— H. G. BISSINGER, autor de F R I D AY N I G H T L I G H T S
foto © Elizabeth S. Ames
é o
autor de Catch a Wave: The Rise, Fall & Redemption of the Beach Boys’ Brian Wilson e Paul McCartney: A Life. Ele é articulista da revista People e crítico de televisão do jornal The Oregonian. Carlin mora com a família em Portland, Oregon.
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BRUCE
Esta ampla biografia de um dos maiores músicos dos Estados Unidos é a primeira em 25 anos a ser escrita com a cooperação do próprio Bruce Springsteen e com acesso irrestrito ao artista, sua família e membros da banda — incluindo Clarence Clemons em sua última grande entrevista. O aclamado autor de livros sobre música, Peter Ames Carlin, apresenta um retrato surpreendentemente íntimo e vívido de um dos maiores ícones do rock.
Durante mais de quatro décadas, Bruce Springsteen tem refletido o coração e a alma dos Estados Unidos com uma carreira que inclui 20 prêmios Grammy, mais de 120 milhões de discos vendidos, dois Globos de Ouro e um Oscar. Ele também se transformou em uma voz influente na cultura e política norteamericanas, inspirando o presidente Barack Obama a admitir: “Eu sou o presidente, ele é o Boss”.
PETER AMES CARLIN
PETER AMES CARLIN
BRUCE
“Se há alguém que escreve sobre músicos melhor do que Carlin, eu não conheço.”
“BRUCE é um feito…Carlin mostra porque Bruce Springsteen significa tanto para tantas pessoas há tanto tempo.” — NEW YORK TIMES
Construído a partir de anos de pesquisa e acesso sem precedentes ao objeto de seu livro e seu círculo íntimo, Bruce apresenta o relato mais revelador até o momento de um homem carregado de tragédias familiares, com uma tremenda dedicação à sua arte e uma paixão profunda pela fama e influência. Com este livro, os membros da E Street Band finalmente desnudam seus sentimentos sobre sua demissão abrupta em 1989, e como a ambivalência de Springsteen quase afundou sua reunião de 1999. Carlin traça habilmente a vida pessoal de Bruce que, às vezes, é pungente: de sua infância em uma família de classe trabalhadora pobre em Freehold, Nova Jersey, até a sua escalada obsessiva à fama e vida amorosa confusa, e finalmente pela sua busca em vencer os demônios que quase destruíram seu pai.
PETER AMES CARLIN
Em Bruce, Carlin engloba a amplitude da carreira assombrosa de Springsteen e explora o íntimo de um homem que conseguiu inspirar gerações. Obrigatório para os fãs, Bruce é uma biografia minuciosamente pesquisada, de leitura quase compulsiva, sobre um dos artistas mais complexos e fascinantes da história da música norte-americana.
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BRUCE Peter Ames Carlin Tradução Paulo Roberto Maciel Santos
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Título Original: Bruce. Copyright © 2012 by Peter Ames Carlin. Foto © Herb Ritts / Trunk Archive. Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura, 2013. Diretor editorial Editor Assistente editorial Tradução Preparação de texto Revisão Capa Diagramação
Paulo Fernando Ferrari Lago Claudio Kobachuk Getúlio Ferraz Paulo Roberto Maciel Santos Claudio Kobachuk Getúlio Ferraz Adriana Gallego Mateos Cherlynne Li Adalbacom Design Gráfico e Comunicação
Nota: A edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profi ssionais. Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Grafia atualizada segundo o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. EDITORA NOSSA CULTURA Rua Grã Nicco, 113 – Bloco 3 – 5º andar Mossunguê Curitiba - PR – Brasil Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108 http://www.nossacultura.com.br Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Index Consultoria em Informação e Serviços Ltd.a. Curitiba-PR C282
Carlin, Peter Ames Bruce / Peter Ames Carlin ; tradução Paulo Roberto Maciel Santos. — Curitiba : Nossa Cultura, 2013. 518 p. ISBN 978-85-8066-119-4 1. Springsteen, Bruce, 1949- . 2. Músicos – Estados Unidos – Biografia. 3. Música americana. I. Título. CDD (20.ed.) 920 CDU (2.ed.) 929Bruce
IMPRESSO NO BRASIL / PRINTED IN BRAZIL
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Para Sarah Carlin Ames — “Este não é um passeio sombrio”.
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SUMÁRIO Prólogo: O rei da junk food 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24.
O lugar que eu mais amei Um novo tipo de homem Enquanto minha mente transforma nuvens em sonhos Vamos formar uma banda Fiquem longe das armas, tudo vai dar certo Por razões de ordem pessoal esta tem que ser minha última canção Alguém que fosse um pouco louco Agora eu quero ver se você tem ouvidos Estou finalmente, finalmente, onde deveria estar Escute o teu lixo, cara — Ele está cantando Hiperatividade era o nosso negócio Enfim, vamos deixar rolar Um caso clássico de tenha cuidado com o que desejas Éramos apenas eu e você querida, eu lembro da noite em que você prometeu Sempre há espaço para se jogar alguma coisa fora Ei, grandalhão! Eles ainda estão por aí? O tempo é todo seu, meu amigo Livrai-me do vazio O operário trovador Todos sorrindo muito, felizes finalmente Eu nem mesmo sabia o que era uma parceria Podem ser hostis, eu aguento Puta merda, voltei Esperança, sonhos e rededicação
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25. O país que levamos em nossos corações está aguardando 445 26. É um tubarão enorme, cara! 467 27. Os próximos pés de árvores 486 Uma nota sobre as fontes Agradecimentos Índice
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PRÓLOGO: O REI DA JUNK FOOD A
PRIMEIRA VEZ EM QUE ALGUÉM CHAMOU
Bruce Springsteen de Boss foi nas primeiras semanas do ano de 1971, na sala de jantar de um apartamento gelado nas proximidades do centro da cidade de Asbury Park. O apartamento térreo, que já havia sido um salão de beleza, era na época a casa de Steven Van Zandt, Albee Tellone e John Lyon, todos músicos de vinte e poucos anos de idade que já eram veteranos no circuito de clubes de Jersey Shore. A casa deles se transformou em um anexo da cena musical de Asbury Park. Quando eles abriam as portas do apartamento para os jogos semanais de Banco Imobiliário, o lugar ficava cheio rapidamente. Garry era um dos frequentadores assíduos, assim como Big Bad Bobby, Danny, Davey e uma dúzia de outras pessoas. Bruce tinha um talento particular para o tipo desonesto de Banco Imobiliário que eles jogavam. Nessa versão, as regras do jogo mal apareciam. O jogo de fato acontecia entre as rodadas dos jogadores, quando eles podiam formar alianças, negociar acordos, subornar e recorrer a truques, coerção e o que um forasteiro poderia considerar como sendo trapaça. E é aí que Bruce se sobressaía, devido aos seus poderes astutos de persuasão e a alavancagem fornecida pelos pacotes de doces dos mais variados tipos e origens e as latas de Pepsi que trazia consigo. É engraçado o que um jovem, quando está faminto e lhe dão dois cupcakes recheados de creme com o sabor mais artificial possível vai concordar em fazer quando são duas horas da manhã e ele está com muita fome, mas muita fome mesmo. Então Bruce ganhou partidas suficientes de Banco Imobiliário para inspirar os outros a apelidá-lo de Rei da Junk Food. Isso durou
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apenas até quando Bruce, que também tinha um talento nato para inventar apelidos, criou um novo para si mesmo: the Boss1. O apelido colou. “Lembro de pessoas chamando-o assim e não levando a sério”, lembra o colíder da banda Steven Van Zandt. “Não até que eu comecei a chamá-lo de Boss. A partir daí começaram a levar a sério porque eu mesmo também era chefe. Então, quando comecei a chamá-lo de Boss, o lance era, ‘Se Stevie está fazendo isso, então tem alguma coisa aí!’” Ao ouvir isso hoje em dia, Bruce dá risadas. “Vou deixar que você interprete como quiser”, é tudo o que ele diz. Durante três anos, o apelido semissecreto de Bruce não saiu do pequeno círculo de sua banda e os amigos deles. Todos os quais compreendiam o quão seriamente Bruce levava essas coisas. Porque um dos privilégios de se ser um Boss é controlar quem pode e quem não pode chamá-lo assim. Definitivamente, a banda e os roadies.2 Também alguns amigos, mas somente aqueles que tinham apelidos concedidos por Bruce. Southside, Miami, Albany Al, e assim por diante. O que fez com que ficasse ainda mais ultrajante quando Boss tornou-se domínio público à força. Aconteceu em 1974, quando seu público aumentou e os discos começaram a vender. A mística de Jersey Shore de Bruce cresceu ao ponto de se tornar uma intriga jornalística, e quando um repórter ouviu um membro da equipe técnica soltar casualmente um “Ei, Boss” em uma conversa, o jogo acabou. Quando “Born to Run” tornou-se um sucesso em 1975, o Boss havia se transformado em uma coisa completamente diferente. Uma honraria. Um título de campeão. Outra parte de Bruce sacrificada por causa de sua própria ambição. Bruce não reclamou publicamente, mas ele expressou claramente seus sentimentos já em meados dos anos 1970 ao revisar a letra de sua música mais popular em festas, “Rosalita”: “Você não tem que me chamar de tenente, Rosie/Só nunca me chame de Chefe!” Porque havia regras. Incluindo a regra básica de não reconhecer a existência das regras. Porque o Boss não pode ser visto como alguém que esteja forçando as outras pessoas a pô-lo sobre um pedestal. Até onde você sabe, ele está apenas lá, seu poder e autoridade tão inevitáveis 1
Preferiu-se, na versão brasileira do livro, manter a expressão em Inglês, pois ela está muito associada a Bruce. 2 Equipe de apoio de bandas, encarregados da montagem e transporte de equipamentos, assim como afi nação de instrumentos e outras tarefas.
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quanto as marés. Então nem mesmo pergunte, porque é quando Bruce vai empertigar a cabeça e te fitar com aquele olhar vagamente irritado. “Regras? Eu não tenho nenhuma regra especial em relação a isso”. Pergunte novamente de uma forma levemente diferente e a sua expressão vagamente irritada ganha clareza. “Não há raciocínio algum por trás dela”, afirma Bruce com uma uniformidade proposital. “É só porque eu pagava os salários das pessoas e as coisas eram literalmente tipo ‘O que vamos fazer? Hmmm, não sei, é melhor alguém perguntar ao chefe’ Então, mesmo, era apenas um nome que você usa quando está trabalhando”. Então Boss é uma expressão genérica? Sem nenhum significado maior ou ética acompanhando-a? Significando que qualquer pessoa, inclusive esta que vos fala, pode chamá-lo de Boss sempre e em todo lugar? Por um momento, Bruce fica apenas olhando fi xamente. “Bem, para você me chamar assim seria ridículo”, ele diz. “Além disso, não seria necessariamente correto”. Ele bebe um pouco de tequila e dá de ombros novamente. “E esta ainda é a primeira vez em que ouço falar de regras”. Chame-o de Bruce.
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UM
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CAMINHÃO NÃO PODIA ESTAR EM
alta velocidade. Não em uma rua residencial calma como McLean. Se ele tivesse vindo da Rodovia 79 — conhecida como South Street em Freehold, New Jersey — ele estaria trafegando ainda mais lentamente, já que nenhum caminhão de sete toneladas poderia dobrar uma esquina de 90 graus em grande velocidade. Mas o caminhão tinha a altura e largura para praticamente preencher o acostamento e afastar para o lado os outros carros, bicicletas e pedestres até ter passado roncando. Supondo que as outras pessoas estivessem prestando atenção à estrada em frente delas. A menina de cinco anos de idade andando de triciclo estava distraída pensando em outras coisas. Ela poderia estar disputando corrida com sua amiga até o posto de gasolina da Lewis Oil que ficava na esquina. Ou talvez ela fosse apenas uma criança brincando, sentindo a primavera no ar no final de uma tarde de abril de 1927. Seja como for, Virginia Springsteen não viu o caminhão vindo. Se ela ouviu o motorista buzinando em pânico quando ela desviou em direção à rua, não teve tempo para reagir. O motorista pisou firme no freio, mas não adiantou. Ele ouviu, e sentiu, um baque horrível. Alertados pelos gritos dos vizinhos, os pais da menina saíram correndo de casa e encontraram sua fi lhinha inconsciente, mas ainda respirando. Eles a levaram apressadamente primeiro para o consultório do Dr. George G. Reynolds, e então para o Hospital Long Branch, que ficava a mais de 30 minutos de distância a leste de Freehold. E foi lá que Virginia Springsteen faleceu. O período de luto começou imediatamente. Membros da família, amigos e vizinhos se dirigiram para a pequena casa em Randolph
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Street para consolar os pais da menina. Fred Springsteen, 27 anos de idade e trabalhando como técnico na Freehold Electrical Shop localizada no centro da cidade, manteve as mãos nos bolsos e falava calmamente. Mas a sua esposa, Alice, que tinha 28 anos de idade, não conseguia se conter. Cabelos desalinhados e olhos injetados de sangue por causa da tristeza, ela ficou sentada desamparadamente enquanto seu corpo sacudia com soluços. Ela mal podia olhar para o irmão mais novo de Virginia, Douglas. O pai do menino não era de muita ajuda, também, por causa da mortalha de luto que o envolvia e da atenção que sua esposa desesperada demandava. Assim, no rescaldo da tragédia, virtualmente todos os cuidados e alimentação do menino de 20 meses de idade ficaram a cargo das irmãs de Alice; Anna e Jane. Eventualmente, os outros voltaram pouco a pouco à normalidade de suas vidas. Mas a chegada e a passagem do verão não aliviou em nada a dor de Alice. Ela não conseguia receber consolo algum nos braços do fi lhinho que se agarrava a ela. Perto do seu segundo aniversário, em agosto, o menino havia ficado tão sujo e magricela que foi necessária uma intervenção. As irmãs de Alice vieram buscar as roupas, berço e brinquedos dele e levaram o menino para morar com a tia Jane Cashion e sua família até que os seus pais estivessem suficientemente bem para cuidar dele novamente. Entre dois e três anos se passaram até que Alice e Fred pedissem que seu fi lho voltasse para casa. Ele voltou logo em seguida, mas o espírito de Virginia continuava a pairar sobre a visão de Alice. Quando Alice olhava para o fi lho, ela sempre parecia estar enxergando alguma outra coisa; a ausência daquilo que ela mais amava e que havia perdido tão negligentemente. Com uma aparência de estrutura familiar restaurada, a casa dos Springsteen ainda funcionava de acordo com a percepção imprecisa de realidade de seus residentes. Não mais empregado pela Freehold Electrical Shop, Fred trabalhava em casa, vasculhando montanhas de equipamentos eletrônicos abandonados para concertar ou montar rádios que mais tarde venderia para os trabalhadores migrantes de lavoura que acampavam nos limites da cidade. Alice, que nunca trabalhou, movimentava-se de acordo com sua corrente interna. Se ela não sentia vontade de levantar da cama pela manhã, ela não o fazia. Se Doug não queria ir para a escola pela manhã, ela deixava que ele ficasse na cama. A limpeza e reparos na casa deixaram de ser prioridade. A tinta descascava das paredes. O teto de gesso da
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cozinha caía aos pedaços. Com um único aquecedor alimentado a querosene para aquecer a casa inteira, os invernos passados dentro dela eram siberianos. Para Douglas, cujo DNA vinha ricamente entrelaçado de fios sombrios, o papel de parede descascando e os parapeitos desmoronando das janelas emolduravam sua crescente percepção da vida e do mundo. Não importando onde ele estivesse, não importando o que estivesse fazendo, ele estaria sempre olhando através das janelas rachadas do número 87 da Randolph Street. Doug Springsteen tornou-se um adolescente tímido mas vivaz matriculado na Freehold High School. Ele adorava beisebol, especialmente quando estava com seu primo em primeiro grau e melhor amigo, Dave “Dim” Cashion, um excelente arremessador e jogador de primeira base. Cashion já era considerado um dos melhores jogadores que já surgiram em Freehold. Fora do diamante1, os primos passavam o tempo jogando bilhar em pequenas salas espremidas entre as lojas, barbearias e revistarias que se aglomeravam ao redor da interseção central de Freehold, na esquina das ruas South e Main. Cashion, que era sete anos mais velho do que Doug, lançou sua carreira no beisebol logo após sair da escola, em 1936. Ele passou os cinco anos seguintes dedicando-se à sua carreira de jogador, desde as ligas amadoras e semiamadoras até as equipes de base da liga principal. Ele chegou lá bem a tempo da Segunda Guerra Mundial suspender as ligas e redirecioná-lo para o Exército Norte-Americano. Criado por pais para quem a educação não passava de uma longa distração da vida real, Doug abandonou seus estudos na Freemont Regional depois que seu ano como calouro terminou, em 1941, e conseguiu um emprego como aprendiz (seu título oficial era menino do cabaz) na próspera fábrica de tapetes Karagheusan em Freehold. Ele ficou nesse emprego até junho de 1943, quando seu 18º aniversário o tornava elegível para se alistar no exército. Enviado para a Europa no meio da guerra, Doug dirigia um caminhão de transporte de equipamentos. De volta a Freehold depois do fim da guerra em 1945, Doug deu uma descansada e vivia dos 20 dólares que recebia mensalmente do governo como pensão de veterano de guerra. 1
Parte interna de um campo de beisebol, que recebe este nome por causa de seu formato. (N. do T.)
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Como Fred e Alice haviam deixado claro, ambições acadêmicas e profissionais não eram prioridades, mesmo que apenas por causa de seu mais absoluto desinteresse em realizações — isso sem mencionar livros, cultura ou qualquer coisa que fizesse menção ao seu futuro. Portanto, se Doug quisesse morar na casa deles e ficar desleixado a vida inteira, tudo bem com eles. Ele era, afinal de contas, igual aos pais. Doug mal havia tomado rumo à vida adulta até sua prima Ann Cashion (irmã mais nova de Dim) aparecer certa noite, convidando-o para sair. Ela tinha uma amiga chamada Adele Zerilli que ele poderia gostar de conhecer. Então que tal saírem em dois casais? Doug deu de ombros e disse tudo bem. Algumas noites depois os quatro estavam sentados juntos em um café, conversando educadamente enquanto Doug dava olhadas discretas para a garota encantadora de cabelos escuros e falante sentada do outro lado da mesa. “Não consegui me livrar dele depois disso”, diz Adele hoje em dia. “Então ele diz que quer se casar comigo. Eu falei para ele, ‘Você não tem um emprego!’ Ele disse, ‘Bem, se você se casar comigo, vou conseguir um emprego’”. Ela balança a cabeça e dá risadas. “Ai, meu Deus. No que me meti depois daquilo”. Casados no dia 22 de fevereiro de 1947, Douglas e Adele Springsteen alugaram um pequeno apartamento no bairro de Jerseyville, localizado na extremidade leste de Freehold e que estava atravessando a explosão de crescimento no pós-guerra, assim como o resto dos Estados Unidos. Fiel à sua promessa, Doug havia conseguido um emprego de operário na fábrica da Ford na cidade vizinha de Edison. Adele já tinha um emprego em tempo integral como secretária de um advogado imobiliário. Um bebê veio a caminho no início de 1949, e o menino emergiu às 10h50 da noite de 23 de setembro, dando sua primeira respirada no Hospital Long Branch (que mais tarde teve o nome mudado para Monmouth Medical Center), onde a irmã de seu pai havia dado seu último suspiro 22 anos antes. Ele tinha cabelos e olhos castanhos, pesava 2,9 quilogramas, e foi declarado completamente saudável. Seus pais, ambos com 24 anos de idade, deram-lhe o nome de Bruce Frederick Springsteen e apesar de terem sua própria casa, deram instruções para a enfermeira que registrasse o endereço em Freehold como sendo Randolph Street, 87. Quando sua esposa e fi lho receberam alta do hospital uma semana depois, Doug os levou para a casa de seus pais e colocou o
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pequeno Bruce nos braços de sua mãe. Ela o segurou bem perto de si, murmurando suavemente para a primeira vida nova a entrar em seu lar desde a morte de Virginia. Quando Alice olhou o bebê nos olhos, seu rosto cansado se iluminou. Quase como se ela estivesse enxergando o brilho que certa vez havia habitado sua fi lha morta. Ela abraçou o menino e durante muito tempo não o largou. Ela deve ter te amado muito, Bruce ouviu alguém dizer não muito tempo atrás. Ele riu sombriamente, “Até demais” ele disse. Passando os primeiros meses no apartamento de seus pais, Bruce comia, dormia, se mexia e chorava como qualquer outro bebê. E no entanto o sangue em suas veias levava traços de seus antepassados cujas vidas descrevem a história norte-americana desde o século XVII, quando Casper Springsteen e sua esposa Geertje deixaram a Holanda para construir seu futuro no Novo Mundo. Casper não sobreviveu por muito tempo,2 mas um fi lho que havia permanecido na Holanda o seguiu em 1652, e Joosten Springsteen lançou gerações de Springsteens, incluindo um ramo que vagou até as terras do Condado de Monmouth, New Jersey, em algum momento em meados do século XVIII. Depois da eclosão da Revolução Americana em 1775, John Springsteen deixou sua fazenda para servir como soldado na milícia do Condado de Monmouth, lutando várias batalhas durante um período de três anos que terminou em 1779. Alexander Springsteen, que também era do Condado de Monmouth, alistou-se no exército da União em 1862, servindo como soldado na Infantaria de New Jersey até o fim da Guerra Civil Americana, em 1865. Durante esse período todo, até o século XX, os Springsteens trabalharam como agricultores e, com o crescimento da indústrialização em Freehold, como operários em fábricas. A família de Alice Springsteen era formada por imigrantes irlandeses vindos de Kildare que vieram para os Estados Unidos em 1850, instalando-se nas terras do Condado de Monmouth, onde trabalhavam nos campos e, em alguns casos, empurravam suas famílias um degrau ou dois acima na escada econômica. Christopher Garrity, o patriarca da família, mandou buscar sua esposa e fi lhos em 1853. Sua fi lha, Ann, conheceu um vizinho, um trabalhador chamado John Fitzgibbon, logo depois se casou com 2
Ele pode ter morrido durante a travessia oceânica, ou possivelmente antes mesmo que o navio deixasse a Holanda, dependendo de qual registro genealógico for consultado.
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ele em 1856. Dois anos mais tarde, eles investiram 127,50 dólares na compra de uma casa no número 87 da Mulberry Street, 3 uma rua localizada em um bairro em crescimento formado por casas da classe operária logo ao sul do centro de Freehold. Ann Garrety marcou o local plantando uma muda de faia que havia trazido de Kildare. A árvore floresceu, assim como Ann e John Fitzgibbon, que tiveram dois fi lhos nos anos anteriores ao serviço de John na Guerra Civil Americana. Como sargento do exército da União, John recebeu várias medalhas por causa de sua coragem nos campos de batalha de Fredericksburg e Charlottesville, Virgínia, e então voltou para casa para gerar mais sete fi lhos antes de morrer, em 1872. Casada novamente com um sapateiro chamado Patrick Farrell, Ann deu à luz um conjunto de gêmeos, incluindo uma menina chamada Jennie, cuja própria fi lha, Alice, eventualmente casou-se com um jovem técnico em eletrônica chamado Fred Springsteen. Teria sido bom se todos os membros da família pudessem ter crescido honrados e fortes como a faia de Ann Garrity. Mas como ditado pelo destino e pela genética, ambos os lados da linhagem de Fred e Alice Springsteen traziam em si uma história sombria de almas torturadas. Os bêbados e os fracassados, os com olhares loucos, aqueles que desmoronavam por dentro até desaparecer de vez. Esses eram os parentes que viviam em aposentos nos quais você não entrava. Suas histórias eram aquelas que não podem ser contadas. Eles inspiravam o silêncio que ao mesmo tempo secretava e concentrava o veneno no sangue da família. Doug já conseguia sentir o veneno aparecendo dentro de si. O que pode ter tido algo a ver com o porquê de ele ter se apaixonado tão intensamente por Adele Zerilli, cujo espírito indômito iria protegê-lo e nutri-lo pelo resto de sua vida. A mais nova das três fi lhas nascidas de Anthony e Adelina, imigrantes italianos que haviam chegado ainda adolescentes (separadamente) à Ilha de Ellis durante os primeiros anos do século XX, Adele passou sua infância no bairro de Bay Bridge na parte sul do Brooklyn. A casa luxuosa da família era cortesia de Anthony, que havia aprendido a falar inglês rapidamente e logo conseguiu a cidadania norte-americana e um diploma de advogado. Conseguindo um emprego em uma firma de advocacia, que seu tio havia fundado para se especializar em direito imobiliário, 3
Rebatizada como Randolph Street na década de 1870.
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investimentos e assuntos afins, a turbulência de Anthony cresceu juntamente com o sucesso da firma nos anos 1920. De baixa estatura mas com peito largo, dono de uma voz poderosa, guarda-roupa estiloso e carisma para combinar, o advogado próspero movia-se pelo mundo como uma frente climática, alterando a pressão barométrica de qualquer aposento no qual ele adentrava. Adelina, por outro lado, buscou a vida de uma dama italiana à moda antiga, usando vestidos tradicionais, cercando-se de lembranças do Velho Mundo, e recusando-se a falar mais do que um punhado de palavras em Inglês, mesmo quando suas fi lhas se tornaram típicas garotas americanas modernas. Quando a Grande Depressão chegou em 1929, Anthony desejou poder voltar no tempo. Obrigado a mudar sua família para um apartamento, ele tomou emprestado dinheiro de seus clientes remanescentes para conseguir com que os seus próprios investimentos se mantivessem à tona, o que voltou a se repetir inúmeras vezes. Entretanto, Anthony também tinha outros caprichos, incluindo um caso com uma secretária que eventualmente arrebatou seu coração. Primeiramente, o casamento de Anthony terminou, e então vieram os agentes federais bater à sua porta. “Acho que a palavra é desfalque”, diz Adele. A seguir, condenado foi a palavra. E enquanto Anthony se preparava para passar alguns anos preso, ele comprou uma velha fazenda de 60 acres nas cercanias de Freehold e a reformou de forma que a sua família pudesse viver o mais confortavelmente possível, ainda que sem muitas despesas, enquanto ele cumpria sua pena nas cavernas sombrias da penitenciária de Sing Sing. Nessas alturas, o casamento rompido de Adelina e o súbito declínio financeiro havia afetado tão profundamente a católica praticante que ela decidiu deixar que suas fi lhas cuidassem do domicílio enquanto ela se refugiou com parentes. Ordenada que cuidasse de suas irmãs mais novas, Dora, recém-saída do colégio, arrumou um emprego como garçonete e mantinha as irmãs em rédeas curtas. As visitas semanais de uma tia, que sempre trazia consigo uma mala cheia de espaguete e atum enlatado, ajudavam a fazer face às despesas. As garotas também podiam contar com a ajuda do homem a quem seu pai havia apresentado como sendo George Washington, um trabalhador diarista negro que ele havia contratado para servir como motorista e prestador de serviços gerais. E apesar de seu nome não ser realmente George Washington (isso aparentemente
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foi invenção de Anthony), e de ser já um homem maduro de trinta e poucos anos, ele tornou-se presença constante na casa. “Tudo que sabíamos sobre ele era que sabia dançar”, diz Adele. De acordo com Eda, a irmã do meio, a ação esquentava às sete da noite, quando o programa Your Hit Parade [A Sua Parada de Sucessos] ia ao ar no rádio. Era quando elas aumentavam o volume, afastavam o tapete da sala de estar, e saíam dançando. “Foi quando aprendemos a dançar”, ela continua. “Soa loucura, eu sei, mas era assim que acontecia”. A visão faz com que o fi lho de Adele ria alto. “Elas costumavam ir aos bailes, e os soldados estavam de licença, e eles iam dançar, dançar e dançar”, diz Bruce. “Elas estavam com tudo”. Dora e Eda haviam tomado partido da mãe durante o divórcio, enquanto Adele ficou oficialmente neutra mas tinha simpatia suficiente pelo pai para atender ao pedido dele para acompanhar a namorada na viagem até Ossining, estado de Nova York, para que ela pudesse ter o direito de participar das visitas de famílias na penitenciária de Sing Sing. Quando Dora ficou sabendo das visitas que a irmã estava fazendo à cadeia, ela entrou com uma ação junto ao tribunal do Condado de Monmouth para fazer com que as visitas acabassem. E quando Anthony convenceu Adele a mesmo assim se juntar à sua amada secretária em outra viagem, Dora pôs a irmã em liberdade condicional. “Foi um ato estúpido, porque eu era uma criança!” diz Adele. Então ela deve ter ficado terrivelmente ofendida, certo? “Não. Eu só não podia mais ir, e isso foi tudo”. Quando a fi lha Ginny a contradiz — “Ela nunca superou isso” — Adele instantaneamente admite: “Eu ainda tenho a carta!” Seja como for, a dança nunca teve fim. E mesmo quando as garotas Zerilli se tornaram adultas e arrumaram empregos, carreiras e maridos, tiveram que enfrentar dificuldades, e até mesmo encarar tragédias, o som de música sempre elevava seus espíritos, sempre as colocava de pé, sempre afastou o tapete, e sempre as arrebatava. “Até hoje”, diz Bruce. “Você junta aquelas três garotas e elas ainda vão dançar. Era uma parte importante da vida delas. Ainda é”. Adele engravidou novamente cinco meses após o nascimento de Bruce, e quando a segunda criança dos Springsteens — uma menina que eles batizaram de Virginia em homenagem à irmã que Doug havia perdido — chegou no começo de 1951, não demorou muito para que Doug e Adele se dessem conta de que o apartamento não era mais suficientemente grande para abrigar sua crescente
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família. Sem terem dinheiro para alugar um lugar maior, eles não tiveram escolha senão voltar para o número 87 da Randolph Street, procurando espaço entre peças de rádios quebrados, a mobília instável e os cantos frios da sala de estar. E então havia Alice, tão feliz por ter seu amado Bruce em casa que mal conseguia conter seu entusiasmo. Virginia, por outro lado, mal aparecia na visão dela. “Eles eram pessoas doentes, mas o que eu sabia quando era jovem?” diz Adele. “Achei que estava fazendo o melhor ao batizá-la de Virginia, mas não estava”. Além disso, Alice e Fred já haviam escolhido quem era o favorito. “Com Bruce, não tinha erro”. A partir do dia em que a família se mudou para a casa, Alice passou a cuidar de seu jovem neto como se ele fosse o rei sol. Ela lavava e passava as roupas dele, então deixava a que seria usada durante o dia sobre a cama recém-arrumada. Quando Adele e Doug estavam fora de casa durante o dia, Alice e Fred mantinham a criança alimentada, aquecida, entretida e sempre ao alcance. Ginny, por outro lado, podia se considerar afortunada se recebesse um olhar passageiro ocasional. Rapidamente frustrada pelo desinteresse dos avós, Ginny, que tinha dois anos de idade, exigia ficar na presença de outros adultos durante o dia. Adele: “Ela não queria ficar com eles, então nunca ficava”. “Isto estava bem de acordo com o papel que eu deveria ter”, diz Bruce. “Substituir a fi lha perdida. Era um tipo muito complicado de afeição e que não era inteiramente para mim. Nós [Ginny e Bruce] éramos muito simbólicos, o que é uma carga imensa para uma criança pequena. E isso se tornou um problema para todo mundo”. Consumido pela atenção obstinada de seus avós, Bruce presumia que eram eles, e não os seus pais, os seus principais responsáveis. “Era muito incestuoso emocionalmente, e muitos dos papéis paternos ficaram atravessados. A quem você obedecia e os tipos diferentes de responsabilidades que você tinha eram muito confusos para uma criança. Você não sabe a quem obedecer. Então passamos do ponto”. Bruce lembra da casa dos avós como um lugar estranho e austero, suas paredes rachadas aumentando uma atmosfera já coalhada de perdas, lembranças e arrependimento. “A fi lha morta era uma presença grande”, ele diz. “Seu retrato estava na parede, sempre em destaque”. Fred e Alice alinhavam a tropa toda semana para visitar o cemitério de Saint Rose of Lima para tocar a lápide e arrancar as ervas e grama da sepultura da menininha. “Aquele cemitério”, diz
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Ginny, “era como o nosso parque de recreação. Íamos lá o tempo todo”. A morte era uma presença constante, particularmente com tantos parentes idosos naquela quadra do bairro. “Fomos a vários velórios”, diz Bruce. “Você se acostuma a ver pessoas mortas ao seu redor”. Morte era uma coisa. Mas para Alice, cujo catolicismo do Velho Mundo vinha carregado de superstições e outros terrores, a danação eterna era mais difícil de enfrentar. A vó Alice sentia a presença de Satanás nos relâmpagos e nos trovões, assim, os primeiros lampejos faziam com que ela entrasse em pânico. No espaço de segundos, ela pegava as crianças e corria pela quadra até a casa de sua irmã Jane, que mantinha garrafas de água benta para proteger a família contra tais ataques. “As pessoas se juntavam”, lembra Bruce. “Você tinha quase que uma histeria coletiva”. Quando Fred perdeu os movimentos de seu braço esquerdo devido a um derrame sério no final dos anos 1950, ele trazia Bruce consigo para ajudá-lo a procurar por rádios e peças de equipamentos eletrônicos jogados fora nas latas de lixo da vizinhança. O tempo passado juntos aprofundou a ligação entre o avô e o neto, e atraiu o menino ainda mais profundamente para os ritmos excêntricos da casa de seus avós. Assim, enquanto o emprego de Adele como secretária a mantinha em uma agenda normal, o resto da família — inclusive Doug, que alternava entre empregos irregulares e longos períodos desempregado — abandonou o uso de relógios de uma vez. “Não havia regras”, diz Bruce. “Eu estava vivendo uma vida como nenhuma outra criança vivia, para ser honesto com você”. Aos quatro anos de idade, o menino começou a ficar acordado até altas horas da madrugada. Levantando da cama, perambulando até a sala de estar, folheando seus livros ilustrados, brincando com seus brinquedos e assistindo televisão. “Às três e meia da manhã, todos na casa já estavam dormindo e eu estaria assistindo ‘The StarSpangled Banner’ e então vendo aparecer a tela de canal fora do ar. E estou me referindo a antes da primeira série”. Muitos anos mais tarde, quando Bruce terminou o colegial e passou a viver segundo o estilo de vida dos músicos de ficarem acordados a noite inteira, ele teve uma epifania: “Eu apenas voltei à vida que tive quando tinha cinco anos de idade. Era tipo, ‘Ei! Todo aquele lance de escola foi um engano!’ Foi uma volta a como eu vivia quando era pequeno, tudo ao contrário, mas era do jeito que era”. Quando Adele lia para ele a cada noite, Bruce criou um ritual
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noturno com um livro ilustrado chamado Brave Cowboy Bill. Escrito por Kathryn e Byron Jackson, ilustrado por Richard Scarry (em um estilo nem um pouco parecido com os livros da série Busy, Busy World que ele havia criado), e publicado em 1950, Brave Cowboy Bill tornou-se uma fi xação tão grande para Bruce que Adele conseguia recitá-lo de memória em seu 80º aniversário, em 2005. Bill, o personagem central, que aparenta ter seis anos de idade, invade delicadamente a fronteira, prendendo ladrões de gado, matando cervos e alces para o jantar, fazendo amizade com os índios — ainda que à mão armada (“Nós vamos ser amigos, ele falou para eles firmemente...”) — mata um urso, domina todas as competições em um rodeio e então fica acordado a noite inteira cantando canções diante da fogueira de acampamento antes de voltar para casa para sonhar sobre uma fronteira onde “Ninguém jamais discutia com o valente Cowboy Bill”. Tudo isso serve como um intrigante vislumbre das aspirações fantasiosas de um menino vindo de uma casa governada por um conjunto tão distorcido de expectativas.4 Quando Bruce cresceu o suficiente para brincar fora de casa com os outros garotos da vizinhança, suas visitas às casas bem mantidas a um só tempo o deixaram confuso e perturbado. Repentinamente ele se deu conta que as paredes dos quartos de seus amigos eram recém-pintadas, suas janelas não chocalhavam nos caixilhos e os tetos de suas cozinhas mantinham-se seguros acima de suas cabeças. Todos os adultos pareciam confiáveis; bem empregados, recebiam salários regularmente, e não havia nenhuma sombra de histeria incipiente. “Eu amava meus avós tão profundamente, mas eles eram muito estranhos”, ele diz. “Havia um elemento de culpa e vergonha, mas então eu me sentia mal por me sentir envergonhado”. Com Bruce chegando à idade escolar em 1956, Adele matriculou o fi lho na primeira série na escola paroquial de Saint Rose of Lima no outono. Até onde Doug tinha uma opinião sobre isso, ele a guardou para si mesmo. Mas Fred e Alice, particularmente, tinham outros planos para seu neto. Bruce, eles declaram, não precisava ir para a 4 E ainda mais quando você conta o número de canções que ele iria compor sobre heróis vagando pelas fronteiras, resolvidos a assumir o controle sobre suas vidas e o significado das mesmas. Quando lhe pedem que pense nas conexões entre as fi xações da infância e a visão criativa de sua vida inteira, ele ri. “Rosebud. Você encontrou o meu Rosebud, cara!” Ele não parece estar falando sério.
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escola se ele não quisesse. Fred não havia passado muito tempo na escola, assim como Doug. Então por que fazer esse alarido todo para receber uma educação da qual Bruce não teria necessidade alguma? Adele, cujo pai havia insistido que todas as fi lhas terminassem pelo menos o colegial, não admitia isso. “Ele tinha que ir para a escola”, ela diz. “Mas [Fred e Alice] não deixavam”. Já se sentindo empurrada para fora da vida do fi lho, e mais do que cansada de fazer o papel da esposa obediente em um ambiente tão confuso, Adele tomou uma posição. “Eu disse para o meu marido, ‘Nós temos que sair daqui’”, ela afirma. Se Doug argumentou contra, ele não foi vitorioso. Ao saber que uns primos estavam para sair de seu apartamento duplex no número 39 da Institute Street, a somente três quadras e meia a leste da casa de Fred e Alice, eles assumiram o aluguel e se mudaram quase imediatamente. Era a única forma, Bruce diz hoje em dia, de sua mãe poder dar à família algo parecido com uma vida normal. Mas para Bruce, essa compreensão ainda estava muito longe de chegar. Para um menino de seis anos de idade, ele afirma, a mudança abrupta foi devastadora. “Foi terrível para mim na época porque meus avós haviam se tornado meus pais de fato. Então basicamente eu fui retirado do meu lar”. A angústia do garoto aliviou-se um pouco graças às visitas diárias aos avós para supervisão depois da aula. Também não era de todo mal que o apartamento de dois quartos e dois andares na Institute marcou uma elevação significativa no padrão residencial da família. “Nós tínhamos aquecimento!” diz Bruce, que dividia com Ginny o maior dos dois quartos do apartamento. Doug e Adele se acomodaram em um quarto apinhado que mais parecia um closet do que um quarto de verdade. Pior ainda, o apartamento não tinha aquecedor de água, o que fazia com que lavar a louça e especialmente tomar banho na banheira do andar de cima se tornassem operações complexas. Como lembra Bruce, tomar banho não era um de seus hábitos mais regulares. Já perturbado pela mudança abrupta na sua casa e na estrutura familiar, Bruce se apresentou à escola em um estado de espírito vulnerável e irritado. As rígidas exigências de trabalho das freiras a princípio deixaram o menino confuso, e depois furioso. “Se você cresce em uma casa onde ninguém vai trabalhar e ninguém volta para casa, o relógio nunca tem relevância alguma”, ele diz. “E de repente quando alguém pede para você fazer alguma coisa,
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e diz que você tem 20 minutos para fazê-lo, isso vai fazer com que você fique realmente furioso. Porque você não sabe o que são 20 minutos”. Assim como Bruce não fazia ideia de como ficar quieto durante as aulas, absorver as lições dadas pelas freiras, ou ver em seus rostos comprimidos e mãos segurando réguas, algo além de visões terrenas de um Deus furioso. Bruce fez o que pôde para se ajustar. Ele colocava o uniforme pela manhã, e então marchava orgulhosamente até a escola com Adele segurando sua mão. “Ele ficava de cabeça erguida quando entrava lá, e eu pensava, ‘Bom para ele’”, diz Adele. Mas o que estava acontecendo durante o período letivo? Para verificar, Adele tirou uma folga do trabalho e ficou observando o fi lho do outro lado do pátio durante o recreio. “E lá está ele, encostado na cerca, sozinho, sem brincar com as outras crianças. Foi muito triste”. Para Bruce, sua tendência de isolamento social vinha tão naturalmente quanto seu desejo secreto de ser o centro de tudo. “Companheirismo é um impulso natural dos seres humanos, mas eu não estabeleço conexões sociais facilmente”, ele afirma. “Eu era o solitário, ficava na minha, e havia me acostumado a isso”. Independentemente de onde estivesse, a mente dele ficava vagando em outro lugar. “Eu tinha uma vida interior muito vibrante. Eu parecia ser atraído para outras coisas, diferentes dos assuntos que deveriam estar em seus pensamentos em um dado instante. Por exemplo, como a luz estava refletindo numa parede. Ou qual era a sensação das pedras sob os seus pés. Alguém poderia estar falando sobre um assunto normal, mas eu não conseguia prestar atenção”. Bruce tinha seu pequeno círculo de amigos, a maioria deles meninos com quem jogava bola e brincava de carrinho pela Randolph Street. Seu amigo mais chegado entre eles era Bobby Duncan, um menino um pouco mais novo com quem ele havia feito amizade quando estava na pré-escola. Para Duncan, o jovem Bruce era um garoto normal: apaixonado por beisebol, contente em ir de bicicleta até a loja de doces em Main Street, e logo em seguida pedalar de volta para a casa dos avós para assistir programas infantis na TV, ler histórias em quadrinhos do Archie, ou ambos. Duncan também percebia as diferenças em seu amigo. “Na época, ele era parecido com o rebelde solitário. Ele não se importava com o que as pessoas pensavam”. O que apresentava uma distinção tão impressionante dos típicos meninos de escola
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primária que os outros meninos da vizinhança com frequência ficavam estupefatos. Particularmente quando haviam crescido suficientemente para lutar por posição social na arena tradicional das brigas no pátio da escola. “Cresci em uma quadra com maioria negra, mas nós estávamos cercados por quadras de famílias brancas”, diz David Blackwell, que morava a algumas quadras da rua de Bruce. “Todos nós nos tornamos amigos porque estávamos todos brigando. Tive brigas com todos os meus amigos, brancos e negros. Mas algo a respeito de Bruce... Não acho que você possa encontrar em Freehold alguém que tenha tentado brigar com ele”. Mesmo porque, como o irmão de David, Richard, lembra, o menino Springsteen ou ignorava ou estava de alguma forma imune às provocações infantis que davam início a batalhas. “Você podia estar falando uma bobagem qualquer sobre a mãe dele, e ele dava de ombros e dizia, ‘Ok!’ e continuava a andar”, ele diz. “Não há nada que você possa fazer sobre isso. Tem que respeitar. Deixe que aquele menino fique na dele”. O comportamento esquisito e ao mesmo tempo teimoso de Bruce sempre fez com que ele fosse um alvo suculento para as freiras e suas humilhações vagamente medievais e para os colegas de classe que riam baixinho das surras que o garoto estranho levava. Bruce provocava fúria institucional suficiente para terminar vários de seus dias letivos na sala da diretora, onde ele aguardava durante horas até que Adele pudesse vir para buscá-lo. Confrontado pelos pais no final do dia, Bruce sempre tinha a mesma explicação para o seu comportamento. “Ele não queria voltar para a escola católica”, diz Adele. “Mas eu o obriguei a ir, e agora me arrependo disso. Eu deveria ter sabido que ele era diferente”. 5 Douglas Springsteen passou a maior parte daqueles anos imerso em si mesmo, sombriamente belo à semelhança do ator John Garfield, mas perdido demais em seus próprios pensamentos para encontrar uma conexão com o mundo agitado ali fora da janela da cozinha. Frequentemente incapaz de se concentrar nas tarefas do local de trabalho, Doug vagou da fábrica da Ford para trabalhos 5
Adele se rendeu aos pedidos de seu fi lho para sair da escola Santa Rosa em 1963, bem a tempo de Bruce se matricular na Freemont Regional High School, a instituição pública que então atraía alunos de toda a cidade de Freehold e também de algumas cidadezinhas das redondezas.
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temporários como segurança da Pinkerton e motorista de táxi, e então alguns anos estampando objetos industriais obscuros na fábrica da M&Q Plastics das redondezas, para alguns meses particularmente infelizes como guarda na pequena cadeia de Freehold, para trabalhos ocasionais como motorista de caminhão. Os empregos eram frequentemente separados por longos períodos de desemprego, passando a maior parte dos dias sozinho sentado à mesa da cozinha, fumando cigarros e olhando para o nada. Doug se sentia mais à vontade com seu primo e melhor amigo, Dim Cashion, que havia, depois de vários anos nas equipes de base da Major League Baseball, assumido a posição de técnico de times da Liga Infantil e técnico-jogador das ligas semiprofissionais de New Jersey. Mas mesmo enquanto o talento e o carisma de Dim ajudaram-no a liderar gerações de meninos de Freehold às alegrias de jogar beisebol, eles também vinham acompanhados pela tormenta de um estado de depressão profunda. A gangorra entre desespero profundo e auroras brilhantes de energia desenfreada podia dar início a ataques de comportamento às vezes incontroláveis. “Armários da cozinha eram arrancados das paredes, telefones arrancados da parede, a polícia era chamada”, diz o irmão mais novo de Dim, Glenn Cashion. E se por um lado nem sempre Doug e Dim se davam bem, às vezes passando meses sem se verem (apesar de morarem a uma quadra de distância), os primos ainda passavam suas horas de ócio nos mesmos bares de bilhar, ainda bebiam cerveja juntos, sempre ligados pela mesma história e a mesma herança genética. Ansioso para se sentir conectado aos outros garotos — e talvez até mesmo criar uma conexão com seu pai ao mesmo tempo — Bruce se empenhou de corpo e alma a jogar para os Indians, o seu time na Liga Infantil de beisebol de Freehold, saindo do banco de reservas para jogar como jardineiro direito. Talvez Bruce tivesse mais entusiasmo do que talento para jogar beisebol. Jimmy Leon (que agora é Mavroleon), que foi companheiro de equipe de Bruce durante anos, ainda lembra do momento quando uma bola alta flutuou através do céu de verão em direção à luva estendida de seu companheiro de equipe. Uma jogada teoricamente fácil “Mas então ela o atingiu na cabeça. E foi o que aconteceu”. Ainda assim, Bruce sentia orgulho de fazer parte — não importando quão pequena esta fosse — da temporada invicta de 1961. Que tornou-se levemente menos perfeita quando a equipe foi eliminada
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do campeonato ao perder dois jogos consecutivos por pequena margem de pontos contra os Cardinals, um time que era treinado pelo barbeiro de Freehold, Barney DiBenedetto. 6 Mas, não importando o quão doces fossem esses momentos de infância, Bruce ainda tinha que lidar com a psique frágil de seu pai. “Você não conseguia se aproximar dele, ponto-final”, diz Bruce, lembrando de suas muitas tentativas de conversar com o pai. “Se passavam 40 segundos, e você sabe quando algo parece não ser possível mas acaba acontecendo? Era o que se passava”. Quando terminavam de jantar e a louça estava lavada, a cozinha se transformava no reino solitário de Doug. Com as luzes apagadas e a mesa contendo apenas uma lata de cerveja, um maço de cigarros, um isqueiro e um cinzeiro, Doug passava horas sozinho na escuridão. Em fevereiro de 1962, Adele deu à luz ao terceiro fi lho dela e de Doug, uma menina a quem batizaram de Pamela. A chegada do bebê exigiu que a família apostasse mais alto e se mudasse para um duplex maior no número 68 da South Street, em uma casa branca (equipada com uma fornalha e água quente corrente) ao lado de um posto de gasolina da Sinclair. Sem os fardos da história e da expectativa, a doce presença do bebê Pam era forte suficiente para 6 Isto apresenta um nível de controvérsia à história, porque os Indians na verdade estiveram muito perto de ganhar a segunda partida, só perdendo na segunda parte da última entrada por causa de uma rara — e para muitos questionável — decisão do árbitro Boots “Bootsy” Riddle de penalizar o receptor por causa de uma suposta infração durante o arremesso [balk]. A decisão do árbitro, tomada com o jogo empatado, dois rebatedores eliminados e com as bases lotadas, fez com que o rebatedor Jimmy Mavroleon avançasse para a primeira base, garantindo assim a corrida que daria aos Cardinals a vitória e consequentemente o título. O técnico da equipe adversária, DiBenedetto, insiste que a decisão que deu a vitória à sua equipe simplesmente apressou o resultado inevitável do clássico: “Nós derrotamos eles com metade do nosso time jogando”, ele afi rma meio século mais tarde. “Se estivéssemos com nosso time completo, teríamos massacrado eles”. Mavroleon sente um pouco mais de humildade em relação à coisa toda. “Foi a coisa mais idiota porque os árbitros nunca dão essa falta [infração por parte do apanhador]”, ele afi rma. “Tivemos sorte”. Ele e Bruce tiveram uma oportunidade de refrescar suas lembranças em 1976, quando certa noite Bruce por acaso foi ao restaurante Monmouth Queen Diner, que pertencia aos pais de Jimmy. Mavroleon estava encerrando seu expediente no caixa, mas Bruce ficou por ali para pôr a conversa em dia, lembrar dos velhos tempos e da velocidade do arremesso de seu velho adversário, que provou-se ser poderoso suficiente para levá-lo às equipes de base do Cincinnati Reds durante duas temporadas, 1970-71. Mas se você acha que isso resolve a questão de exatamente quem conseguia arremessar uma bola de velocidade sem que você conseguisse rebatê-la, como descrito na canção “Glory Days”, leia a história de Kevin Coyne a respeito de Joe DePugh (New York Times, 9 de julho de 2011). Lance Rowe, fi lho do técnico dos Indians, de acordo com ex-companheiros de time, também seria um possível candidato. Ou talvez seja uma combinação de todos eles.
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fazer evaporar o fatalismo sombrio que definia tanto a experiência familiar de Doug. Bruce, que na época tinha 13 anos de idade, comprovou-se ser o irmão mais velho zeloso, então se por um lado oficialmente era responsabilidade de Ginny manter o bebê alimentado, de fraldas limpas e tranquilo, Bruce estava, segundo todo mundo, mais atento às necessidades do bebê. Não importando o que estivesse fazendo, o som de sua irmãzinha chorando causava uma ação imediata. “Eu realmente cuidei dela”, diz Bruce. “Eu fazia tudo, trocava as fraldas e tudo mais. Assim, éramos muito chegados quando ela era mais nova”. Certo dia, em 1962, Fred e Alice estavam batendo papo com Adele na cozinha da nova residência em South Street, durante uma visita ao bebê e aguardando a chegada de Doug, que estava trabalhando no turno da noite na fábrica de plásticos. Dizendo que estava se sentindo meio indisposto, Fred foi para o andar superior para dar uma cochilada. Quando Adele subiu para ver como ele estava uma hora depois, o velho estava frio e imóvel; obviamente morto. Descendo as escadas correndo para dar a péssima notícia para Alice, a velha senhora reagiu com um movimento de cabeça. Decidindo não fazer nada mais até que Doug chegasse em casa, elas ficaram sentadas juntas na cozinha até a porta se abrir. Doug reagiu com a mesma ausência de emoção que sua mãe havia apresentado. Ele fez uma pausa durante alguns instantes, falou, “Ah, ok”, procurou moedas nos bolsos da calça, e então foi até o telefone público para telefonar para a funerária e avisar alguns parentes. Quando Bruce recebeu a notícia ao chegar em casa, vindo da escola, ficou histérico. “Foi o fim do mundo”, ele diz. “Mas nós não conversamos sobre a morte de meu avô. Ele provavelmente tinha uns 62, 63 ou 65 anos de idade quando se foi. Eu era muito próximo dele, mas você nunca sabe como reagir quando é uma criança. Lembro do funeral, do velório e todas aquelas coisas. Mas não era como hoje em dia. Todo mundo estava imóvel... apenas diferente”. Com a casa em Randolph Street prestes a ser condenada, a viúva Alice foi morar com a família do fi lho. Ela passava a maior parte dos dias ajudando a cuidar de Pam e também tomou a oportunidade para mimar ainda mais o neto, que já estava com 14 anos de idade. Uma vez mais, ela passou a deixar as roupas que ele usaria durante o dia estendidas sobre a cama pela manhã, preparando seus quitutes favoritos e ficando radiante a cada palavra ou gesto dele. Então Adele passou a fazer o mesmo certificando-se de que Bruce ficasse
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com o único quarto que na verdade era uma suíte, por causa de seu solário anexo. E quando Bruce se deu conta de que o solário tinha espaço suficiente para uma mesa de bilhar de verdade, Adele e Doug juntaram dinheiro, e então foram de carro até outra cidade durante uma tempestade de neve de forma a poder ter em casa a mesa na manhã de Natal. Alice vinha escondendo durante semanas, talvez meses, que algo estava errado. Mas sem dinheiro para pagar por um bom tratamento, de que adiantava pedir ajuda a alguém? Adele a levou ao hospital, e quando os médicos chegaram à conclusão que Alice estava com câncer, eles a levaram para a enfermaria e a mantiveram lá durante os três meses seguintes, submetendo a velha senhora a uma litania de tratamentos, todos debilitantes, muitos deles experimentais. “Acho que eles a trataram como se fosse uma cobaia porque ela não tinha dinheiro, nem plano de saúde”, diz Adele. Quando finalmente voltou para casa, Alice estava fraca inicialmente e então restabeleceu-se. Ela parecia ter voltado à antiga forma quando Pam, que então tinha três anos de idade, acordou no meio da noite e perguntou à mãe se podia ir dormir na cama da sua Aggie. Adele achou isso meio estranho — Pam nunca havia pedido para fazer isso antes. Mas ela assentiu e viu a fi lha andar pelo corredor e entrar pela porta do quarto no final do corredor. “Lembro de entrar no quarto dela, ela se mexendo e levantando as cobertas para me deixar deitar na cama”, diz Pam. Ambas adormeceram daquela forma, a menininha aconchegada junto ao corpo da mulher mais velha, bem igual ao que a pequena Virginia fizera tantos anos atrás. Seja o que for que Alice tenha pensado ou sonhado sobre o passado durante seu mergulho no sono nunca será conhecido. “Quando acordei na manhã seguinte, eu a chacoalhei para que ela acordasse, mas ela não se mexeu”, diz Pam. Bruce, que havia ido para a escola, não fazia ideia. Bruce: “Estou certo de que passei pelo quarto quando elas estavam lá, a apenas uns cinco metros do meu quarto. Aquela foi uma mudança em minha vida; o fim do mundo para mim. Não lembro de ninguém fazendo muito escândalo sobre (meu avô), mas as coisas foram diferentes quando minha avó morreu. Meu pai ficou realmente triste”. A casa centenária vazia na Randolph Street tremeu sobre suas fundações há muito abaladas. Desocupada por Alice em 1962, ela ficou de pé por apenas mais alguns meses antes dos tratores chegarem. A estrutura marcada pelas intempéries caiu em uma
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nuvem de poeira, tornando-se a seguir uma pilha pálida de detritos que foram levados embora por um caminhão. Uma vez que havia sido limpa, a propriedade foi aplainada e asfaltada, transformada em parte do estacionamento da igreja de Saint Rose of Lima pela eternidade. Bruce se recusou a ir ver. “Não voltei durante anos depois que ela foi demolida”, ele diz. “Não conseguia voltar e olhar o espaço vazio. Era muito, mas muito essencial para mim”. A quietude no ar, o amor desesperado de seus avós, a adoração que ele havia sido objeto somente por ser ele mesmo. Este era o alicerce de sua consciência. Suas raízes tão profundas e emaranhadas como aquelas que ancoravam a faia irlandesa que ainda estava no local. “Pensei sobre aquela época”, diz Bruce sobre a casa empenada que nunca deixou de lhe dar a sensação de ser o seu lar, “e me dei conta de que aquele foi o lugar que eu mais amei”.
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