Revista Noize #88 - Jorge Mautner - Maio 2019

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Big

Bang-Bang

Bang-Yeshua-Axé-

Iídiche-Exú-Kaos. Na vida de Jorge Mautner,

sempre

houve

espaço

para

as culturas se fundirem, do judaísmo às

histórias

em

quadrinhos,

do

#88 // ANO 13

expediente

candomblé à física quântica. NOIZE COMUNICAÇÃO

NOIZE FUZZ

Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha

Editores Gustavo Brigatti Joana Barboza Leonardo Baldessarelli

Gerente Financeiro Pedro Pares Gerente de Planejamento Cássio Konzen

Gerentes de Projetos Brenda Beloni Caio Pereira Jordana Monteiro Thais Martins

Diretor de Criação Rafael Rocha

Atendimento Interno Ingrid Mônaco

RH Taisla Heres

Redação Camila F Oliveira Guilherme Flores Rodrigo Laux Tássia Costa Vanessa Castro Vinícius Rocha

Coordenação de Arte Jaciel Kaule Diretor de Arte Felipe Alves Assistentes de Arte Guilherme Ferreira Maicon Pereira

Com

Coordenação de Mídia Ágatha Donini

Coordenação de Vídeo Lucas Tergolina

Mídia Camila Ferrareli

Vídeo Humberto Ferreira Mateus Ramos Pedro Krum Shandler Franco Thaíse Silva

Coordenação de Community Manager Maurício Teixeira

tempo,

personalidade

a

originalidade

e

messiânica,

criaram

ao seu redor uma aura sobre-humana. Foi buscando contato com o que há de mais divino que fizemos o lado A desta revista, que começa aqui. Por isso, homenageamos os laços sagrados do artista com Nelson Jacobina e a relação íntima que tem com a família Gil. Já

Planejamento Gabriela Etchart Julia Brito Tainá Cíceri Thiarles Wäcther

Produção Cristal Caetano Dani de Mendonça

o

influência de sua obra, somadas à uma

o

lado

B

mira

na

imperfeita

beleza de se ser humano. O próprio Mautner colabora expondo uma série de

pinturas

suas

e

revela

como

desenvolveu sua relação com as artes visuais. Há também Preta Gil falando sobre a alma do carnaval e os membros da banda Tono, que produziram Não

Community Manager Débora Martins Liliane Fraga

abismo

em

que

o

Brasil

caiba,

indicam uma série de discos, filmes e livros que lhe inspiram.

Foto Carlo Barros GRITO Novos Negócios Leandro F. Gonçalves

Por si só, Mautner encarna o mesmo

Coordenação de Projetos Carolina Farias

processo

que

aponta

como

sendo

a

NOIZE RECORD CLUB E NOIZE.COM.BR

Gerente de Projetos Gabriel Dias

maior virtude do nosso país: se o

Editor Ariel Fagundes

Planejamento Matheus Barbosa Matheus Gugelmim

é. Não poderíamos estar mais felizes

Estagiário Planejamento Rafael Kronitzky

histórico que chega às suas mãos.

Coordenação de Projeto Helene Hoy Karen Rodriguez Diretor de Arte Árthur Teixeira Repórter Brenda Vidal Community Manager Ana Paula Pause Hayane Leotte

Brasil é amálgama, Jorge também o por lançar em vinil esse trabalho Aproveite como nós aproveitamos.

Redação Camila Benvegnú Pedro Veloso

Ariel Fagundes

NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn

4A


noize.com.br

Jorge Mautner

Colaboradores

Lendário artista que acaba de lançar seu 10º álbum de estúdio: Não há abismo em

que o Brasil caiba. Aqui, relata como nasceu sua relação com as artes visuais e o que elas lhe proporcionam.

Preta Gil

Bem Gil

Leo Felipe

GG Albuquerque

Artista múltipla que se divi-

Guitarrista da Tono, trabalha

Escritor e curador. Desde os

Jornalista, edita o blog o vo-

de entre palcos, trios elétri-

também como produtor. Por

anos 1990, se envolve em pro-

lume morto e colabora com o

cos e programas de TV. Filha

ser filho de Gilberto Gil, convi-

jetos compreendendo áreas

portal Kondzilla. Defende a

de

veu com Jorge Mautner desde

como música, literatura, jor-

vanguarda como um jogo de

criança.

nalismo, tele e rádiodifusão.

cintura.

Brenda Vidal

Bruno Di Lullo

Mãeana

Rafael Rocha

Jornalista vivendo um ritmo

Guitarrista da Meia Banda e

Com dois discos solo lança-

Baterista da Tono, também

que só a música pode acom-

baixista da Tono, revela aqui

dos, Ana Cláudia Lomelino

possui na bagagem um dis-

panhar. Apaixonada por cul-

discos que nortearam a produ-

também canta na Tono e é

co solo e parcerias com mui-

tura, arte e negritude.

ção do novo álbum de Mautner.

casada com Bem Gil.

tos artistas.

Gilberto Gil e irmã de

Bem, comenta aqui a força do carnaval.

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T E XTO _

F OTO S _

GG Al buquerque

Acervo pessoal Jorge Mautner e Diana Dasha

A de

genialidade Nelson 10A


noize.com.br

A

música

repleta

brasileira de

históricas, de

artistas

seus

é

Erasmo

parcerias

Bosco

encontros

Mas,

que

Carlos,

João

e

Aldir

Blanc.

se

essas

duplas

somam

já são bem conhecidas e

e

celebradas em compêndios

talentos

multiplicam seu poderes

críticos

em verdadeiras simbioses

ainda

criativas: Luiz Gonzaga

um

e

Teixeira,

desvendado: a dobradinha

Vinicius

formada por Jorge Mautner

Tom de

Humberto Jobim Moraes,

e

Roberto

e

e

biografias,

existe mistério

na

MPB

a

ser

e Nelson Jacobina.

discreta Jacobina 11A


Violonista, guitarrista e arranjador brilhante, Nelson foi parceiro de Jorge desde o início da carreira musical — presente já no seu álbum de estreia Para Iluminar a Cidade (1972) — até o último dia de sua vida. E não apenas como instrumentista, também foi um compositor decisivo e genial, tendo emplacado alguma composição em praticamente todo álbum do amigo — o recente Não há abismo em que o Brasil caiba (2019) é exceção. Para ter uma ideia de sua importância, Nelson foi o responsável por criar a moldura musical de clássicos como “Maracatu Atômico” e “Lágrimas Negras”. Filho do cineasta Fernando Coni Campos e da socióloga Eloá Jacobina, Nelson Jacobina nasceu em 1953 no Rio de Ja-

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neiro. Estimulado por esse ambiente de cultura intensa, não demorou a empunhar um violão e aprender a tocar os sambas canções que ouvia no rádio. “Com 17 anos, ele já ganhou o mundo tocando, mas sempre passava lá em casa”, conta o irmão mais novo, Rubinho Jacobina, também músico, que deu seus primeiros passos no violão com ajuda do irmão. No início dos anos 1970, Nelson Jacobina entrou para o Instituto Villa-Lobos, que, a despeito das perseguições promovidas pela Ditadura Militar, foi um dos centros de ensino musical mais radicais do Brasil. Foi no Villa-Lobos que Nelson encontrou suas almas gêmeas. Uma é Jorge Mautner, com quem passou a trabalhar no mesmo ano, em 1972.


noize.com.br

- Eu o encontrei na escola de música Villa Lobos durante a gestão de Jarbas Passarinho como Ministro da Educação. Era uma aula de matemática em que os alunos, nus, ficavam se esgueirando pelo chão e cantando. Eu nunca havia visto tanta liberdade criativa nem em Nova Iorque onde passei sete anos. E lá estava Nelson Jacobina. Ele já havia lido [o livro de estreia de Mautner] Deus da Chuva e da Morte (1962), seu pai era um grande cineasta, sua mãe era uma grande leitora de livros. A partir daí, ele foi meu parceiro e amigo durante 40 anos em shows por todo o Brasil irradiando o Kaos com K - lembra Jorge. A outra paixão de Nelson Jacobina foi Diana Dasha, cantora da banda psicodélica Equipe Mercado. No entanto, com Diana a paixão só floresceu depois. Ela foi viver por alguns anos na Europa e só reencontrou Nelson em 1989, desta vez devido ao interesse mútuo pelo tai chi. Os dois se casaram naquele mesmo ano e viveram felizes em Santa Teresa (RJ) entre músicas, livros e 17 gatos por 23 anos, até o fim da vida do músico. Segundo a própria Diana, ela e Nelson experimentaram modelos alternativos de casamento. A relação, por exemplo, incluía um colega de faculdade dela, seu amigo ainda hoje. Nos dias atuais poderiam ser descritos como “poliamoristas”. Mas eram apenas pessoas experimentando outras formas de felicidade e bem viver, levando adiante o ideal hippie de desprendimento. “Nossa geração foi uma geração ponta de lança”, diz Diana. “A mulher era educada para casar e o pai dava a filha para o marido. Se você saísse desse modelo já era tachada de puta ou de malandro. O espírito daquela época era de morar com mais gente e ter um relacionamento diferente, tendo outras pessoas ali, como se fossem reuniões de amigos”. Rapidamente e de forma muito discreta, Diana e Rubinho Jacobina afirmam que Nelson viveu algo parecido com Mautner e sua esposa, a historiadora Ruth Mendes. Porém, em entrevista à revista Marie Claire publicada em 2012, a diretora Amora Mautner (filha de Jorge e Ruth) disse que o que houve "não era um relacionamento aberto". - Morei boa parte da minha infância com meu pai e minha mãe. Depois, eles se separaram e eu morei só com a minha mãe, que se casou com um cara chamado Luis Fernando. O Nelson [Jacobina] era meu padrinho e também namorou minha mãe quando ela esteve separada do meu pai. Depois do Luis Fernando, meus pais reataram e o Nelson continuou morando lá em casa. Vivia todo mundo junto, até ele começar a namorar outra mulher e sair de casa - disse Amora em 2012.

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Cosmopolita brasileiro Quem conviveu com Nelson aponta que a sua principal característica musical era o seu groove. “Ele tinha uma pegada no violão que pouca gente tem. Era como se fosse um baixista, um baterista e um violonista. Ele tinha um polegar que fazia os baixos de uma forma muito especial, como pouca gente

Ismael Silva, Wilson Batista e Noel Rosa. Por uma feliz coincidência, o pai de Diana, Hélio Jordão Pereira, foi membro do Bando da Lua, banda de apoio de Carmen Miranda e um dos principais intérpretes das composições de Assis Valente. O encontro musical entre eles foi inevitável. “Meu pai ensinava músicas e uns solos para o Nelson e eles ficavam tocando juntos. Faziam muitos

sempre aberta a mente para todo tipo de expressão musical. As experimentações harmônicas e rítmicas do pianista Thelonious Monk foram influência grande na vida do casal, que até regravou “Round Midnight” no álbum Fome de Javali (1992), de Diana Dasha. A vanguarda eletroacústica também chamava a sua atenção: “Eu lembro de ele me levar num concerto do [Karlheinz] Stockhausen na sala Cecília Meireles quando eu tinha 11 anos”, conta Rubinho. Apesar desse ouvido cosmopolita, Jorge Mautner ressalta que a brasilidade prevalecia: “Nelson Jacobina era um gênio como compositor e tinha informações detalhadas de todos os sambas, marchinhas e frevos do Brasil, e também da música popular do exterior. Ele falava filosofando e tanto suas composições como suas interpretações musicais sempre tinham raízes profundas na música popular do Brasil e internacional. Mas ele sempre sabia que a nossa música popular era mesmo a rainha do universo”, afirma.

faz, como um Gil ou João Bosco”, comenta Diana Dasha, destacando a complexidade da sua composição “Labirinto”, gravada por Gilberto Gil no álbum Quanta (1997). O irmão Rubinho retifica: “Ele tinha um suingue que era particular. Ele teve formação de violão clássico, mas tocava de uma forma um pouco mais suja, uma coisa mais visceral e muito à vontade, do jeito dele”. Esse seu estilo distinto foi fruto de um interesse profundo pela canção brasileira, particularmente o samba das décadas de 1930 e 1940 de nomes como Assis Valente,

saraus e trocavam ideias”, recorda Diana. Tudo isso foi fundamental no DNA sonoro de Jacobina, que conhecia profundamente esse samba popular e tinha excelente memória para suas harmonias. “Quando a gente começou a Orquestra Imperial [em 2002], queríamos tocar esse estilo de gafieira e o Nelson foi meio que o grande incentivador da banda. Era o cara que tinha o repertório, que mostrava as músicas do Assis, do Caymmi, do Miltinho pra gente”, conta Domenico Lancellotti. Mas muito além do samba, ele manteve

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“Jorge dizia que, se o mundo não se 'brasilificar', iria virar fascista. Acho que o Nelson ia pelo mesmo caminho”, comenta Domenico. Diana lembra que também sentia essa verve nacionalista de Nelson. “É muito interessante porque nós estávamos juntos quando começou toda essa onda de rap, hip hop, funk, essa música dos morros, da favela descendo pro asfalto. O DJ Marlboro tocava nos intervalos do Circo Voador quando o Nelson estava na Orquestra Imperial. E ele gostava muito dessa música negra. Não só samba antigo, mas dessa cultura que surgia. Ele não tinha preconceito nenhum, observava tudo com a cabeça de um pesquisador. E nisso o funk era tão importante quanto a bossa nova. Era uma continuação do espírito do ser humano, da arte em si, do brasileiro, da miscigenação. E também uma reação ao racismo e à escravidão”, pontua.


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Nelson Jacobina e Diana Dasha.

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Na opinião dos amigos, apesar de compartilharem certas visões de mundo, Mautner e Nelson tinham personalidades diferentes. “O Jorge é super generoso, mas, de vez em quando, encarna o imperador, o profeta. O Nelson tinha uma certa timidez, mas era uma pessoa de conhecimento e sabedoria incríveis”, diz Domenico. “O Jorge é mais pra fora e o Nelson é mais pra dentro, mais reservado. Era muito bonita essa alma gêmea. Os dois se completavam. Jorge vinha pra cá dia sim dia não e eles ficavam o tempo inteiro discutindo sobre política, filosofia, história, tudo”, afirma Diana. Mautner recorda os papos: “Ele tinha uma visão avançadíssima, tanto em literatura, história e filosofia como em ciência. Das nossas conversas, surgiam as músicas. O show não era só um encontro musical, era a forma de se reunir para construir a democracia, desfazendo a ditadura que existia”. O perfil discreto e a timidez levaram Nelson ao segundo plano. Sem muitas vaidades, era o ato de tocar que sempre o manteve vivo. O álbum Árvore da Vida (1988), por exemplo, é creditado a Mautner e Nelson, mas apenas a foto do primeiro está na capa do LP. Jacobina é mais conhecido pelos nove discos de estúdio que fez com Jorge e também pelos álbuns que gravou com a superbanda Orquestra Imperial - o último deles, Fazendo As Pazes Com o Swing, inclusive traz na capa apenas uma foto de Nelson. Mas, na intimidade, ele compunha muita coisa que ainda segue inédita. “Eu vivia dizendo para ele lançar um disco solo, para se desgrudar um pouco do Jorge e da Orquestra e fazer uma coisa dele. Material ele tinha de monte. Vivia com o violão na mão, ainda tenho umas gravações precárias de músicas instrumentais deles. Mas ele nunca se interessou por isso, não tinha vontade. O ego dele era nulo”, comenta Diana.

O milagre do som Em 1998, Nelson teve câncer na parótida. O tumor foi removido com cirurgia e, após a radioterapia, o músico foi curado e continuou sua rotina, acordando cedo para praticar tai chi, nadar do Leme ao Leblon ou praticar ioga (era capaz de ficar de cabeça para baixo na posição da vela sem nenhum encosto). Até que, em 2008, o câncer voltou. Desta vez, muito pior, em estado de metástase. “De 2008 a 2012, foi um período muito sofrido. Ele sentia uma dor indescritível. Mas chegava uma visita, até o Jorge, e ele não demonstrava. Aguentava, segurava e, assim que a pessoa fosse embora, ficava gemendo e tomando remédio, metadona, que é uma espécie de um ópio”, lembra Diana. A viúva ressalta que, apesar do sofrimento, Nelson irradiava boas energias a todo momento. “Tinha uma estrela dentro dele, era uma pessoa solar que estava sempre de bom humor. A doença poderia deixar qualquer um deprimido, mas parecia que ele pensava assim: ‘Bom, isso aconteceu agora eu vou ficar mais forte ainda’. E trabalhou mais ainda, fazendo turnê com a Orquestra. Eu vi isso do meu lado, dormindo na mesma cama. Aprendi com ele a ser forte”. “No final da vida dele, em baile da Orquestra Imperial com quatro horas de duração, ele era incapaz de pedir uma cadeira para sentar”, conta Domenico. “Era um gigante de resistência". Mautner ainda lembra do seus últimos momentos com o amigo. “Quando ele pegou o câncer, já estava em terceiro estágio, e nem a methadone acabava com as suas dores. Nem um outro remédio, mais caro, que cotizávamos para ele, acabava com suas dores. Só na hora de tocar, acabavam as dores. Antes do show, chorando, eu o massageava e, ao entrar em cena, ele se transfigurava

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e as dores, que nem o methadone podia destruir, acabavam. Dráuzio Varella chegou a comentar que isto era um milagre. Nelson trabalhou seis anos, dia e noite, não só fazendo shows comigo ininterruptamente pelo Brasil, como várias excursões para a Europa com a Orquestra Imperial. O último show foi em Jacareí, num glorioso ponto de cultura da era de Gilberto Gil e que nas gestões seguintes foi riscado do mapa. Ele insistiu em dar um bis de uma hora e mais alguns minutos, e todos aplaudiram freneticamente. Ele, chorando e rindo, se dirigiu comigo para o hotel, eu o massageei, ele adormeceu. Pegamos o avião no dia seguinte, ele chegou em casa e em seguida faleceu”. Hoje, as informações sobre Nelson Jacobina ainda são escassas tanto na internet quanto nos arquivos de jornais disponíveis na Biblioteca Nacional. Não há livros ou documentários a seu respeito. Mas a sua obra e seu pensamento atravessam diferentes gerações da música brasileira, mesmo que de maneira discreta e silenciosa. É “o cara que fez e faz parte da vida de tanta gente que nem sabe que ele existiu”, como observou Karina Buhr na ocasião de sua morte, em 31 de maio de 2012. Nelson nunca esteve sob os holofotes, mas permanece como uma presença transversal na música brasileira. Suas composições foram gravadas por artistas do quilate de Gilberto Gil, Gal Costa, Chico Science & Nação Zumbi, Milton Banana, César Camargo Mariano e Amelinha. Com a Orquestra Imperial, a sua influência atravessou Kassin, Moreno Veloso, Domenico Lancelotti, Thalma de Freitas, Nina Becker e outros músicos de uma nova geração da MPB. Como sua própria personalidade, a música de Nelson Jacobina pode até ser discreta. Mas sempre pulsante.


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Tambores e tiros, venenos e remédios, preces de louvor e desespero, os mistérios da arte, do amor e da morte. No Kaos com K de Jorge Mautner, absolutamente tudo é uma coisa só: emoção. Guarde essa ideia, é a chave para atravessar os labirintos do vasto universo mautneriano sem se perder por completo. 18A


T E XTO _

F OTO S _

Ariel Fagundes

Rafael Rocha

noize.com.br

19A


Seu amor incondicional à nação remonta ao fato de que foi o local que acolheu ele e seus pais em 1940, quando o austríaco Paul Mautner e a iugoslava Anna Illich vieram para cá fugindo da 2ª Guerra Mundial. Jorge, cujo nome verdadeiro é Henrique George Mautner, estava na barriga de Anna e nasceu em 1941, um mês após o casal chegar ao Rio de Janeiro. Mas Paul e Anna já tinham uma filha, Susana Mautner, que, lamentavelmente, não conseguiu autorização para sair da Europa, o que destruiu Anna por dentro. “Minha mãe ficou imobilizada, não podia me atender”, lembra Mautner em tom grave: “E minha babá, a Lúcia, era filha de santo. Então, durante sete anos, a gente ia pro candomblé nas sextas e só voltávamos segunda, às vezes terça. Meu pai era judeu; minha mãe, católica, mas fui educado no candomblé”.

“São os tambores que falam”

Ouvindo o que ele diz, não há dúvidas de que sua fala é música nem de que o seu olhar é capaz de recitar poemas que cortam ou afagam como os versos que lhe deixaram célebre. Hoje, parece que nada lhe interessa mais do que seus entes queridos e o seu maior objeto de estudo e devoção, o protagonista do seu novo disco e elemento recorrente em sua obra quinquagenária, esse enigma continental tão belo quanto trágico chamado Brasil.

históricos do Brasil. Quem também frequentava o terreiro onde ele ia com Lúcia era Gregório Fortunato, apelidado na época de “Anjo Negro”, chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas. Em 1954, ele seria acusado de ser o mandante do famoso atentado a Carlos Lacerda, grande opositor de Getúlio. Mas bem antes disso, em 1945, quando Jorge tinha apenas quatro anos, Gregório se impressionou com a presença daquela criança branca em um espaço onde só havia negros e comentou isso com Getúlio, que também se interessou e quis conhecer Jorge. Lúcia o levava para brincar nos jardins do Palácio do Catete, então a sede do governo, e, um dia, Gregório os encontrou lá e disse que Getúlio queria conhecer o menino. Os olhinhos de Mautner chegam a faiscar quando conta como foi seu diálogo infantil com Getúlio Vargas em pessoa: - Ele estava em uma janela espaçosa lá no Catete. Aí eu logo bati continência, ele gostou e perguntou: “Você sabe quem sou eu?”. “O senhor é o presidente do Brasil, Getúlio Vargas”. Aí ele falou: “E você é da onde?”. “Sou brasileiro”. “E os seus pais?”. E eu falei: “Coitados... São estrangeiros!”. Aí ele adorou! - diz Jorge engatando uma gargalhada.

“O Brasil é mistério”

Na sala de seu apartamento no Rio de Janeiro, o profeta de 78 anos solta visões como se fossem anéis de fumaça que sopra no ar. “O amor triunfa sempre”, proclama, “é o desejo da natureza se reproduzir e isso está em tudo, do pernilongo até as células atômicas”. Com a maior calma do mundo, explica: “O elétron tem vontade própria e cada onda do mar tem também um desejo. Parece poesia? É poesia. Mas é ciência. A ciência se transformou em música e poesia de mistério”.

Desde o começo, a vida de Mautner percorreu caminhos inusitados e se conectou de forma simbiótica aos rumos 20A

O caso que soa como uma anedota no fundo revela até onde vão as raízes do seu patriotismo. Para Mautner, é evidente que o Brasil, por ter se formado como uma grande amálgama de culturas tão diversas, é um farol com potencial de guiar a Humanidade pelos mares violentos que navega até encontrar as águas pacíficas da Tolerância. Mautner levanta essa ideia desde suas primeiras produções. Em um texto de 2013 chamado “Partido do Kaos”, ele conta em detalhes que, em 1956, quando tinha só 15 anos e começou a escrever seu primeiro livro, Deus da Chuva e da Morte, criou também as bases do que chamou de Partido do Kaos (PK), projeto que encabeçou até 1962. “Sempre achei que ao lado da palavra escrita (e no meu caso sempre profética e engajada com a História) deveria existir a


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Segundo Mautner, o Partido do Kaos reuniu “uma multidão heterogênea de militantes”: “partidários, astrólogos, poetas, garotada de vários bairros constituíam a massa flutuante e sempre crescente”. O seu símbolo “era uma espécie de exú alado em fundo vermelho” e a sigla KAOS significava simultaneamente quatro coisas: “Kristo Ama Ondas Sonoras = Kamaradas Anarquistas Organizando-se Socialmente = Kolofé Axé Oxóssi Saravá = ”. “A quarta definição cada um ou cada uma das militantes faria descrevendo as suas ideias e desejos individuais, que para nós era a mais importante de todas”, escreve. Além de infinitas discussões filosóficas, artísticas, políticas e espirituais, o PK promoveu atos públicos. Seus membros marcharam na Rua Augusta, em São Paulo, em 1958, com tochas e cartazes anunciando o partido, picharam nas ruas frases como “Sangue e Luz!!!!!”, “James Dean voltará!!!!” e “Viva a Deusa Maisa!!!!”, e também costumavam fazer ações relâmpago de propaganda para recrutamentos. Recitais de poesia concreta, exposições, filmes, peças teatrais, “tudo isso fazia parte de nossas peregrinações

“O pavor faz parte”.

- Nossa ideologia era um Anarquismo Pacífico baseado em: ecologia, diversidade sexual, mas consistia principalmente na proclamação messiânica e fundamental da novidade totalmente original e essencial que o Brasil havia criado com a sua própria História para o bem de todos os povos do planeta Terra, nos meus textos escritos eu já proclamava a toda hora: “Do Brasil nascerá a Nova Coisa” “Do Brasil nascerá a nova era!” Isso será constantemente proclamado em todas minhas músicas, livros, entrevistas, palestras, militância política e cultural até hoje ano de 2013. E o será sempre proclamado enquanto eu estiver vivo.

ativistas”, narra Jorge.

“A onda musical é tudo”.

sua prática, e esta era a essência do PK”, escreve Mautner nesse texto, que explica ainda:

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Mas veja como o mundo gira. Em 1962, o Brasil estava politicamente bem conturbado e o PK de Mautner começou a se desfazer para servir de base de apoio ao Partido Comunista, ao qual Jorge se filiou. Pouco antes disso, Paulo Azevedo Gonçalves dos Santos conheceu Mautner e suas ideias, se entusiasmou e resolveu fundar uma célula estudantil do PK dentro da tradicional Faculdade de Direito da USP. Logo, esse PK da USP passou a ser regido por suas dinâmicas próprias chegando ao ponto em que se desvinculou do projeto de Mautner. Acontece que, segundo Paulo Azevedo afirma em depoimento publicado no livro Ensaios de Terrorismo - História Oral da Atuação do Comando de Caça Aos Comunistas (2014), de Gustavo Esteves Lopes, um dos membros desse PK da USP, o João Marcos Flaquer, acabou se tornando um dos líderes do violento grupo paramilitar de extrema-direita Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que acabaria sendo responsável por vários atentados. João chegou a revelar à Folha de S.Paulo no dia 17/7/1993 que foi ele mesmo quem liderou o conhecido ataque do CCC à peça Roda Viva, com texto de Chico Buarque e direção de José Celso Martinez Corrêa, em julho de 1968, quando 19 atores e um contrarregra foram espancados e o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, foi depredado. Em 1965, o nome de Jorge Mautner já estava no topo da lista dos procurados pelo CCC. E veja só: quem lhe deu essa notícia foram os militares que lhe prenderam naquele ano, supostamente para protegê-lo desse grupo. Nessa época, Mautner já era bem conhecido, pois seu livro Deus da Chuva e da Morte ganhou o Prêmio Jabuti, o maior da literatura nacional, e, entre 1962 e 1964, ele teve uma coluna diária na edição paulista do jornal Última Hora chamada “Bilhetes do Kaos” (cuja publicação foi encerrada assim que houve o golpe militar). Ainda que estivesse envolvido até os ossos na atribulada política brasileira dos anos 1960, Mautner


“O impossível acontece”.

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“Os repentistas são os nossos mestres”.

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“Tudo é música, falar é música, o vento é música”.

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mesma receptividade, é como a acolhida de qualquer um no candomblé, na umbanda, na quimbanda.... Por isso que digo: o Brasil, na verdade, nunca teve lei nem governo. O Brasil é descentralizado e cada um se vira. Ele já é o sonho realizado do [anarquista russo Piotr] Kropotkin. São grupos que se ajudam o tempo todo, isso é o Brasil. E isso é mais forte do que tudo.

fala sobre isso hoje com uma doçura cativante:

Convictamente insubmisso, em vez de seguir as advertências e abrandar o tom de suas publicações, Mautner fez o oposto. Ainda em 1965, publicou dois livros impactantes que fecham a sua Trilogia do Kaos: Narciso em Tarde Cinza e Vigarista Jorge. No ano seguinte, lançou-se como cantor, estreando em um compacto com duas faixas, “Radioatividade” e “Não, Não, Não”, que apresentam uma estética folk diferente das suas canções posteriores. Esses lançamentos foram mais do que suficientes para a Ditadura enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional e apreender as obras.

Mautner segue:

“Levo muito a sério a história”.

- Ah, em 65, antes de ser exilado, eu fiquei três meses em uma fazenda com o 2º Exército, lá eu contava umas histórias e eles adoravam. Aí o [então presidente Marechal Humberto] Castello Branco me disse: “Olha, você vai sair. Mas, se você falar pela televisão a favor [da Ditadura], mas não estiver pensando isso, nós descobriremos. Temos técnicos da Gestalt alemães pra detectar”. E eu falei: “Mas pra quê? Vocês não leram [o folclorista brasileiro Luis da] Câmara Cascudo? Tá tudo ali!” (Risos).

Com o passar do tempo, parece que ele foi organizando cada vez mais suas ideias, tanto que seu novo disco, Não há abismo em que o Brasil caiba (2019), é, de toda sua discografia até agora, o que mais destaca seu ufanismo místico. A maioria das suas faixas falam sobre situações que ilustram a luz e a sombra do país, como a carnavalesca “Bloco da Preta Gil” e a indignada “Marielle Franco”. Mesmo músicas que trazem outras temáticas, como “Ruth Rainha Cigana” e “Imagens Plumagens”, citam, em meio a declarações de amor à família e ensaios de filosofia kaótica, diversos símbolos do folclore e da religiosidade do Brasil. Quando pergunto se ele acredita que a sua missão é transformar em arte o que ele sente pelo país, Jorge responde que “não tem a menor dúvida” disso e passa a explicar por que é tão fascinado por esse assunto:

“O ser humano é muita dor”.

Nem rei nem lei Mesmo tendo enfrentado o autoritarismo olho no olho (ou talvez justamente por isso), Jorge jamais desviou sua atenção do povo brasileiro. Uma análise histórica e um discurso inflamado em defesa da importância do Brasil para o mundo são elementos que perpassam toda sua carreira.

- Nenhuma viagem internacional se compara. Viajei muito para o exterior, é tudo muito bonito, mas viajar pelo Brasil é a coisa mais incrível que existe. Durante 45 anos, eu fui de cima a baixo, o Brasil é a maior viagem do mundo. Mesmo hoje, que não tem mais cavalo e se anda de moto, é a 25A

- Veja lá na Bahia, o [afoxé] Filhos de Gandhy. O [presidente Eurico Gaspar] Dutra colocou o Partido Comunista na ilegalidade [em 1947] e os estivadores comunistas, e outros, fizeram [em 1949] o Filhos de Gandhy, que é algo muito mais forte. É tudo metamorfoseado. E é com o jeitinho. É tudo uma união de sentimentos, de emoção, de amizade, de mistério, de alegria, e isso ninguém quebra, isso fica cada vez mais forte. O Brasil é mistério. É uma imensidão e se comunica por cânticos, por receptividade do outro. São sintonias inacreditáveis, são os tambores que falam. Só lhes foi negado saber ler e escrever, mesmo assim os repentistas fazem poemas que causam inveja a Castro Alves, inveja a mim... É a lei, eles são os nossos mestres. A entonação de Mautner muda e uma luminosidade cinza toma conta da sala quando ele lembra que essa admiração absoluta encerra em si um profundo pesar, pois o poeta sabe bem demais que muitos dos capítulos da história brasileira foram e são escritos com sangue. Invocando a figura abolicionista de Joaquim Nabuco, ele enfatiza no seu disco novo a necessidade de haver uma segunda abolição da escravidão no Brasil a partir do “estudo, cultura, aprendizado e instrução” e “distribuição de renda, piedade, compaixão, igualdade e misericórdia”. “Se ela não chegar logo para toda a população, chegará o sangue da revolução”, profetiza a letra de “Bang Bang”, quinta faixa de Não há abismo em que o Brasil caiba. Solene, ele afirma que lidar com a violência cotidiana é “a questão urgente” do nosso país, mas, como se doesse muito pensar nisso, prefere não se alongar no assunto. “Alea Jacta Est!”, diz citando o líder romano Júlio César: “A sorte foi lançada”. Quando pergunto o que ele sente sobre esse lado violento do Brasil, Mautner fala brevemente que a resposta está na letra de “Destino”, primeira faixa do lado B do disco novo, que diz: “Somos para sempre / Pela dor agoniados sorrindo / Pelo amor atormentados / Sentindo um terror e pelo terror acorrentados / Pressentindo um terror maior / Chegando e surgindo / E nós para nós mesmos / Sempre fingindo, sempre fingindo / Entorpecidos e narcotizados / Por um sonho tão lindo / Acordados dormindo”. “É sempre


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isso: ‘acordados dormindo’”, comenta citando essa e mais uma das frases que ele adora citar do filósofo grego Heráclito de Éfeso: “A guerra é o pai e a mãe de todas as coisas”. - O pavor faz parte. [Friedrich] Hölderlin, um dos grandes poetas do Romantismo alemão, diz: “Na alegria, nunca consigo descrevê-la. É só aqui, na mais profunda tristeza, que consigo fazer poemas pra alegria”. O ser humano é muita dor. Nasce, vive, morre. Trabalha. Tem escravo. Tem doenças. Tem tudo. E o que compensa é uma partícula do impossível, a menorzinha, que comanda tudo. Que é o cálculo da incerteza copiando o Romantismo: tudo é imaginação e emoção. Tudo! Por exemplo, tanto o Jair Bolsonaro quanto o [presidente dos EUA Donald] Trump usaram muito da emoção. Não tô emitindo nenhum juízo de que é certo ou errado, mas é a imaginação. Quanto mais louca, mais acerta. Acredito na ressurreição dos mortos justamente porque é impossível, mas é isso mesmo. O impossível acontece. “Creio porque é absurdo” - diz citando o aforismo de Santo Agostinho. O fim sem fim De certa forma, o disco Não há abismo em que o Brasil caiba vence o impossível. O álbum de estúdio anterior de Mautner, Revirão, saiu 13 anos antes. Nesse meio tempo, o artista superou problemas bem sérios de saúde. Em 2008, enfrentou um quadro de septicemia aguda; em 2016, sofreu um infarto e precisou fazer uma operação no coração; em 2017, teve que tratar um ferimento grave na panturrilha. Mautner diz que sua vida foi salva por milagre e agradece imensamente a perícia dos seus médicos. Além disso, o álbum de 2019, seu décimo de estúdio, foi o primeiro que fez sem a presença do seu grande amigo e parceiro Nelson Jacobina. Não há abismo em que o Brasil caiba traz uma dedicatória a Nelson no encarte e o olhar de Jorge reluz como nunca quando começa a lembrar de como sua vida mudou depois que conheceu Jacobina. “Nós não obedecíamos ao critério de show por dinheiro”, conta com olhos d’água, “então íamos para os confins das terras do sem fim e ficávamos uma semana lá, falando com as pessoas e escrevendo. Teve cada cena impressionante, cada lugar é mais enlouquecedor que o outro nesse imenso Brasil”. Jacobina morreu em 2012, um dia após fazer um show com Mautner em Jacareí (SP). Pouco após sua partida, Jorge começou a tocar com a banda carioca Tono, formada por

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Bem Gil, Mãeana, Bruno Di Lullo e Rafael Rocha - músicos muito mais novos do que ele, todos seus fãs há muito tempo. A parceria registrada pela primeira vez em disco já tem cerca de seis anos de palco e, ao longo desse tempo, formou-se um vínculo muito íntimo entre todos eles. Como Jorge é há décadas amigo de Gilberto Gil (pai de Bem Gil), acabou acompanhando o nascimento e todo desenvolvimento de Bem. Mautner derrama um sorriso franco quando diz que foi “maravilhoso” gravar com a produção da Tono: “Nós conversamos sobre tudo, consulto tudo com eles. São eles quem comandam. Às vezes, eu falo e eles escutam. Mas eu estou em casa, em família. Isso não tem explicação”. E o que não se explica é justamente o que mais interessa Mautner. Ainda que trabalhe com diversas linguagens, para ele, “a música é, das artes, a que tem mais mistérios e segredos”. “Tudo é música, falar é música, o vento é música. E a música é acima da letra. Mesmo à melhor poesia ela se equivale porque ela deixa seu pensamento flutuar em todos sentidos. A onda musical é tudo”, declara. - Desde as canções de ninar, a música acompanha o ser humano na guerra, no nascimento, no casamento, na morte. É o tempo todo. A música é a poesia mais intensa porque tem simultaneidades onde domina a emoção.

“A música é a poesia mais intensa”.

Lembra daquela ideia de que tudo é emoção? “Essa ideia é uma obsessão. Eu vou morrer assim e voltarei como assombração assim também”, brinca Jorge Mautner com a serenidade zen própria de alguém que, como ele, pratica tai chi desde 1958. Não há um pingo de dor em sua voz quando diz: “Eu já tô me despedindo, mas é o fluxo da história. Levo muito a sério a história”. Seu olhar floresce quando conta que sua obra literária completa está em processo de ser relançada pela editora Azougue, que o canal de TV HBO lançará uma minissérie chamada Kaos em Ação (em que Mautner discorre sobre o papel da música popular brasileira no processo de redemocratização do país) e que o que ele busca agora é o de sempre: “Fazer shows e comunicar a todos. O ser humano é uma eterna criação”. Ora suave como pluma, ora radical como navalha, Jorge Mautner deixa nítido que se libertou das angústias juvenis. Mais do que nunca, ele mesmo é a pura amálgama que retrata em suas obras, a sua alma já se fundiu em uma liga indissociável com o seu amado Brasil.

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Não há abismo em que o Brasil caiba faixa a faixa Com seu ufanismo místico e apaixonado, Jorge Mautner comenta todas as músicas do seu novo disco.

Lado A 1. Ruth Rainha Cigana

4. Segredo

É uma música sobre meus 50 anos de casado com a Ruth. Falo

Essa é óbvia, é da banda Tono, que eu nunca, nunca abando-

na Amora, minha filha, e na Júlia, minha netinha. O sagrado é a

no. É muito importante porque eu vi o Bem nascer, eu e o Gil

família. Seja qual for. Conduzir uma família é uma epopeia né?

somos [faz um gesto de estar grudado unindo as mãos]. Fo-

Isso é a coisa mais maravilhosa.

ram tantos shows juntos... E essa música traduz isso. A banda Tono é importantíssima. Desde que o Nelson morreu, nós te-

2. Ouro e Prata na Mão

mos tocado por aí.

É uma que compus muito antigamente, rememorei do passado. Ela é, óbvio, uma pregação também. É uma música que tem

5. Bang Bang

várias interpretações, mas uma clara. “Com ouro e prata na

Essa é central. É uma das principais faixas, acho fundamental no

mão e ódio no coração / Assim ele caminhou ao lado da pro-

disco. Fiz em parceria com o Bem Gil e o Bruno Di Lullo e é sobre

cissão / Na frente ia Jesus e atrás vinha Satã / No meio deles,

Joaquim Nabuco. Diz que é preciso haver a segunda abolição,

o povo que cantava uma nova manhã”. Mostra a situação do

que nunca chegou e tem que chegar. A segunda abolição é todo

Kaos, como minha obra toda.

mundo podendo estudar desde o jardim da infância até a universidade. O Brasil foi feito por escravos de ponta a ponta e a segunda abolição é necessária. Essa música é o cerne.

3. Oy Vey, Oy Vey Essa é de parceria com João Paulo Reys, que trabalha comi-

6. Marielle Franco

go. “Oy vey, oy vey” em iídiche quer dizer: “Oh, meu Deus, que

Foi um ou dois dias depois que ela foi assassinada que eu

terrível isso acontecer”. E o bom é o contrário. Então, é isso.

compus. Então, é uma homenagem a ela.

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E N T R EV I STA _

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Ariel Fagundes

7. Catulina Dona Catulina é sobre uma professora e tem uma poesia lin-

pergunta que você responde abre outras três perguntas. Três

da, o Afonso [Henriques] que fez. “Dona Catulina faça me o

perguntas abrem nove. E vai por aí. Então, o mistério só se

favor... Quero aprender a ler e a escrever”. De novo, é a se-

adensa e se aprofunda cada vez mais. Quanto mais se sabe,

gunda abolição.

menos se sabe. O tempo todo.

8. Veneno

3. O Diabo

Essa é uma ousadia, né? Primeiro, porque eu fiquei muito do-

O Diabo é uma figura muito importante. Por exemplo, em Al-

ente, foram uns três, quatro anos de operações. Eu fui salvo

mas Mortas , do [Nikolai] Gogol, que foi o seu último livro, ele

da morte, primeiro do negócio do coração que eu tive, o moço

se finge de vendedor de seguros e vai comprando as almas

me operou e pôs dois stents. Depois, eu tive um negócio de

das pessoas ainda vivas. É bonito. O Gogol ficou apavorado

infecção na perna que explodiu, uma longa história. Foi um

com esse livro e foi jejuar arrependido nas mãos de um monge

milagre, milagre e perícia dos médicos. Então, nessa música

italiano e queimou toda a continuação desse livro como sen-

você pode colocar até a questão dos opiáceos, que são ven-

do pecado e morreu ali nas mãos desse monge jejuando até

didos como medicina pra acabar com a dor. Mas na verdade

a morte. O Diabo, no Fausto de Goethe, é Mefistófeles e ele é

eu tô morrendo é por causa da poluição. Essa é a maior razão

um simples funcionário público do reinado de Deus pra tentar

(risos). Ela é ousada. Não é propaganda de droga, não. É mais

o ser humano para ele escolher entre o pecado ou o não-pe-

propaganda de remédios que façam você esquecer a dor.

cado. É sempre essa escolha a cada instante.

Embora a dor também dê inspiração, muita dor não dá. É isso, o valor da medicina dos médicos. As coisas principais do ser

4. Bloco da Preta Gil

humano são os entes queridos. É o pai e a mãe, os professores

Também é uma parceria com João Paulo Reys. E a Preta Gil

e as professoras, os médicos e as médicas e os enfermeiros

eu vi nascer como eu vi nascer o Bem Gil. Era a Amora, minha

e as enfermeiras. Isso é muito importante e essa música fala

filha, e Preta Gil. Aí eu falava sobre essas coisas todas desde

disso. E da poluição porque, realmente, os mares estão cheios

que elas eram crianças, elas adoravam tudo (risos). O Kaos.

de plástico, os peixes vão acabar. 5. O Passado

Lado B

É sempre um conforto, o passado é um passado. Essa é pra

1. Destino

dar a ideia da simultaneidade. É o cálculo da incerteza. Que já

Essa, a última frase dela é: “Acordados dormindo”. Isso foi dito

estava no candomblé (risos) É simples. E é tudo.

por Heráclito de Éfeso. Heráclito dizia: “A guerra é o pai e a mãe de todas as coisas”, “tudo é um fogo perpétuo”, “tudo

6. Yeshua Ben Joseph

está em movimento”, “acordados dormindo”. Ele também tem

Ela é muito atual, sempre. Jesus de Nazaré tem tudo. Ele pro-

outra incrível: “Às vezes, é preciso se esquecer do nome da-

clama tudo. Eu gosto porque, olha só, ele ressuscita Lázaro,

quele que sabe o caminho”. Isso é Heráclito de Éfeso. E é isso,

mas ele ressuscita uma menininha também. Ele diz: “Talita

atormentados, sempre fingindo e pelo terror acorrentados,

cumi”, “Menina, levanta”, em aramaico. E ela levantou. Ele

pressentindo um terror maior chegando... Embalados por um

também diz na cruz: “Eli, Eli, lamá sabactâni”, “Pai, Pai, por

sono e narcotizados por um sonho tão lindo, acordados, dor-

que me abandonaste?” [em aramaico]. E ele apregoa sempre

mindo. É uma tragédia, né. Mas tem esperança.

o amor, o perdão. Só num momento terrível ele diz o seguinte: “Quem fizer mal a um destes pequeninos que me acom-

2. Imagens Plumagens

panham melhor seria se amarrasse uma mó de atafona, uma

Essa eu gosto muito porque os xamãs liam o destino no forma-

pedra muito pesada, ao redor do seu pescoço e o jogasse no

to das nuvens, o que também é uma brincadeira de criança. É

fundo do mar”. A criança é santa criança, intocável e isso é a

tudo assim, são profecias cuja chave é o mistério. Cada

coisa mais importante.

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Aí entendi que era isso que eu queria pra minha vida. Eu queria ser um pilar de energia que atraísse luz e positividade. E nesse pilar que represento com o Bloco da Preta estão, em mim, muitas coisas embutidas: a diversidade, o respeito às diferenças. Isso é o DNA principal do Bloco da Preta porque é o meu DNA. Já no primeiro desfile isso ficou absolutamente determinado, aquele momento foi meu grande encontro artístico e pessoal. A partir de então, vivemos até hoje uma escalada de identificação, de apropriação do bloco pelo povo e de pertencimento que é muito emocionante. É uma experiência social muito forte o Bloco da Preta, é uma expressão, não é só festa. O Bloco da Preta, em si, é um ato político muito representativo de que juntos somos mais fortes. No nosso bloco, nós somos a maioria, uma maioria feita do amor, do respeito, da diversidade, do colorido, do múltiplo. Acho que foi por isso que o bloco fez tanto sucesso. Hoje, faz parte do calendário do carnaval do Rio, de Salvador e, nesse ano, estreamos também em São Paulo. Eu chorei muito quando o Bem Gil me mandou a demo de “Bloco da Preta Gil”, fiquei extremamente emocionada. Foi um dos maiores presentes que ganhei na vida, foi com certeza o maior presente que o Bloco da Preta ganhou. Ter reconhecimento através da obra do Mautner não tem preço, é imensurável. E a nossa relação é de amor transcendental, não tem explicação o amor que temos um pelo outro. Quer dizer, tem muitas explicações. Eu acho que somos uma família, Mautner e Gil, só fomos separados por continentes, mas graças a Deus nos unimos. A minha melhor amiga é a Amora [filha de Jorge Mautner] e o melhor amigo do meu pai [Gilberto Gil] é o Mautner. Então, a gente tem essa energia que é uma só.

gente vai se descobrindo e se conhecendo como nação, como expressão artística. Hoje, não tem mais fronteiras, o Boi de Parintins desceu pro Maranhão e essa interlocução cultural é que é o carnaval. É poder respirar e se alimentar da essência do outro, isso faz a maior força do povo brasileiro. O carnaval tem essa força tropicalista na sua raiz e a Tropicália bebeu dessa fonte. A gente se reinventa. O carnaval é uma grande mola de reinvenção para você conseguir sair da inércia ou sair da tristeza, sair da prostração. O carnaval é uma força. Quando você está fora do carnaval, quando não está vivendo o carnaval, e você se encontra em alguma dificuldade, use o espírito carnavalesco pra lhe mover. Nenhum carnaval se restringe somente ao verão, ou a fevereiro. Eu tenho na minha essência diariamente essa energia do carnaval. O carnaval é uma energia e a gente tem que se utilizar dela diariamente. Por estar na rua e ver que as pessoas têm a liberdade de ser quem elas são e de expressar, através da música e do corpo, essa alegria, o carnaval me ensinou muitas coisas. Minha maior lição foi a de que nós somos seres humanos que não nos deixamos abalar.

E a Tropicália, em si, se formou muito a partir do espírito do carnaval. O carnaval nada mais é do que o espírito, a essência, a alma do povo brasileiro. Ao longo dos anos, isso não só foi se autoafirmando como se reafirmando, se redescobrindo e se reprocessando a partir do momento em que a

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T E XTO _

A RT E _

Preta Gi l

Paulo H Lange

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Nenhum carnaval tem seu fim Homenageada por Jorge Mautner na faixa “Bloco da Preta Gil”, a artista reflete sobre a alma carnavalesca do povo brasileiro e o que aprendeu com uma vida de trios elétricos, blocos e afoxés.

Minha vida sempre teve este ciclo de esperar o próximo carnaval chegar, assim fui vivendo 44 anos e 44 carnavais. Quando nasci, automaticamente, nasceu esse vínculo, exatamente pela hereditariedade: meu pai e minha mãe são pessoas muito ligadas a isso. Minha mãe, baiana, foi passista da Mangueira e também sempre brincou os carnavais da Bahia. Meu pai também, menos folião, mas com a energia do carnaval muito presente na sua música, principalmente pela relação dele com os blocos afro da Bahia.

um deles, foi a minha estreia no carnaval puxando um trio sozinha. Desde então, nunca mais saí de trio elétrico. Em 2007, fui rainha de bateria da Mangueira e fiquei muito apegada aos ritmistas, à bateria da qual eu era a rainha, e isso foi ficando muito forte na minha vida. Antes, eu não tinha ligação com escolas de samba, eu gostava, era mangueirense, já tinha ido aos desfiles e uns ensaios, mas você estar dentro do coração da bateria é algo muito forte. Quando acabou meu reinado, em 2008, fiquei órfã daquela pulsação da bateria da Mangueira.

Sou carioca e fui criada nesse eixo Rio-Salvador, então meus carnavais começaram comigo muito pequena. Quando criança, morei na Bahia até os cinco anos e minha atmosfera afetiva me remete àquela casa cheia e a gente fantasiado, o som dos afoxés, dos tambores, e a rua. Minha primeira lembrança de carnaval está ligada aos tambores dos afoxés da Bahia.

Em 2009, quando criei o Bloco da Preta, foi pela necessidade de juntar dois amores: a bateria da Mangueira e o Carnaval de Salvador, com as percussões afro e todo amor que tenho pelo axé. Acabei montando um bloco que é diferente, os que não conhecem não entendem, porque ele é formado por 20 ritmistas e cinco músicos. E deu. Mas, musicalmente falando, consegui juntar o carnaval da Bahia e o carnaval do Rio. O samba e o axé. E o que junta o povo é essa energia, esse amor. No nosso primeiro ano, em 2010, a estimativa de público era de oito mil pessoas e foram 120 mil pessoas.

Meu pai, em Salvador, tem o bloco Expresso 2222 e, antes de começar minha carreira, que comecei tarde, eu fazia backing vocal para ele. Em 2003, eu assumi o trio um dia. O trio saía em três dias e, em

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Muitas vezes tenho sonhos com o oceano e é um oceano assim, que vai para cima e vai para baixo. Tem também o símbolo da lua e o sol e depois um pedaço de continente com a cor verde-esmeralda das matas e florestas do Brasil, das terras do sem fim, e um peixinho lindo, misterioso, de uma espécie que ninguém ainda conhece, e a fumaça que sai da chaminé do navio é uma forma de oração que se eleva aos céus e beira em sua saída a lua, e no entanto o sol lá embaixo tem a maior importância.

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Na verdade, desde o homo sapiens, 90% chimpanzé e 10% bonobo, tudo que vemos quando estamos acordados é transfigurado nos sonhos em figuras e criaturas, algumas fáceis de decifrar aparentemente, como outro ser humano, mas sempre tudo isso está em movimento. As pessoas se transformam, a verdura da mata verde-esmeralda também. O navio com sua fumaça para o céu pode nem mais existir. Vão ficar só a lua, o sol, eu e vocês.


Ao centro, um irmão gêmeo do Pão de Açúcar. Abraçado em sua ponta por uma palmeira que se recurva para beijá-lo. Ao mesmo tempo, uma lua fulgurante ao lado de um bandolim enorme, azulado e de cor rósea. Esse quadro é como todos os quadros, sem explicação, mas tenho observações. Ele é totalmente harmonioso e é ligado à música que, se você olhar bem, ouve bem baixinho o seu som, desse bandolim cujas cordas são tocadas pelo mesmo vento uivante que fez a palmeira ao lado se dobrar em direção ao sol.

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Essa é uma pintura em que eu ressalto a bandeira negra com a caveira e seus dois ossos em forma de cruz e uma outra bandeira, que é verde, e é um coração flechado pela flecha de Oxóssi. Elas são as duas bandeiras de um navio esverdeado que navega no mar mais esverdeado ainda, onde um peixe encantado se encontra com uma misteriosa

cobra que tem duas cabeças, uma em cada ponta. Tem uma ilha e outra ilha no centro, como se fossem as gêmeas que são. Atrás de cada uma, nasce uma palmeira de cor amarela e na colina do fundo uma serpente se eleva à altura das árvores e tem a cor avermelhada de sangue rubro e um verde que é outro tom verde, um verde especial da maldade e da

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necessidade. E também, umas estrelas vão pairando, uma de cor vermelha, outra de cor amarela, outra de cor rósea. A serpente, que tem uma cabeça em uma ponta e outra cabeça em outra ponta, é o ser de maior estranheza mas que se sente muito à vontade dentro deste quadro e sua natureza.


Neste quadro, um peixe no mar, acima dele, um barco com uma vela alaranjada está ancorado por um pequeno cordão branco com uma ilha azul, onde do outro lado há uma palmeira pequenininha e branca, enquanto do lado direito, como se fosse um teto para o barco de vela cor de laranja, uma enorme palmeira brasileira protegendo a todos, inclusive a uma lua vermelha que paira depois da vela alaranjada do barco misterioso e sem ninguém que estava ancorado naquela pequena ilha azul, e tudo pode acontecer. Parece que tudo está em movimento e se movimenta.

Eu sempre adorei arranha-céus. Aqui, cada arranha-céu é como se fosse feito de carne humana engessada, abraçados uns aos outros. Ao ver esta pintura, imagino as milhares de vozes de seres humanos gritando, se beijando, chorando, criancinhas, mães, pais, avôs, avós, netinhos, netinhas, e tudo então é cercado por uma infinita noite negra que aconchega.

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Este quadro não deixa dúvidas. Embaixo, a cor de um oceano verde e um peixe como sinal de vida vibrante. Duas colinas azuladas com um roxo-lilás, dois prédios e duas palmeiras se erguem para o céu, e no prédio que fica no centro das duas palmeiras, a bandeira de Israel, e do lado esquerdo, também entremeado por duas árvores, fincado na cor roxa da colina e que embaixo tem o mar efervescente de verdes e um peixe amarelo-dourado com uma cauda vermelha, e em cima do prédio maior que está à esquerda entrelaçado por duas enormes palmeiras, a bandeira brasileira.

A bandeira brasileira triunfante, retumbante, querida e adorada, bandeira que tem o lema “ordem e progresso”. É bom notar que a frase é de Augusto Comte e a original é: amor, ordem e progresso. A República retirou a palavra amor, não por ser contra o amor, muito pelo contrário. Por uma sensibilidade extraordinária de Floriano Peixoto e principalmente de Benjamin Constant, que sabiam que o povo brasileiro era contra a República e a favor de Dom Pedro II, não queriam que o povo brasileiro, diante da palavra “amor”, pensasse que a

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República iria se imiscuir nos assuntos internos, existenciais, de afeto e carinho entre os civis. Benjamin Constant era tão positivista, tão positivista, que tinha um problema medonho com os números negativos. Foi durante o império de Pedro II, que eu considero um estadista iluminado e apaixonado pelo Brasil, que houve a primeira libertação dos escravos no Brasil, imediatamente surgiu o genial Joaquim Nabuco e disse: é necessária a segunda abolição. Esta abolição nunca chegou, mas terá que chegar.


Aqui, eu não posso me esquecer da Bauhaus. Estamos com figuras quase geométricas que têm emoção, porque tremulam, e uma avenida onde dois caminhões de cor amarela transitam ao lado de dois automoveizinhos com cor avermelhada e a estrada é laterada por dois raios amarelos fulgurantes que separam os arranha-céus da cidade do rio que corre, da mataria, do azul do céu e do roxo profundo da terra que, lá no fundo, é tudo negro, quase, no pedacinho final à direita, tem um triangulozinho amarelo, um cubo roxo e um cubo um pouquinho maior com a cor verde da esperança eterna.

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A paisagem urbana é o burburinho dos outros seres humanos, com buzinas, todo um barulho. Neste quadro, eu acho que o centro é uma palmeira que nasce espremida, encostada em um prédio, e alcança lá as alturas de cima. É só uma árvore entre enormes cubos de edifícios, como se fossem esfinges do antigo Egito. Do outro lado da estrada, prédios como obeliscos. Paira uma lua num céu negro. Avenida, em russo, quer dizer perspectiva. Por isso, minha querida, você é minha perspectiva, você é minha avenida.


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As cores que uso surgiram logo no início, por causa da paisagem esfuziante deste continente chamado Brasil. Nasci no Rio de Janeiro e via o mar. Aos sete anos fui para São Paulo e, em todas as férias de verão, ia para o Guarujá. O mar, imenso oceano, sempre, a todos nós, encanta e encantará. É só lembrar de Dorival Caymmi e de Yemoja. . Sempre achei os prédios tão ou mais fascinantes do que as florestas. Todas as férias de julho eu passava em Atibaia, onde havia florestas. Amo a paisagem urbana. Em toda minha obra escrita, falada, etc, eu exalto a máquina. Como Marx disse em seu Manifesto, a mudança de tudo se dará por causa da máquina a vapor e do telégrafo. Adoro o burburinho dos prédios. Mondrian, ao chegar em Nova Iorque, também ficou enlouquecido de felicidade com os prédios. Os prédios apontam sempre para o céu e parecem continuar subindo. Apartamentos, vizinhos, gritaria. Tudo isso é o burburinho da vida. Tanto em minha literatura quanto em minha música, letras e poesia, e no meu pensamento filosófico, existe o aglomerado de tudo sempre se transformando, a cada segundo, em surpresas e em novas surpresas sem fim. Esta é a animação da vida no conglomerado cúbico das grandes cidades onde ninguém se conhece mas onde cada um tem que suportar o outro. 11B


T E XTO E A RT E _

Jorge Mautner

Nas pinturas, busco expressar paz, serenidade, panteísmo e coisas muito apolíneas. Todas as artes têm relação entre si e também com a ciência. A sensibilidade é quem fabrica a pintura, a escultura, a dança, a música. São universos entrelaçados entre si. Hoje, toda a ciência é música e poesia. Albert Einstein, quando não conseguia solucionar um problema, muitas vezes pegava seu violino e, depois, durante o sonho, vinha a resposta. É o que disse Villa-Lobos: estudem harmonia e contraponto a fundo e depois esqueçam tudo. Comecei a aprender a pintar com meu avô, pai do meu padrasto Henry Muller, primeiro viola do Theatro Municipal de SP, que me ensinou a partir dos sete anos a tocar violino. Ao longo do tempo, fiz exposições, vendi quadros. José Roberto Aguilar, meu amigo, começou a pintar comigo na mesma época e me animava. A pintura é irmã gêmea da música, da poesia e da ciência. Pode-se dizer que a ciência de hoje, que diz que todos os nossos neurônios são pura emoção, é inspirada na arte e nos sonhos. Dos sonhos, tudo vem, inclusive e principalmente dos pesadelos. 10B


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Porta Para o Infinito (1974) Carlos Castaneda Mesmo Carlitos tendo se revelado, ao fim da vida, segundo denúncias, mais um guru abusador em nosso mundo machista, seus escritos tiveram um profundo valor. Sim, ele era apenas um tolo, mas escolhido por um xamã para publicar e eternizar relatos inacreditáveis. Um homem banal que caiu de paraquedas na feitiçaria e teve oportunidade e paciência de escrever tudo. Em Porta Para o Infinito, ele, já mais esperto depois das duras experiências contadas nos três primeiros livros, empenha-se no estudo da dualidade da realidade. Nosso mundo é dividido entre o "tonal" e o "nagual", conceitos fascinantes. Durante o estudo, ele se prepara para uma lição empolgante e assustadora: saltar fisicamente de um abismo junto do seu mestre. Não posso contar o final, mas é maravilhoso. Mãeana

As Três Ecologias (1989) Félix Guattari Um estudo breve e certeiro sobre a possível salvação deste nosso mundo que não para de se deteriorar. Abre uma esperança concreta sobre a possibilidade de uma reviravolta espetacular com respeito aos processos de subjetivação humana na nossa sociedade. Através das três ecologias, Guattari consegue pensar e desenhar caminhos de inovação e evolução básicos para começarmos a Nova Terra. Um livro de filosofia curto e simples que todos nós devemos ler de vez em quando pra lembrar dos passos essenciais que precisamos dar agora.

Terra - Chaves Pleiadianas Para a Biblioteca Viva (1994) Barbara Marciniak Este é meu livro de cabeceira. Um livro lindamente canalizado com mensagens dos Pleiadianos. Ao amor divino da Terra e aos buscadores de suas chaves, com segredos e esclarecimentos, um aliado maravilhoso na evolução dos humanos. Ao lê-lo, é fácil sentir no coração a boa energia e a essência da intenção das mensagens. Segundo a autora, o livro se criou sozinho num processo mágico. Alguns podem acha-lo muito seletivo, já que o feminino é super enaltecido e a Terra é tida como um planeta fêmea, mas pra mim faz todo sentido. Neste livro finalmente encontrei (ou reencontrei) muitas respostas. Mãeana

Mãeana

pra 9B

ler


pra

ver

Koyaanisqatsi - Uma Vida Fora de Equilíbrio (1982) Godfrey Reggio Conheci a trilha antes do filme. Durante minha infância, por diversas vezes partia com a família de carro do Rio de Janeiro para Recífe ou Porto Alegre e cada um tinha o direito de escolher uma fita cassete para que todos escutassem. Então, minha mãe nos aplicava doses hipnóticas de Philip Glass. Tempos depois, apareceu lá em casa um VHS do filme para o qual aquela música cíclica havia sido criada. Sem uma única palavra e com épicas imagens, o documentário ainda me deixa boquiaberto diante do jorro complexo de multiplicidade e força de nosso fantástico planeta. Rafael Rocha

O Abraço da Serpente (2016)

Paterson (2016)

Ciro Guerra

Jim Jarmusch

Acabo de retornar da rica experiência de passar 20 dias pesquisando a música do povo Huni Kuin na floresta amazônica. Cheguei lá Rafael e saí Îkamuru vivendo o processo inverso ao das missões católicas. Na película, como acontece em nosso (des)governo atual, absurdamente se naturaliza a violência extrema de aniquilar culturas ancestrais incrivelmente prismáticas em tantos aspectos científicos e espirituais. Como disse o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, "no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é". O filme é dedicado a todas as canções que nunca mais ouviremos.

Na rotina de uma pacata cidade do interior, Paterson ganha a vida como motorista de ônibus e escreve poemas em seu intervalo de almoço. Sua divertida companheira passa todo o tempo se preocupando em como ser artista enquanto ele, com seu olhar, simplesmente é. Ela é forma, ele essência. A maneira sublime de observar o perpassar de cada dia transforma a mesmice em seu entorno numa contemplação delicada e frutífera. Enquanto pouca coisa acontece no filme, muita coisa se realiza em nossas cabeças.

Rafael Rocha

Rafael Rocha

8B


T E XTO _

noize.com.br

Bruno Di Lul lo

Jorge

Mautner

(1974)

Cine

Privê

(2011)

Jorge Mautner

Domenico Lancellotti

Esse disco conta com a produção musical de Gilberto Gil, que, além de tocar violão, assina também a direção de estúdio. Assim como fez Bem Gil no novo álbum. Uma vez, perguntei a Gilberto Gil sobre esse disco e ele me contou que ensaiavam as musicas, antes de entrarem no estúdio, na casa do baterista, assim como fizemos durante muito tempo com o Tono em nossos discos.

Com seu segundo álbum, Domenico nos aproximou muito de JM. Nesse disco, podemos escutar "Receita", parceria entre Dom e JM. Parceria, inclusive, que contou com a ajuda de Nelson Jacobina, que levou a melodia pra JM colocar sua poesia. Domenico assina também "Segredo" no novo álbum de JM, além de ter indicado Gustavo Peres para fazer a capa desse novo trabalho.

Andando

no

Ar

(2014)

Rubinho Jacobina Um dos grandes compositores da atualidade carioca. Irmão mais novo de Nelson Jacobina, cresceu vendo o irmão acompanhar JM, pois Nelson acompanhou JM desde seus 16 anos de idade. Posso destacar "Onde Moras", parceria entre os irmãos Jacobina.

7B


D is c o t e ca

Bas i c a

O baixista da Tono elenca os álbuns que inspiraram a produção que o grupo fez em Não há abismo em que o Brasil caiba, de Jorge Mautner.

Para

Iluminar

a

Cidade

(1972)

Jorge Mautner Escolho esse disco como o primeiro que nos inspirou pois possui a simplicidade de harmonias e arranjos que JM nos pedia durante a gravação desse novo trabalho. Podemos reparar no tamanho curto de algumas canções como "Olhar Bestial" e "Chuva Princesa", que, assim como "Marielle Franco" e "Ouro e Prata na Mão", são poesias musicadas que não precisam de muitos arranjos para existir e nos tocar.

6B


T E XTO _

F OTO _

Brenda Vidal

Natál ia Domiciano/Divulgação

noize.com.br

“Pelo conflito em se encaixar num gênero específico, a banda se autoproclama, informalmente, como grupo de música tropical” (Agenda Arte e Cultura, 2018)

_ mood: Alucinador, alucinatório, alucinógeno. É na psicodelia que a banda baiana encontra abrigo para lidar com o caos dos tempos modernos. As composições transpassam um pouco da angústia e da urgência em lidar com tanta coisa ao mesmo tempo, essa coisa de ter várias janelas abertas no PC, mas nenhum ar fresco. Os versos carregam críticas à vida urbana, às hipocrisias e letras tão sagazes quanto “Hoje acordei mais triste que ontem / Pois no sono lembrei de minha dor”, que levam para o refrão: “Como diria Isaac Newton / O mundo vai te puxar pra baixo”, da faixa “(Já Dizia) Isaac Newton”. Rock brazuca alternativo, despretensioso sem ser desinteressado, crítico sem ser complicado. _ como soa? Lo-fi no sentido mais genuíno porque não é só conceito, é real mesmo. A estética é caseira de fato, fruto das gravações e experimentações que o grupo fez para o EP Mangas a

Caminho da Feira nº1 (2019), em Euclides da Cunha, cidade do interior da Bahia. Pra entender o som, imagine Boogarins e Tame Impala com uns cinco anos a menos de carreira indo gravar juntos no meio da Bahia depois de ouvir muita psicodelia nordestina. Os meninos da Tangolo combinam os elementos da música regional com distorções e synths cheios de efeitos. Essa colagem de referências permite fazer um paralelo com a manga, fruta que compõe o nome da banda: não é algo puramente brasileiro, mas se adaptou muito bem ao clima tropical. A panca das sonoridades é meio doce, carnuda e suculenta como ela. _ qual a vibe? Casual, urbano, contemporâneo. É versátil: serve pra extravasar desconfortos e anseios de ser um jovem adulto meio millennial e meio geração Z, pra dar rolê de bike ou outro meio de transporte individual sustentável, ou pra momentos de escapismos.

5B

_ por onde começo? Tangolo Mangos é carne, ou melhor, fruta nova no pedaço. Então, não tem muito erro: passeie pelo EP Mangas a Caminho da Feira nº1. O registro foi forjado na máxima "faça -você-mesmo" e só foi finalizado com o dinheiro arrecadado através de uma campanha de financiamento coletivo. Para a masterização, o material foi parar do outro lado do globo e chegou nas mãos de Rob Grant, do Poons Head Studio, na Austrália, responsável por finalizar trabalhos do Pond e Tame Impala. Ou seja, o debut dos meninos não tá pra brincadeira. Dê uma atenção especial pra cativante faixa “Gosto de Sol”, é muito provável que você queira ouvi-la em loop.


B

a

n

q u e

n ã o

d

a

s

v o c ê

c o n h e c e

_ o que, quem? Tangolo Mangos era uma ideia individual que tomou corpo quando virou coletiva. Inicialmente, era um projeto virtual de um dos integrantes da banda, Felipe Vaqueiro, de soltar algumas músicas em

m

sua conta no site Soundcloud nos idos de 2015 e 2016. Em 2017, isso mudou: a Tangolo Mangos virou banda ao lado de Brian Dumont, João Antônio Dourado, João Denovaro e Pedro Viana.

a

s

TANGOLO MANGOS tangolomangos.bandcamp.com/

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v

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