O Infiltrado

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O Infiltrado



O Infiltrado Minha vida secreta nos bastidores da lavagem de dinheiro do Cartel de MedelĂ­n

ROBERT MAZUR

E D I T O R A N O S S A C U LT U R A


Título Original: The Infiltrator Copyright © 2009 Robert Mazur Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2010. Editor-chefe: Paulo Fernando Ferrari Lago Editores Assistentes: Renata Sklaski e Claudio Kobachuk Tradutores: Christian Schwartz e Liliana Negrello Revisoras: Tania Growoski e Adriana Gallego Mateos Capa: Silmara Takazaki Egg Diagramação: Silmara Takazaki Egg Nota: a edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvidas conceituais. Pede-se que seja comunicado à editora no caso de existir qualquer das hipóteses acima mencionadas, para maiores esclarecimentos. EDITORA NOSSA CULTURA LTDA Rua Grã Nicco, 113 - Bloco 3 - 5º andar Mossunguê Curitiba - PR - Brasil Tel: (41)3019-0108 - Fax: (41)3019-0108 www.nossacultura.com.br e-mail: contato@nossacultura.com.br *** Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Mazur, Robert, 1939O infiltrado / Robert Mazur ; tradutores: Christian Schwartz e Liliana Negrello. - Curitiba : Nossa Cultura, 2010. 392 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-98580-83-8 Tradução de: The infiltrator. 1. Tráfico de drogas. 2. Lavagem de dinheiro. 3. Drogas – Controle. I. Título. CDD ( 22ª ed.) 363.45


Para Evelyn, minha esposa, cujo amor e apoio sรฃo maiores do que mereรงo.



SUMÁRIO

Prefácio: O dia do acerto de contas . ................................................ ix 1.

O começo............................................................................................. 3

2.

O nascimento de Robert Musella...................................................... 15

3.

Preparando a cena para os colombianos............................................ 31

4.

O Banco de Crédito e Comércio Internacional................................. 44

5.

O Joalheiro......................................................................................... 55

6.

O anzol de ouro................................................................................. 69

7.

A magia do Panamá........................................................................... 83

8.

Dando a partida................................................................................. 95

9.

Política..............................................................................................110

10. Los Duros e Los Angeles................................................................ 127 11. Atraindo os homens do cartel.......................................................... 135 12. A luta antes de ir à Europa.............................................................. 152


13. O plano europeu............................................................................... 166 14. Medelín invade Paris........................................................................181 15. Revelações....................................................................................... 202 16. O inimigo interno.............................................................................218 17. A primeira grande prisão................................................................. 235 18. O confessionário.............................................................................. 257 19. Fios soltos........................................................................................ 270 20. O fim da operação............................................................................ 289 21. Batalhas........................................................................................... 307 22. Os julgamentos.................................................................................316

Epílogo: O que se seguiu......................................................................... 339 Glossário de Nomes................................................................................ 347 Agradecimentos...................................................................................... 359 Índice...................................................................................................... 361


P r e f ácio O dia do acerto de contas

Corte Distrital de Tampa, Flórida, Estados Unidos 26 de março de 1990 Guardas armados me levaram até uma sala pequena e sem janelas no Fórum Distrital de Tampa, nos Estados Unidos. Através das brilhantes paredes de mogno, antecipavam-se as vozes dos advogados discutindo e as manifestações de uma desobediente multidão. Do outro lado da porta, eu estava prestes a enfrentar alguns dos melhores advogados de defesa que o dinheiro pode comprar. Pela primeira vez, desde o desmascaramento de Bob Musella – meu disfarce como criminoso que lavava dinheiro – meia dúzia de homens que acabavam de saber que eu não era um deles, iriam colocar os olhos em mim. Enquanto os minutos se arrastavam eu reunia forças para a batalha que me aguardava, pensando em minha mulher e em meus filhos, que tinham passado anos suportando as dificuldades de meu trabalho. Com a operação encerrada, nós todos estávamos ansiosos para ter de novo nossa vida como era antes, até sabermos que alguns dos 85 homens trazidos à justiça, na primeira leva de denúncias, tinham colocado um prêmio de 500 mil dólares pela minha cabeça. Minha família e eu fomos realocados e passamos a viver protegidos por nomes falsos. Eu sabia que não suportaria viver, se meu papel em derrubar cartéis e seus financiadores, fosse trazer qualquer risco para aqueles que eu amava. A angústia e o trabalho pesado dos últimos quatro anos não teriam significado nada. Eu precisava reunir toda a força e determinação que pudesse, para passar os próximos três meses no banco de testemunhas. — Eles estão prontos para te ouvir agora — disse o oficial de justiça encarregado, abrindo a porta e me tirando de meus devaneios. Ele me conduziu pelo tribunal lotado de repórteres e espectadores, onde também


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estavam as esposas e crianças dos réus, com quem eu tinha passado bastante tempo. Elas não diziam nada, mas seus rostos gritavam: Como você foi capaz? No piso da sala, os seis réus estavam unidos a uma constelação de advogados. Rudy Armbrecht, um dos maiores organizadores do cartel de Medelín, tinha trabalhado lado a lado com toda a comissão do cartel para preparar algumas das mais sensíveis operações nos Estados Unidos. Se a organização precisava comprar um conjunto de aviões ou se era necessário checar a viabilidade de algum esquema global de lavagem de dinheiro, era Rudy que eles chamavam. Com a cara de um Jack Nicholson louco, ele possuía a inteligência extraordinária e a capacidade filosófica de Hannibal Lector. Pablo Escobar escolheu a dedo o chefe de Armbrecht, Gerardo Moncada – também conhecido como Don Chepe, para controlar uma grande porção do seu império. Armbrecht, confidente e amigo deles, foi quem agiu como intermediário entre Don Chepe, Pablo Escobar e eu. Quando o olhei da cadeira de testemunhas, Armbrecht ajeitou a gravata e, com uma aparência um pouco demente, acenou para me dar olá. Perto de Armbrecht, estava sentado o peixe ensaboado Amjad Awan, um executivo sênior do Banco de Crédito e Comércio Internacional (BCCI), que lavava dinheiro para alguns dos mais notórios criminosos do mundo. Entre seus clientes estavam o Presidente Zia, do Paquistão, o general Manuel Noriega, do Panamá e traficantes de alto escalão dos Estados Unidos. Filho do ex-chefe geral do ISI – equivalente paquistanês da CIA – Awan apoiou um grupo, na época conhecido como Guerreiros pela Liberdade do Afeganistão, hoje conhecido como Talibã. Awan se mantinha calmo, com movimentos estudados, como alisar sua gravata. De seu terno impecável e feito sob medida, ele inclinou a cabeça para frente e olhou sem baixar o nariz, como que insultado, do alto de sua realeza, pela minha presença. Ao lado de Awan estava seu melhor amigo e colega do BCCI, Akbar Bilgrami, com quem Awan dividia a responsabilidade de desenvolver novos negócios do banco em toda a América Latina – onde eles procuravam abertamente se relacionar com qualquer tipo de negócio sujo que pudessem encontrar. Nascido e criado em Islamabad, Bilgrami falava um espanhol fluente e passou longas temporadas de sua carreira na Colômbia, onde conheceu sua terceira esposa. Bilgrami me encarou firmemente, mexendo-se em sua cadeira e esfregando as mãos. Mesmo quando eu estava sob disfarce, tinha dificuldade em deixá-lo à vontade. Não há dúvida que ele antecipava que este dia ia chegar. Ian Howard, um executivo do BCCI nascido na Índia, administrava a filial do banco em Paris e fazia o trabalho sujo para seu chefe, Nazir


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Chinoy. Terceiro no mais alto escalão de executivos de um banco com 19 mil empregados, Chinoy dirigia todas as filiais da Europa e do norte da África. Depois que ganhei a confiança de Chinoy em Paris, ele trouxe Howard para nossos negócios. Chinoy estaria sentado no banco dos réus também, se não estivesse ocupado tentando não ser extraditado de Londres, onde as autoridades o prenderam e o estavam mantendo, sem possibilidade de habeas corpus. A antiga prisão londrina, onde ele amargava seus dias, fazia a maioria dos presídios americanos parecerem hotéis quatro estrelas. Seu capacho, Howard, me encarava, mas nem seu corpo nem seu rosto se moviam. Também vindo de Paris, o braço direito de Howard, Sibte Hassan, se viu preso na rede de operações em que trabalhei disfarçado. Hassan era a mão que empurrava o dinheiro ao redor do mundo, de acordo com a direção que Chinoy apontava. Mais novo e menos experiente que seus colegas, Hassan nunca tinha entrado nos Estados Unidos antes de sua prisão. Ele demonstrava confiança e subordinação a seus superiores até mesmo no tribunal. Observava a todo tempo os outros réus para ver como deveria se comportar. O último do time era Syed Hussain, um executivo da área de contabilidade da filial do BCCI no Panamá. Hussain via em mim uma forma fácil de atingir a meta de atrair todo tipo de dinheiro, desde que a verba ajudasse a aumentar os dividendos no balanço final do banco. Hussain foi detido a caminho do que julgava ser minha despedida de solteiro. Quando as algemas clicaram em torno de seus pulsos, ele riu. Surpreso, o policial perguntou o que era tão engraçado. “Já estive em despedidas de solteiro como estas, em que as mulheres se vestem de tiras e agem como se estivessem prendendo você”, ele disse, rindo. “Onde estão as mulheres?” Os policiais acharam graça, balançaram a cabeça em desaprovação e disseram: “Amigo, você tem que acordar e tomar um café. Isso não é nenhuma fantasia. Você está sendo preso”. Como agente federal, passei anos disfarçado como criminoso que lavava dinheiro internacional do submundo, infiltrado no zênite de uma hierarquia criminosa salvaguardada por um círculo de banqueiros e executivos sujos que, serenamente, moldam o poder em todo o planeta. Eles me conheciam como Bob Musella, um executivo ricaço conectado à máfia e vivendo a boa vida. Nós fazíamos festas em suítes de hotel que custavam mil dólares o pernoite, vivíamos em casas faraônicas, dirigíamos conversíveis da Rolls Royce, voávamos de Concorde e em jatos privados. Bob Musella era da turma deles. Bob Musella tinha uma empresa de investimentos de sucesso e sociedade em uma firma de investimentos de Wall Street, comandava uma


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rede de joalherias – ele tinha tudo. O que eles não sabiam é que eu não era de fato Bob Musella. Esse nome e estilo de vida eram mentiras que eu vivia com o único intuito de conseguir acesso à suas vidas secretas no submundo criminoso. Debaixo de meus ternos Armani ou de minha pasta Renwick, minigravadores capturavam provas cabais de nossos parceiros no crime, que eu então passava a meus chefes no governo. Depois de uma dramática operação policial que aconteceu numa falsa festa de casamento (a minha), mais de 40 homens e mulheres foram presos, julgados e enviados à prisão. No ano e meio entre o fim da operação e o início do primeiro julgamento, uma equipe de dedicados agentes e eu, gastamos 18 horas por dia transcrevendo febrilmente mais de 1.400 gravações clandestinas. Elas se tornaram golpes devastadores nos julgamentos que se seguiram, e a operação C-Chase se tornou uma das operações de disfarce mais bem-sucedidas na história do poder judiciário americano. A história do meu papel no drama alimentou capas de revistas e primeiras páginas de jornais por anos: New York Times: “Desmascarando o banco do submundo”, Wall Street Journal: “Executivos do BBCI acusados de lavagem de dinheiro”, New York Post: “Agente federal em disfarce de playboy expõe gigantes das drogas”, San Francisco Examiner: “Narcobanqueiros – Por dentro do mundo secreto da lavagem internacional de dinheiro das drogas”. Mas o valor dessas denúncias perdia força se comparado às cifras bombeadas para dentro dos bolsos dos advogados de defesa dos homens que eu encarava do banco de testemunhas. Oficiais do governo, mais tarde, calcularam que 42 milhões de dólares saíram dos acionistas do BBCI – milionários sauditas e barões do petróleo – diretamente para os cofres da defesa, com o intuito de garantir a absolvição dos executivos do banco – os mesmos indivíduos que tinham cuidado de todas as minhas necessidades de lavagem de dinheiro. E essa cifra fica mirrada em comparação aos 400 a 500 bilhões de dólares de receitas geradas pelo comércio de drogas a cada ano, de acordo com estimativas do governo americano e da Organização das Nações Unidas. Uma vasta soma, sem dúvida, mas o governo americano não consegue rastrear nem 5% dessa riqueza. Bancos da Suíça, Panamá, Lichtenstein e outros paraísos fiscais continuam a dar cobertura para dinheiro sujo, mas meu trabalho como infiltrado disfarçado juntou evidências de que outros locais menos tradicionais estão em ascensão. Os cartéis estavam começando a mover seu dinheiro para lugares como Abu Dhabi, Bahrein, Dubai e Oman. Esses bancos conduzem seus negócios em árabe, resistem a investigações


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do judiciário de países ocidentais e florescem num comércio de dinheiro baseado no dólar. Os banqueiros criminosos em todos esses lugares ajudam a controlar impérios multibilionários de traficantes de drogas que controlam suas organizações como se fossem empresas públicas. Contadores, advogados e conselheiros de finanças, as raízes vão fundo dentro das comunidades, e eles vão lavando bilhões de dólares por ano, manipulando complexos sistemas de finanças internacionais para servir aos senhores da droga, políticos corruptos, fraudadores de impostos e terroristas. Sutis e sofisticados, crescem no anonimato, oferecendo discretos serviços de primeira classe, não importando quanta sujeira ou sangue o dinheiro protegido por eles possa custar. E estão se dando bem a cada dia. Esta é a história de como eu ajudei a derrubá-los. É também a história de como um agente infiltrado conseguiu subir nas hierarquias, de como informantes são cativados e vínculos de confiança são criados. Este é, de um ponto de vista geral, um penoso olhar para dentro do mundo secreto da lavagem internacional de dinheiro das drogas. E, do ponto de vista particular e mais íntimo, é uma história de fugas penosas, escorregadas perigosas, e de como a justiça ajudou enquanto meus colegas agentes e eu desvendávamos o esquema, pista a pista. Como tudo aconteceu é uma coisa que nunca compartilhei – até agora. Tudo começou com uma taça de champanhe.



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1 O começo

Staten Island, Nova York Década de 50 Quando eu era criança, minha mãe me contou — à moda de uma fábula com moral edificante — que meu bisavô, Ralph Cefaro, administrava uma transportadora de fachada, para levar garrafas de uísque, durante a Lei Seca, a Charlie “Lucky” Luciano, um dos mais notórios gângsteres dos Estados Unidos, em Lower East Side, Manhattan. Meu avô, Joe, e seus irmãos trabalhavam na transportadora com caras que pertenciam a uma das gangues de Lucky. Quando Thomas Dewey, um agressivo promotor, iniciou uma perseguição a Lucky e toda a sua organização, um dos caras da turma, já fichado na polícia, foi pego — não por engarrafar uísque — e enfrentou tempos difíceis como reincidente. Meu avô, um verdadeiro homem, correto e honrado, assumiu sua culpa. Depois de ficar um tempo preso, ele se mudou com a família da rua East 14th para um pequeno apartamento de dois dormitórios, próximo aos diques secos de Staten Island. Como muitos dos rapazes da vizinhança à época, ele tinha um apelido: “Duas Cervejas” — que ganhou porque, assim que o apito tocava marcando o fim do turno, ele se dirigia ao bar Friendly Club e pedia, imediatamente, duas cervejas. É unanimidade na família que eu era seu favorito — o que explica por que, quando eu tinha apenas cinco anos, ele começou a me levar ao Friendly Club para me exibir aos seus amigos. Como todo garoto italiano daquele tempo, eu tocava acordeão e meu avô não resistia ao impulso de me empurrar até o bar para que os amigos pudessem assistir seu neto tocar sem olhar para a partitura. Cercado por barris de cerveja


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e amplas nuvens de fumaça de cigarro, ele dava uma olhada para o recinto em torno dizendo com os olhos: Ei, calem a boca. Nós vamos ouvir o pequeno Bobby tocar agora. Todos os caras do bar silenciavam de imediato para ouvir, enquanto eu maltratava o acordeão com uma canção. Era terrível, mas ninguém ousava brincar com “Duas Cervejas” Cefaro sobre os talentos musicais de seu neto. Mais de uma década depois que ele morreu, consegui um trabalho de verão na Brewers Dry Dock como carpinteiro, pintor e armador. No meu primeiro dia, um dos caras que trabalhava ali há quase vinte anos me perguntou: — Ei, garoto, como diabos você conseguiu esse trabalho? — Bem, meu avô trabalhou aqui algum tempo atrás e ele tinha muitos amigos — eu disse, humildemente. — Um dos caras que ele conhecia me ajudou. — Ah, sim, e quem é seu avô? — ele perguntou, inclinando a cabeça. — Bem, ele morreu há algum tempo, mas todos o conheciam como “Duas Cervejas” Cefaro. — Tá de brincadeira — o cara respondeu, em choque. — Todo mundo conheceu o Duas Cervejas! Ele era um cara e tanto. Depois que a notícia de que eu era neto do Duas Cervejas se espalhou, o chefe do sindicato da AFL-CIO, Steve, se aproximou. — Ei, garoto, precisamos de sua ajuda hoje — disse. — Depois que você se arranjar, venha me ver no cagador. “Se arranjar”, na gíria das docas, significa ir pela manhã até o chefe de sua área — carpintaria, no meu caso — para saber qual é o trabalho que precisa ser feito durante o dia. E o cagador é exatamente o que a palavra diz: um local onde ficam os banheiros, no centro do pátio. Quando apareci, Steve explicou que eu devia ficar ali fora e bater na parede se percebesse a aproximação de qualquer pessoa que não trabalhasse no pátio. Minha tarefa coincidia com a visita de um tomador de apostas local, que vinha recolher os palpites para números, cavalos e jogos, dentro do cagador. Steve escolhia a dedo alguns de nós para, num sistema de rodízio, fazer aquela função de olheiro. Mas antes que Steve pudesse me pedir o favor uma segunda vez, um outro sindicato substituiu a AFL-CIO, e Steve perdeu seus poderes. Foi uma importante — e indolor — lição sobre lealdade e respeito.


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Alguns anos depois, na faculdade Wagner, de Staten Island, dei de cara com um anúncio de um cargo na Divisão de Inteligência da IRS1. Eu não tinha nenhuma ideia do que a vaga poderia ser, mas era trabalho em tempo integral para o verão e parcial para os meses de aula, além de uma chance de conseguir um emprego depois da graduação. Juntando informações sobre a função, tive a chance de falar com um agente especial da divisão. Da forma como ele me descreveu, eles não pareciam auditar e perseguir os joões-ninguém. Carregavam armas e insígnias e trabalhavam lado a lado com outras agências, incluindo o FBI, em operações conjuntas. Eles aplicavam a expertise contábil em casos de crime de sonegação cometidos por traficantes de drogas, gângsteres e grandes fraudadores fiscais. Com frequência ele usava aquele velho ditado, de que a caneta é mais leve que a espada, terminando com: “Você sabe, Al Capone foi mandado para a prisão por sonegação fiscal. Se não fosse a gente ter levantado as evidências para cercá-lo, ele jamais teria sido mandado para Alcatraz”. Eu já estava tendo aulas de contabilidade e negócios, e isso tudo soava muito mais divertido do que me tornar um contador mão-de-vaca com um CPA (Certificado de Contador Público). Alguns anos antes, o Chase Manhattan Bank and Montgomery Scott, firma de investimentos no centro de Manhattan, havia me contratado como carimbador de documentos — e eu tinha odiado. Queria uma carreira da qual pudesse ter orgulho, que me mantivesse interessado, que não me encarcerasse em uma rotina tediosa todos os dias. Foi sem dúvida minha experiência extremamente penosa no Chase and Montgomery Scott que me empurrou para meu contato com a IRS. No primeiro dia de trabalho na rua Murray, 120, eu estava elétrico de ansiedade para saber quem seria o gângster ou cabeça de organização que nós iríamos derrubar até o final da tarde. Na verdade, levei um verdadeiro choque. Depois de me instalar, o Agente Especial Morris Skolnick, um sujeito de, certamente, seus 70 anos, veio se insinuando ao meu redor e disse: — Ei, garoto, vou te mostrar como fazer algumas coisas. Ele agarrou um punhado de lápis número dois de sua mesa e lentamente se dirigiu a um apontador manual. Enquanto lutava para 1 Internal Revenue Service, a Receita Federal americana. (N.T.)


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deixar cada lápis bem apontado, olhando para mim, suspirou e murmurou alguma coisa sobre como era importante começar o dia com seus lápis bem apontados. Então, ele me arrastou até a máquina copiadora, colocou um esquema de horários no vidro e apertou o botão. Enquanto a máquina devolvia as folhas, ele me explicou a importância de fazer “verdadeiras” cópias e sempre compará-las ao documento original. Minha cabeça começou a girar. O que tinha acontecido com a intrigante e aventureira atividade de colocar caras maus na cadeia? Este não era o supertrabalho de tira que fora anunciado. Pensei que tivesse comprado gato por lebre. Mais tarde naquele dia, Tony Carpinella me resgatou. Supervisor jovem na divisão, ele explicou que o escritório tinha duas facções: os pilotos de escrivaninha, como o Skolnick, e caras como ele, que gostavam de ver as coisas funcionando. Tony estava à frente do Grupo Strike Force, uma dentre as várias unidades que Bobby Kennedy, como procurador-geral, tinha estabelecido. Os agentes que se reportavam ao grupo de Tony estavam trabalhando em casos de grandes gângsteres e policiais sujos da cidade. Tony ainda me apresentou ao cara da unidade de narcóticos, que estava juntando evidências contra Nicky Barnes, um dos maiores traficantes de heroína do estado. Um ex-veterano do Vietnã, Barnes liderava um círculo de servidores corruptos que estavam mandando heroína para dentro dos Estados Unidos em sacos colocados dentro dos corpos de soldados mortos no Vietnã. Sua droga era vendida em todo o nordeste dos Estados Unidos. O “homem da mala” de Barnes carregava pastas estourando com centenas de milhares de dólares em dinheiro para uma agência do banco Chemical. Agentes processaram com sucesso alguns empregados do Chemical, e o banco pagou uma multa que era, como punição, pouco mais do que um tapinha na mão. Sem os banqueiros, o dinheiro de Barnes era inútil. Isso despertou em mim a suspeita de que o calcanhar de Aquiles do comércio das drogas eram os bancos que prestavam serviços de lavagem de dinheiro. Foi um primeiro gostinho da minha vida por vir. Minha esposa e eu tivemos nosso primeiro filho enquanto eu estava trabalhando como agente especial na cidade de Nova York. Tudo correu bem com o bebê, mas Evelyn sofreu severas complicações. Ela suportou meses de tratamento e, durante esse tempo, queimei minhas férias e licença de saúde tomando conta dos dois. Ela ainda precisava de


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cuidados, então contei a meus chefes na IRS sobre o problema e pedi um adiantamento de licença para levá-los de carro para Tampa, onde meu irmão e minha cunhada moravam e se dispuseram a cuidar deles. Meus chefes me surpreenderam no dia seguinte quando disseram: — Ei, você é mesmo sortudo. Há uma ordem de enviar alguém por três meses a Tampa, e nós estamos escolhendo você. Não havia ordem nenhuma. Eles tinham mexido os pauzinhos para criar uma oportunidade para me ajudar. Fui para Tampa, trabalhei em alguns casos e trouxe minha família de volta a Nova York três meses depois. Quando voltei, minha divisão me ofereceu uma transferência permanente para Tampa, e aceitei. Na ensolarada Flórida, traficantes de drogas e criminosos que lavavam dinheiro eram mais comuns que palmeiras. Para combater o problema, a Divisão de Inteligência da IRS fez uma parceria com a Alfândega dos Estados Unidos formando uma força conjunta chamada Operação Greenback, criada para caçar quem estava lavando dinheiro. Os casos, normalmente, requeriam disfarces e agentes infiltrados entre os grupos que lavavam o dinheiro das drogas, mas a Divisão de Inteligência só permitia que os agentes trabalhassem disfarçados se tivessem passado por uma escola para infiltrados na cidade de Washington. Agora estava ficando interessante. A ideia de me passar por criminoso e ter que tomar decisões que poderiam afetar um caso — e também minha vida — em segundos, me agitava imensamente. Essa posição me colocaria na linha de frente, que era exatamente onde eu queria estar. Depois de suportar por algum tempo minha campanha de implorar sem trégua, meu chefe finalmente me deu uma chance, e encontrou um encaixe para mim. Qual não foi minha surpresa ao entrar na classe, em Washington, e dar de cara com Joe Hinton, um antigo amigo da Divisão de Inteligência em Nova York. Joe e os outros agentes que ensinavam por lá nos passaram todos os truques que conheciam. Duas dessas dicas chamaram minha atenção e ficaram na minha cabeça desde então. Primeiro: apesar de existirem pessoas dentro das divisões que podem ajudar agentes sob disfarce a conseguir falsos documentos de identidade, Joe sustentava: “Não use a sua divisão. Consiga os documentos, sozinho”. Se você conseguir os documentos, sozinho, pode ter certeza de que eles são quentes e nenhum atalho foi tomado para


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chegarem até você. Se recebê-los de alguém da seção de disfarces em Washington, com uma conexão em um banco ou uma empresa de cartões de crédito, pode estar certo de que uma marca vermelha no arquivo da empresa o identificará como um contato do governo no caso de você furar a conta. Esses pequenos deslizes administrativos poderiam acabar com você se o seu alvo tivesse altas conexões. Segundo: quando você criar seu disfarce, procure fazê-lo o mais próximo de sua experiência de vida real, para minimizar o número de mentiras que terá que contar. Se você é originalmente da cidade de Nova York e trabalhou no distrito financeiro, sua nova identidade deve trazer esses mesmos elementos essenciais. Você não pode oferecer uma experiência de vida que não conheça intimamente para seu personagem. O diabo mora nos detalhes. Quando voltei a Tampa, comecei a trabalhar em meu primeiro disfarce e ler pilhas de livros sobre como criar novas identidades e checálas para saber se são verdadeiras. Com mais ajuda de Washington do que eu jamais aceitaria em futuros disfarces, criei Robert Mangione — bem a tempo para uma tarefa inesperada e para meu primeiro trabalho como agente infiltrado. A operação Greenback, em Tampa, juntou forças com o FBI e o 2 DEA para se infiltrar em um enorme esquema de tráfico de maconha. A organização criminosa ficava em São Francisco, mas os responsáveis por lavar dinheiro estavam convenientemente baseados 96 quilômetros ao sul, em Sarasota. Com a ajuda de um alcaguete, a força-tarefa criou um plano para que eu e dois outros agentes disfarçados, posássemos de grandes traficantes de cocaína, que precisavam de ajuda para lavar seus lucros. Buddy Weinstein, um esguio e falador agente do DEA de Chicago, interpretou seu papel de chefe do grupo perfeitamente. Jim Barrow, um agente negro do FBI, com uma voz grossa e um corpanzil enorme, se passava pelo guarda-costas. Eu era Robert Mangione, que mantinha os livros contábeis e respondia a Weinstein. O trabalho de Weinstein o levou a São Francisco, e Barrow e eu tivemos a tarefa de lidar com o advogado Jack Dubard e um contador, Charlie Broun, em Sarasota. Como muitos dos meus futuros colegas em 2 Departamento antidrogas do governo dos Estados Unidos. (N.T.)


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disfarce, Jim não precisava de documentos ou da cobertura de ninguém para convencer criminosos de que era um deles. Ele só precisava entrar pela porta. Jim tinha coragem de sobra, mas atenção em falta, na hora de cuidar dos detalhes que protegiam sua identidade. Mais de uma vez, enquanto estávamos dirigindo, eu o vi quase pagando a gasolina com o cartão de crédito do governo. Ele também tentou levar sua arma e insígnia quando íamos decolar para São Francisco e visitar o cabeça da organização na qual queríamos nos infiltrar. Minha cabeça também estava em jogo, e não economizei saliva para lembrá-lo disso. Juntos, devíamos parecer algo como o Chester e Spike3, dos antigos desenhos animados. Jim e eu gastamos um mês em preliminares com Broun e Dubard, que estavam levando grandes quantias para Bruce Perlowin, em São Francisco. Como um teste dos seus talentos, dei aos dois a oportunidade de me levar a Las Vegas e me apresentar aos seus contatos nos cassinos. O prometido era que os garotos trocariam as notas pequenas — de cinco, dez e vinte –, que nós diríamos que tinham sido coletadas de nossas vendas de drogas, por notas de cem fresquinhas. Em Vegas, Broun e Dubard me apresentaram a Joe Slyman, dono do Royal Casino — uma operação pequena comparada a outros cassinos como o The Dunes, que Broun disse que também lavava dinheiro sujo. Slyman nem mesmo piscou ao ouvir que precisávamos de ajuda em nossos negócios com cocaína. Ele fez os acertos com o gerente do cassino para que nossas notas pequenas fossem trocadas por cédulas de cem e para que fossem arrumados papéis que nos fizessem passar por jogadores sortudos que tinham ganhado os tubos por lá. Depois que Broun e Dubard abriram seus contatos em Vegas, faltava um advogado na Flórida que conseguisse conexões com empresas estrangeiras, que seriam usadas na abertura de contas bancárias fora dos Estados Unidos. E tudo foi feito num piscar de olhos. O Washington National Bank, nas Ilhas Cayman, abriu seus braços e bolsos para nós e nossa horda de cédulas de cem. Broun transportou o dinheiro em um avião comercial para Cayman — onde, em seguida, fez documentos de empréstimo para justificar a transferência do dinheiro 3 Dois cachorros, um enorme e um pequenino, personagens do desenho animado Looney Tunes. (N.T.)


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de volta aos Estados Unidos. Tudo pareceria um inocente empréstimo à empresa americana que eu controlava. E, assim, notas de cinco e dez se transformaram em financiamento legítimo para uma empresa americana. Mais tarde, Broun e Dubard acabaram sabendo que procurávamos uma conexão no mercado da maconha para um cliente que já operava no negócio com toneladas de erva de primeira qualidade. Então, eu disse que se nos ajudassem a achar um contato, reservaríamos uma fatia do bolo para eles. Rapidamente foi arranjado um encontro entre todos nós e o cabeça da operação de São Francisco. Bruce Perlowin, um gênio frágil, de rabo de cavalo e óculos fundo de garrafa, parecia mais um estudante de psicologia do que o cabeça de uma organização criminosa que movimentava centenas de toneladas de maconha, da Tailândia e da Colômbia para os Estados Unidos, em cargueiros, rebocadores e navios de pesca. Hollywood jamais o escolheria para interpretar seu próprio papel e, por instantes, logo que entrou no quarto de hotel em Sarasota para nos encontrar, ele não impressionou. Porém, quando abriu a boca e começou a falar, esse homem mostrou que sua inteligência chegava a patamares que a maioria das pessoas jamais imaginaria. — Ganhei meus primeiros 100 mil dólares quando ainda usava calças curtas — ele se gabou, admitindo em seguida que, quando trabalhou em Miami, dirigiu uma das maiores organizações ilegais que o país jamais viu. Ele possuía dezenas de lanchas, navios de pesca, barcos pesqueiros, e tinha pago 3 milhões de dólares por apenas seis dos muitos barcos de sua enorme frota. Mas tinha deixado Miami há alguns anos porque o comércio de drogas na Flórida estava corrompido por assassinos. Ele foi, então, pioneiro de toda uma nova operação em São Francisco, onde gastou 500 mil dólares por semana em despesas operacionais — adquirindo barcos, docas e depósitos e cooptando pessoal. Desde que se estabelecera na Califórnia, tinha comandado 17 viagens, nenhuma delas interceptada pela polícia. Seu parceiro tinha um negócio legítimo de 30 milhões de dólares, financiado pela importação de 10 toneladas de haxixe por ano nos últimos dois anos. Bruce mesmo explicou: — Sabemos onde a Guarda Costeira fica... Tenho toda a informação. Sei onde cada barco de merda da Costa Oeste está. No ano passado, fizemos a viagem ‘T’ [da maconha tailandesa]. Nós seguramos o barco


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fora da costa por duas semanas porque havia um bloqueio massivo da Guarda Costeira procurando um enorme carregamento de heroína vindo do México. Sabíamos que eles estavam procurando pelo cargueiro The Cyrus. Sabíamos onde ambos os aviões [da Guarda Costeira] estavam voando. Sabíamos a rota que eles tomariam. Sabíamos onde estava cada um dos barcos da Guarda Costeira, e havia mais barcos espalhados do que em qualquer situação anterior. Não acreditávamos que ficariam ali muito tempo. Eles não têm tanto dinheiro para ficar tanto tempo, mas ficaram. E nós simplesmente esperamos eles saírem — e então passamos. Weinstein e eu explicamos que estávamos contentes por termos cruzado nossos caminhos com o dele. Perlowin reagiu anunciando que tinha se sentido livre para falar conosco porque podia sentir que não éramos tiras. Weinstein — que poderia ter sido um comediante em vez de um agente federal — não se conteve. “Eu pareço com o J. Edgar Hoover4?”, ele brincou. (Isso aconteceu antes da publicação de A Vida Secreta de J. Edgar Hoover, de Anthony Summers, com alegações sobre suas práticas de transformismo, mas ainda assim...) Alguns dos minutos mais longos da minha vida se passaram enquanto Perlowin, de pernas cruzadas em posição de lótus na cama do hotel, balançava a cabeça, olhava por baixo dos óculos e estudava cada um de nós, sua cabeça girando como o telescópio de um tanque. — Vocês não são policiais — ele proclamou, finalmente. — Não é que vocês não pareçam, mas não sinto cheiro de polícia em vocês. Se vocês fossem tiras, eu saberia. Sou muito intuitivo. Perlowin nos convidou para visitá-lo em Ukiah, na Califórnia, onde Weinstein, Barrow e eu passamos alguns dias dentro de seu território seguro. Do topo das montanhas da Califórnia, Perlowin supervisionava o movimento de enormes quantidades de maconha, escondidas dentro de barcos que flutuavam em direção à ponte Golden Gate — bem embaixo dos narizes de tiras cuja imaginação não podia competir com a de Perlowin. A pequena mansão em que ficamos tinha constantes ruídos vindos de aparelhos eletrônicos futuristas, capazes de envergonhar a tecnologia da CIA. Grades elétricas escondidas embaixo dos carpetes poderiam surpreender os invasores indesejados. No andar mais alto da casa ficava 4 John Edgar Hoover foi, durante 48 anos, o chefe do FBI. (N.T.)


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um centro de comando com paredes de aço, linhas internacionais gratuitas e sofisticados equipamentos de rádio, usados para fazer a comunicação com os capitães dos barcos que traziam maconha das costas da Colômbia e da Tailândia. Câmeras escondidas por toda a casa vigiavam os passos de todo mundo, e sensores espalhados por toda parte detectavam absolutamente tudo. Num paiol da propriedade, Perlowin mantinha um trailer cheio de aparelhos eletrônicos que, em momentos críticos, ele despachava para o topo de uma montanha no Skyline Boulevard, na península de São Francisco, onde se podia ligar a sala de aço do comando aos contatos na Colômbia e capitães no Pacífico e monitorar os barcos da Guarda Costeira americana. Depois de meio ano de trabalho infiltrado e doze encontros gravados com Broun, Dubard e Perlowin, nós tínhamos evidências mais do que suficientes para derrubá-los — e muitas outras pessoas na organização criminosa viriam junto. Meu desafio final no caso era preparar o bote. Broun e Dubard tinham ido para Biloxi, no Mississipi, onde estavam começando a operar em franquias de hotéis. Eu precisava passar algum tempo com eles para descobrir onde Perlowin estava escondido — para que, então, pudéssemos cercá-lo — e depois prender também os dois. Em Biloxi, Broun e Dubard literalmente me estenderam tapetes vermelhos. Eles estavam operando na rede de hotéis Red Carpet Inn. Pensavam que eu vinha visitá-los porque meus financiadores — quero dizer, os Mangione — estavam suficientemente à vontade para chegar diretamente neles e testar seus talentos em transações maiores. Broun e Dubard realmente acreditavam que eu estava trabalhando para bacanas de Nova York que precisavam que seu dinheiro fosse lavado e reinvestido. Eu disse a eles que chegaria primeiro e meus chefes viriam no dia seguinte. Na casa de Broun, Dubard e sua esposa estavam preparando um banquete. Broun me recebeu com um abraço e todos sentamos para uma refeição sulista, incrementada e feita em casa, digna de Elvis. Enquanto cada qual se acomodava em sua cadeira, Charlie e Jack, sentados ambos a meu lado, estenderam-me as mãos. Charlie abaixou a cabeça com grande seriedade e disse: — Vamos todos dar as mãos e abaixar nossas cabeças. Senhor, nós vos damos graças por trazer à nossas vidas esse ser humano maravilhoso: o Bob. Nós somos muito abençoados por essa bondosa, afetuosa e leal


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amizade. Senhor, nós vos agradecemos do fundo de nossos corações. Amém. Assim que erguemos novamente as cabeças e abrimos os olhos, precisei de toda a sinceridade que pude conseguir para dizer a todos ao redor da mesa que eu também me sentia abençoado e valorizaria suas amizades por toda a vida. Depois do jantar, Charlie Broun me deu as pistas sobre Perlowin — que estaria voando para Chicago no dia seguinte. Broun me passou detalhes suficientes para que os agentes pudessem coordenar a prisão. No dia seguinte, levei Broun, e mais tarde Dubard, a um hotel nas proximidades para o que eles pensavam ser um encontro secreto com meus chefes de Nova York. Pouco depois de deixar os dois, equipes de agentes desceram e os levaram algemados. Foi um imenso alívio que tanto Broun quanto Dubard tenham decidido cooperar imediatamente. Enquanto os agentes estavam se cumprimentando e proclamando vitória, mandados de busca eram executados e nós fomos comemorar. Mas, por algum motivo — um motivo que eu não conseguia explicar — não me sentia no clima das celebrações. Na manhã seguinte, liguei para Ev e contei o que acontecera. Enquanto eu falava, lágrimas rolavam pela minha face e minha voz tremia. Não era tristeza, mas eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Estava sentindo algo que nunca tinha sentido antes. Depois de gastar seis meses infiltrado nas mentes e corações de Broun e Dubard, uma pequena parte de Bob Mazur tinha incorporado uma parte de Bob Mangione. Aqueles dois homens tinham cometido crimes e mereciam ser processados. O único jeito de fazer a operação dar certo era mentir para eles. Mas eu tinha mentido a mim mesmo que gostava deles e agora estava pagando o preço emocional por isso. A pequena parte de mim que se tornara Bob Mangione sabia que as vidas deles e de suas famílias tinham mudado para sempre. Eu havia traído sua confiança mais profunda. O que conflitava com tudo que aprendera com meu avô. Mas estava apenas fazendo meu trabalho. Nunca perdi de vista quem eu era e o que estava fazendo, mas a força de interagir com eles de tão perto me fez suscetível à suas dores. Em algum nível eu me importava com eles; não se consegue fingir isso — não por meses ou anos. Alguns veem isso como uma fraqueza, mas para mim é o custo de fazer a coisa


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certa, uma espécie de efeito colateral. Foi minha disposição em me expor à dor deles que me permitiu ganhar os corações de meus alvos. Bruce Perlowin também cooperou depois de sua prisão, que levou a centenas de outras. Mas foi a ajuda de Charlie Broun que se destacou. Eu e os outros agentes responsáveis pelo caso apoiamos totalmente uma redução de pena para ele. Seu último recurso deu em cinco anos de prisão. Poderia ter sido muito pior. O advogado que ajudou Broun a estabelecer as conexões com as empresas estrangeiras e com o banco das Ilhas Cayman foi indiciado. Mas depois que a procuradoria apresentou o caso, o juiz considerou que os testemunhos de Broun e Dubard, sobre as conversas entre eles e o advogado, não poderiam ser considerados. O juiz arquivou o caso e nós aprendemos uma lição valiosa. As pessoas que dão seu testemunho sobre crimes cometidos precisam ter provas sólidas do que realmente aconteceu. E para que o caso seja totalmente à prova de furos, a testemunha que gravou as conversas deve ser um agente infiltrado. De outra forma, juiz nenhum acreditaria que um advogado tinha lavado milhões de dólares propositadamente. Também ficou claro quão enorme era a burocracia na IRS. Os agentes especiais da IRS encaram uma burocracia monumental em contraste com a virtual falta de regras na Alfândega. Agentes da IRS precisavam de cinco aprovações superiores para fazer o que os agentes alfandegários faziam por conta. Então, quando Paul O’Brien, o agente no comando do escritório da Alfândega em Tampa me fez uma proposta de me juntar à sua equipe, foi uma decisão fácil. Ele me ofereceu um emprego, para o qual eu teria que fazer treinamento de novo e para o qual eu teria uma redução de salário. Mas valia a pena, por conta da oportunidade de fazer mais do que eu mais queria fazer. Foi uma decisão fácil, que mudou minha vida.


2 O nascimento de Robert Musella

Crooked River State Park, St. Marys, Geórgia 26 de setembro de 1983 Ele não sabia que o informante estava usando uma escuta. O proeminente advogado de Tampa, George Meros, estava dando cobertura a um gigantesco esquema de tráfico, de centenas de milhares de quilos de maconha, para o sudeste do país, em navios de pesca de camarões. Ele não apenas financiava os negócios e lavava o lucro das drogas como, depois de limpar o dinheiro por meio de contas na Suíça, enxertava milhões no desenvolvimento de um enorme complexo de veraneio na praia. Steve Cook, um antigo colega da IRS que também tinha se juntado à Alfândega como agente especial, procurou Meros no sistema e descobriu que eu estava em sua cola. Cook me chamou e me deu acesso a um informante preso que tinha algumas dicas quentes para desvendar as atividades desonestas do advogado. Instruímos a esposa do informante a fazer contato com Meros e explicar que seu marido seria transferido de uma prisão “pó-de-arroz” no Sul da Geórgia, para uma em Tampa — onde ele passaria por um interrogatório sobre a origem do dinheiro que financiava seus negócios. Meros voou o mais rápido que pôde até a Geórgia para instruir o informante, mas ele não sabia que o homem estava usando uma escuta. O caso logo se tornou uma enorme e promissora ação. Com a ajuda de várias agências e de Bill King — um dos mais brilhantes promotores públicos que este país jamais viu — enviamos agentes para vigiar a firma de advocacia de Meros, enquanto eu escrevia


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uma notificação que pudesse autorizar a procura no local, por registros que o ligassem a seus anos de financiador desonesto. Com o mandado em mãos, obtivemos as evidências mais destruidoras que se possa imaginar — que incluíam registros da conta na Suíça e um complexo passo a passo, escrito à mão, de como era operado o esquema de lavagem de dinheiro. Esses registros e o testemunho de meia dúzia de traficantes apavorados renderam a Meros uma sentença de 40 anos de prisão. Para impedir que minhas tendências de trabalhador compulsivo afetassem a qualidade de meu trabalho, Paul O’Brien e eu começamos a correr e a sair juntos. Ele adorava softball e virtualmente forçava todo o escritório, incluindo eu mesmo, a jogar no time. Na verdade, um dos episódios mais estranhos de minha carreira no governo aconteceu numa noite em que tínhamos planos de jogar softball. Dois agentes de nosso time não poderiam aparecer porque precisavam efetuar uma prisão. Eles abordaram o criminoso, algemaram-no e o jogaram no banco de trás, mas seguiram as regras de Paul, de que nossa liga esportiva era prioridade. No caminho para a prisão local, passaram ao acaso pelo campo, onde viram que nosso time tinha três pessoas a menos e estava para perder o jogo. Um dos agentes virou para o prisioneiro e disse: — Você sabe jogar softball? O prisioneiro respondeu: — Não apenas sei jogar, como sou o cara. — Fechado — o agente decidiu. — Tire as algemas dele. Ele vai jogar. Então, voltou-se para o criminoso e acrescentou: — Olha, estamos todos armados. Se você fugir, vamos te matar. Eles tiraram as algemas, providenciaram uma camiseta do time e ainda fizeram o criminoso jogar de interbase, para que sempre houvesse algum policial na primeira e na terceira bases, que pudessem impedi-lo de fugir. O cara se mostrou um excelente jogador e era o único homem na base, no final do último tempo, quando a bola foi lançada por sobre a cabeça do último campista. Ele se esforçou tanto para pontuar a última corrida que estirou o tendão do joelho — quase deu para ouvir o estalo. O time o ajudou a ir até o banco de reservas e brincou que seus feitos heróicos no campo o qualificavam para uma redução de sentença. Então, os agentes o levaram e o ficharam.


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Enquanto estávamos trabalhando no caso Meros, O’Brien e eu discutíamos os benefícios de construir uma identidade falsa sofisticada que eu pudesse usar para me passar por um criminoso que lavava dinheiro. Impressionado com meus avanços desde que chegara ao escritório, O’Brien me deu carta branca e, mesmo eu já tendo frequentado a Escola de Infiltrados da IRS, me mandou para a Escola de Infiltrados da Alfândega — uma exigência da agência. A preparação das acusações contra Meros e seus traficantes tomou a melhor parte dos três anos seguintes à sua prisão. Durante a cantilena sem fim de mandados de busca, prisões, entrevistas, depoimentos e rastreamento de pistas, comecei a me preparar para meu trabalho pósMeros. Com a aprovação de O’Brien, iniciei o desenvolvimento da falsa identidade de um homem de negócios ítalo-americano, administrador de companhias que poderiam servir de veículo para a lavagem de grandes somas de dinheiro sujo. Forjar uma identidade é como envelhecer vinho. Você não pode apressar o processo e precisa seguir alguns passos. Mais importante ainda, é necessário ter uma base sólida: uma certidão de nascimento. E há apenas duas formas de conseguir uma. A primeira: você pode caminhar por um cemitério, procurar por túmulos de crianças que morreram e anotar nomes e datas de nascimento. É preciso achar uma que tenha a data próxima à sua e um nome que condiga com sua descendência. Com essa informação em mãos, você deve entrar em contato com os cartórios da cidade para pedir uma cópia autenticada da certidão de nascimento. Se esta não for uma opção viável, um bom laboratório pode falsificar uma identidade — mas é preciso falsificá-la perfeitamente, porque o formato dos carimbos, assim como a esposa de César, precisa estar acima de qualquer suspeita. Entre os materiais que tínhamos conseguido na fortaleza de Bruce Perlowin, estavam arquivos que continham documentações de mais de 200 identidades falsas que sua equipe desenvolvera. Nesses arquivos se escondia a combinação perfeita: Robert Musella. Ele era ítalo-americano, nascido com apenas alguns anos de diferença em relação a mim e na mesma vizinhança. Mais importante ainda, seu primeiro nome era Robert (em situações de estresse é duro não reagir usando seu primeiro nome verdadeiro). E seu sobrenome começava com “M” (iniciais são pistas óbvias).


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De modo que eu me apropriei do trabalho que a equipe de Perlowin tinha desenvolvido nessa identidade e a melhorei com a ajuda dos laboratórios do FBI e da CIA, na cidade de Washington, que faziam o trabalho de falsificação para nossa unidade de infiltrados. Um amigo na IRS localizou um Número de Seguridade Social, com apenas alguns dígitos diferentes do meu, e que a Previdência Social não tinha emitido. Esse número me ajudou a conseguir uma carteira de motorista da Flórida. A partir daí, com a ajuda de amigos de confiança em vários bancos, abri várias contas, comecei investimentos e tirei cartões de crédito. As regras da Alfândega permitiam fazer esses documentos e abrir essas contas, mas ironicamente não havia verba para patrocinálas. Minha cabeça estaria em risco, portanto, e valia a pena transferir milhares de dólares das minhas finanças pessoais. Meus depósitos nas contas de investimento de Musella serviram como garantia para um empréstimo bancário que — somado à utilização de cartões de crédito no mesmo nome — ajudou a estabelecer um histórico bancário para minha nova identidade. Com a ajuda de outro amigo, consegui regularizar um endereço residencial e um histórico de empregos. Em um ano, Robert Musella estava recebendo mais ofertas de cartões de crédito que eu e minha esposa. As carreiras de agentes vivem ou perecem de acordo com a qualidade de seus informantes, e informantes são conseguidos nas mais diferentes situações. Os mais confiáveis de minha carreira eram vira-casacas — caras que ajudei a processar e que decidiram cooperar. Se eles optavam por cooperar 100%, um vínculo para toda a vida se formava. Eles cortavam seus laços com o mundo do crime e sua forma de subsistência passava a depender do sucesso dos casos que traziam a mim. Esses homens funcionavam como meus olhos e ouvidos no submundo e, como bônus, tinham acesso a fontes normalmente não disponíveis para agências e agentes. Com isso em mente, desenvolvi um relacionamento com dois caras sujos, ligados a importantes famílias criminosas de Nova York. Não revelarei seus nomes em nenhuma circunstância — e, como informa a página de catalogação bibliográfica no início deste livro, alguns detalhes foram modificados para proteger suas identidades — mas eles foram instrumentos de muito valor. Não eram literalmente mafiosos — ou seja,


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homens de descendência italiana que completaram o pré-requisito de matar em nome da organização para se juntar à família criminosa — mas tinham trabalhado em diferentes grupos criminosos traficando drogas, repassando armas, cometendo extorsões e fazendo trabalhos como guarda-costas. Aparentavam ser simpáticos, mas por baixo da superfície ambos eram calculistas e letais. Pessoas à sua volta tinham o hábito de aparecer com múltiplas marcas de tiros na nuca. Dominic, um valentão quebra-ossos, coletava dívidas para um dos grupos de traficantes financiados por Meros. Dominic e eu nos conhecemos em sua audiência, enquanto nos encarávamos, separados por uma mesa no tribunal do júri. Como um galo de briga, corajoso e com uma encorpada e compacta compleição, ele sempre penteava seu cabelo para trás meticulosamente. Nossos registros de suas conversas telefônicas, que documentavam seu papel em inúmeros crimes, o mantinham preso pelas bolas — e ele sabia disso. No começo da audiência, apresentamos ao juiz as gravações do Dominic real, bem diferente do atencioso e devotado pai de família que seu advogado estava vendendo. Quando as gravações começaram a tocar, o juiz ouviu Dominic dizer: Vocês têm o peixe pequeno, juro pelos meus filhos — escutem, antes de eu ir para cadeia, ouçam bem, eu vou levar os outros malditos comigo... Vou fazer alguma coisa com o Jeff. Vocês entendem o que quero dizer? Eu o peguei naquela porra de casa. Fiquei escondido nos arbustos por duas semanas… Digam ao Jeff que eu não vejo a hora de encontrá-lo quando pegarem o pai dele. Nós iremos para a piscina. Vou pelado para que ele não se preocupe de eu estar armado. Porque vou morder o pau desse filho da puta e cuspi-lo na boca da mulher dele. Os olhos do juiz se esbugalharam e Dominic foi mantido em prisão cautelar, o que me deu a chance de negociar com ele. Levou algum tempo, mas Dominic ganhou minha confiança quando deixou claro que iria cooperar completamente. Apesar de sua aparência truculenta, alguma coisa me convenceu de que ele era do tipo que late mas não morde. Acabamos nos conhecendo bastante bem enquanto eu o preparava para testemunhar contra Meros e seus clientes. Quando soube que Dominic andava cobiçando seu café da manhã favorito — o sanduíche de croissant com queijo, ovo e bacon do Burger King — passei a escorregá-lo para ele toda vez que fazia uma visita à prisão com o intuito de interrogálo sobre detalhes de sua vida no crime. Em contrapartida, ele me divertia


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contando histórias mais interessantes que as de O Poderoso Chefão. Uma delas era a que ele tinha administrado um dos postos de comando de drogas a partir da cobertura de um hotel em Fort Lauderdale. Desse ponto privilegiado, ajudava a orientar os carregamentos marítimos de maconha para seus destinos — de onde a droga era colocada em dúzias de lanchas, para ser descarregada em lugares protegidos por policiais corruptos. Para fazer seu trabalho como coletor de dívidas nos círculos da droga, ele carregava uma maleta Halliburton, que chamava carinhosamente de “kit matador”, contendo uma arma automática Mac-10 com silenciador, mais uma granada 380 automática e luvas cirúrgicas. Por encomenda de um dos clientes de Meros, uma vez ele ludibriou um distribuidor cheio de dívidas, marcando um encontro tarde da noite no restaurante Nathan, no bairro de Eltingville, em Staten Island. Levou a vítima até um Cadillac estacionado nas proximidades e, em sua voz grave com um forte sotaque que revelava que ele vivera em Staten Island, mas tinha nascido e se criado no Brooklin, explicou: Quando nós trouxemos o maldito para perto da parte de trás do carro, eu abri o porta-malas, dei uns socos rápidos no nariz dele, joguei o cara para dentro e acelerei em direção ao cemitério de Todt Hill. Meu parceiro e eu pegamos o idiota e jogamos seu traseiro numa cova recémcavada. Enquanto o cara gritava para que o deixássemos sair, começamos a jogar terra nele. Disse ao cara que não queria matá-lo, mas infelizmente a ordem tinha sido dada. Nem é preciso dizer que Dom conseguiu o dinheiro da dívida e depois deixou o cara ir embora. Na época em que Musella estava para entrar em cena, Dominic estava solto. Ele tinha testemunhado em vários locais do país e colocado algumas dezenas de pessoas na cadeia, tornando-se não apenas uma testemunha de ouro para o governo no caso Meros, como também em outros casos de mafiosos. O cara realmente tinha nove vidas. Ele ajudou a tirar do jogo o chefe de uma família criminosa de Nova York e, mesmo assim, não foi morto. Quando pressionado, afirmava que os mafiosos presos tinham quebrado duas regras capitais de suas famílias, envolvendo-se no tráfico e no uso de drogas, e por isso ele não teria problemas. É preciso virar um psicólogo amador para fazer o relacionamento com um informante funcionar. Não se pode confiar em alguém que


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não esteja emocionalmente comprometido com você. E convencer alguém como Dom a pensar em aceitá-lo como amigo, enquanto você desenha uma linha emocional que ele nunca vai cruzar, é uma tarefa que exige muita habilidade. Ele era uma fonte, e tudo o que falava ou fazia precisava ser comprovado. Porém, o que quer que eu dissesse a ele, não podia revelar essa necessidade paranoica de minha parte. Ele não tinha qualquer razão para estabelecer um comprometimento emocional comigo. Portanto, foi um imenso alívio quando, depois de contar para ele que pretendia iniciar uma enorme operação como infiltrado, ele disse: — Bob, sou grato por tudo que você fez por mim, então, se tiver qualquer coisa que eu possa fazer para ajudá-lo, é só pedir. Expliquei que imaginava estar em breve lidando com alguns caras muito da pesada, da Colômbia. Precisava chegar até eles como um homem de negócios bem relacionado com a máfia por duas razões. Primeiro, porque essas credenciais me dariam credibilidade aos olhos do pessoal do submundo — que estava procurando por um sólido contato para o negócio de lavar dinheiro. Igualmente importante, eu estaria lidando com grandes quantidades de dinheiro e com pessoas muito cruéis, que poderiam tentar me enganar. Eles precisavam saber que não iam foder comigo. Eu disse a Dom que seria de grande ajuda se ele pudesse fazer algumas aparições como ator secundário, interpretando meu primo e parte da minha turma. Ele rescendia a gente da máfia. Depois de dois minutos em sua presença, ficava absolutamente óbvio que ele era um marginal com conexões importantes e com quem era melhor não mexer. Falei assim para ele: — Os pilotos de escrivaninha do meu departamento não apreciam caras como você, que têm sexto sentido em relação às pessoas. Caras como você e esses colombianos podem sentir o cheiro de um tira a um quilômetro de distância. Não tem ninguém no escritório que possa atuar bem como você nesse papel, porque você simplesmente não precisaria estar atuando. Você não precisaria se esforçar. Você já viveu isso. Dom olhou para mim, desapontado: — Bobby, você não precisa me vender toda essa história. Já disse antes, farei qualquer coisa por você. Conte comigo para o que precisar. Frankie, um amigo de Dominic, tinha trabalhado com ele nos negócios da maconha. Quando Frankie e eu nos conhecemos, ele já tinha sido enquadrado por entregar um caminhão lotado de drogas para


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um agente infiltrado do DEA. Solto enquanto esperava o julgamento, ele ajudava o DEA com o intuito de tentar reduzir sua pena ao mínimo possível. Diferente de Dom, Frankie era um homem de negócios discreto, bem educado e sofisticado — do tipo negociador de Wall Street. Seu bigode bem aparado, unhas feitas e o tipo mediterrâneo eram uma camuflagem natural para suas atividades no crime. Além de ocasionalmente fazer entregas, ele também mantinha os registros de Dom com centenas de milhares de quilos de maconha que entravam pelo esquema de Fort Lauderdale. Depois que foi pego, Frankie voltou para Staten Island e, em conformidade com sua figura, foi trabalhar numa firma de vendas de Wall Street que pertencia a seu tio. Tinha uma passagem pela polícia, portanto não podia trabalhar como vendedor registrado, mas isso não impediu sua família de assinar sua carteira de trabalho como administrador. Como Dom, Frankie testemunhou contra um punhado de mafiosos que controlavam o esquema de Fort Lauderdale. Ele estava aguardando a sentença e, com a autorização do tribunal, seria um bom candidato para dar apoio a Bobby Musella. Expliquei a Frankie que pretendia me infiltrar entre os grandes chefes da Colômbia e entre os grupos de lavadores de dinheiro que serviam a eles. Depois de passar o conceito da operação, eu disse: — Frankie, não tem jeito de essa operação ser impulsionada somente com as ferramentas que o governo pode me fornecer. As pessoas a quem estaremos caçando tem se dado bem há décadas porque são mais espertas que o governo. Para isso funcionar, preciso da ajuda de caras da vida real, como você. — Dominic estará envolvido? — ele perguntou. Eu não podia mentir. — Sim — eu disse —, mas num nível diferente do seu. Então você não terá contato direto com ele. — Bem — ele respondeu pausadamente —, vamos ouvir o que eu posso fazer para ajudar, mas eu não quero que Dominic saiba de meu envolvimento. — Olha — eu disse. — Ele vai ter que saber que você está na equipe, mas não precisa conhecer os detalhes. Assim como no caso de Dominic, eu gostaria que você atuasse como um dos meus primos. No seu caso, realmente ajudaria se os colombianos e seus lavadores de


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dinheiro pensassem que eu tenho um papel importante numa firma de investimentos e que desvio parte do dinheiro de meus clientes para contas bancárias. Francamente, se conseguíssemos convencê-los a colocar seu dinheiro sujo na firma, impediríamos o governo de tomar as contas quando a operação terminar. Além disso, Frankie, essa ação chamaria a atenção do juiz quando ele for considerar sua sentença. — Acho que posso fazer isso — ele disse —, mas vou ter que contar a verdade para o meu tio. Não acho que ele vá fazer nenhuma objeção, já que isso vai me ajudar também. Logo depois, Frankie ligou e disse que estava dentro. Eu disse a ele que, em seu papel como meu primo, em várias ocasiões estaríamos pessoalmente com os alvos, mas eu precisava ter sua palavra de que nem ele, nem qualquer outra pessoa ligada a ele, tentariam fazer qualquer contato independente com as pessoas a quem eu o apresentasse. Se ele tentasse, o juiz responsável por sua sentença ficaria sabendo. Frankie era um homem de negócios. Melhor explicar os termos de um contrato do que cruzar espadas. Então, me aproximei de Eric Wellman, um ex-executivo de banco que eu tinha entrevistado anos antes, quando levantava informações para um caso contra seus chefes: o diretor-executivo e o presidente do Palm State Bank. O banco de Tampa vinha aceitando milhões de dólares em dinheiro de clientes ligados à máfia e, claro, nunca reportava essas transações, como exigido por lei. Um decente e insuspeito executivo médio de banco, Eric desprezava — patrioticamente — o fato de o país estar perdendo a guerra contra as drogas e, após descobrir o que seus empregadores estavam fazendo, testemunhou contra eles. Era apenas uma das muitas faíscas numa fogueira de corrupção, mas ajudou a leválos para a cadeia. Depois deste julgamento, Eric se tornou presidente de outro banco e, em seguida, continuou crescendo numa nova carreira como administrador de uma empresa que comandava uma rede de joalherias na Costa Leste. Ele trabalhava no prédio administrativo da organização, localizado, uma vez mais, em Tampa. Quando começamos a conversar sobre o lance do meu trabalho como infiltrado ele me disse: — Bob, eu gostaria muito de ajudá-lo. Você sabe que tenho filhos pequenos. Estou muito preocupado com a vida que eles vão ter no futuro.


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Tudo o que eu puder fazer para ajudar você, no seu trabalho, vai ajudálos também. Tenho uma empresa de investimentos que não está ativa, a Financial Consulting, com um histórico documentado. Se isso ajudar, pode usá-la. Se você precisar aparentar ter raízes no mundo dos negócios, posso dar uma mão com isso também. Vamos falar mais sobre isso e levantar todas as alternativas. Ele concordou ainda em alugar secretamente uma das salas de seu escritório para o governo e em me receber — ou melhor, a Robert Musella — como executivo de uma de suas empresas. Arrumou uma linha telefônica para mim em seu PABX e, sem informar seus funcionários de minha identidade real, instruiu todos a atenderem meus pedidos. Ele me deu livre acesso à sua sala de conferências, a seus computadores e até mesmo a seu Rolls Royce. Eric e sua esposa permaneceram nos quadros da desativada Financial Consulting e agregaram Robert Musella como vice-presidente. Depois, realmente fazendo mais do que eu podia esperar, ele criou a Dynamic Mortgage Brokers, uma empresa de hipotecas dirigida por mim, por ele e por sua esposa. A próxima providência da lista de necessidades de minha identidade era uma casa bem cara, com as particularidades do estilo de vida de um jovem mafioso, um lugar onde eu pudesse reunir os alvos de nosso esquema. O apartamento de 400 dólares por mês que meus chefes na Alfândega queriam alugar não ia colar. E o melhor que poderíamos conseguir com esse montante era um cortiço infestado de baratas num bairro pobre perto do aeroporto. Como diabos eu poderia convencer traficantes globais de drogas a me dar milhões dos seus dólares para investir, se morasse num cafofo? Expliquei o problema a O’Brien. Frequentemente muquirana e perdido em cifras mesquinhas quando se tratava da verba do governo, ele sugeriu que eu dissesse aos alvos que aquela era uma casa segura e que eu não trazia pessoas para minha casa verdadeira. Claro, isso funcionaria. E como é que eles se sentiriam sendo obrigados a me receber dentro de suas casas e me deixar entrar em suas cabeças? Enquanto me batia atrás de uma solução viável, me ocorreu que talvez Dom pudesse ajudar. — Sabe — disse a ele em sua casa em Tampa —, o que precisamos é de uma casa que, por sua aparência, dê a impressão de ser ocupada por alguém importante e bem de vida. Para ser perfeito, ela teria que se


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parecer com a sua — lindamente mobiliada, num lugar reservado e bem conservada. — Nenhum problema — Dom disse sorrindo, quando percebeu a indireta. — É sua a qualquer momento que quiser. Se você nos der um teto, Ana, eu e as crianças podemos estar fora daqui em um dia, e você pode nos colocar num hotel pelo tempo que precisar. A casa de Dom, de um estilo colonial espanhol, tinha telhas azulejadas e uma calçada de pedras. Por dentro, a sala de jogos tinha uma TV enorme, um bar e uma mesa de sinuca. O quarto principal, decorado com estátuas de santos, escondia um imenso cofre dentro do armário. E a mobília mediterrânea, exageradamente ornada, tinha a obrigatória proteção de plástico transparente. Pode parecer a descrição de uma decoração máfia-brega, mas me lembrava as casas de mafiosos dos melhores bairros de Staten Island. Era exatamente o que precisávamos. Durante 24 horas, todos os dias da semana, funcionava um completo sistema de segurança, com uma câmera presa a um tripé por dentro da janela da frente, bem escondida. Dom, periodicamente revia as fitas e observava atentamente para ver se ninguém tinha rondado a casa enquanto ele estava fora. Era perfeito. Dom, meus chefes e eu concordamos que, quando criminosos do alto escalão ganhassem o direito de me visitar em casa, colocaríamos Dom e sua família num hotel próximo e usaríamos sua casa para as negociações. Para conseguirmos as evidências necessárias e para que nossa operação funcionasse, eu precisava de equipamentos de escuta de alta qualidade e de confiança, que pudessem ser escondidos em uma pasta — e tinha que conhecê-los muito bem. Qualquer agente infiltrado que valha seus sapatos precisa saber operar e manter um equipamento de escuta. Você não pode chamar o suporte técnico do governo para um pequeno reparo no meio de uma emboscada. Um dos melhores fornecedores privados de equipamentos eletrônicos para disfarces no país, Saul Mineroff, da Mineroff Electronics, tem uma loja em Long Island que vende as mais modernas e melhores escutas disponíveis. Ele é um gênio nesse segmento. Saul e eu colocamos nossas cabeças para trabalhar juntas e desenhamos um sistema de gravação estéreo totalmente novo, escondido dentro da tampa de couro de ovelha de uma pasta Renwick. O modelo de pasta que escolhemos tinha uma tampa profunda pouco usual, que Saul reconstituiu dando folga de um centímetro para criar um falso


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compartimento, atrás do qual escondemos um microgravador, um jogo de microfones estéreo e um botão remoto de liga e desliga. Saul recomendou que usássemos um gravador SME 700, capaz de rodar em baixa velocidade, 7 centímetros por segundo — o que me daria três horas de fita. O escudo que envolvia esse gravador era feito de um metal especial que impedia a emissão de frequências oscilatórias, normalmente emitidas pelos gravadores mecânicos. Os criminosos sofisticados estavam usando aparelhos manuais que detectavam essas frequências e os alertavam quando um gravador estava presente. O aparelho também tinha um circuito e um filtro especiais que reduziam o barulho de fundo e permitiam ótimas gravações de múltiplas vozes ao mesmo tempo. Saul ligou os fios dos microfones escondidos, um atrás de cada fechadura na frente da pasta. Com qualidade estéreo, a tecnologia de áudio permitiria depois, ouvir o som num sistema de playback com ajuste e filtro de decibéis e, ainda, reduzir o ruído ambiente. Dois microfones separados também garantiam uma excelente cobertura onde quer que a pessoa estivesse posicionada em relação à mala. Durante o processo preparatório, um veterano informante da Colômbia repassou a um dos agentes de nosso escritório informações sobre Gonzalo Mora Jr., um pequeno negociador de Medelín. Esse informante nos alimentava com informações sobre grupos que traziam de cinco a dez quilos de cocaína para Tampa em lanchas infláveis, mas dessa vez tinha recebido a informação de que Mora estava lavando narcodólares. Quando O’Brien ouviu sobre o assunto, disse: — Ei, esse Gonzalo pode ser um bom alvo para a operação de lavagem de dinheiro que você quer fazer. Interrogue o informante e me diga o que você quer fazer. Meu parceiro no interrogatório era Emir Abreu, um excelente agente veterano da Alfândega de Aguadilla, Porto Rico. Ele podia não ter tantos anos de educação formal quanto outros, mas tinha doutorado na Universidade da Vida. Enquanto estava dentro de um avião cargueiro a caminho do Vietnã, soube que toda a sua família mais próxima — os pais e o irmão mais novo — tinham se afogado, quando o carro em que estavam caíra dentro de um canal em Miami. Seu pai, um mecânico de aviões, repassara a Emir muitos dons, mas o melhor de todos era uma capacidade aguçada de conhecer as pessoas e saber lê-las. Ele exercia


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esse dom com uma habilidade para além da compreensão — sem dúvida, uma das razões de ele ter se dado tão bem como agente infiltrado. Ninguém era capaz de interpretar um espertalhão criminoso das ruas melhor do que ele. Emir também era o maior piadista que já conheci. Uma vez, ele e um grupo de agentes federais foram a um jogo de baseball em que a cerveja era barata e o sol estava muito quente. Quando começaram a ficar bêbados, Emir passou a comparar sua foto na credencial com a dos outros do grupo — inclusive do nosso bom amigo Mike Miller. Mike inocentemente entregou sua credencial a Emir e voltou à conversa que estava tendo com outra pessoa. Emir rápida e cuidadosamente colou uma foto de um rastafári banguela em cima da imagem de Mike e devolveu a credencial. Mike não suspeitou. Alguns dias depois, ele foi a uma prisão local para entrevistar uma pessoa. Deslizando sua credencial por baixo do vidro à prova de balas, anunciou orgulhoso ser um agente federal que precisava ver um certo prisioneiro. A policial por trás do vidro abriu a credencial e olhou de cima para baixo, de Mike para a foto da credencial. — Este não é você — ela disse, enquanto devolvia a credencial. Mike olhou para a credencial sem acreditar e, então, ficou vermelho como uma beterraba. — Tinha que ser o Emir — murmurou enquanto, humildemente, retirava a foto do rastafári. Até esse momento, Emir já tinha feito, como infiltrado, incontáveis compras de drogas e sobrevivido a vários tiroteios. Com o interrogatório, eu e ele iniciamos um relacionamento de trabalho bastante próximo, que progrediu para uma amizade de irmãos para o resto da vida. Depois de ouvir a história do informante, Emir e eu concordamos com O’Brien que Gonzalo deveria ser o primeiro alvo de minha operação de longa duração como infiltrado. Gonzalo era um pequeno operador na Colômbia. Sua família vendia dez quilos de coca, por vez, nas ruas de Los Angeles e Miami. Antes de nos conhecer, não podia movimentar em segurança mais de 50 mil dólares do dinheiro sujo por semana, porque não tinha verdadeiras conexões. Para converter o dinheiro da venda de drogas nos Estados Unidos para pesos colombianos, ele contava com membros de sua família — nos Estados Unidos — que andavam pela cidade usando dinheiro vivo para comprar cheques administrativos em valores de 3 mil dólares ou menos, bem abaixo dos 10 mil máximos


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que poderiam gerar uma investigação do governo. Sua família e seus amigos nos Estados Unidos depositavam esses cheques em contas pessoais. Gonzalo tinha talões dessas contas e, quando sua família o alertava de que havia 50 mil em caixa, ele preenchia um dos cheques em branco no mesmo valor. Depois, trocava esse cheque com um negociante colombiano que tinha pesos, mas queria dólares. Dezenas de milhares de importadores colombianos estão sempre procurando comprar dólares, porque fazem comércio em zonas francas — onde o pagamento preferido é em moeda americana. Com o círculo completo, Gonzalo então, usava pesos colombianos para pagar fornecedores ou para custos do negócio. Se, por meio de um informante, Gonzalo ficasse sabendo da existência de Musella — um veterano lavador de dinheiro para o crime organizado — e Musella se fizesse de difícil, Mora se tornaria a fonte perfeita para nos levar ao coração do maior cartel colombiano. Uma vez dentro, poderíamos nos infiltrar em todo o sistema de lavagem de dinheiro. Mas o momento não era o ideal. Eu tinha agendado uma semana de férias com a família e amigos em Florida Keys. Junto com a máscara de mergulho e as margaritas, tinha também minha pasta, com tudo o que eu ia precisar para desenhar a operação. Em Islamorada, quatro de meus amigos e eu pescamos cerca de 150 lagostas em alguns dias, usando dois pequenos barcos. Nenhuma façanha se você sabe o que está fazendo. No resto da semana, entre a interminável movimentação de caudas de lagostas e margaritas, escrevi uma proposta para uma operação de longa duração como infiltrado — que se aproveitaria das necessidades de Gonzalo Mora. Enquanto minha família e amigos tiravam proveito de nossa frutífera caçada às lagostas, eu planejava a operação numa cadeira de jardim, com caneta e papel na mão, ignorando tudo e todo mundo — com exceção da obsessão de como arrastar um cavalo de Troia para dentro dos portões do cartel. Sequer reparei nos olhares de admiração, que se perguntavam o que poderia ser tão importante para estragar o que deveria ser um feriado perfeito. — Sabe — Ev disse —, nós não temos muita chance de estar num lugar como este. Você não pode fazer isso depois? — Querida, você não entende — tentei explicar. — Nós precisamos conseguir enviar essa proposta e aprová-la o quanto antes. Temos uma


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oportunidade que vai morrer ao léu a menos que eu consiga terminar isso. Desculpe, querida, mas preciso me esforçar nisso aqui e fazer dar certo. Ela não ficou feliz, mas fez o possível para me apoiar. Um dos problemas na formulação do plano era que, naquela época, pelas regras da Alfândega, se pedíamos 60 mil dólares ou mais para financiar uma operação, Washington tinha que revisar e monitorar tudo. A experiência nos tinha ensinado que envolver a burocracia de Washington significava o beijo da morte. Os administradores de plantão a veriam como sua passagem premiada para a promoção, e eles não mais tomariam decisões baseadas em fatos e necessidades do caso. E, então, quando estivéssemos prontos para estourar o círculo da lavagem de dinheiro, interfeririam com o intuito de beneficiar suas carreiras ou prioridades externas. O que significava que seríamos obrigados a contar com 59 mil de caixa, tendo, portanto, de manter todas as decisões operacionais na Flórida. Felizmente as regras da agência permitiam usar os lucros da operação para abater despesas. É uma espécie de justiça poética o fato de que teríamos, literalmente, rios de lucro no negócio da lavagem e que os criminosos estariam financiando sua própria queda. Um dos itens que não estavam incluídos no orçamento era o investimento na aparência. O governo não via problema em gastar milhões em equipamentos superfaturados, mas dar mais de um centavo para roupas apropriadas não caía bem. Até mesmo levantar o problema podia colocar sua credibilidade em cheque com seus superiores. Eles suspeitariam que você estava tentando usar o recurso em benefício próprio. Mas Dominic tinha me avisado. Criminosos experientes observam cada milímetro de um cara novo, e uma falha no menor dos detalhes poderia transformar uma relação de camaradagem em morte súbita. Esses detalhes incluíam, certamente, as roupas. — Nas roupas, você deve gastar alguns tostões, especialmente nos sapatos — Dom avisou. — Os caras que atuam nesse negócio estão sentados no dinheiro e gastar mil dólares num terno é coisa do dia a dia para eles. Quanto aos sapatos, você deve se lembrar que vai se sentar diante de uma mesa de centro jogando conversa fora e, quando cruzar as pernas, eles vão estar bem à vista dos caras. Você não pode ter furos na sola ou estar com uma marca vendida no K-Mart. Lembre-se: quando


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você está viajando com esses caras, tudo o que você deixa no quarto do hotel é inspecionado. Você nunca vai saber se eles têm acesso à segurança do hotel ou não. Faça um favor a você mesmo. Arranje umas becas legais. E cuidado com sua linguagem corporal. Há alguns maneirismos que alguns policiais não conseguem esconder. Eu me lembro de um cara da narcóticos tentando se aproximar de mim nos velhos tempos, e quando ele saiu do seu carro com a porta do motorista parcialmente aberta, apoiou sua mão direita no topo da porta do carro e colocou a outra mão no quadril. Eu já tinha visto oficiais da polícia fazerem essa pose uma dúzia de vezes e, por conta disso, parei de falar com o cara. Ah, claro, e não use linguagem de tira. Vocês falam coisas como “meliante”, “positivo”, “tá oká”, “redondezas” e merdas como essas. Ouça com atenção da próxima vez que estiver no seu escritório. Você não pode falar essas merdas. Você sabe um pouco de italiano. Use-o. Por recomendação de Dom, a Surrey, uma sofisticada loja de roupas, me vendeu vários ternos Carlos Palazzi sob medida, um par de sapatos Moreschi, gravatas de seda e lenços de bolso. Envergonhado de nossas malas Samsonite padrão, comprei um conjunto de malas Hartman. Os cuidados com a aparência me custaram entre 5 e 10 mil dólares — num período em que Ev e eu estávamos equilibrados a dois salários de distância do zero e tínhamos problemas em guardar algum dinheiro para a universidade dos nossos filhos. Cada vez que ela pegava alguma conta de cartão de crédito, ficava espumando de raiva. Eu argumentava de forma egoísta que havia algo de diferente nesse caso, que ele tinha tudo para se tornar o caso da minha vida. — Não acredito que você gastou todo esse dinheiro — ela gritava. — Sou eu que tenho que equilibrar todas as dívidas. Quando é que você vai perceber que ninguém na Alfândega dá a mínima? E, no final das contas, ela estava certa — mas Robert Musella estava pronto para entrar no submundo.


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