterado já foram mortos em possíveis execuções, como o cantor El Shaka, assassinado em uma emboscada em 2010. As mulheres, apesar de marcarem presença na platéia, ainda ocupam um lugar marginalizado e são poucas entre os artistas do movimento alterado. A pioneira é Violeta Rodriguez, a “diva dos Corridos”, dona da faixa “La Peble Parrandera”, primeiro corrido de movimento alterado feminino.
Os conteúdos altamente violentos e a elevação das figuras do tráfico irritaram as autoridades, o que impôs aos narcocorridos uma série de censuras em território mexicano - como vetar as músicas das rádios, de espaços públicos e impedir a realização de shows. Então, a Twiins decidiu, em 2009, soltar os conteúdos direto no YouTube e aí se tornou um fenômeno, um processo semelhante ao funk de 150 bpm do Rio de Janeiro, que usa muito mais a plataforma de vídeos do que os serviços de streaming. Para driblar as restrições de vendas de discos, eles costumam deixar os álbuns disponíveis nos shows que rolam com mais facilidade nos Estados Unidos.
Por tanta complexidade e polêmica, os narcocorridos ganharam atenção mundial. Mas, sem dúvida, figuram como um sintoma de um México em crise, como aponta Ramírez-Pimienta:
O subgênero é sucesso popular, gerou um boom por volta de 2009 e alcança um público diverso, mas o jovens são destaque. Eles são atraídos pelas letras de ostentação, que mostram como a vida no tráfico pode ser uma maneira de ascensão e muito poder aquisitivo. Nos ouvidos de uma população exposta a uma enorme desigualdade social e violência urbana, correm os hits dos corridos alterados sobre traficantes que ostentam carros de luxo, roupas de marca, viagens e bebidas caras. Mesmo dando voltas na censura, as autoridades seguem no cangote dos artistas e dos corridos alterados, gerando um debate complexo sobre os efeitos da apologia à violência e liberdade de expressão. Em entrevistas para jornais mexicanos e para o documentáro Narcomusic is the Soundtrack to the Mexican Drugs War (2014), o cantor e compositor El Komander rebate as críticas e ao próprio termo ‘narcocorrido”, dizendo que não é um estilo de vida, apenas música:
- O cenário dos corridos e dos narcocorridos, ao que me parece, reage ao seu contexto conforme surge ou se mantém a violência - o que se reflete nos narcorridos. Algo que parece ser uma espécie de saturação da super violência que se associou aos corridos de movimento alterado. Agora, o que temos, já faz alguns anos, são narcocorridos que tem a ver [só] com o consumo de maconha e, em geral, são muito menos violentos - pontua. Entre séculos, crises e controvérsias, é fato que os corridos, narcorridos e o movimento alterado possuem uma importância inegável na música latina até os dias de hoje. - Há uma aspecto certamente local, a nível de como funcionam os corridos na dinâmica das populações das quais os cantam, como uma maneira de documentar e falar dos acontecimentos com os quais se importam. E, como indústria, temos dois espaços do México que são igualmente importantes. Um é o México dentro dos limites geográficos da República Mexicana e outro é o México migrante, o México que foi para os Estados Unidos. Neste último é onde me parece que os corridos possuem uma função ainda mais importante do que no México geográfico, como um mecanismo de empoderamento étnico - declara Ramírez-Pimienta.
- Às vezes, as pessoas tentam demonizar esse gênero, chamando-o apenas de narcocorridos. Tentam ser desrespeitosos, chamam de “narco songs”. Se eu às vezes canto sons como esses e os jornalistas dizem a mesma coisa, isso faz deles “narco jornalistas”? Ou o dinheiro que circula por aqui seria o “narco dinheiro”?
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E N T R EV I STA _
F OTO S _
Ariel Fagundes e Sebast ián Piracés-Ugarte
Miguel "MiG" Mat inez/Divulgação
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Exclusivo:
La
conversación
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Francisco,
A devoção pelos sons da América Latina é um farol que guia os passos de Yotuel Romero, Ruzzo Medina e Roldán Rivero desde antes de criarem o Orishas, em 1999. Mas, quando se deram conta de que seria possível unir os beats do rap às complexas melodias da música tradicional cubana, um novo universo se abriu. Os quatro discos do Orishas renderam prêmios internacionais como o Grammy, turnês lotadas em diferentes continentes, inspiraram todos os músicos latinos e se tornaram pilares que ajudaram a erguer uma sonoridade que se espalhou por todo mundo.
de El
Devido às restrições do mercado musical de Cuba no final dos anos 1990, era impossível que a banda permanecesse lá nessa época. O primeiro grupo de rap do qual Yotuel e Ruzzo fizeram parte tinha o sugestivo nome de Amenaza e, como tal, seus shows foram reprimidos pelas autoridades da ilha, assunto que os músicos cubanos costumam apenas tangenciar. Foi por isso que o Orishas nasceu em Paris e, ao longo dos seus 20 anos de carreira, fez pouquíssimos shows na sua terra natal.
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Orishas Hombre
Em 2009, eles tocaram três músicas lá em um festival chamado Paz Sin Fronteras, que aconteceu na capital Havana e esse foi o último show que o grupo faria por muito tempo. Depois disso, ele se separou e só retornou às atividades em 2016. Em março de 2018, houve a primeira apresentação em solo cubano em nove anos e, um ano depois, a banda voltou para mais uma série de shows.
Quando atendeu nosso telefonema, Yotuel Romero estava em Havana, feliz demais por isso. Conversamos com ele sobre a importância do Orishas, como ele vê o rap e a musicalidade latina, a religião afrocubana, a dimensão política da arte, mas a primeira pergunta não poderia ser outra: Como se sentem tocando em Cuba novamente? Bom, tocar em Cuba é tocar em casa. Esse é o lugar onde as canções se enchem de sentido. Não é que elas careciam de sentido, já tinham, mas, quando são tocadas em Havana, e as pessoas começam a cantar “A Lo Cubano”, “Represent”, “Cuba Isla Bella” e tantas outras canções, elas demonstram por que foram feitas e para que elas existem. Hoje, o Orishas é a banda cubana mais conhecida do mundo. Que impactos vocês sentem que causaram na música e na juventude de Cuba? Foi muito grande. Apresentou aos cubanos uma mudança radical no que se refere à música dos jovens. A partir daí, abriu-se um universo imenso para tudo que é a música urbana cubana que está aí até hoje e que é uma das preferidas do público. O fato é que, para os jovens, o Orishas foi prático e muito interessante. Porque, como nós nunca abandonamos a Cuba que trazemos, que é a nossa essência, a nossa raiz, sinto que a música cubana foi apresentada para outras gerações, em outros tipos de apresentação musical, mas que ainda assim mantêm as suas características. É irônico que, quando vocês começaram o Amenaza, o rap era perseguido em Cuba e vocês tenham tido problemas.
Sim, não só com o Amenaza, mas também com o Orishas. Tivemos problemas no começo do Orishas. Mas isso não quer dizer que nós não tivemos uma boa escola de música cubana lá. No fim, conseguimos vencer, mas tivemos que vencer fora. O rap nasce como algo muito marginalizado, mas, hoje, é uma das músicas mais comercializadas no mundo. Como você vê esse processo? Eu acredito que, no rap, sempre tiveram alguns que fizeram músicas mais comerciais do que outros. Agora, a popularidade do rap é uma coisa que aconteceu principalmente por causa das ruas. Porque o rap não era tocado nas rádios, o rap se tornou popular por si mesmo. Se pegarmos o Brasil, por exemplo, o hip hop brasileiro se tornou grande nas favelas, nas ruas, não porque passava no rádio ou na televisão. Ele conseguiu ser uma demanda diretamente do povo. E se o povo tornou grande essa música urbana deve ser porque havia uma conexão entre essa música e o povo. Porque essa música urbana nunca esteve apoiada pelos meio de comunicação, nunca foi apoiada pela televisão, nunca foi apoiada pela rádio, mas entrou na população de uma forma que não aconteceu com outras músicas que tocavam. O pop tocava, até o rock, mas a música cubana não. Então, acredito que ela conseguiu transpor uma política sobre o que era comercial e o que não era comercial, tornando-se um movimento que ninguém acreditou que ia acontecer. Isso, pra mim, tem todo o mérito do mundo.
o ponto de inflexão se dá quando o mundo inteiro pensa que o latino é pop e que é uma música mais comercial. Acho que aí está a diferença que o Orishas veio a definir. O sucesso, e que seja comercial, é algo feito pelo público. Acho que essa música urbana está no seu melhor momento agora, mas há uma outra parte da música latina que ainda precisa ser mais conhecida. Enquanto banda, vocês sentem que chegaram aonde queriam chegar? Nós conseguimos cumprir muitos dos objetivos que tínhamos como expectativa. Mas, hoje, temos outros a cumprir. Eu acho que, quando você consegue atingir todas as metas do mundo, é porque já não tem mais nada a fazer. E, no nosso caso, é o contrário. Nós sentimos que ainda há muitas metas que queremos conquistar e isso nos dá muito ânimo e muita energia para seguir. Quais são as suas metas hoje? Minha meta é que o Orishas, assim como muitos músicos cubanos, com sua música e sua qualidade, possa chegar a uma nova posição fazendo algo que seja comercial. Nesses 20 anos de carreira, qual foi o momento mais emocionante que vocês viveram?
E qual é sua visão sobre o reggaeton e outros ritmos latinos que se espalharam pelo mundo?
Temos vivido muitos momentos emocionantes. Muitos. Mas termos tido a possibilidade de voltar a Cuba em março de 2018 e tocar para o nosso público cubano, em um show que, graças a HBO, está sendo transmitido para os Estados Unidos [em um documentário chamado Havana Street Party presents: Orishas 2019], isso foi um momento crucial na carreira do Orishas.
Parece-me ambicioso pensar que os ritmos latinos vão dominar o mundo. Agora,
Como está sendo essa experiência de tocar juntos de novo?
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Maravilhosa. Sentimos que o conceito do Orishas é muito maior do que nós mesmos. Esse conceito da banda, de unir o rap à música tradicional cubana, é algo muito maior do que Roldán [Rivero], é muito maior do que Ruzzo [Medina] e muito maior do que Yotuel [Romero]. Somos apenas uma peça a mais desse conceito do Orishas de unir a música tradicional à música urbana. Essa característica, esse diálogo musical que o Orishas criou, é muito mais importante do que nós mesmos. Então, toda a nossa música consiste em lidar com esse diálogo. E como é o processo criativo por trás da banda hoje? Qual é o papel de cada membro? O papel do Roldán e do Ruzzo é o mesmo que o meu, que é colocar as suas ideias e, no caso, sustentar nossa essência. Dividimos a produção musical e as composições nos discos, mas a verdade é que a nossa conexão é um caminho que ficou claro que poderia ser seguido, e isso se mostra muito mais presente nesse disco novo [Gourmet (2018)]. Porque não é como se eu fosse a pessoa que reuniu agora o Orishas, não, eu tomei o Orishas como a minha vida. E a partir de agora estamos navegando por mares diferentes porque a música que fazemos abriu um caminho diferente de tudo o que já conhecemos. Queremos tocar no Orishas de hoje. Buscar isso. É um segredo ainda, mas vamos lançar uma colaboração com um artista brasileiro muito grande. E não é a Anitta! (risos) E com que outros artistas latino-americanos vocês gostariam de trabalhar em um futuro próximo? Eu gosto muito do Emicida, gosto muito do Natiruts, e muitos outros que estão por aí e fazem um bom trabalho.
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Quais foram os sons que inspiraram o seu novo disco, Gourmet (2018)? Tudo o que se ouve nas ruas nos inspirou para dar forma a essa musicalidade que está no Gourmet. Seu clipe mais recente, “Despójame”, traz muitas referências diretas à religiosidade cubana. Pode comentar como é a relação de vocês com as religiões afrocubanas? A religião está no nosso nome, de fato, o nosso nome evoca e tem uma certa vinculação com a religião afro-cubana. Em Havana tem muito isso. Sentimos que a religião afro-cubana, em Cuba, é muito mais do que uma religião, é parte da cultura do cubano. É parte da idiossincrasia do cubano. É parte das raízes cubanas. Então, é muito além do que parece. Em Cuba, o povo é muito religioso e nossa intenção é mostrar que, lá, sempre existem o católico e o africano, a intenção é mostrar que a vida de muita gente se relaciona aos orixás, como Oxum, ou à Santa Bárbara, que é sincretizada [em Cuba] com Xangô. Queremos mostrar que esse sincretismo é uma raiz que temos. E sobre a responsabilidade social dos artistas, para vocês, a arte deve ser política de alguma maneira? Não. Creio que a arte deve ser arte, como um todo. Na arte, deve ter espaço para tudo. Não deve unicamente ser associada aos artistas comerciais ou aos artistas eruditos, por exemplo, tem que haver de tudo. A música é como a pintura, há pintores revolucionários, pintores críticos, etc… É como a imprensa, existem tanto repórteres que vão cobrir guerras quanto repór-
teres que fazem uma imprensa marrom. Acredito que, em todas as ramificações disso que se chama entretenimento, deve haver espaço para tudo. Para que seja uma coisa linda. Não podemos obrigar ninguém a falar de política se não quiser falar de política até porque isso não é necessário. É preciso ética para falar de política, acredito que o que temos que fazer é garantir que cada um possa se manifestar como queira. E possa utilizar suas próprias maneiras para transmitir o que queira. Então, quando encontro pessoas que querem obrigar um artista a falar de política quando, na verdade, ele não tem por que falar de política sinto que é como quando se obriga um repórter a falar de política quando, na verdade, ele é um repórter que só fala de gente famosa na imprensa marrom. Acho que, se estamos vivendo um mundo democrático e livre, para que limitar a arte a ser como quiser? E se quiser ser política ou não, é uma escolha. Não somos ninguém para obrigar alguém a ser o que não quer ser. Qual é sua opinião sobre o momento que Cuba vive hoje? E sobre o Brasil? Eu acredito que existem muitas realidades diferentes tanto no Brasil quanto em Cuba e que estamos vivendo um mundo bastante complicado e um tanto incerto. As coisas que você pensa que não vão acontecer, acontecem. E coisas que você nunca imaginou, acontecem. Eu acredito que é difícil explicar o que está acontecendo, não só no Brasil e em Cuba, mas na Espanha, na Coreia, na Venezuela, tudo está tão disperso e tão confuso que, às vezes, é muito complicado tomar decisões ou conseguir entender o que realmente está acontecendo. É como disse, você pensava: "Ah, isso não vai acontecer". E acontece. E está tudo tão confuso. Do meu ponto de vista, tanto em Cuba quanto no
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Brasil quanto na Venezuela ou nos Estados Unidos, está havendo um momento muito conflituoso com muitos fatores sócio-políticos que fazem com que as coisas estejam assim. Como a música pode ajudar nesse contexto? A música tem sido um fator fundamental para entender e fixar a língua, levá-la de volta ao seu lugar. A musicalidade do hip hop, para muitos cubanos que emigraram, chegou com o Orishas. "Vengo de donde hay un río / Tabaco y cañaveral"... [cantando na melodia do sample de "Chan Chan", do Buena Vista Social Club, presente na faixa "537 C.U.B.A.", do álbum A lo Cubano (1999)]. Eles ouviam nossas canções e isso os fazia voltar aos seus bairros, às suas casas. É preciso ter musicalidade para alegrar sua alma e alimentar as pessoas. Por isso que nós seguimos com nossas músicas nessa época em que estivemos longe, sentimos muita nostalgia por estar fora de Cuba e, assim, nos aliviou o peito. Por fim, vocês tem algum recado que gostariam de dar à juventude brasileira? Sim. Eu sinto que, com essas eleições inesperadas, eu gostaria que os jovens do Brasil soubessem valorizar a sua música urbana, que sigam também com a sua qualidade. Que nunca percam a sua qualidade. Que nunca percam o que já conseguiram conquistar. Eu acho que a popularidade, hoje em dia, está ligada aos jovens que mantêm sua força, uma batalha que é difícil. Eu creio, como um grande amante da música brasileira, que temos que mostrar à juventude que também se pode lutar com qualidade. Isso é o que eu queria dizer aos jovens brasileiros, especialmente aos que produzem música urbana.
D is c o t e ca
Bás i c a
Francisco, El Hombre compartilha conosco quatro álbuns que foram fundamentais para desenvolver a sonoridade do RASGACABEZA.
Feminist Sweepstakes (2001) Le Tigre Eu piro muito no Le Tigre, tô bem feliz de a gente estar se aproximando deles enquanto referência porque, antes de saber o que era feminismo e Riot Grrrl, eu já ouvia muito Bikini Kill, Le Tigre e L7. O eletropunk é uma coisa bem empoderadora porque é simples, são várias sequências sobrepostas e permite criar uma música com poucos elementos. Ouvi muito todos os álbuns do Le Tigre, mas gosto bastante desse. Juliana Strassacapa
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Casa Babylon (1994)
Duas Cidades (2016)
Mano Negra
BaianaSystem
Recomendo muito as pessoas ouvirem pra entender o processo de criação do RASGACABEZA . Foi uma grande referência no sentido de samplear coisas rotineiras, é todo feito com vários loops e samples de coisas da rua. E o RASGACABEZA foi muito construído em cima de samples retirados do YouTube, às vezes de vídeos com menos de 30 visualizações. É um som bem urbano e, ao mesmo tempo, bem virtual. Pra mim, é a referência principal do modus operandi de criação.
É um disco que é muito importante pra nós nesse momento. É uma puta inspiração, não só porque, enquanto disco, é maravilhoso, mas porque, quando você conhece o show, vê a relação de como uma coisa se extrai pra outra, transformando-se de uma maneira completamente diferente entre as duas plataformas. É muito importante pelas temáticas que levanta. Apesar de ser um pouco mais voltado para questões específicas de Salvador, muitas vezes reflete a sociedade brasileira como um todo. E a musicalidade de trazer a percussão misturada com elementos eletrônicos também é algo em que piramos bastante.
Mateo Piracés-Ugarte
Rafael Gomes
Milongas Extremas (2012) Milongas Extremas É um disco de covers do Extremoduro, que é uma banda da Espanha, feito por essa banda uruguaia, o Milongas Extremas. Foi muito importante desde o começo da banda, a gente ouvia muito no carro, mas se refletiu muito agora porque, apesar de o RASGACABEZA ser um disco bem frito e pesadão, tem suas partes calmas também. E as letras condizem muito com o que a gente está falando, de ser mais algo cru. Andrei Kozyreff 7B
pra
ler
As Veias Abertas da América Latina (1971) Eduardo Galeano É um livro de importância fundamental para todas pessoas que querem entender mais seu contexto como latino-americanos que somos. Não é à toa que a gente está onde está e que os poderes se distribuem como estão distribuídos. Um livro como esse é uma pedra fundamental na nossa educação social. Ele nos coloca devidamente no nosso lugar, o que é fundamental para poder trabalhar mais ativamente na construção de um futuro melhor. Sebastián Piracés-Ugarte
O Livro dos Abraços (1989)
Cem Anos de Solidão (1967)
Eduardo Galeano
Gabriel García Márquez
Extremamente divertido de ler, muito leve e muito livre também. São textos curtos onde Galeano vai tratando diversos assuntos de uma maneira muito criativa e muito poética. Então, é ótimo se você quer saber, por exemplo, o que ele pensa de assuntos como a política dos Estados Unidos ou o olhar de um amante resumidos em um parágrafo poético. Um assunto por dia deixa o seu dia muito mais criativo e feliz.
Foi fundamental no nascimento da banda, o nome vem do livro. Francisco, el Hombre é um músico viajante que tem toda uma lenda maior do que aparece no livro, em que ele é mais um personagem secundário. Porém, o livro em si nos faz repensar sobre o nosso valor enquanto grãozinho de areia dentro de uma praia muito extensa, pensar como a gente é muito importante e muito único dentro do nosso contexto, porém, ao mesmo tempo, a gente é só mais um grão.
Sebastián Piracés-Ugarte
Sebastián Piracés-Ugarte
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Jim & Andy (2017) Chris Smith É um filme que espelha bem o processo pelo qual eu passei pra construir o disco RASGACABEZA . É um documentário que fala sobre quando o Jim Carrey foi fazer o papel do Andy Kaufman. Ele procurou dentro de si quem era o Andy e chegou em algo tão profundo que teve até uma dificuldade de sair dele, tanto é que não saiu por muito tempo. Eu vi o documentário e fiquei impressionado: "Caraca, é exatamente esse o processo pelo qual tô passando". Fui encontrando alguém dentro de mim que eu não sabia que existia, mas que me agrada. Mateo Piracés-Ugarte
Black Mirror (2011-2018) Charlie Brooker É uma série que nos marcou muito enquanto grupo. Acho que, nos últimos anos, a gente vem sentindo uma pressão e angústia/paranóia social, principalmente por estarmos vivendo na cidade de São Paulo, sendo que a gente não é daqui, que culminou no RASGACABEZA . E acho que a construção estética do disco, dessas emoções que a gente bota pra fora, tem tudo a ver com o Black Mirror. Sebastián Piracés-Ugarte
pra
ver
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La Belle Verte (1996) Coline Serreau É um filme maravilhoso, um dos melhores que eu já vi. Tem uma narrativa bem diferente, não apresenta um problema que vai ser resolvido, aí parece que foi resolvido e vem um problema maior, não é esse tipo de sequência. É um filme francês que mostra bastante como a nossa sociedade é absurda, os nossos costumes estão todos ao avesso e a gente normaliza muitas coisas que são tóxicas, insanas, contra a nossa própria natureza e involutivas. Tem no YouTube e a diretora é também roteirista, protagonista, compositora da trilha sonora. É um filme bem de transformação de visão de mundo, de abandonar valores que não lhe ajudam a evoluir, é um despertar de consciência. Um filme pra vida. Juliana Strassacapa