O louco anda na beira do abismo; lá embaixo, uma multidão se divide entre aplausos e olhares de escárnio. Ninguém
#83 // ANO 12
expediente
discorda do seu talento para correr
!"#$%&'"()!#'*+," Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha Gerente Financeiro Pedro Pares Gerente de Planejamento Cássio Konzen Diretor de Criação Rafael Rocha RH Taisla Heres Coordenação de Arte Jaciel Kaule Diretores de Arte Árthur Teixeira Guilherme Borges Diretores de Arte Jr. Jade Teixeira Lucas Abreu Vitória Proença Assistentes de Arte Guilherme Ferreira Maicon Pereira Produção Dani de Mendonça Lia Procati Malena Thailana Coordenação de Vídeo Lucas Tergolina Vídeo Diego Machado Humberto Ferreira Pedro Krum Shandler Franco Thaíse Silva Foto Mell Helade Novos Negócios Leandro F. Gonçalves
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riscos, mas poucos admitem que não
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ostracismo, acima de tudo, o louco é um incompreendido.
Sergio Sampaio sentiu isso na pele. Apesar do carisma incendiário, das
Atendimento Interno Ingrid Mônaco
composições escritas com o próprio sangue e da musicalidade instintiva e
Redação Camila F Oliveira Fernanda Zandavalli Guilherme Flores Rodrigo Laux Tássia Costa Vinícius Rocha
animalesca, gravou pouco e morreu cedo carregando a fama de maldito. Louco lhe chamaram, mas quem o conheceu atesta sua coerência de aço e sua sanidade límpida
Planejamento Eduardo Mello Gabriela Etchart Julia Brito Juliano Mosena Luan Pires Mickael Prass Taína Cíceri Thiarles Wäcther
como as águas que banham sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim (ES). É de lucidez que falamos no lado A da revista, que começa aqui e traz uma entrevista rara que Sergio deu a Zeca Baleiro, além
Mídia Ágatha Donini Mariana da Silva
do depoimento emocionante do seu filho, João Sampaio.
Community Manager Ana Paula Pause Laís Soares Maurício Teixeira Vanessa Castro
O lado B se joga no caos. O ensaio das Páginas Negras expõe a obra de
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Solange Gonçalves Luciano, paciente que
Gerente de Planejamento Marcel Maineri
frequenta a Oficina de Criatividade do
Coordenação de Projetos Carolina Farias
Hospital Pisiquiátrico São Pedro (RS). Investigamos a relação de Sergio com Raul
Assistente de Projetos Gabriel Dias Helena de Oliveira Planejamento Matheus Barbosa Matheus Gugelmim
Editor Ariel Fagundes
Estagiário Planejamento Rafael Kronitzky
Diretor de Arte Árthur Teixeira
Redação Camila Benvegnú Jéssica Teles Pedro Veloso
Community Manager Hayane Leotte Kelvin Furtado
Amado, invejado, condenado à glória e ao
Coordenação de Projetos Brenda Beloni Caio Pereira Diego Paz Jordana Monteiro Thais Martins
Coordenação de Projeto Karen Rodriguez
Repórter Brenda Vidal
teriam coragem de tentar fazer o mesmo.
Editores Gustavo Brigatti Joana Barboza Leonardo Baldessarelli
Seixas e ainda refletimos sobre o ingrato rótulo de "maldito", que se tornou uma chaga nas costas de muitos artistas.
O abismo espera por você, salte nele nas páginas seguintes. Quem sabe você não sai voando.
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Ariel Fagundes 4A
noize.com.br
Lucas Krüger Escritor, editor, tradutor e psicanalista. Dentre seus livros, destacam-se os de poesia e
Rodrigo Moreira
ligados ao campo psicanalítico.
Autor da obra Eu Quero
É Botar Meu Bloco Na Rua - A Biografia
Brenda Vidal Quase jornalista vivendo um ritmo que só a música pode acompanhar. Apaixonada por cultura, arte e negritude.
colaboradores
de Sergio Sampaio, a pesquisa mais profunda já publicada sobre a vida do artista.
Zeca Baleiro Músico maranhense com dezenas de álbuns lançados. Em 2006, produziu
Cruel, disco póstumo de Sergio Sampaio, e, em 2008, reeditou seu disco
Sinceramente.
Leonardo Baldessarelli Publicitário por prazer, jornalista por vaidade. Acima de tudo, maluco por qualquer tipo de música.
Rodrigo Laux Jornalista, músico e nenhum dos dois. Crê que o ser humano é superestimado, mas é quem cria os melhores grooves.
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Bandas que você
não conhece mas
deveria
"As mulheres
da Ley Line
transcendem linguagens e gêneros para criar um som que parece emergir do fundo da Terra. Harmonias dinâmicas passam como uma corrente por texturas de stand up bass, violão, ukulele e percussão" (Site oficial)
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Rodrigo Laux
Divulgação
noize.com.br
LEY LINE leylinesound.com _ o que, quem? Quatro mulheres norte-americanas vindas de dois pontos completamente distintos do país - duas delas do Texas e duas de Nova York. Elas se juntaram e se radicaram em Austin, unidas pela paixão em comum por
_ mood: Harmonias vocais e arranjos genialmente elaborados em roupagem acústica, revelando canções carregadas de alma e melodias ricas, criativas e extremamente versáteis, o que é explicado pela amplitude de referências e experiências. _ como soa? Apaixonadas pelo Brasil, o quarteto - que já deu alguns rolês densos por aqui, tocando em pequenas casas e alguns bunkers culturais de norte a sul do país - abusa de uma musicalidade naturalmente rica e altamente comunicativa. Não à toa, o paralelo que elas fazem entre a música folclórica norte-americana com a música brasileira de nomes como Gil e Caetano acabam por se tornar universalmente assimiláveis. Começando pelos vocais: com afinação precisa, individualmente cada uma delas já revela muita personalidade e estilo próprio, que possuem em comum o doce e o aveludado, além de uma carga sentimental e de conhecimento (até
cantar, pelo folk, pelo blues, pelo soul e pela sonoridade grooventa, criativa e extremamente variada de um país latino-americano chamado Brasil. Brazil no caso.
holístico) apenas na forma de cantar. Juntas, são capazes de criar harmonias que nos fazem perceber aquele algo a mais que vai muito além da técnica e das referências. É aí que a palavra ‘conexão’ - usada por elas até pra definir sua própria sonoridade - passa a fazer tanto sentido. A variedade de técnicas, a sensibilidade e a qualidade dos timbres que elas tiram - especialmente ao vivo - da configuração violão, baixo, ukulele e percussão são capazes de quebrar qualquer preconceito com esse formato mais “natureba”. Pode soar clichê, mas as meninas da Ley Line conseguem nos relembrar do princípio básico musical de que nada pode ser mais revelador do que instrumentos agindo como extensões naturais do corpo e da alma. Apesar da boa qualidade de produção do seu único álbum, o Field Notes (2016) é ao vivo - no olho no olho - que o quarteto revela o poder
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da sua música e a capacidade de transmitir ao público tudo que absorveram em seus estudos e suas viagens pelo mundo. _ qual a vibe? Ouvir sem medo de acreditar na pureza e simplicidade extraordinária do que se está ouvindo. Como as próprias meninas descrevem, “a música da Ley Line inspira a conexão entre os picos e os vales da experiência humana.” Mas é preciso insistir: é Imprescindível um contato ao vivo com o quarteto pra entender do que elas são capazes. _ por onde começo? Seu álbum Field Notes (2016), que conta com músicas em português (pt-br mesmo) em faixas como "Pirulito", "Arueira Mata" e "Lá em São Paulo". _ onde encontro? Streamings. Mas fique atento às redes delas porque, a qualquer momento, podem passar por aqui de novo.
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perguntas
para
Com Sergio Sampaio nunca houve meios-termos, a intensidade foi sua marca registrada até o fim. Nascido em um contexto humilde no interior do Espírito Santo, ao longo dos seus 47 anos de vida, sentiu na pele a gló-
João Sampa 8A
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Ariel Fagundes
Arquivo pessoal João Sampaio
Jaciel Kaule
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O que faz do Sergio Sampaio um músico único?
Sempre achei que uma das principais características era o fato de meu pai se desnudar na obra dele. Ele realmente era aquilo ali, sempre foi muito sincero, inclusive sobre os problemas dele. Como a cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim, influenciou ele?
Meu pai sempre foi muito influenciado pela terra dele e muito ligado às raízes. O pai do meu pai é o Raul Sampaio, que era um maestro conhecido na cidade. E o primo do meu pai é o Raul Cocco Sampaio, compositor de “Meu Pequeno Cachoeiro”, que é um hino de lá. As principais influências dele vieram de ver seu pai nos seus processos criativos e, depois, da discoteca do primo dele. Fora isso, é muito forte a influência do Roberto Carlos, que também é de Cachoeiro do Itapemirim.
ria e o esquecimento e nunca deixou de rir de tudo isso. Duas vezes, ele foi casado e, da sua segunda relação, veio o seu único filho, João, com quem tivemos a conversa emocionante que você lê aqui.
aio
Como o Sergio era enquanto pai?
Convivi com ele muito menos do que eu gostaria. Ele se separou da minha mãe quando eu tinha três anos e a gente manteve uma relação de final de semana, mas era raro, acontecia de épocas em épocas. Quando eu estava com uns nove anos, em 1991, ele foi pra Bahia e nessa época meu pai se encontrou, parou de beber e de fumar, estava produzindo muito, e foi quando a gente conviveu mais. Em 92 e 93, nas férias de junho, passei um mês direto com ele e lembro que era uma vida de anarquia total. Não tinha hora pra dormir, pra tomar banho… Um pouco antes, na fase dos sete anos, tem uma passagem que me lembro bem: ele estava indo me deixar na casa dos meus avós, passamos pela Rua Vinicius de Moraes [no Rio de Janeiro], e ele começou a falar quem era o Vinicius. Aí perguntei onde que tinha a rua com o nome dele. E aí ele falou: “Não, puxa, isso aí não é pra qualquer um, tem que fazer muita coisa boa”. Tenho isso muito vivo na minha cabeça. Ainda vou ver uma rua com o nome dele. Qual sua visão sobre a relação dele com o álcool e as drogas?
Se pensar como filho, foi um desastre: me fez conviver com ele muito menos do que eu gostaria, acabou com os casamentos dele e, no final, o levou à morte. Mas, por outro lado, tem aquela discussão eterna: a pessoa dele seria a mesma se não tivesse passado por tudo isso? Não tenho nenhum julgamento, acho que isso faz parte, as drogas e a arte estão intimamente ligadas. Mas ele, que sempre prezou pela liberdade, acabou prisioneiro. Primeiro, da cocaína, mais ou menos na época do Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua (1973). Ele percebeu que estava se afundando e foi pra uma fazenda no interior de Goiás, passou seis meses lá e se livrou. Demorou mais tempo, mas ele também parou de beber sozinho, não teve nenhuma internação ou intervenção. Infelizmente, foi tarde demais, os danos pra saúde já estavam irreversíveis e ele acabou morrendo cerca de um ano e meio depois de parar. Qual foi o maior inimigo que Sergio teve?
O grande inimigo foi ele mesmo, ele acabou sendo vítima dele mesmo. Mas, ao mesmo tempo, foi altamente beneficiado por essa personalidade difícil e irascível. Da mesma forma que atrapalhou muito, isso fazia ele ser um cara que jorrava música, que era intenso demais. Foi o que deu tudo que ele teve e tudo que ele deixou. 9A
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Leonardo Baldessarel l i
Companheiras na estética, base de todas as artes, e também no ritmo, tido como ponto central em ambas, a poesia e a música caminham juntas há muito tempo, das expressões orgânicas de povos ancestrais até a canção popular de hoje. No Brasil, algumas das formas mais belas dessa união surgiram, tomaram espaço e se tornaram tradição. Esse legado, porém, é livre e mutante, sendo ressignificado a todo momento, ganhando novas formas, mostrando novas realidades da língua e consagrando muitos nomes: Vinicius de Moraes, Ivone Lara, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Cartola, Arnaldo Antunes, Antônio Cícero, Mano Brown, Sabotage... A lista desta e da próxima página apresenta 10 músicos em ascensão que têm o potencial de serem lembrados por sua poesia - alguns bem jovens, outros já na ativa há um bom tempo, mas todos responsáveis por um tratamento de luxo às palavras.
Tiganá Santana
Daqueles músicos-poetas sublimes que compreendem e expressam profundamente as ligações entre a palavra e o som, entre a métrica e a harmonia. Estudioso da cultura africana, escreve numa ampla gama de línguas, incluindo kikongo e kimbundo, de Congo e de Angola, o francês e o português. Ouça: “Para a Poetisa Íntima” e “Mon'ami"
ssola Iara Rennó
Igor de Carvalho
De poética feminista e libertária, afrontosa e dialogando com múltiplas culturas - mas mantendo os pés na afro-brasilidade -, ganhou destaque na cena com o disco Arco/ Flecha (2016), em que explora a dualidade entre o feminino e o masculino e transforma em música algumas poesias do seu livro Língua Brasa Carne Flor (2015). Ouça: “Mama-Me” e “Corpo Selvagem"
Enquanto mistura samba, MPB e rock, remetendo a nomes como Los Hermanos e O Terno, a poesia do pernambucano é o que o coloca num patamar diferenciado, com métricas perfeitas e jogos de palavras encaixando em discursos existencialistas. Não por acaso, Igor vem sinalizando que seu futuro está no voz e violão, formato que exalta a canção. Ouça: “Samba Que Não Fiz Pra Rosa” e “Laço”
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Giovani Cidreira
A obsessão pelo Clube da Esquina encontrou um representante moderno e renovado (e quase involuntário) no artista baiano, que ganha a cena com o disco Japanese Food (2017) e sua poética de olhar jovem e sentimentos maduros. Sua ligação ao som de Minas também é sonora, mas ele não deixa de flertar com outros mundos musicais, como os anos 80. Ouça: “Última Vida Submarina” e “Ancohuma” Tássia Reis
Encontro da potência lírica com o canto delicado e forte, ela é onipresente no rap nacional e um ícone em ascensão do feminismo negro. Suas palavras e seu estilo, tanto pela diversidade do som quanto pelo visual, são de enorme representatividade e circulam entre seus afetos mais profundos, da paixão à revolta. Ouça: “Da Lama / Afrontamento” e “Se Avexe Não”
Marechal
Com quase 20 anos de carreira, ainda é tratado como uma “lenda perdida”, sem ter lançado um disco solo e empilhando polêmicas e singles em que mostra sua poesia de métrica no ponto e tratamento de luxo às palavras e rimas. Essas linhas não são suficientes para resumir a história de Marechal, então comece a ouvir pelos clássicos e procure saber o resto. Ouça: “Espírito Independente” e “Primeiro de Abril”
Edgar
Multiartista, ele é rapper e cantor, performer, escultor sonoro e poeta apegado ao abstrato extremo, mas sem deixar de lado o comentário social. Com 24 anos, acaba de lançar o disco Ultrassom (2018) e se estabelece com versos críticos que formam avalanches de referências e alegorias. Não são poucos os que o comparam a Chico Science. Ouça: “Plástico” e “Print”
Vitor Brauer
Integrante mais conhecido e porta-voz da banda Lupe de Lupe e do movimento Geração Perdida de Minas Gerais, é compositor e músico prolífico, poeta que caminha entre o punk e o erudito misturando frustrações políticas e amorosas com referências literárias. Além disso, tem uma discografia solo pautada pela poesia e pela prosa musicada. Ouça: “Pavimento” e “SP (Pais Solteiros)”, da Lupe de Lupe
Arthur Nogueira
Renan Inquérito
Descrito como a renovação do legado dos grandes poetas na música brasileira, Arthur vai além desse estereótipo. O toque pop da sua música dá um novo corpo para clássicos, e seu repertório passeia por versões de trabalhos em outras línguas e adaptações de textos históricos. Aos 30, é um prodígio, apadrinhado por Antônio Cícero e com quatro discos lançados. Ouça: “Antigo Verão (Embarque para Citera)” e “Vou Ficar Tão Só Se Você Se For”
Seus versos pesados e carregados de imagens poéticas belas e aterradoras criaram uma encarnação do conscious rap em contexto brasileiro que influenciou gente como Emicida e Criolo. Líder do grupo Inquérito, tá na ativa há muito tempo e é um dos nomes mais admirados dentro da cena do rap nacional, mesmo passado longe de ganhar o mainstream. Ouça: “Eu Só Peço a Deus” e “Vitrines”
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Ariel Fagundes
Reprodução
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Os bastidores de uma obra-prima que quase foi esquecida. Durante o carnaval de 1973, era praticamente impossível ir a uma festa sem ouvir a voz de Sergio Sampaio nos alto-falantes. “Eu Quero é Botar Meu Bloco Na Rua” havia sido lançada no ano anterior no 7º Festival Internacional da Canção (FIC) e, mesmo não ganhando a premiação, se tornou um sucesso. Estima-se que o compacto de 72 que trazia a faixa tenha vendido 500 mil cópias.
Em função disso, era grande a expectativa da gravadora Phillips quando assinou com Sergio o contrato para fazer o seu LP de estreia. O disco saiu em 1973 com o nome de Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua em referência ao hit, mas nem seu título, nem a produção perspicaz do amigo Raul Seixas, nem a sua mescla única de rock psicodélico com as raízes da música brasileira garantiram boas vendas ao álbum. No ano seguinte, Sergio soltou seu último esforço com a Philips, um compacto que trazia, no lado A, “Meu Pobre Blues”, uma homenagem ao seu conterrâneo Roberto Carlos, e, no lado B, “Foi Ela”, um samba-canção desesperado. Renato Piau, guitarrista e violonista que acompanhou artistas como Tim Maia, Raul Seixas e Luiz Melodia e que era um grande amigo de Sergio, tanto que participou de todos os seus discos, lembra que Sampaio se incomodava com os efeitos colaterais do seu sucesso repentino. Por isso, conta Piau, ele acabou passando um bom tempo na sua cidade natal entre 74 e 75: “O Sergio simplesmente foi pra Cachoeiro e lá ficou fugindo desse assédio”, conta.
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De volta ao Rio, e já sem a Philips, Sergio se aproximou de Roberto Moura, executivo da Continental, que viria a ser a última gravadora a assinar um contrato com ele. Ainda em 75, saiu seu primeiro lançamento por lá, um compacto com as excelentes faixas “Velho Bandido” e “O Teto da Minha Casa”.
ao lado do maestro Lindolfo Gaya, que fez a orquestração das músicas “A Luz e A Semente” e “Tem Que Acontecer”. Além de fazer todos arranjos de base, João gravou ainda os violões de “Que Loucura”, “Cada Lugar Na Sua Coisa”, “Quatro Paredes” e “Tem Que Acontecer”.
O produtor, violonista e também amigo íntimo de Sampaio, João de Aquino, conta que esse single marcou o início da parceria entre eles. João produziu esse compacto, que teve uma repercussão comercial interessante, e suas vendas motivaram a gravadora a fazer um LP. “O compacto estourou, por isso fizeram o disco Tem Que Acontecer”, diz. “Quem ia produzir [esse LP] era o Roberto [Moura]”, explica João, mas, segundo ele, Sergio lhe disse que não queria que o executivo da Continental assumisse a produção e pediu para Aquino ocupar o cargo.
Ao contrário do primeiro disco de Sergio, que flerta bastante com o rock psicodélico, seu segundo LP é praticamente um disco de samba. Isso não foi por acaso, o álbum anterior tinha muita influência de Raul Seixas, um roqueiro inveterado; mas Sergio nunca foi tão conectado às guitarras quanto Raul, o que mais mexia com ele era o ziriguidum do Brasil. “Quem me botou na música popular brasileira foi o Sergio”, lembra Renato Piau: “Ao mesmo tempo, eu tentava empurrar pra ele coisas de rock e ele ficava puto. ‘Não vem com esse negócio de The Who pra cá, não! Tenho coisa muito melhor!’ Aí pegava um João Nogueira e botava pra eu ouvir”, lembra Piau.
- Eu não era produtor da Continental, era da Odeon. E tinha esses problemas antigamente, se você era de uma gravadora, não podia fazer com outra a não ser que não saísse seu nome. Aí falei: “Roberto, vou deixar a produção pra você e vou fazer os arranjos e a gente divide”. Foi assim que aconteceu. Esse disco [Tem Que Acontecer] quem fez fui eu, saiu com o nome do Roberto Moura porque ele era muito meu amigo e deixei a produção pra ele, mas quem fez tudo fui eu - afirma Aquino. Na ficha técnica do álbum, consta o nome de Roberto como diretor de produção, já João é citado apenas como arranjador
Tem Que Acontecer é um disco que registra bem esse sentimento. Ainda que traga músicas conectadas à estética do rock, como “Cabras Pastando” e a própria faixa-título, esse é um álbum de música brasileira. João de Aquino conta que entendeu isso logo que começou a trabalhar com Sergio e que, por isso, resolveu chamar para o LP um time de instrumentistas do alto escalão do samba e da MPB. “Parece um disco de sambista”, comenta João, “e, como eu produzia muitos discos de samba, fiz dentro dessa raiz, que eu achava que seria boa pra ele”.
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"Todo mundo pensava que ele fosse louco, mas não era louco, não. Era muito consciente", João de Aquino sobre Sergio Sampaio
- Não botei o pessoal mais contemporâneo. Chamei a nata de músicos aqui do Rio de Janeiro. Altamiro [Carrilho], Maurício Einhorn, Paschoal Meirelles, o trio Marçal, Luna e Eliseu, Laércio de Freitas… Músicos que eram completamente diferentes do mundo do Sergio. Antigamente, quem resolvia tudo era o produtor, o artista aprovava ou não. E ele gostou muito desses caras porque eram craques. Foi muito bom porque esses músicos tinham uma respeitabilidade, eram os mais cascudos da época - afirma João de Aquino. Ele lembra ainda que esses instrumentistas viam Sergio, com seus cabelos longos, como “um estrangeiro”. “Mas nunca liguei pra isso”, diz João: “Aprendi com o Pedro Sorongo [que também gravou o Tem Que Acontecer], ele dizia que era sambista, mas que não queria saber se aquilo era rock ou o quê. Os músicos de antigamente eram muito abertos”. O renomado pianista Laércio de Freitas, que gravou “A Luz e a Semente” e “Tem Que Acontecer”, lembra disso: “Era aquela coisa do cabeludo, pensavam que o cabeludo era bicho grilo. Eles eram meio marginais, mas inofensivos. Era só uma indumentária”. Ronaldo Corrêa, do conjunto vocal Golden Boys, que gravou “Quanto Mais”, afirma ter poucas lembranças das gravações, mas diz que Sergio lhe marcou muito: “Ele era muito divertido e muito interessante. Eu gostava muito de conversar
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com ele porque era um cara com um papo muito inteligente e polêmico”, diz. Segundo João de Aquino, Sampaio participou ativamente de todo o processo de gravação: “Todo mundo pensava que ele fosse louco, mas não era louco, não. Era muito consciente. Sabia exatamente o que queria”, afirma. João conta ainda que o consumo de álcool e outros narcóticos, hábito que acompanhou a vida de Sergio por um bom tempo, não causou nenhum tipo de obstáculo ao seu trabalho naquela ocasião. Ainda que isso atraísse um certo preconceito contra Sergio, João de Aquino afirma que nunca se importou com esse tipo de coisa, e vai além: - O que interessa é o talento do cara. Dizer que fulano de tal era maconheiro ou cheira cocaína, na música, é babaquice. Os caras vieram desse negócio, no samba era onde tinha essas coisas, o Sergio Sampaio vem dessa história. O Chico não bebe pra caralho? Chico Buarque bebe pra caralho. Baden Powell não bebia? Bebia pra caralho. Tom Jobim? Bebia pra caralho. O Tim Maia era foda, Sergio Sampaio, perto do Tim Maia, era um santo. Se você fizer um histórico da música brasileira, ela é feita em cima de maconha, bebida, não tinha santinho na história, não. Porra, o Silvio Caldas foi preso, Aracy de Almeida escondia maconha no liquidificador. Essa porra é antiga!
Renato Piau, que acompanhou Sergio até o fim da vida, apenas lamenta que o amigo não se alimentava muito bem e abusava das experiências psicotrópicas. “Antes da fama, o Sergio teve problemas de inanição e teve tuberculose. Lembro que o médico falou que ele tinha que comer, mas ele deslanchou pra birita e o Sergio era mais dos destilados. Aí conheceu a danada do pó branco e se encantou. E cocaína não dá vontade de comer, aí foi tendo problemas, essa coisa crônica da pancreatite”, conta.
Tem Que Acontecer foi gravado entre os dias 3 e 29 de maio de 1976 no Studios Level, que, segundo João de Aquino e Renato Piau, era “o melhor estúdio do Rio de Janeiro”. Nessa época, Sergio ainda estava em boa forma e poderia ter saído em turnê divulgando o álbum após seu lançamento. No entanto, ele era muito arredio às exigências mercadológicas das gravadoras e, assim que terminou as gravações, Sampaio simplesmente foi embora do Rio e voltou para Cachoeiro do Itapemirim, onde passou meses ignorando por completo o planejamento da Continental, que pretendia fazer uma série de ações de divulgação do álbum. Segundo Piau, apesar da boa recepção da crítica da época, não houve shows de lançamento do Tem Que Acontecer. “Então ficou difícil, se você lança o disco, tem que ficar um, dois anos trabalhando o disco,
viajando o país, divulgando, ainda mais naquela época em que não havia internet”, comenta Piau. João de Aquino concorda: “O cara era um rebelde. Ele fez o negócio, mas o preconceito em cima dele fez com que todo mundo dissesse: ‘Pô, esse cara aí quer porra nenhuma’. Então o disco não foi trabalhado”. Piau confessa que o título do disco sempre foi um problema para ele: “Achava muito apelativo. Tinha uma coisa imperativa, uma pretensão. E você tem que trabalhar pra que as coisas aconteçam”. Já João de Aquino explica que a ideia do título era justamente abençoar o álbum: “Esse nome, Tem Que Acontecer, tem um fundamento: é porque a gente achava que [o disco] tinha que acontecer. E ele não aconteceu por essa coisa preconceituosa das próprias gravadoras, o mercado não deixava esses caras florirem”, opina João. Apesar da baixa venda do LP, a Continental chegou a lançar um compacto em 1976 com as suas faixas “Quanto Mais” e “Cada Lugar Na Sua Coisa” e, no ano seguinte, Sampaio fez mais um single na gravadora com as inéditas (e inspiradíssimas) “Ninguém Vive Por Mim” e “História de Boêmio”. Essas duas músicas, além de “O Teto da Minha Casa”, chegaram a ser incluídas na reedição em CD de Tem Que Acontecer, lançada em 2012 pelo selo Discobertas em parceria com a Warner, que detém o catálogo da extinta Continental.
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Hoje, o segundo LP de Sergio Sampaio é tido como a sua obra-prima, aclamado por novas gerações de fãs que, cada vez mais, vem descobrindo a obra do capixaba. “É engraçado, as pessoas, com o decorrer do tempo, começaram a gostar desse disco e a perceber que o Sergio Sampaio não era
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só o autor de ‘Eu Quero é Botar Meu Bloco Na Rua’. Ele tinha uma obra consistente”, comenta João de Aquino. Demorou quatro décadas e, infelizmente, Sergio não está aqui para ver isto, mas o fato é que a profecia do título do disco se cumpriu. Finalmente, Tem Que Acontecer aconteceu.
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Zeca Baleiro
Arquivos pessoais de JoĂŁo Sampaio e Rodrigo Moreira
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Exclusivo: A rara entrevista de
Sergio Sampaio a Zeca Baleiro 21A
Enquanto ouvia meus irmãos mais velhos tocarem as canções do Sergio Sampaio, no início dos anos 70, na pequena Arari (MA), jamais poderia imaginar que muitos anos depois eu o conheceria, numa situação pra lá de inusitada, e mais, que teria meu nome associado para sempre ao seu por ser um fã declarado. E grato. O encontro aconteceu em junho de 1989, no Circo Voador, durante um show. Um amigo compositor me disse: “Sabe quem tá aí? Sergio Sampaio. Eu conheço ele, quero te apresentar”. Devidamente apresentados, conversamos por dez minutos, tomamos um gole de cerveja e eu o convidei a ser o entrevistado da revista cultural que eu mais quatro quixotes kamikazes estávamos produzindo na longínqua São Luís do Maranhão. A revista se chamaria Umdegrau e duraria apenas uma edição. Mas marcaria época na vida cultural da cidade. Sergio tanto demorou a enviar a entrevista que acabamos publicando a revista sem ela, que permaneceu inédita até o lançamento do CD póstumo Cruel, que eu produziria em 2005, mais uma interseção inusitada de nossos destinos. Aqui, você pode conferi-la na íntegra.
C O INÍCIO
omecei em 71, na CBS. Fui até lá pra acompanhar no violão um rapaz que queria fazer um teste pra cantor. O nome dele é Odibar, parceiro do Paulo Diniz. E quem nos recebeu foi um produtor chamado Raulzito, que era o Raul Seixas. Ele cantou, eu toquei, aí o Raul disse para o Odibar que, pra lançar um cantor novo, precisava de uma música muito forte, muito poderosa, que invadisse as rádios pra poder chamar atenção. E eu, inocentemente, falei: “Tenho umas coisas aqui, será que interessa?”. Ele olhou pra mim com aquela cara de enfado, pensando “ai, meu Deus, mais um compositor”, e disse: “Tá bom, então canta”. Aí eu cantei uma canção e ele arregalou o olho: “É sua?”, e eu: “É”. “Tem mais?” - e eu falei: “Tem”. E cantei outra e outra e outra… Na saída, ele nos convidou pra tomar um café, aí ele falou baixinho pra mim: “Volta amanhã”. Quer dizer, aí eu voltei e fiquei. Foi quando tudo começou. AS INFLUÊNCIAS Eu me lembro de menininho assim ouvir muito rádio e rádio tem de tudo. Com 15, 16 anos fui ser locutor de rádio, na única estação que tinha aqui em Cachoeiro [do Itapemirim (ES)] e, sendo locutor, convivia com a discoteca da rádio. Então me lembro que, em horário de folga, ia lá pra dentro e ouvia muita coisa. Ouvia muito Sílvio Caldas e gostava muito da poesia de Orestes Barbosa, como gosto até hoje. Orestes Barbosa pra mim é um dos craques da música brasileira. Ouvia muito Orlando Silva, era apaixonado por Orlando. E também venho de uma família que é profundamente musical. Sou primo do compositor Raul Sampaio, que é autor de “Meu Pequeno Cachoeiro” e outras inúmeras canções da música brasileira. Tinha muito orgulho de ser primo dele. Ia pra casa da mãe dele e lá tinha eletrola, eu botava os discos, titia servia bolo, eu ficava comendo bolo com café e ouvindo. Aí titia ia dormir e me deixava sozinho na sala e eu ficava ouvindo os discos que quisesse. Eu me lembro que os Beatles foi uma coisa que me bateu muito fundo. Também sempre gostei muito de Roberto, de Erasmo. Quando veio a bossa nova, me lembro que aquela coisa não me batia muito não. Depois, com a Tropicália, me lembro que gostava muito de Edu, de Caetano, de Gil, de Chico. Quando fui pro Rio, conheci outras pessoas e elas foram me abrindo mais o campo de conhecimento da música e foi aí que descobri a bossa nova de João Gilberto. Eles me mostraram e tive a oportunidade de ouvir João e ficar apaixonado, como sou até hoje. E Paulinho da
Viola, que sempre foi uma pessoa que me fez a cabeça. De influência é isso aí, quer dizer, nem acho que seja influência porque, na verdade, eu ouvia tudo - parada de sucesso, você ouve de tudo. Eu ouvia mesmo, me lembro que deixava o rádio ligado e ia fazer as coisas e ficava sempre ouvindo. A MÚSICA Eu não sou músico. Músico é Hermeto [Pascoal], músico é Egberto [Gismonti]. Músico eu não sou. Faço meus acordes, pego o violão... Toco no violão como quem toca no corpo de uma mulher sem saber as zonas erógenas. Vai tocando por instinto... Assim é a minha relação com o instrumento. Sou um poeta, mas a poesia se manifesta em mim através da letra de música. Não seria um poeta como Vinicius, como Drummond, como Fernando Pessoa, por exemplo. Talvez não fosse capaz de sentar e escrever um livro de poesia e mesmo que escrevesse, não iria sair lá grande coisa. Penso que a poesia se manifesta por mim através da letra de música porque a música é uma coisa muito forte em mim e, geralmente, quando faço as músicas, sai tudo junto, letra e música. E é uma coisa bastante agradável, tesuda, extasiante mesmo de fazer. Eu me coloco a nu nas coisas que faço. Muito verdadeiramente, muito. A INSPIRAÇÃO Costumo dizer que o luar, pra mim, não teria importância alguma se não tivesse o olhar brilhante de uma pessoa perto de mim admirando esse mesmo luar. Pra mim, não teria razão alguma de existir. Ou mesmo o sol nascente, ou o sol poente, não teria razão alguma de existir se não tivesse, por exemplo, aquele casal de namorados admirando aquele espetáculo deslumbrante. Acho muito mais bonito o êxtase no semblante de um casal admirando esse espetáculo do que propriamente o espetáculo. Então, a fonte de inspiração são as relações humanas. O ser humano, pra mim, é a coisa mais bonita. As intrigas, as cafajestadas, as manifestações de hombridade, de generosidade, carinho, tudo o que vem do ser humano, do pior ao melhor, do mais gostoso ao mais tétrico... Mas tudo o que vem do ser humano, para mim, é bonito. É o que eu vejo mais como fonte mesmo, como força. O BLOCO NA RUA Essa história do bloco na rua é engraçada, porque o que você estava querendo há 10 anos de repente já não é mais o que você está querendo agora. E o tempo é um fator danado, o tempo é fogo na jaca mesmo! Você tem suas pretensões aos 20, outras pretensões aos 30 e assim vai alterando suas pretensões. Eu acredito que o bloco na rua seja essa coisa de soltar os bichos. As pessoas me perguntam: “E aí, querendo
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botar o bloco na rua?”, e eu digo: “Não, já botei, agora falta vocês botarem”. Mas é uma brincadeira porque, na verdade, a gente está sempre querendo colocar o bloco na rua. “Bloco na Rua”, inclusive, não acho uma música bem feita, a importância foi que ela surgiu numa época em que as pessoas estavam muito amordaçadas. E não era uma coisa consciente em mim. Não era que eu tivesse feito assim: “Agora, vou fazer isso aqui porque eu...”. Não, nada disso. Fiz a canção num momento de angústia bastante grande. Eu me lembro que era muito sozinho, fiz a canção e sentia que ela tinha determinado poder em mim mesmo, eu sozinho comigo cantando, sentia que ela tinha um poder. Depois mostrei pra Raul e ele mesmo disse: “Pomba, é isso aí, dá pé, esse negócio aí é legal e não sei o quê”… Mas acredito hoje, passado tanto tempo, que a grande importância dessa canção é ter sido feita e lançada numa época em que as pessoas estavam muito amordaçadas e bastante medrosas de abrirem a boca pra falar qualquer coisa. Eu me lembro de Gonzaguinha dizendo que fazia canções usando determinados artifícios pra dizer isso ou aquilo, isso porque era tudo muito proibido. A autocensura começou a pintar muito nos compositores naquele período. O SUCESSO Alguém já disse certa vez que o sucesso e o fracasso são dois lados da mesma moeda. O que seria sucesso? O que seria fracasso? Não sei, sucesso seria você se dar bem naquilo que você pretende?… Ouço, por exemplo, pessoas falarem que determinado filme quando foi lançado foi um fracasso de bilheteria, mas aí passa um determinado tempo e o filme vira um boom e tal. Isso já ocorreu muitas vezes. Até música mesmo... Se não me engano, “Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, quando foi lançada não aconteceu nada. E passado algum tempo, não sei quem foi que descobriu, não sei por que razão, de repente virou “Amélia”, que até hoje é tradicionalíssima. Então penso assim: o importante é fazer, é estar feito, estar registrado. O próprio Fernando Pessoa em vida, ninguém lia e hoje Fernando Pessoa é o que nós sabemos. Augusto dos Anjos, por exemplo, editou um livro apenas, e Augusto dos Anjos foi inclusive um dos poetas que eu mais li quando jovem. Quer dizer, não tenho medo, você tem um medo talvez do desconhecido, mas eu já conheço, eu sei do que se trata. O correspondente do sucesso, fundamental, por exemplo, é o dinheiro. Você é uma pessoa que não tem dinheiro e de repente começa a ter um volume de dinheiro. Esse negócio é perigoso, na medida que você pode se julgar autossuficiente, se julgar o rei da cocada preta… A MARGINÁLIA Na década de 70, existiu, a partir de 69, o que se chamou de contracultura. Veio de Woodstock, Hendrix, Janis Joplin, Fes-
tival de Altmont... Então surgiu essa história de marginal. Veja só, o que se poderia entender de marginal seria o artista em qualquer área de atuação que não alcançasse o grande público, que ficasse correndo pelas margens. Ele era conhecido mais nas margens, era aquela coisa de cult, somente para iniciados. Mas, meu Deus do céu, comecei a fazer disco em 71! Em 72, era o maior sucesso do Brasil, como também em 73. Então, o que a grande indústria colocou como proposta marginal, eu não era, pelo menos nessa época. O que pode ter existido, talvez, tenha sido minha proposta de vida, de não ser aquela pessoa que me deixasse levar, profissionalmente falando, pela estrutura da máquina. Mas isso eu não fazia conscientemente, não era uma coisa assim “não, eu não sou”, não era nada disso. Era apenas uma postura de vida, era particular meu, de como eu sou na vida. Uma postura de ter o direito de dizer não. Mas essa história de margem, acho que vou sempre correr por aí, até o fim de minha vida. Até onde posso me lembrar, quando vivia em Cachoeiro, nunca participei dos grandes esquemas, nunca fui pessoa de grandes grupos, de grandes rodas... Eu nunca estive dentro, sempre estava perto. E quanto ao futuro da marginália, penso que, enquanto existir a grande máquina e enquanto existir o artista que gostaria de um pouco mais de liberdade de criação, quer dizer, de não se sujeitar totalmente ao repuxo mesmo da grande máquina… Enquanto houver essa sensação de liberdade de criação, vai haver isso, não tenha dúvida. E esses são os maiores criadores, acredito que são os maiores criadores porque são aqueles que têm compromisso apenas com a liberdade de criação. ROBERTO CARLOS Essa história de sucessor de Roberto é invenção da imprensa. Eu me lembro que uma vez saiu numa revista chamada Contigo uma foto minha bem grande, uma foto de Roberto menor, e em cima meu nome, dois pontos e “o sucessor do Rei”; “Roberto Carlos diz: ‘Sergio Sampaio é meu sucessor’”; uma coisa assim, mas isso é invenção de imprensa. Você vai entrar em papo de Contigo, você dança, né? Papo de Amiga , isso é mesmo pra publicidade de terceira categoria. Nem Roberto disse isso, nem tampouco houve isso de minha parte. Nunca imaginei uma coisa dessas porque o que Roberto canta é totalmente diferente do que eu canto. Inclusive acredito que os objetivos de Roberto na canção sejam totalmente diferentes dos meus. E afinidade existe no sentido de que eu gosto muito dele. Isso é fatal. Atualmente não ouço muito, acho um pouquinho chatas algumas canções que tenho ouvido, mas sempre tive os discos todos do Roberto. Até algum tempo atrás, em minha casa no Rio, me lembro que as pessoas chegavam, eu mesmo chegava sozinho, pegava um disco antigo dele e botava. Porque a música, pra mim, não tem
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muito essa coisa de tempo, não. As pessoas ouvem Mozart e Mozart já é falecido há muito tempo. As pessoas ouvem Orlando Silva que já é falecido há muito tempo. A minha relação com a música é uma relação muito de amor. Não tenho uma relação com a música puramente profissional no sentido de dinheiro, não! Ganho dinheiro com a música porque preciso sobreviver e é a minha profissão mesmo. Mas a minha relação com a música é mesmo de amor. LUIZ MELODIA Conheço o Luiz desde que estávamos começando. A gente é amigo de longas datas e as pessoas sempre perguntam: “Ah, vocês nunca fizeram música juntos?”. Nunca, nem pretendemos! Jamais conversamos sobre isso, tamanha é a amizade, tamanho é o respeito pela criação um do outro. Sou apaixonado pelas canções de Luiz. Tenho certeza que ele é apaixonado pelas coisas que eu faço. Nós temos mais ou menos a mesma criação, claro que guardadas as proporções... Ele nasceu no morro. Morro no Rio de Janeiro tem uma coisa muito mais a ver com o banditismo, com a marginália no sentido feroz da palavra. Enquanto que eu, aqui numa cidade do interior, convivia com a marginália, mas uma marginália cultural. Uma cidade que tinha uma estação de rádio, que não tinha TV. Penso que nós temos uma vertente bastante poderosa, que nos aproxima bastante, que é o Roberto Carlos. Nós dois, desde meninos, sempre gostamos de Roberto. O Luiz gravou agora “Que Loucura”. Certa vez eu estava num bar, encontrei com o Luiz, tinha acabado de fazer essa canção e fui mostrar pra ele no botequim, batendo assim o andamento. E desde aquela época, toda vez que ele encontrava comigo, cantava um pedaço da canção. Às vezes, me pedia que eu cantasse inteira para ver se ele aprendia. Mas sempre essa coisa dele ouvir com o sentido do prazer, nunca com a intenção de botar em disco. Tanto é que já se passou um tempão desde que eu cantei essa canção pra ele e ele foi colocar no disco agora. Foi um negócio, inclusive, que me surpreendeu. Cheguei no Rio certa vez, um amigo comum disse: “Você já ouviu a música sua que o Luiz gravou?”, e eu disse: “Ué, não estou sabendo de nada”. “Vamos lá no meu carro que eu tenho uma cópia do disco lá”. E nós fomos no carro. Ele botou e foi quando ouvi pela primeira vez. Fiquei feliz, contente, por ser o Luiz, também. QUE LOUCURA Bom, me lembro que certa vez pressenti assim, muito claramente, que eu poderia enlouquecer, no sentido da insanidade, que era uma coisinha de nada, que era zap, rapidinho. Mas também pressenti que tenho um autodomínio muito grande e que, se algum dia eu fosse internado num hospício como o do Engenho de Dentro, seria por artifícios legais, ja-
mais seria por uma coisa real. A sociedade é estanque, ainda não aprendeu a conviver com aquelas pessoas que não se afinam com as suas diretrizes, de ter que estudar, se aperfeiçoar em alguma profissão, de seguir aquele caminho, casar, ter filhos e educar os filhos, ser um bom pai, uma boa mãe. Ela ainda não se acostumou com o fato de que tem pessoas que não estão nessa. Tem pessoas que estão em outra, talvez até não saibam que outra seja essa, mas não é aquela. Eu não tenho esse medo, não. E se algum dia acontecer - Deus me livre! -, mas se algum dia acontecer de eu ser internado por obrigatoriedade judicial, num hospício, uma coisa certa, bastante certa, é que é uma tramóia, é uma armação. E que talvez lá eu possa até perder um pouco a sanidade, mas é algo que tenho certeza de que não perderia tudo, não ficaria insano incorrigível. Talvez porque tenha muita consciência mesmo do que sou como ser humano, como pessoa. Não tenho esse medo, não. E essa canção do hospício do Engenho de Dentro foi escrita para Torquato Neto. Ele me contou que foi internado uma vez lá e aí os caras trataram ele muito bem, ele conseguiu escrever muito e não sei o quê. E de repente ele disse que, quando já estava na rua, já em casa, quando sentia dificuldade de escrever, ia pra lá e tinha o quarto dele onde trabalhava. Achei isso muito engraçado e fiz essa canção. PALCO E PLATEIA, SALA E PORÃO Eu gosto de aplaudir, gosto de sentar lá, assistir a shows de pessoas que admiro. Ah, gosto muito de aplaudir, assoviar, de gritar e tal. E gosto bastante do palco. O palco é meu lar, minha casa, é onde eu estou em casa. Eu estou legal com uma plateia que goste do que eu estou fazendo, estou realmente feliz. É onde tenho a noção exata de que sou feliz! Quanto ao quarto e porão da canção “Que Loucura”, o Melodia cantou errado. Não é errado, é que ele gosta mais de quarto. Então ele botou quarto. “Saí do quarto e fui pro porão”, mas não é. É “saí da sala e fui pro porão”. O sentido aí é sala como aquela coisa que você tá quase exposto. Abriu a porta da frente e você está ali. É a sala de visita, onde tocou a campainha e você abre e já está ali, bem vestido, bem perfumado, barbeado, bem sociável, essa coisa toda. E o porão é aquele momento que você precisa - todas as pessoas precisam disso e algumas até sofrem muito porque não têm esse porão ou não descobrem que precisam desse tal porão - para poder ficar trancadinho lá, quietinho, sozinho, ele e ele, ele com ele, fazendo as grandes reflexões. De ficar com essa linguagem do silêncio. Você fica ali quieto, catatônico - é, a palavra é essa! Ficar com sua catatoniazinha, sua loucura, seu prazerzinho pessoal, você com você. Uma pequena masturbação mental. É essa coisa! Mas o negócio
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aqui é sala, não é quarto. INDEPENDÊNCIA Penso que essa coisa da independência da criação é de a gente ser muito a gente, segurar muito a peteca da gente mesmo. Tem que ter esse espírito da liberdade. Luiz com aquele jeito dele, quieto, eu sou muito extrovertido, falo demais, de vez em quando falo até o que não devo. É uma coisa da minha identidade, a maneira de me manter como um artista, independente das situações que estão ocorrendo no Brasil. E acho que a gente representa essa liberdade de criação. Você vê que a música que o Luiz faz é uma música totalmente pessoal, como a minha. Até um amigo meu poeta disse: “Quem ouve uma canção sua, sabe que é sua”. Outro amigo disse que eu uso a música como catarse, para poder botar pra fora. E de uma certa forma é verdade. Acho que o que nos aproxima e o que a gente representa é esse espírito da liberdade de criação, independente do que seja atual ou não, do que seja momento, do que seja moderno, do que está acontecendo. Não ter obrigatoriedade de fazer uma música… como pediram a Raul certa vez. “Porra, o grande assunto do momento é a Lady Diana!”. Raul desligou o telefone e ficou quase chorando. Pelo amor de Deus! Já imaginou Raul fazendo uma música sobre Lady Diana? Essa é engraçada! A MPB Você já reparou que na música brasileira acontece uma coisa sempre assim: época disso é época disso, época daquilo é época daquilo. Tem gente legal aí e esse negócio de evolução, acho que hoje tem muito menos. Eu gosto muito de Lobão, de Cazuza... Mas a música de hoje é muito mais pra chatura do que pra interessante. Não consigo me ver ouvindo muito a música que se faz hoje. Posso até dizer que participei de um período da música brasileira em que as coisas aconteciam mesmo! Era um negócio poderoso e até tem pessoas que dizem que têm inveja de mim e da idade que eu tenho por ter conseguido viver numa determinada época, num estado de ebulição constante... Não sei, tem muita coisa aí fajutíssima. Não consigo ouvir rádio hoje em dia. Acho rádio muito chato... Programas de música em televisão são raros, raríssimos. Esse Globo de Ouro é um inferno. Isso é uma bobagem. Acho choradeira demais, é gente chorando em excesso, muita reclamação, mas também, 20 anos de amordaçamento, você vai querer o quê? Não sei, parece até papo de velho, mas acredito que se as pessoas ouvissem a substância, acho que o resultado seria outro. SAMPAIO HOJE A música que faço hoje talvez seja uma progressão de tudo isso que eu fiz. Acho que hoje até, quando me pego preten28A
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dendo escrever um determinado assunto, consigo chegar a um resultado mais satisfatório. Acredito que daqui a 10 anos, já vou achar que o que eu fizer naquele período seja mais exato do que estou fazendo hoje. Mas é assim mesmo, a gente tá sempre atrás… Eu, por exemplo, quando termino de fazer um disco, não quero mais ouvir... Acho que aquilo ali é fajuto... Eu, quando termino de fazer uma canção, ainda gosto dela uns três ou quatro dias, mas logo depois já estou em outra, querendo outras coisas. SUMIDO DOS PALCOS Sumido dos palcos? Nem tanto. Claro que não faço shows como eu gostaria, mas é a coisa mesmo do disco... Quer dizer, se você não tem o disco, fica mais difícil. Esse negócio do ostracismo é devido a isso. Só um disco em 82 e já vou pra seis anos sem fazer um disco novo. Mas tenho essa oportunidade de fazer shows. Quer dizer, graças a Deus, tenho essa chance porque as pessoas gostam de mim, das músicas que fiz. Pelo menos até hoje algumas pessoas ainda me mantêm na memória e tenho feito shows em alguns lugares do Brasil com uma correspondência de público bastante boa. Eu posso até dizer que tenho um público bastante bom. Como diz Melodia, “um público que me sustenta”. E esse negócio de emprego, novo emprego, não me vejo fazendo outra coisa, não consigo fazer. Se tivesse que sobreviver fazendo uma outra coisa, eu talvez fosse uma pessoa muito infeliz, muito triste, talvez até amargurada. Talvez nem sobrevivesse. Eu sou compositor mesmo, não tenho saída. Eu não tenho cura, sou cantor mesmo. Meu negócio é fazer canção, meu negócio é estar no palco cantando canções minhas e de outras pessoas que gosto muito. Tenho essa relação com a música. DISCO NOVO Não quero mais fazer disco independente, não tenho a menor capacidade de fazer isso e ser o sustentador desse disco independente no sentido da comercialização. Não tenho o menor talento pra isso. Posso até fazer um disco independente, mas que seja eu a fazer o disco e que haja umas pessoas que cuidem dessa outra parte. Dessa maneira talvez eu faça. Mas a minha pretensão mesmo é fazer um disco novo numa fábrica que tenha condição de colocar o disco no mercado. De colocar o disco tanto em São Luís quanto em Porto Alegre. E que possa também chegar às rádios porque nas rádios, hoje em dia, me parece muito claro que o dinheiro tá correndo muito. Se fizer um disco independente, fatalmente não vai tocar em rádio. Se houver uma maneira de colocar no mercado e de forma paralela, aí poderia até dar pé, mas esperar que toque em rádio, principalmente em grandes estações do Rio de Janeiro, é bobagem. Televisão, eu acho que é um pouco pretensão demais. Acho que é sonho demais. Mas pretendo fazer sim!
Tem Que Acontecer faixa a faixa O autor do livro Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua - A Biografia de Sérgio Sampaio comenta as 12 faixas da obra-prima do artista
Lado A 1) Até Outro Dia Uma bem urdida introdução de percussão, iniciada com um batuque em caixas de fósforos, que vai crescendo com a gradual entrada dos demais instrumentos da cozinha, dá o tom dessa faixa e de boa parte do disco. Sergio retoma a trilha iniciada com o samba-choro “Velho Bandido”, lançada um ano antes, e expõe na letra uma visão realista e isenta de sentimentalismo de uma relação amorosa: “Quem manda em mim sou eu / Quem manda em você é você”. 2) Que Loucura Com letra inspirada na figura do poeta piauiense Torquato Neto, um dos expoentes do Tropicalismo, que relatava a Sampaio suas constantes internações em manicômios, esse foxtrot original recria o “tom maldito” da obra do compositor. O artista imprime na faixa uma inflexão algo tragicômica para retratar a sua própria “loucura”.
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3) Cada Lugar Na Sua Coisa Contando com uma lírica e intensa melodia e um arranjo inteligente, que realça a catarse reservada para o refrão, essa faixa é um dos pontos altos do disco e uma das melhores criações de Sampaio. Novamente, o carnaval aparece como mote para extravasar o desejo de liberdade e de autoexpressão: “Aonde vai o pé, arrasta o salto / Lugar de samba-enredo é no asfalto / Aonde a pé vai, se gasta a sola / Lugar de samba-enredo é na escola”. 4) Cabras Pastando Gravado apenas com os vocais de Sergio apoiados nos violões (base e solo) do exímio Renato Piau, esse rock é mais um exemplo da habilidade do compositor em abordar a música pop com muita personalidade. Os versos oferecem um instigante autorretrato: “Eu tenho um dom de causar consequências / Um ar de criar evidências / Um sapato novo no lixo...”. 5) Velho Bode Samba-canção com sonoridade seresteira graças ao arranjo do violonista João de Aquino. Aqui, Sampaio, como em outras de suas criações, vale-se do artifício de unir o tradicional ao contemporâneo, representado pelos versos de Sérgio Natureza, que se vale de gírias (“bode”) e imagens incomuns para uma letra do gênero: “Você foi um sucesso / do meu samba do lado do avesso / (...) / Você foi um fracasso do meu lado esquerdo do peito...”. Também nessa melodia Sampaio comprova sua perícia como compositor, fazendo incidir a nota musical Dó exatamente onde o verso
de Natureza diz: “Uma corda de nylon ou de aço / que arrebenta quando eu faço dó...”. 6) O Que Pintar, Pintou Samba de autoria de Sergio Sampaio, segundo pessoas próximas, mas creditado no disco ao seu pai, o maestro Raul Gonçalves Sampaio. Decerto entrou no disco para ocupar o lugar de alguma faixa censurada, como “O Que Será De Nós”, que Sergio nunca lançou [Edy Star gravou essa música no seu disco Cabaré Star (2017)].
Lado B 1) A Luz E A Semente Bela e evocativa melodia, com uma letra confessional onde o artista descortina seu drama pessoal do alcoolismo: “Eu, embora seja um menino, sou um mais copo sem vinho.../ (...) / Que tropeçando bêbado pelas calçadas / Me recordando de não ter bebido nada”. 2) Quanto Mais No melhor estilo do samba popular, em que a primeira estrofe vale como refrão, é o mais próximo que Sergio Sampaio podia chegar do chamado, na época, “sambão-jóia”. A sagacidade habitual do compositor nota-se desde os primeiros versos: “Quanto mais eu sofro / Mais coração me aparece...”. 3) Tem Que Acontecer Amarga balada com a mesma visão isenta de sentimentalismo nos versos: “Não fui eu nem Deus / Não foi você, nem foi ninguém / Tudo que se ganha
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nessa vida / É pra perder...”. Regravada por Zeca Baleiro em 1997 com vistas ao CD-tributo Balaio do Sampaio , acabou indo parar na programação de algumas FMs, o que, àquela altura, fez com que uma nova geração de ouvintes descobrissem Sergio Sampaio. 4) Quatro Paredes Gravada parcialmente por Maria Bethânia no disco ao vivo Drama 3 º Ato “Luz Da Noite” (1973), incluída num pout-pouri, aparece aqui na íntegra, na forma de um samba-canção lento, com um rico arranjo de violões. Uma das canções mais bem acabadas de Sampaio, com um perfeito casamento de melodia e letra. 5) Filho Do Ovo Samba de empolgante andamento, novamente com a primeira estrofe já servindo de refrão. Sergio destila autoironia nos versos: “Tanto faz eu ser poeta ou pirado / Tanto faz ser inocente ou culpado / Tudo isso é tão normal / A porta sempre deu do outro lado.” 6) Velho Bandido Trata-se da mesma gravação lançada em compacto em 1975, que marcou o início da associação do artista ao violonista e arranjador João de Aquino e ao produtor Roberto M. Moura. No regional de acompanhamento brilham, entre outros, nomes como o flautista Altamiro Carrilho, o clarinetista Abel Ferreira e o bandolinista Zé Menezes também presentes no time que atuou no Tem Que Acontecer, com exceção de Menezes, substituído por Joel Nascimento.
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B re n d a V i d a l
M a s a o m i M o c h i z u k i / Re p ro d u ç ã o / Ac e r v o p es s o a l Ro d r i g o M o re i ra
Seja você crente dos poderes do acaso, dos astros, de Deus, Nicuri ou o Diabo; é fato que o encontro entre Raul Seixas e Sergio Sampaio tinha que acontecer. Simplesmente assim.
O que rege a precisão dos encontros e desencontros? Talvez seja essa uma das dúvidas mais empolgantes entre os mistérios que a vida terrena esconde - ou, na real, escancara bem no meio da nossa cara. A inquietação pode diminuir se desapegarmos do controle e confiarmos que, quando cada lugar está na sua coisa, cada coisa está no seu lugar. Assim, podemos tentar explicar um dos acasos mais certeiros da música brasileira: o encontro de Raul Seixas com Sergio Sampaio. O Rio de Janeiro, que separa os estados Espírito Santo, de onde vem Sergio, e Bahia, de onde vem Raul, passou de divisa a ponto de convergência, sendo o cenário do início dessa parceria. Mesmo
motivados pelo risco de apostar numa vida vivendo de música, os caminhos percorridos por eles não foram os mesmos. Raul dos Santos Seixas era um baiano imerso na cultura rock n’ roll, que cruzava as ruas de Salvador ostentando topetes à la Elvis Presley com suas gangues - do Clube do Cigarro ao Elvis Rock Club. De família de classe média, filho de engenheiro, ele, depois de muito penar para concluir a escola, dedicava-se à literatura e ao estudo do Direito, Filosofia e Psicologia. Já casado, em 1967, largou tudo para investir na sua banda, que já tinha se chamado The Panthers, Os Panteras e, nesse momento, era Raulzito e Os Panteras.
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Carregando sonhos, inexperiência e expectativas na bagagem, o grupo foi para o Rio de Janeiro a convite do cantor Jerry Adriani e, lá, conseguiu lançar seu único disco, homônimo, em 1968. O LP foi inexpressivo no mercado e Raul e seus colegas foram abatidos pelo fracasso longe de casa. O período foi marcado por extremas dificuldades, como o cantor relataria cinco anos mais tarde na faixa “Ouro de Tolo”, do álbum Krig-ha, Bandolo!, em que diz: “Eu devia estar alegre / E satisfeito / Por morar em Ipanema / Depois de ter passado fome / Por dois anos / Aqui na Cidade Maravilhosa”. O garoto que queria ser escritor como Jorge Amado logo voltou para a Bahia, mas não ficou lá por muito tempo. Depois de um período obscuro lidando com a decepção, Evandro Ribeiro, diretor da gravadora CBS que o conheceu por intermédio de Jerry Adriani, convidou Raulzito para voltar ao Rio na virada da década e ser um dos seus diretores artísticos/produtores. Mais uma vez, o soteropolitano se arriscou na cidade maravilhosa. Enquanto isso, em Cachoeiro de Itapemirim, vivia Sergio Sampaio. Filho de Raul Gonçalves Sampaio, dono de uma tamancaria e compositor e maestro, já tinha o dom da música na família, sendo primo do também compositor Raul Sampaio Cocco, que ficou conhecido nos anos 1950 por integrar o conjunto Trio de Ouro. Apaixonado por rádio, Sergio atuou como locutor no Espírito Santo e sua primeira tentativa de morar no Rio de Janeiro aconteceu em 1964, quando trabalhou brevemente na Rádio Relógio. A experiência, tal qual a de Raul, também fracassou; quatro meses depois, ele já estava de volta a Cachoeiro. Em 1967, voltou para o Rio e entrou para a Rádio Continental, mas, mesmo assim, permaneceu com graves dificuldades financeiras. No início da década seguinte, ele se demitiu da rádio para investir na carreira musical. O primeiro passo foi se inscrever no Festival Fluminense da Canção, etapa do Festival Internacional da Canção (FIC) de 1970. Com a canção “Hei, você”, ficou entre os 20 finalistas.
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Finalmente, a música uniu os dois gênios até então anônimos. Sergio se aproximou do compositor Odibar, que o convidou para acompanhá-lo no violão em um teste na CBS em 1970: este foi o primeiro contato entre Sergio e Raul. Segundo Sergio mencionou em algumas entrevistas, a apresentação de Odibar não teria impressionado Raul. Aproveitando a brecha, Sergio apresentou uma canção, “Chorinho Inconsequente”, que logo apareceria no disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez (1971), como informa o biógrafo de Sergio, Rodrigo Moreira, no documentário Dossiê Kavernista - a história do disco “A Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”, dirigido por Luiz de Magalhães. A sofisticação e a proposta interessante de Sergio provocaram uma reação diferente em Raul. Instigado, ele pediu mais outra canção. Sergio respondeu com “Coco Verde”. Raulzito se convenceu e, discretamente, decidiu dar uma oportunidade só para Sergio dizendo-o: “volte amanhã”. A partir daí, eles se tornam parceiros musicais e amigos inseparáveis. Em 1971, produziram muito juntos. O disco homônimo que o Trio Ternura lançou naquele ano contou com a direção artística de Raul e trazia uma composição dele com Sergio (que assina como Sergio Augusto) chamada “Vê Se Dá Um Jeito Nisso”. Já o EP Ande Rapaz (1971), de José Roberto, lançou a faixa “Amei Você Um Pouco Demais”, outra parceira de Seixas e Sampaio. No mesmo ano, Raul produziu o primeiro compacto de Sergio com as faixas “Ana Ruan” e “Coco Verde”. Logo em seguida, o capixaba viajaria para Cachoeiro e, lá, venceria o II Festival da MPB. Raul foi um mentor de Sergio na indústria musical e na vida, oferecendo suporte e abrigo por saber exatamente o que um aspirante a músico sem um tostão no bolso poderia passar na cidade grande. Por sua vez, Sergio foi quem incentivou Raul a deixar de ser produtor e cantar de novo. Em entrevista divulgada pelo fã-clube oficial Raul Rock Club, Seixas declara: “(...) Ele
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[Sergio] disse: ‘Canta, larga de ser produtor!’”. Em uma entrevista ao jornal O Pasquim, em novembro de 1973, Raul confirmou que cantar e produzir eram caminhos irreconciliáveis dentro da CBS: “Eles disseram ‘ou você é produtor, ou você é cantor’. Eu tinha que optar”. Raul não só optou como aprontou. Ele voltou aos vocais no atrevido LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10 (1971), disco paródia-marginal-underground gravado por Raul, Sergio, Edy Star e Miriam Batucada. Sergio e Raul dividem as composições das faixas “Êta Vida” e “Quero Ir” e os vocais de “Eu Vou Botar Pra Ferver”. Esse trabalho é, até hoje, cercado por mitos - muitos deles aparentemente foram inventados, estimulados e requentados pelo próprio Raul - que merecem ser explicados (mas você está livre para não ser convencido). A lenda diz que o disco foi feito às escondidas. De fato, o disco foi gravado durante uma viagem do diretor da CBS, mas ele tinha conhecimento das gravações, apenas não sabia do formato debochado e despretensioso do projeto. O disco chegou a ser lançado, mas foi retirado das lojas rapidamente. A decisão foi tomada pela CBS, que desaprovou o resultado do trabalho. Edy Star fala no documentário já citado que o presidente da CBS, Evandro Ribeiro, reuniu os quatro músicos e exigiu respostas para o que aquilo significava. Em diversas entrevistas, Raul afirmou que havia sido expulso da CBS por causa disto. Porém, muitas pessoas envolvidas na história afirmam que isso não é verdade: ele permaneceu na CBS até ser contratado pela gravadora Philips, com a qual lançaria seus cinco primeiros álbuns solo. Em 1972, Raul produziu (na CBS) outro compacto de Sampaio com as faixas “Classificados No1” e “Não Adianta”, esta com sua participação. No mesmo ano, ambos tocaram no IV FIC, Raul defendeu a canção “Let me Sing, Let me Sing” e deu um jeitinho de driblar a regra do festival que proibia duas músicas de um
mesmo artista. Inscreveu “Eu sou Eu, Nicuri É o Diabo” que foi defendida por Lena Rios; anos mais tarde, no lançamento da coletânea Anarkilópolis (2003), uma versão dessa faixa com Sergio Sampaio nos vocais apareceria. No mesmo FIC, Sampaio apresentou aquela que seria uma das canções mais atemporais da MPB: “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”. A faixa foi para o compacto do festival, ganhou o Troféu Imprensa, estourou nas rádios e consagrou-se como sucesso do carnaval de 73. Nesse ano, Sergio lançaria o disco de mesmo nome, pela Phillips, com Raul assinando a produção e os vocais de “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua” e “Viajei de Trem”. Essa, inclusive, só entrou no disco por insistência de Raul: “(...) eu compus, mas eu não gostava dela. Mas, Raulzito adorava. (...) Ele insistiu: ‘coloca essa aqui!’”, disse Sergio em entrevista divulgada por fãs no Youtube. Em uma entrevista para a jornalista Cynara Menezes, originalmente publicada em 1993 e republicada em 2017 no site da Carta Capital, Sergio afirmou ter participado da composição de “Cowboy 73”, embrião do hit “Cowboy Fora -Da-Lei”, da qual não é creditado: “Raul esqueceu”, diz Sergio na entrevista à Cynara. O que se sabe, oficialmente, é que “Cowboy 73” era uma das várias composições no caderninho de Raul. Durante a produção do clássico Metro Linha 743 (1984), o compositor teria chamado o amigo Sylvio Passos para terminar a composição, batizada de “Anarkilópolis”, e chegou a gravar essa versão que acabou não entrando no disco. “Cowboy Fora-Da-Lei”, como conhecemos hoje, é uma composição de Raul com Cláudio Roberto, lançada em Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! (1987). Anos mais tarde, a gravação de “Anarkilópolis”, com a mesmo refrão de “Cowboy Fora-Da-Lei” foi encontrada, recuperada e lançada na coletânea de mesmo nome em 2003. De 1973 em diante, as vidas de ambos músicos tomam novos rumos. Sergio voltou para Cachoeiro por um tempo, e, em 76, lançou o disco Tem Que Acontecer.
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Incomodado com a fama e meio avesso à divulgação do disco, se afastou dos holofotes por um tempo. Raul Seixas, por outro lado, estreou sua carreira solo com Krig-ha,Bandolo! (1973) e construiu uma carreira efervescente, consolidando-se como o pai do rock brasileiro. Sobre a relação deles, o músico e amigo íntimo de Raul, Sylvio Passos, comenta: “A relação deles era de uma amizade e um respeito sem iguais, saca? Sempre que os dois se encontravam era uma festa, uma alegria, uma coisa muito bonita. Você via o respeito que um tinho pelo outro, era como se fossem dois irmãos”. Ainda na entrevista para Cynara, Sergio afirmou ter se comunicado com Raul principalmente por telefone nos anos seguintes: “Estive na casa de Raul um ano antes de ele morrer e havia muita decrepitude pro meu gosto”, declarou à jornalista. Sylvio garante que, apesar de não viverem tão colados como nos anos 70, eles mantiveram contato: “Na década de 80 eles sempre se falavam. Sempre se amaram”, decretou. Ambos filhos de homens chamados Raul, unidos pela admiração ao poeta Augusto dos Anjos, pela migração ao Rio, pelo amor à música e vitimados pela pancreatite. Entre o reinado e a maldição, do bloco à sopa, a amizade entre Sergio e Raul resultou em uma parceria inventiva, potente, que mudou os rumos da música brasileira. Com certeza, não haveria um Sergio Sampaio sem Raul Seixas, nem Raul Seixas sem Sergio Sampaio da forma que conhecemos.
Portais da Loucura
T E XTO _
F OTO S _
O B RAS _
M O D E LO S _
Ariel Fagundes
Mart ino Piccinini
"Vestes Falantes", de Solange Gonçalves Luciano
Marina Lopes Ribeiro e Solange Gonçalves Luciano
“Portais da loucura me escondem de ti. Portais da loucura, eu luto até o fim. Sobrevivente eu fui, eu sou, serei enquanto houver reflexos meus”, canta Solange Gonçalves Luciano enquanto mostra obras da sua série Vestes Falantes. Conhecida como Sol, ela é uma artista múltipla. Essa cantiga é de sua autoria. Também atua em poesia, teatro, cinema e, desde 2015, desenho e pintura. 9B
Sol já foi internada algumas vezes no Hospital Psiquiátrico São Pedro, fundado em Porto Alegre (RS) em 1874, onde foram feitas estas fotos. Ela nunca morou lá, mas frequenta o local há anos e é uma das pacientes mais conhecidas da Oficina de Criatividade que o espaço promove. Suas Vestes Falantes revelam e refletem a realidade que vê ao seu redor: “Quis trabalhar em vestes de dormir porque, antigamente, as pessoas internadas só comiam e dormiam”. 10B
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Apesar das suas críticas frequentes ao sistema manicomial, ela diz que já foi expulsa de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e que o São Pedro lhe ofereceu um caminho artístico: “Um Caps me abortou e um manicômio me adotou. E, como esse feto sobreviveu, hoje está aqui pra contar essa e outras histórias”, afirma Sol.
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As tranças, tramas e traços de Sol iluminam essas páginas e servem de inspiração para qualquer um que entenda que a vida e a arte são uma coisa só.
Agradecimentos especiais à Oficina de Criat ividade do Hospital Pisiquiátrico São Pedro, coordenada há 28 anos por Barbara Neubarth, e à Marina Lopes Ribeiro, paciente que também frequenta a oficina.
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Ariel Fagundes
Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua (1973) Produzido por seu amigo Raul Seixas, o disco de estreia de Sergio Sampaio é uma joia pós-tropicalista. Suas 12 músicas misturam de forma original a alma brasileira do compositor com fortes influências do rock psicodélico estrangeiro, unindo com naturalidade pandeiros e guitarras distorcidas. Apesar de trazer o grande sucesso que dá nome ao disco, esse álbum não teve uma expressão comercial à altura da expectativa da gravadora Philips e é a partir dele que começa a nascer a fama de maldito que acompanhou Sergio até o fim de sua vida.
Tem Que Acontecer (1976) O segundo LP é considerado por muitos a sua obra-prima. Ao invés de seguir o caminho apontado pelo álbum anterior, Sergio rompe aqui com psicodelia enlatada e mergulha fundo na densidade da música brasileira. O samba, com toda sua tristeza que balança, assume o protagonismo ao longo das faixas, mas a essa essência se somam rupturas surpreendentes, como a atmosfera jazzy de “Que Loucura”, o experimentalismo com ares interioranos de “Cada Lugar Na Sua Coisa” e o desespero iconoclasta da faixa-título, uma balada orquestrada que alcança a agressividade do rock n’ roll através de um caminho nada óbvio. Aqui, Sergio encontra de fato a sua linguagem pessoal, mas, mesmo recebendo críticas positivas, o disco não aconteceu. É provável que as vendas fossem mais expressivas se Sergio não tivesse se recusado a seguir a campanha de divulgação planejada pela gravadora Continental.
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Sergio Sampaio
Discoteca Básica
Um passeio pelos quatro álbuns que compõem a curta discografia solo do artista.
Sinceramente (1982) O terceiro e último disco solo que Sergio lançou em vida retrata uma fase difícil. Feito de forma independente, financiado pelo seu sogro e produzido pelo próprio Sergio em parceria com o amigo Renato Piau, o álbum apresenta uma sonoridade mais simples do que a dos LPs anteriores. Ainda que tenha sido um disco com orçamento mais enxuto, traz composições muito fortes como “Na Captura”. Nessa época, Sergio já estava afastado do mercado musical há alguns anos e encontrava dificuldades para se manter, fazia poucos shows e o sucesso do “Bloco Na Rua” já havia sido eclipsado pelo tempo. Assim como no LP anterior, ele se recusou a participar dos eventos de divulgação do disco e o resultado foi que poucas pessoas ouviram o seu derradeiro álbum na época em que foi lançado.
Cruel (2006) Disco póstumo produzido a partir de um esforço do músico Zeca Baleiro, um grande fã de Sergio. Zeca reuniu aqui 14 gravações inéditas que o artista havia deixado antes de partir vítima de uma pancreatite, em 1994. Esses registros foram feitos durante os últimos anos de vida de Sergio e seu lançamento foi muito importante para colocar o nome de Sergio Sampaio nos holofotes novamente - dessa vez, ocupando o merecido papel de figura lendária da música brasileira.
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