O Adeus a Glorytown

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O adeus a Glorytown A luta de um menino sob o regime de Fidel Castro

Eduardo F. Calcines

Tradução de Adriano Scandolara

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Título Original: Leaving Glorytown Copyright © 2009 Eduardo F. Calcines First edition, 2009 Translation rights arranged by Authorlink Literary Group and Sandra Bruna Agencia Literaria, S.L. Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2010. “Dos Gardenias” by Isolina Carrillo © 1948 by Peer International Corporation. Copyright renewed. International Copyright secured. Used by permission. All rights reserved. Editores: Paulo Fernando Ferrari Lago, Claudio Kobachuk e Renata Sklaski Tradutor: Adriano Scandolara Revisoras: Adriana Gallego Mateos e Valquiria Molinari Capa: Marcelo Oliveira Diagramação: Marline M. Paitra e Cláudio R. Paitra Nota: a edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Pede-se que seja comunicado à editora no caso de existir qualquer das hipóteses acima mencionadas para melhoras futuras. EDITORA NOSSA CULTURA LTDA Rua Grã Nicco, 113 - Bloco 3 - 5º andar Mossunguê Curitiba – PR – Brasil Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108 http://www.nossacultura.com.br Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Calcines, Eduardo F. O adeus a Glorytown / Eduardo Calcines ; tradução: Adriano Scandolara. - Curitiba, PR : Editora Nossa Cultura, 2011. 232 p. ; 21 cm. Tradução de: Leaving Glorytown ISBN 978-85-8066-018-0 1. Calcines, Eduardo. 2. Cuba – Política e governo, 1959-. I. Scandolara, Adriano. II. Título. CDD ( 22ª ed.) 920.71

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Em amada mem贸ria do meu pai, Rafael, do tio William e dos meus av贸s, Ana e Julian.

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Índice Introdução Indo a Glorytown A revolução A Baía dos Porcos Nossa última Noche Buena Mais mudanças Histórias para aliviar a dor A prisão do tio William 149901 Gusanos Lembre-se do Senhor Mais despedidas Panetelas de Vainilla As cinzas da primavera La Natividad Nguyen Van Troy O retorno de papai ao lar Señora Santana

ix 3 12 20 27 36 45 52 59 69 83 91 104 114 124 133 142 153

Um gostinho da liberdade

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Planejando a fuga

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O voo para a liberdade

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Epílogo

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Reconhecimentos

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Introdução

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u fui um filho do comunismo. Isso significa que fui criado em dois mundos – um, o mundo de ideais, o outro, o mundo real. O mundo

de ideais estava cheio da propaganda mentirosa de Fidel Castro e promessas vazias de um amanhã melhor. O mundo real era ainda pior: um mundo de opressão, fome, medo, pobreza e violência. Para um estrangeiro visitando Cuba, não haveria nada de especial a respeito de minha família. Nós não éramos ricos, famosos ou bemrelacionados politicamente. Não sofríamos nem mais nem menos do que qualquer outra família de dissidentes no frenesi de fugir daquilo que havia se tornado um pesadelo vivo. O que fez com que sejamos notáveis é que sobrevivemos e escapamos. Tudo neste livro é verdade em sua representação da vida cubana. Embora eu agora esteja vivendo nos Estados Unidos, há quarenta anos, decidi que é hora de deixar o mundo saber não apenas o que aconteceu à minha família, mas também o que aconteceu – e continua a acontecer hoje – a todas as pessoas de Cuba, de quem Fidel Castro tomou tudo, incluindo a própria esperança.

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Esther e Eduardo Calcines

Tio William Felo e Conchita Calcines

Av贸 e Av么 Espinosa

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eus fez tudo e todos. Ele fez até mesmo Fidel Castro. Isso é o que os meus abuelos, ou avós, Ana e Julian Espinosa, sempre me ensinaram.

Isso significava que a Revolução era um ato de Deus também. No mínimo, Ele havia permitido que acontecesse. Quando eu era um menino, isso não fazia sentido para mim. Eu queria saber se estávamos sendo punidos ou testados. Ninguém nunca sabia dizer com certeza. Abuela Ana não reclamava – ela nunca reclamava de nada. Ela meramente observava que Deus nunca perdia o ritmo. Nós, cubanos, sempre sentíamos que Ele havia nos abandonado, mas isso não era verdade. Não. Era o resto do mundo que havia se esquecido do povo de Cuba. Isso era o que a abuela Ana dissera. E ela devia saber, porque mesmo antes de Castro ascender ao poder, quando derrubou a ditadura de Fulgencio Batista, a vida havia sido dura para minha família.

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Talvez os problemas de Cuba – e os nossos – tenham começado com a cana-de-açúcar. O açúcar é o sangue de Cuba, e a província central de Las Villas, de onde vieram os meus familiares, é o coração do país da cana. Mas plantar cana é um trabalho brutalmente árduo. Ambos os meus avós começaram a lidar debaixo do sol caribenho antes de chegarem à puberdade: cortando as duras canas com facões, batendo em insetos, tomando cuidado com as cobras e esperando que a pontaria do seu vizinho exausto não se desviasse. Nos velhos dias, isso era trabalho escravo. Cada um dos meus avós sonhava em sair, assim que conseguisse, em busca de uma vida melhor. Apenas meu avô materno, abuelo Julian, conseguiu isso quando largou o facão e deixou os canaviais na cidade rural de Rodas em Las Villas, em 1918. Meu outro abuelo, Alfonso Calcines, era um mediero na cidade de Cumanayagua. Ele e minha abuela Petra tiveram dezessete filhos, doze dos quais sobreviveram à infância. Meu pai, Rafael, que todos chamavam Felo, era o filho mais novo. Eles alugaram uma casinha num terreno que era propriedade de um espanhol rico. Em troca de trabalho, eles tinham o direito de ficar com parte da colheita de açúcar. Isso lhes fornecia as necessidades básicas de comida, vestuário e abrigo – porém, nada mais. Quando meu pai tinha oito anos, um de seus irmãos foi morto com um tiro, por acidente, e meu avô morreu de súbito de “tristeza” – provavelmente um ataque cardíaco ou um aneurisma. Ele não deixou à nossa família nada senão as roupas nas suas costas e algumas peças de mobília. O espanhol rico não tinha uso para o resto da família, então mandou que saíssem do seu terreno e garantissem que não levariam nada que não lhes pertencesse. Até o facão era dele.

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Abuela Petra tinha um irmão na cidade de Cienfuegos. Ele se ofereceu para acolher a família até poderem se restabelecer. Então, um dia, abuela Petra e seus filhos sobreviventes – em adição àquele que levou um tiro, quatro outros morreram de doenças da infância – andaram por uns cinquenta quilômetros pelas estradas empoeiradas da Cuba rural até chegarem à nova casa. Cienfugos era chamada de Cacicazgo de Jagua, no século dezoito, quando foi fundada, depois Fernandina de Jagua, no século dezenove, e, finalmente, Cienfuegos, o nome de um capitán general da Espanha. Mas seu apelido sempre foi La Perla del Sur, a Pérola do Sul. Os prédios são bem construídos e elegantes. Cienfuegos ostenta o planejamento urbano mais geometricamente perfeito em Cuba, talvez em todo o Caribe. Dizem que é possível atirar uma flecha pelo coração da cidade sem atingir um edifício sequer. Antes de Castro ir ao poder, o porto fervilhava de navios navegando com todo tipo de bandeira. Um porto espanhol majestoso, El Castillo de Jagua, ainda domina as águas azuisturquesa da baía. Alguns membros de ambas as tribos, Calcines e Espinosa, eventualmente chegaram ao barrio de Glorytown. Meus pais se encontraram quando minha mãe tinha quatorze anos, e meu pai, vinte e um. Uma das irmãs da minha mãe, Violeta, era vizinha de meu pai. Foi durante uma das frequentes visitas de minha mãe para ver sua irmã, que meu pai a viu e começaram a pensar em se acomodarem. Felo já estava trabalhando há anos nas docas, onde ele e seus amigos ganharam a reputação de serem trabalhadores incansáveis. Empregos com salário decente para homens sem educação formal e sem treinamento eram escassos, e eles se acostumaram a defender suas posições com os únicos meios de arbitragem que possuíam – os

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punhos. Mas se outro trabalhador desmaiasse sob o sol brutal, como era comum, um dos irmãos Calcines estaria lá para carregar o fardo do homem caído juntamente com o seu próprio. Assim, embora os estivadores fossem pagos por fardo, o homem desmaiado receberia seu pagamento completo no final do dia. Minha mãe, Conchita, ficou lisonjeada com a atenção de Felo. Por três anos, eles inventaram motivos para se esbarrarem um no outro, sem querer, querendo, na calçada do lado de fora da casa de Violeta. Era inapropriado para eles se falarem em particular antes de serem apresentados formalmente, mas isso não poderia acontecer até que Conchita fosse um pouco mais velha. Mas a calçada era território público, e suas famílias poderiam ficar de olho aguçado sobre eles, relaxando as restrições normais que governavam o cortejo. Em 19 de junho de 1953, eles se casaram – no mesmo dia em que meus abuelos, Ana e Julian Espinosa, se casaram em 1911. Minha mãe havia sido uma criança doente, e quando ela engravidou de mim, abuela Ana ficou preocupada. Mas não precisava. Minha mãe foi forte, como a mais nova de onze deve ser, e a própria abuela estaria lá para lidar com o que acontecesse. Partos eram uma das numerosas especialidades da abuela. Ela havia assistido aos partos de todos os seus vinte e nove netos até agora. Mas o número trinta, ela viria a dizer mais tarde, foi o mais difícil. Eu simplesmente me recusava a sair do útero. Como precaução, Conchita havia ido a uma clínica-maternidade, junto com abuela Ana e papai, mas de algum modo ninguém percebeu até ser quase tarde demais que a clínica não tinha um fórceps. Meu pai saiu e emprestou um, só que era pequeno demais. Mas haveria de servir.

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O doutor cavou fundo, procurando pela minha cabeça, e, no processo, quase arrebentou meu olho esquerdo. Eventualmente, após uma longa briga, eu nasci em 4 de outubro de 1955. Abuela Ana e abuelo Julian haviam comprado a casa na Rua San Carlos, 6110 – a primeiríssima que lhes pertencia. Meus pais viviam num puxadinho que o abuelo construiu nos fundos, em antecipação ao meu nascimento. Tinha uma cama, um armário, um banheirinho e uma janela que dava para o quintal. O quintal era pequeno, talvez uns seis metros por dez, mas era repleto de pés de frutas tropicais: coqueiros, abacateiros, limoeiros, toranjeiras, laranjeiras e os pés de níspero, ou nêspera, que se parece com maçãs. Seus galhos grossos e folhas largas formavam um velário que projetava uma sombra fresca sobre o quintal inteiro. Isso fazia dele um lugar perfeito para criar umas galinhas, além do galo, Pichilingo, que se tornaria meu melhor amigo. Anos mais tarde, eu passaria horas, sentado no telhado, aprendendo a me comunicar com os passarinhos tropicais em sua própria língua e invejando neles a habilidade de voar para longe. O ferimento no meu olho era doloroso. Passei por uma cirurgia com um ano e, de novo, com dois. As operações obtiveram sucesso no final, mas eu tive muitas noites insones, de acordo com mamãe. Ela, com frequência, dizia que sua única companhia naquelas madrugadas era Pichilingo, que ciscava e cacarejava com ansiedade enquanto eu chorava minha agonia para o céu noturno. Eu fui uma criança de sorte, na melhor maneira que uma criança pode ter sorte: eu fui amado. Era, na verdade, como se eu tivesse quatro pais corujas – os meus próprios, e abuela Ana e abuelo Julian. Claro, abuela Petra me amava também, mas já que ela morava longe, em

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outro barrio, eu só a via ocasionalmente, e então ela morreu em 1962, quando eu tinha seis anos. Eram Ana e Julian que cuidavam de mim constantemente enquanto papai trabalhava e mamãe se ocupava com as tarefas domésticas. Eu até dei os meus primeiros passos agarrando nos dedos dos meus avós. Eles eventualmente tiveram mais de cem netos e bisnetos, mas eu sempre fui o mais próximo. Abuela Ana devia ter só um metro e vinte, mas era enérgica e poderosa, e, quando queria, poderia fazer parecer que tinha o dobro de altura. Não tinha medo de nada e de ninguém. As pessoas na minha família amavam contar a história de abuela e dos “dedos misteriosos”. Uma noite, quando o abuelo não estava, abuela ouviu um barulho vindo das portas da sua casa, como se estivessem sendo empurradas ou arranhadas. Em princípio, achou que fosse um rato. Mas o barulho era mais sinistro que isso. Pressentindo o perigo, abuela buscou seu facão que, em Cuba, é um implemento doméstico comum. Abuela usava o dela para cortar as cabeças das galinhas, então o mantinha bom e afiado. Enquanto ela se aproximava das portas, notou uma mão saindo debaixo, tentando afrouxar a trava da porta. Ela brandiu o facão e acertou no chão de concreto, perto das mãos do intruso, enquanto gritava a plenos pulmões: “Eu reconheço os seus dedos, senhor, e eu sei quem você é! A próxima vez que você tentar destrancar minhas portas, não vou errar!” Abuela não tinha ideia de quem eram aqueles dedos. Mas o homem desapareceu mais rápido do que uma cobra no matagal. Ele havia provado só um gostinho da fúria de Ana Espinosa. No dia seguinte, a história havia se espalhado por todo o barrio. Era um testemunho do caráter da abuela Ana, não ter cortado de fato os dedos do homem.

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“Talvez ele tenha filhos para alimentar”, dizia abuela, recontando essa história para mim e minha pequena hermana, Esther, anos mais tarde. “Talvez ele sentisse tanta vergonha de ser pobre que não tivesse escolha senão roubar. Por que ele devia perder os dedos por causa disso? Olhe para nós agora. Nós perdemos tudo, e nem é culpa nossa. Provavelmente, estamos no mesmo estado em que estava aquele pobre homem. Como fico feliz de eu ter lhe demonstrado misericórdia e o deixado ficar com seus dedos! Do contrário, quem sabe como seria pior o castigo que Deus nos dá agora?” Mamãe e papai logo se mudaram do puxadinho e alugaram uma casa no outro lado da rua, mas o quintal de Ana e Julian continuou sendo meu lugar favorito. Eu era o niño deles, e poderia fazer o que quisesse – dentro do razoável. Se eu fizesse algo errado em casa, tudo que eu tinha que fazer era atravessar a rua correndo. Mamãe me perseguia até a entrada da casa da abuela Ana. Ela gritava, jogava coisas e ameaçava contar ao papai, mas era só até aí que ela ia. Abuela ouvia a bagunça e corria lá para frente, seu avental de cozinha jogado em cima do ombro. Ela me agarrava e apertava minha cabeça contra seu peito grande e macio. “Ora, Conchita,” ela dizia, “vai cuidar da sua casa, e me deixa cuidar do seu hijo. Pobrezinho, olha como ele está assustado!” “Mimado, isso é o que ele é,” mamãe dizia. “E é culpa sua, Mamá! Você o deixa fazer tudo, porque você é a avó dele!” “Ah, sim. É trabalho de avó mimar seus netos,” abuela respondia, ainda apertando meu rosto contra seu peito. Abuela amamentou onze filhos. Eu achava que ela provavelmente tinha os maiores peitos do mundo. Eles chegavam até a cintura, que era a altura certa para sufocar uma criança pequena como eu. Às vezes, eu

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não sabia o que era pior: a fúria de mamãe ou o abraço da abuela. Para evitar os dois, eu aprendi desde cedo a trepar no abacateiro, no quintal do abuelo e da abuela, e subir no telhado. Isso se tornou o meu meio de escapar dos perigos do mundo. Todo mês de maio, nossa família esperava ansiosamente o retorno do abuelo Julian, da estada de três ou quatro meses no engenho, onde ele supervisionava a colheita da cana e gozava do grande título de Primeiro Capataz do Engenho. Foi um longo caminho que ele fez desde os seus dias como um simples assistente de campo em Rodas. Meu coração latejava de antecipação às festividades que sempre decorriam desse evento abençoado. Meu tio rico e generoso, William, comprava um porco que pesava três ou quatro vezes o meu peso. Os homens cortavam sua garganta, o destripavam e raspavam os pelos longos e cerdosos de sua pele com facões afiados como navalhas. Então eles cavavam um buraco fundo, faziam uma fogueira maciça e abaixavam o porco numa bandeja próxima aos carvões. Várias horas depois, ele estava perfeitamente assado, e todos nós nos empanturrávamos. Com frequência, tal banquete se tornava uma festa de quarteirão improvisada, com todos os vizinhos aparecendo com pratos especiais e garrafas de rum. E, então, a celebração durava a noite toda. Eu esperava o retorno de abuelo Julian mais do que qualquer um, porque quando ele estava em casa, éramos inseparáveis. Desde a época em que eu tinha idade para atravessar a rua, sozinho, eu me sentava pacientemente no quintal toda manhã, com Pichilingo, esperando abuela Ana levantar e abrir as portas do fundo. Ela me dava um beijo e jogava umas migalhas de pão para as galinhas. Então ela me acompanhava para dentro e me dava uma xícara de café para levar ao abuelo, na cama. Ele se sentava, ignorando as chacotas de abuela sobre

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quanto tempo levava para acordá-lo, nesses dias, e bebia tudo num gole só. Depois se barbeava, passava uma loção pós-barba de aroma gostoso e penteava o cabelo com água de cheiro. Eu assistia a tudo isso fascinado. Uma das primeiras lições que aprendi na vida foi que mesmo um homem de meios modestos deve se orgulhar de sua aparência – não por causa de arrogância, mas para mostrar ao resto do mundo que ele se respeita e, portanto, é digno de respeito. Uma vez abuelo Julian de pé, o dia era nosso. Minha coisa favorita para fazer com ele era brincar de pegar enquanto ouvíamos os jogos de basebol, de Havana, no rádio. “Niño, você vai ser um astro algum dia!” – ele dizia. “Mas não se você arremessar desse jeito! Vamos, arremesse com força!” “Julian,” abuela dizia do fundo da casa, “você não está meio velho demais para jogar bola? Tudo que a gente precisa é você quebrando os óculos – ou a perna!” Abuelo sorria e sussurrava, “Arremesse o mais forte que consegue. Não se preocupe com abuela. De qualquer jeito, ela se preocupa demais.” Então, levantando a voz, ele dizia, “Sim, meu amor. Eu sei. Mas não se preocupe, não sou tão velho quanto você pensa!”

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ma manhã, em janeiro de 1959, eu acordei e percebi imediatamente, do meu próprio jeito infantil, que havia algo errado. Eu rastejei para

fora da cama e encontrei mamãe e papai ouvindo o rádio. Eles estavam tão absortos que me ignoraram. Se eu fizesse xixi no chão, eles não teriam percebido. Uma voz zumbia no rádio o tempo todo. Mamãe até se esqueceu de me dar café da manhã. Isso não estava certo. Eu estava acostumado a ser o centro da atenção o tempo todo e eu não ia ceder meu lugar sem briga. No entanto, não importava o que eu fizesse, meus pais e abuelos estavam tão distraídos pela voz que mesmo os meus chiliques não funcionavam. Nas semanas seguintes, eu percebia soldados em cada esquina. Isso, eu pensava, era ótimo. Eu era fascinado pela maneira como o sol reluzia nos capacetes de cor oliva e nas armas pretas e delgadas dos soldados. Eu amava assistir aos jipes militares derraparem pela cidade, cheios de oficiais empolados nos seus quepes de visor preto.

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Alto-falantes estavam por todos os postes de luz da cidade e começaram a transmitir a voz. Havia alto-falantes nos carros também, também reproduzindo discursos gravados da voz, de novo e de novo, cada um almejando ser o mais alto. Eles não sincronizavam um com o outro, de modo que o ar se tornou uma textura louca da mesma voz, em intervalos, volumes e tons diferentes. Quem era a voz? Eu não tinha ideia, mas imaginei que fosse alguém importante. Eu só tinha três anos, e um tanto do mundo era um mistério para mim – isso era só mais uma coisa para cismar. Um dia, abuela Ana e eu estávamos andando até a loja para comprar leite quando eu ouvi um tremendo tumulto. Encontramos um ponto na calçada em meio a uma multidão que crescia rapidamente. O tumulto se aproximava. No último momento, perdi a cabeça e mergulhei atrás da saia da abuela. Espiando para fora, testemunhei uma vista incrível: centenas e centenas de pessoas, marchando, entoando e cantando. As batidas dos seus pés retumbavam em meu peito. Gritavam, Viva Fidel! Viva la Revolución! Eu ainda não tinha ideia de o que era uma revolução. Até então, eram somente homens do exército e marchas, e ambas as coisas não me incomodavam. A voz podia falar por horas. Eu podia deixar o rádio ligado para ir cochilar, acordar duas ou três horas depois, e ela ainda estava falando. Em princípio, fiquei impressionado, depois entediado. Logo a voz sumia no pano de fundo da minha vida. Parecia que sempre estivera lá, como nosso cavalo, como meus pais e avós, como Pichilingo. Eu não prestava mais atenção nela do que nas cores das paredes. A próxima coisa que percebi foi que os adultos do meu mundo pareciam infelizes. Eles surtavam comigo por coisas pequenas e agiam como se algo estivesse errado. Eu presumi que era porque eu era

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malcriado, então fiz o melhor para parar de trazer sujeira para dentro de casa e para dar ouvidos quando me mandassem guardar os brinquedos. Mas não fez diferença. Todo mundo continuava aborrecido, não importava o que eu fizesse. Tínhamos menos o que comer agora. Nossas refeições favoritas costumavam ser feijão ou arroz, servidos com todo tipo de carne – de porco, frango ou bovina – e temperados com pimentas e ervas frescas. Nunca havíamos sido ricos, mas sempre tínhamos bastante comida. Agora, no jantar, havia menos no meu prato. Eu sempre amei ketchup, mas agora não se achava mais nenhum. Ainda conseguíamos arranjar arroz e feijão, e havia pés de frutas no quintal de abuela Ana e abuelo Julian, mas, com frequência, eu não conseguia comer tanto quanto eu queria. Eu pensei que eu estivesse sendo castigado por alguma coisa e eu chorava de frustração – eu não estava me esforçando para me comportar direito? “Não chore, niño,” papai me disse. “Não adianta. E, além disso, homens não choram. Eles lutam contra as coisas que podem mudar e não reclamam das que não podem.” “Ele não tem nem quatro anos!” disse mamãe. “Não fale com ele sobre lutar.” “Não é cedo demais para ele começar a aprender como funciona o mundo,” disse o papai. “É o mundo em que ele tem que viver, afinal de contas.” “Diga para ele que é um bom menino,” disse mamãe. “Ele pensa que você está bravo com ele por causa de alguma coisa.” “Você é um bom menino, hijo,” disse papai, bagunçando os meus cabelos. “É o mundo que está ficando mau.”

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Eu fiquei aliviado de saber que meus esforços para melhorar não haviam passado despercebidos. Mas as coisas não melhoravam.

Meu pai se levantava toda manhã bem antes do sol. Eu tinha muito orgulho do papai. Depois que ele se casou com mamãe, ele deixou as docas e se tornou um motorista. Qualquer um que estivesse vagamente associado a motores era importante aos meus olhos, mas ser um motorista era a maior de todas as coisas. Papai era um motorista para tio William, que era dono de uma companhia de distribuição, e meu tio Cholu, doido e bárbaro, o irmão do meio da mamãe, era seu assistente. Tio William era o irmão mais velho da mamãe, e ele era um grande homem em todos os sentidos. Por causa de seu sucesso na vida, ele era tratado com reverência, e, ainda por cima, pesava quase cento e cinquenta quilos. Como tantos outros membros da família de mamãe, ele também vivia na Rua San Carlos. Ele tinha dois filhos, Julian e Gilberto, e uma filha, Carmensita, com quem eu brincava com frequência quando não estava com meus amigos, Rolando e Tito Caballero, e meu primo Luis. Carmensita era cinco anos mais velha que eu, mas me tratava como igual, e eu adorava isso. Eu aprendi que, nesse estranho mundo da Revolução, terça-feira era o dia pelo qual esperar. Era nesse dia que papai e tio Cholu saíam para o campo entregar gasolina e álcool para os fazendeiros. Eles voltavam dessas viagens depois de escurecer, trazendo coisas maravilhosas: nacos de carne fresca, uma dúzia de ovos, pães macios e um frango inteiro. Então, comíamos como estávamos acostumados.

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Uma noite, depois da ceia, papai disse: “Niño, vai brincar. Preciso falar com sua mãe.” Obedeci, mas fiquei próximo o bastante para escutar. Eu podia distinguir os tons graves do papai “...temos que sair daqui...,” “...deixar o país pela América...”,”...visto de saída.” Eu entrei com tudo na cozinha, que também servia de sala de jantar. “Vamos viajar?” eu gritei. Mas não estava preparado para a raiva do papai. “Quieto!” Ele trovejou. Ele saiu para a porta da frente, abriu e olhou para cima e para baixo na calçada. Então, ele voltou para onde eu estava. Lágrimas desciam pelo seu rosto. Papai era um homem gentil e afetivo, que dificilmente levantava a voz, e quando o fazia, era chocante. Ele me agarrou pelos ombros, mas me olhava com ternura. “Você entende,” ele disse para mamãe. “Aqui estou, gritando com meu filho porque tenho medo que o governo ouça o que ele pensa. Isso é jeito de viver? Precisamos de mais motivos para sair daqui?” “Felo, cuidado com o que você diz na frente dele,” murmurou mamãe. “Ele pode repetir.” “Eduar,” papai disse, “eu te amo mais que tudo, e peço desculpas se gritei com você. Mas tem algo que você precisa entender. Se os homens maus ouvirem o que nós estamos falando, podemos nos meter numa grande encrenca. Então nunca mais diga qualquer coisa sobre a gente sair – também não é nada decidido. Entende?” Fiz que sim com a cabeça, miserável.

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“Se ajeite,” ele disse. “Homens de verdade não choram por causa de alguns gritos.” “Sim, papai.” “Você sabe que eu te amo, niño. Me dá um abraço.” Meu pai não precisava pedir duas vezes para que eu o abraçasse. Ele tinha cheiro de pós-barba, como abuelo Julian, e seu corpo morno vibrava quando ele falava e ria. Eu podia ficar agarrado nele o dia todo, igual um filhote de macaco, só para ficar próximo dele. Mas eu já sabia que não era coisa de homem querer tanto afeto. Um homem deveria ser durão, e eu seria um homem – dos fortes e grandes, igualzinho ao papai. Depois disso, houve muitas conversas tarde da noite entre meus pais e avós. Eu podia ouvi-los da minha cama perto da varanda, embora eu entendesse pouco do que estava sendo dito. Eu só sabia que mamãe às vezes chorava – normalmente uma ocorrência rara – e que todo mundo parecia preocupado. Às vezes, tio William participava dessas conversas também. Tio William era um herói para todos nós, sua opinião tinha um grande peso – do mesmo modo como ele também. A sua voz ecoava pela noite como o chamado de um elefante. Você podia senti-la tanto quanto escutá-la. Todo mundo ouvia o tio William. Eu, porém, nunca prestei atenção às suas palavras mesmo – eu estava ocupado demais com seus tons graves, que eu conseguia sentir nas molas da minha cama. Porque eu brincava com Carmensita, eu via muito o tio William. Mas uma manhã, quando eu entrei na casa dela – nenhum de nós nunca se dava ao trabalho de bater – ela não estava em lugar nenhum. “Tia!” Eu disse à minha tia Carmen. “Onde está Carmensita?”

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“Shh!” disse tia Carmen. “Carmensita está de cama. Ela não se sente bem.” “O que tem de errado com ela?” “Ela está com febre,” disse tia Carmen. “Você vai e volta amanhã, Eduar. Ela vai estar melhor amanhã. O médico disse que ela está com gripe.” Mas, no dia seguinte, Carmensita estava pior. Agora, além da febre, ela tinha dores. “Carmensita!” eu gritei da sala de estar. “Vem brincar!” Carmensita esticou a cabeça pelos cantos do quarto dos pais. “Tudo bem!” ela disse, fraca. Mas sua mãe a empurrou de volta para a cama. Então, ela saiu e me levou para a porta. “Eduar,” ela disse, “você tem que sair já. Não é seguro você ficar aqui. Você pode pegar o que ela pegou.” “Eu queria a Carmensita!” eu berrava. “Vai!” disse a tia Carmen. “Nós te diremos quando for seguro voltar.” Pela tardinha, a casa estava cheia de adultos, mas eu ainda não podia entrar. Então, os homens carregaram Carmensita para fora da casa numa maca até um carro que a aguardava. Eu estava no jardim da frente e chamei o nome dela enquanto ela passava, mas ela não respondeu. Ela dormia. Parecia estar muito bonita e em paz, eu pensei, embora me surpreendesse que ela conseguisse dormir com toda a diversão que era um passeio de maca. Foi a última vez que eu a vi. Eles a levaram para um hospital em Havana, mas era tarde demais. No dia seguinte, me disseram que Carmensita havia ido para o céu, e que eu nunca mais a veria nesta vida.

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A revolução

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Eu podia ouvir meu pai praguejando na cozinha. Dessa vez, ele não se importava com quem o ouvisse. “Aquele maldito médico inútil!” ele gritou. “Se todos os bons médicos não tivessem saído do país por causa dessa Revolução idiota, eles teriam descoberto o que tinha de errado com ela!” Mas a reação do meu pai não foi nada comparada com a do tio William. Ele se trancou na sua casa e se recusou a sair por dias. A vizinhança toda podia ouvi-lo em seus gritos de raiva e mágoa. “Por quê? Por que Deus? Por que você levou minha menininha de mim? O que eu fiz para merecer isto?” Ninguém, nem seus filhos, Julian e Gilberto, nem mesmo tia Carmen podiam chegar perto dele.

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A Baía dos Porcos

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a primavera de 1961, quando eu tinha cinco anos e meio, do meu poleiro no telhado sob a copa dos pés de frutas, ouvi uma grande

comoção nas ruas: motores de caminhões e jipes, homens estranhos gritando ordens, mulheres berrando, crianças chorando. Eu não sabia se devia me esconder ou olhar. Enfim, desci e fui tímido à porta da frente da casa dos meus avós. Lá, na nossa rua ordinariamente tranquila, contemplei o caos. Soldados com armas estavam por toda parte. Seus olhos eram planos e brilhosos como de uma cobra, e seus rostos cheios de ameaça. Pior, eles apontavam suas armas para as pessoas. Eu nunca os havia visto fazerem isso antes. Todos os homens na vizinhança se ajoelharam numa fileira, mãos na cabeça, olhando para o chão. Alguns dos soldados seguravam as armas contra as cabeças dos homens, e parecia que eles atirariam a qualquer momento. Então, para o meu horror, vi que o papai e o tio William estavam entre os homens ajoelhados. Os soldados vociferaram contra todo mundo para que ficassem parados como era mandado. Enquanto isso,

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um oficial marchava para frente, para trás, gritando com uma voz estridente para que as mulheres parassem de chorar e deixassem os soldados fazerem seu serviço, ou elas seriam presas também. Enraizado no meu lugar, eu vi minha mãe se aproximar de um oficial, torcendo o avental nas mãos. Ela lhe perguntou alguma coisa. Sua resposta foi levantar a mão como para lhe bater. Minha mãe manteve a posição, sem hesitar. Ela repetiu a pergunta várias vezes e, finalmente, o oficial lhe deu algum tipo de resposta brusca. Então, eles carregaram os homens – incluindo papai e tio William – para dentro dos caminhões e foram embora. De pé na porta, tentei gritar o nome de papai, mas só consegui fazer um som rouco. Eu podia ver seu rosto enquanto ia embora. Nunca o havia visto com um olhar de medo antes. Quando os caminhões se foram, mamãe gritou, “Eles o estão levando para o Teatro Terry!” Um berreiro partiu das mulheres. Eu não entendia – eles estavam sendo levados a um espetáculo de bonecos? Eu, de algum modo, achava que não, mas não podia imaginar que outro motivo havia para ir ao teatro. Afinal, eu ousei me aventurar para fora da casa. Quando mamãe me viu, ela me agarrou e me segurou bem apertado. “O que está acontecendo?” eu perguntei. “Nada, niño,” ela disse. “Não se preocupe. Tudo ficará bem.” A essa altura aprendi que sempre que alguém dizia que tudo ficaria bem, era porque as coisas estavam para ficar ruins mesmo. E eu tinha razão. Passamos uma noite longa e tensa, acuados, juntos – eu, mamãe e minha irmãzinha, bebê, Esther, que só tinha seis meses. Esther dormia, e eu eventualmente dormi também. Tenho certeza de que mamãe não pregou os olhos nem por um momento.

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No dia seguinte, mamãe se recusou a me deixar longe de sua vista, e quando eu disse que eu ia sair de qualquer jeito, ela ameaçou me amarrar ao pé da mesa. Em princípio, eu estava desafiante, mas então veio um som novo, o mais atemorizante até então: os aviões de guerra de Castro. Eles estrondeavam e davam mergulhos, assustando tanto a pequena Esther que ela não conseguia mamar. Caminhões cheios de soldados passaram, zumbindo de novo, mas eles não pararam dessa vez. Algo grandioso estava acontecendo. Quando a ação sossegou, mamãe correu de casa em casa com Esther nos braços, batendo nas portas. Eu a segui. “Venham para nossa casa,” ela disse a todos. “É a menor do quarteirão! Se bombas começarem a cair, é a menos provável de ser atingida!” Muitos dos residentes da Rua San Carlos nos seguiram até em casa. Havia uns vinte e cinco de nós, e os que tinham galinhas ou bodes os trouxeram junto, e os animais corriam por toda a casa. Era como uma grande festa. Bebês choravam, bodes berravam, galinhas cacarejavam, e os adultos tentavam escutar, por cima da barulheira, o que estava acontecendo lá fora. Pessoas se aventuravam do lado de fora, de tempos em tempos, mas na maior parte nós ficávamos do lado de dentro. Toda vez que um avião sobrevoava, nós todos nos espremíamos em nosso grande banheiro – ele tinha três metros por quatro. Eu achava que era muito engraçado que tantos de nós estivéssemos lá juntos. Finalmente, mamãe me disse o que estava acontecendo: a Baía dos Porcos estava sendo invadida pelos ianques. Papai e todos os outros homens haviam sido levados e trancafiados no Teatro Terry para que não pudessem se unir aos invasores e lutar contra os comunistas. Eu sabia que não havia uma pessoa na terra capaz de ferir papai, que era

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forte, esperto e capaz. Eu confiava que ele ficaria bem. Já que eu era um amante dos animais, minha preocupação era com os porcos. Eu me preocupava que eles pudessem tomar tiros. Mamãe riu, pela primeira vez desde que papai foi levado. “Não tem porcos de verdade na Baía dos Porcos,” ela disse. “Tem que ter!” eu insisti. “Eles nadam em volta com os focinhos no ar!” “Não, niño, escute. A Baía dos Porcos tem esse nome por causa de um tipo de peixe que vive lá.” Eu fiquei cabisbaixo. Nunca havia ouvido falar da Baía dos Porcos até aquele dia, mas soava como um lugar de que eu iria gostar. Eu queria acreditar que era um paraíso suíno, com montes de leitõezinhos rosados, de costas, chutando com as pernas enquanto pegavam sol nas suas barrigas gordinhas. Eu teria adorado visitar uma praia dessas. “Você tem certeza, mamãe?” eu perguntei. “Sim, niño. Quando você puxa um peixe-porco da água, ele faz um barulho como o de um porco. Ouça: óinc, óinc!” “Mamãe,” eu disse, enquanto todos riam da sua piada, “você está sendo boba. Não tem nenhum peixe que faz barulho igual um porco. Só porcos fazem barulho de porco. Peixes não fazem barulho nenhum!” “Está bem, niño,” mamãe disse. “Você tem razão. Talvez depois que acabar tudo isto, papai nos leve para passar as férias lá, e você pode ver por si mesmo como é.” Logo os aviões e caminhões pararam, e os vizinhos saíram. Por muito tempo, eu me referi à invasão à Baía dos Porcos como “o dia em que nós todos fomos para o banheiro juntos.” Três dias depois, papai voltou para casa, esfomeado, desidratado e fedendo como um deus nos acuda.

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“Me dá um pouco de água,” ele disse para mamãe, caindo na cadeira. Mas ela não o deixou descansar até que entrasse na banheira. Ela deixou a porta aberta, e ele disse a ela tudo o que aconteceu no Teatro Terry enquanto se esfregava. “Eles nos amontoaram lá igual galinha em caixote,” ele disse. “Eles pregaram as portas e janelas e não tinha uma só lufada de ar fresco. Se você tivesse que fazer – bem, você sabe o quê – tinha que fazer lá mesmo, onde estava, nas calças. Nada de comida. Mal tinha água. Muitos homens desmaiaram. Não me surpreenderia se alguns deles morreram. Concha, eu podia comer um porco inteiro agora, e ele mal encheria o buraco em mim!” “Eles não levaram o pai do Rolando e do Tito Caballero!” eu disse. “Isso é porque Caballero é um comunista!” papai disse. “Eles nos pegaram porque não queriam que nós revidássemos! Não queriam que fôssemos infiéis, então nos tratam igual animais. Não tem jeito mais certo de fazer os homens se virarem contra você do que afastá-los de suas famílias. Concha, nós vamos achar um jeito de ir para a América, você está me ouvindo?” “Sim, e a moça do CDR também,” disse mamãe. Eu era novo demais para entender o que significava CDR – Comitê para Defesa da Revolução. O CDR era como um cruzamento entre a Gestapo e o programa de Vigilância Comunitária. Cada bloco residencial em Cuba tinha um agente do CDR morando nele – um vizinho normal que havia sido selecionado pelo seu zelo revolucionário e vontade de dar informações sobre os vizinhos. O agente geralmente era uma mulher, porque, naqueles dias, as mulheres ficavam em casa o dia todo

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e viam tudo que acontecia nas ruas. Era o trabalho do agente do CDR denunciar qualquer conversa ou comportamento antirrevolucionário. Agentes marchavam para as casas das pessoas, sem aviso, sempre que a voz falava, só para garantir que elas estivessem ouvindo o rádio. Essas pessoas também ficavam de olho nos sinais de atividade capitalista ilegal – isto é, comprar e vender qualquer coisa, mesmo comida ou roupas, no mercado negro – e escutavam conversas particulares nas soleiras e parapeitos, esperando ouvir alguém fazer um comentário pelo qual pudesse ser jogado na prisão. Pessoas que eram julgadas antirrevolucionárias precisavam ser reeducadas. A reeducação era obtida com uma de três maneiras: trabalho forçado, encarceramento ou pelotão de fuzilamento. Tristemente, alguns dos meus membros da família foram pegos por essa loucura, incluindo meu primo Peruchito, o filho da filha mais velha da abuela Ana, Idalia. Peruchito chegou a entrar no exército. Mamãe nos contava da vez que Peruchito veio visitar Abuela Ana e Abuelo Julian em completo uniforme militar. Enquanto passava pela porta da frente, ele percebeu que a fotografia emoldurada de Fidel que ele havia mandado não estava em parte alguma. “Abuela!” ele disse. “Onde está a foto d’El Comandante? Você devia tirar essa imagem de Jesus e trocá-la pela de Fidel. Ele é o único que pode nos salvar, não um judeu cabeludo!” Abuela jogou o avental em cima do ombro – era o sinal de que ela estava se preparando para ação – e acertou Peruchito no peito com um dedo forte como ferro. “Olhe aqui, jovem,” ela disse. “A foto do seu tal de líder está no quarto dos fundos, virada para baixo, com um copo-d’água em cima. E o nosso Jesus vai continuar na parede enquanto eu viver.”

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Pôr uma fotografia virada para baixo significava “descanse em paz,” nesse caso, expressando um desejo de que Fidel morresse. Era o máximo de declaração antirrevolucionária que poderia ser feita. E o copo-d’água sem flores em cima significava que ninguém teria saudades de Fidel se ele morresse. Peruchito se virou e saiu da casa, para nunca mais retornar. Nós nos perguntamos se ele denunciaria a própria avó, mas nunca nada saiu do incidente. Peruchito morreu num acidente de automóvel em que todos os quatro passageiros foram carbonizados sem possibilidade de reconhecimento. Isso era uma maneira comum de Fidel se livrar dos seus inimigos – matá-los, fazendo parecer que morreram num acidente de tráfego. Peruchito deve ter desagradado de algum modo El Comandante. “Engraçado como os carros, de repente, criaram a tendência de explodir em chamas o tempo todo,” mamãe disse, seca. “Eu não me lembro disso acontecendo antes da Revolução.” “E serve para lhe mostrar,” acrescentou papai, “que não se está na melhor por apoiar Castro. Se você está com ele ou contra ele, as chances são de que você vai acabar morto. Melhor se afastar o máximo possível dele – o mais rápido possível!”

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Nossa última Noche Buena

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m 24 de dezembro de 1961, toda nossa família estendida – quase duzentas pessoas – e nossos vizinhos se reuniram na Rua San

Carlos para celebrar a Noche Buena, ou Noite Santa. Era um evento anual e o destaque do ano. Eu sempre ficava mais feliz quando cercado pela minha família, e a Noche Buena era a única noite em que todos nós nos reuníamos para celebrar nossa proximidade um com o outro e nos regozijarmos com o nascimento do Menino Jesus. A reunião da Noche Buena era a época para contar histórias de celebrações anteriores que haviam saído erradas de modos hilários. Eu ouvia o papai contar a história de um porco que o tio William havia comprado, que escapou antes que pudesse ser abatido. Todos os homens e meninos de pés ligeiros em Glorytown caçaram aquele porco por duas horas até que ele, enfim, morreu de ataque cardíaco. Tio William mais tarde brincou que ele quase não conseguiu comê-lo – quase. Nós, crianças, também ouvimos a antiga história da jornada de Maria e José a Belém, onde Maria deu à luz ao Menino Jesus e foi visitada

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pelos Reis Magos. Abuela Ana nos contou essa história, relatando-a com uma fé tão simples que eu acreditava que ela provavelmente esteve lá e viu a coisa toda. “Lembrem-se, crianças,” ela disse, “é muito bom se divertir no Natal, comer e beber e brincar, mas nunca nos esqueçamos do verdadeiro motivo para celebrar essa época do ano – honrar o nascimento do Nosso Senhor e Salvador.” Mas 1961 foi o último ano em que celebraríamos a Noche Buena em público, por causa do que aconteceu naquela noite.

Mesmo que nós soubéssemos que seria a última, não haveria nada que tivéssemos feito diferente. Os homens puseram barricadas para bloquear o tráfego da rua. As mulheres puseram mesas na frente de cada casa e as carregaram de comida até as pernas começarem a ceder. Papai e tio Cholu trouxeram uma abundância de comida fresca das viagens da terça-feira ao campo, de entrega, e todas as mulheres diziam coisas do tipo como elas iriam ser melhores uma que a outra na cozinha. Eu não conseguia passar por uma mesa sem alguém agarrar meu cotovelo e enfiar uma porção de algo delicioso em minha boca. Não tinha nenhuma reclamação de minha parte. Em geral, eu conseguia comer o bastante por dois meninos e, naquela noite, comi por três. Tradicionalmente, os pratos principais do banquete da Noche Buena eram porco, tanchagem e congris, ou feijão preto com arroz. Abuela Ana era uma especialista em congris. Ela fazia um pão pumpernickel fabuloso, cujo gosto eu ainda consigo sentir agora se eu fechar meus olhos. Mamãe fez arroz branco, empanados de frutos do mar e croquetes. Tia Carmen, esposa do tio William, amava cozinhar yuca e também fazer cuba-libres: coca-cola com rum e uma pitada de suco

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de limão. Os vizinhos trouxeram sobremesas como panetelas, um tipo de bolo; capuchinos, rolinhos de anis; casquitos de guayaba con queso; e churros, massa de pão, frita, coberta de açúcar. Duas pessoas estavam faltando naquele ano: tio William e Carmensita. Sentíamos profundamente suas ausências. No ano passado, tio William havia sido o anfitrião da Noche Buena, com seu quintal imenso, que podia acomodar facilmente até trinta mesas e ainda deixar espaço para dançar no meio. O apelido do tio William era paizão. Ele usava anéis grandes, dirigia carros grandes e fumava charutos grandes, e amava ser generoso. Quando era ele organizando o show, a Noche Buena começava tarde da manhã, com as pessoas parando para se socializar e dar umas beliscadas. Esse encontro casual durava o dia todo até, no final, quando caísse a noite, as coisas ficassem sérias. Então, uma banda começava, e as pessoas comiam, bebiam e dançavam até chegarem quase a desmaiar. Com frequência, elas caíam no sono onde quer que encontrassem espaço no chão. Era comum que completos estranhos chegassem à festa e fossem recebidos com boasvindas tão calorosas que ficavam lá a noite toda. Políticos e policiais eram convidados frequentemente e também todos os amigos pessoais de tio William, um dos empresários de maior sucesso em Cienfuegos. Esse foi o primeiro ano em que tio William não foi o anfitrião da Noche Buena, e foi, definitivamente, a primeira vez que todo mundo lembrava que o tio não foi. Ele estava na cama com as cortinas fechadas, sofrendo em silêncio pela morte da sua garotinha. Eu lançava um olhar triste para a sua porta da frente, de vez em quando. Era uma sensação estranha para mim, Carmensita ter ido embora para sempre. O conceito de eternidade fazia minha cabeça de criança girar. Quando você morre, você fica morto para sempre. Mas o que era “para sempre”? “Um tempo

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muito grande”, papai me disse. Maior do que o tempo que eu consigo segurar a respiração? – perguntei. – Muito maior que isso, respondeu papai. – Maior que um ano? Perguntei. – Bem maior, disse papai. Eu não conseguia imaginar um tempo maior que um ano. Dentro de um ano, eu teria sete, que já era muito velho mesmo – velho demais para eu imaginar. Enquanto isso, Carmensita, no céu com os anjos, continuaria com onze anos para sempre. Eu me perguntava se ela estava assistindo a nossa reunião de Noche Buena, desejando poder se juntar a nós. Será que ela estava se sentindo solitária no céu, ou estava feliz por estar com Deus? Deus amava crianças, isso eu sabia, mas... será que Carmensita sentia saudades de mim? Já bem de noite, a rua permanecia apinhada de famílias, os adultos dançando e bebendo, e as crianças correndo por aí. Rolando, Tito, Luis e eu corríamos como se fôssemos donos do lugar – dentro e fora da casa das pessoas, pelos seus quintais, comendo um pouco aqui e um pouco ali, rindo, gritando, revertidos para um estado de anarquia. Ninguém se importava. Os adultos nos deixavam fazer o que quiséssemos. Para variar, éramos livres. De repente, todos ficaram muito quietos. Foi aí que eu percebi que havíamos sido invadidos. Eles apareceram silenciosamente, do nada, talvez meia dúzia deles: uma gangue de homens com aparência bruta, estranhos para a vizinhança. Podíamos dizer pelas expressões nos seus rostos barbudos que eles não haviam vindo pela comida. Tudo neles parecia malvado, até os sapatos pontudos nos seus pés. Num minuto, todos estavam se divertindo, no outro você poderia ouvir até o barulho de um periquito distante.

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As crianças se afastaram. Os homens maus começaram a andar pela rua, encarando todo mundo com o mesmo olhar desdenhoso. Então um deles piscou para mamãe. “Ei, gata,” ele a cumprimentou. Isso foi tudo de que os nossos homens precisaram. Num instante, a gangue estava cercada por um monte de cavalheiros cubanos muito bravos, papai no meio deles. “Quem vocês pensam que são?” “O que vocês estão fazendo aqui?” “Como ousam se comportar desse jeito?” todos gritaram de uma vez. “Porcos!” gritou o líder da gangue, um homem com pele ruim e dentes faltando. “Vermes! Traidores! Se afastem, ou vai ter encrenca!” “Encrenca!” disse abuelo Julian. Ele foi empurrando até chegar à frente da multidão e ficar cara a cara com o líder. “Você disse que vai ter encrenca? Você tem razão! Mas não fomos nós que começamos! Somos pessoas pacíficas e não queremos problemas. Mas se você não se virar agora e sair daqui, encrenca é o que vai ter!” Sem dúvida, abuelo acreditava que ninguém certo da cabeça ousaria fazer mal a um senhor. Mas abuelo estava errado. O líder plantou ambas as mãos no peito de abuelo e o empurrou. Abuelo voou pelos ares, aterrissando no asfalto. Ele se contorceu de dor, então se virou de lado. “Abuelo!” gritei. “Julian!” gritou abuela Ana, olhando pelas laterais. “Vamos pegá-los!” gritou tio Sergio, o marido da minha madrina, Magalys. Ele se levantou de volta e deu um gancho de direita na boca do homem. E esse foi o começo do fim da Noche Buena.

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As crianças menores foram empurradas atrás de uma mesa pelas mulheres, que então formaram um escudo protetor na nossa frente. Enquanto isso, os homens atacaram com uivos de raiva e fúria, usando seus punhos, pés, cotovelos, joelhos e até as testas. Eu não podia acreditar em meus olhos. O próprio papai estava lá no meio disso, lutando como um guerreiro de tempos antigos. Meu coração se inflou de orgulho enquanto eu o assistia e desejava que fosse crescido o bastante para lutar daquele jeito. Então veio a erupção de um novo som, um que eu não podia identificar. Olhei em torno. Era o tio William, gritando de raiva. Minha madrinha havia ido buscá-lo. Ele estava com tanta pressa para se juntar aos homens que lutavam que ainda estava puxando as calças sobre o maior par de cuecas que eu já vi. Alguém ousou dar um empurrão em seu venerável pai, e aquele alguém estava prestes a receber o que lhe era devido. Eu havia ouvido histórias sobre a ira do tio William, principalmente do papai, que as havia testemunhado ocasionalmente no local de trabalho – embora sempre em resposta a uma ferramenta quebrada ou a uma fatura errada por descuido, nunca por nada sério. As histórias da mamãe eram mais dramáticas. Tio era o mais velho dos seus irmãos e, uma ou duas vezes, quando ele era jovem, e ela, uma menina, ela o viu explodir de fúria. Ela explicou que o tio se enfurecia devagar, mas depois que o sentimento atingia seu ápice, era como o trovoar de uma tormenta de verão. Agora, magoado até o coração pela morte da Carmensita – pela qual ele culpava os comunistas – e cheio de uma raiva homicida contra esses maloqueiros – que estavam obviamente na folha de pagamento dos comunistas, contratados para causar encrenca – ele estava cumprindo

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as expectativas de todas as histórias que eu havia ouvido. Apesar do meu pânico e medo, eu me lembro de me sentir feliz de estar finalmente vendo o tio William em ação. Tio mergulhou na briga e lançou uma rajada de socos. Homens caíram no chão, garrafas voaram pelo ar e se estilhaçaram, mulheres gritaram. Entre elas estava minha querida abuela Ana, que gritava com seu marido de cinquenta anos: “Julian, Julian, não vê que você está velho demais para isso?” “Velho demais, ainda não!” ouvi clamar o abuelo. Emilio Pérez, o melhor amigo de meu pai, que em meus olhos era invencível, estava por perto, só esperando uma oportunidade de entrar na briga. Então ele viu uma brecha e pulou dentro. Mas um murro de sorte chegou bem na sua testa, e Emilio caiu como um saco de batatas. “Emilio, se levante, por favor!” gritei. Emilio tentou se levantar, mas seus joelhos viraram água, e ele caiu de novo. “Emilio está ferido!” gritei para os meus primos, que assistiam horrorizados. “Eles vão matá-lo, papai, ajude-o, por favor!” gritei. Vendo a situação, papai veio ao resgate de Emilio e o puxou para fora do caminho. Eu sempre havia achado que Emilio fosse o homem mais forte do quarteirão – mais forte até que o tio William – e me deprimia vê-lo daquele jeito. E, então, acabou tudo. Não pude ver através da barreira de mulheres para descobrir o que aconteceu depois disso, mas, quando eu vi, todos estavam apertando as mãos e pedindo desculpas. Eu vi até o tio William abraçar um dos marginais. Houve uma risada nervosa, e os homens maus recuaram quarteirão abaixo – sem dúvida haviam perdido a luta. Todos ajudaram acertar as mesas. As vassouras foram

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trazidas para varrer os pratos e garrafas quebrados. Cães apareceram para comer as refeições arruinadas. Meus amigos e eu papeamos sobre os homens misteriosos. Quem eram eles? Por que fizeram isso? O que eles queriam? Mais tarde, papai explicou para mim: “Aqueles marginais foram enviados pelo governo para nos assustar.” “Mas por quê?” eu perguntei. “O que nós fizemos a eles?” “Nada. Não é essa a questão. Eles querem que tenhamos medo. Eles perturbaram a festa mais importante do ano. Eles querem que nós saibamos que eles controlam tudo.” Seu rosto estava branco, e sua voz tremia. A raiva de papai, tão raramente observada, era contagiosa. “Eu os odeio!” Eu gritei. “Eu vou matar todos! Vou torcer-lhes os pescoços e cortar-lhes as cabeças como um bando de galinhas!” “Quieto! Você não vai fazer coisa alguma,” papai disse. “Você ainda é só um menino. Você precisa aprender a pensar, não só a agir. Eles querem que nós revidemos. Assim eles podem nos prender.” “Prender pelo quê? Eles que começaram!” “Não tem certo ou errado aqui, niño,” disse papai. “Você tem que entender que eles não se importam com isso. Tudo o que eles se importam é com controle. Nossa bela ilha de Cuba está sendo governada por pessoas que são burras demais para entender qualquer coisa exceto força bruta. É isso que eles querem usar para se fazer entender, e, então, pessoas como nós acabam se ferindo.” “Não é justo,” eu disse. “Não, não é. Mas não se preocupe Eduar. Algum dia, essas pessoas vão ter aquilo que lhes está por vir. Nesse meio tempo, temos que ser mais espertos que eles, e ficar fora de encrenca.”

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Papai olhou para mim durante um momento longo e sério. Parecia como se ele quisesse dizer alguma outra coisa, mas não sabia o quê. Mais tarde adivinhei que ele queria reconhecer a loucura da época – pedir desculpas, talvez, por ter me trazido para esse tipo de mundo, mas também para me garantir que se eu continuasse por tempo o bastante, veria dias melhores. Em vez disso, ele me deu um abraço e uma tapa nas costas, e me deixou tomar meu rumo.

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