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Willy Russell

Tradução

Liliana Negrello e Christian Schwartz

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Título Original: The Wrong Boy. Copyright © W.R Ltd 2000. First published in Great Britain by Doubleday a division of Transworld Publishers. Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura, 2013. Diretor editorial Editor Assistente editorial Tradução Preparação de texto Revisão Capa e diagramação

Paulo Fernando Ferrari Lago Claudio Kobachuk Getúlio Ferraz Liliana Negrello Christian Schwartz Ivan Justen Santana (versos) Claudio Kobachuk Getúlio Ferraz Adriana Gallego Mateos Adalbacom Design Gráfico e Comunicação

Nota: A edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Grafia atualizada segundo o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. EDITORA NOSSA CULTURA Rua Grã Nicco, 113 – Bloco 3 – 5º. andar Mossunguê Curitiba - PR – Brasil Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108 http://www.nossacultura.com.br Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Index Consultoria em Informação e Serviços Ltda. Curitiba-PR U18

Russell, Willy Caro Morrissey... / Willy Russell ; tradutor Christian Schwartz e Liliana Negrello.— Curitiba : Nossa Cultura, 2013. 366 p. Título original: The wrong boy ISBN 978-85-806-6113-2 1. Literatura inglesa. I. Título. CDD (20.ed.) 813 CDU (2.ed.) 820(73)-3 IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

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Para Annie

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E se você tiver uns cinco segundos sobrando Te faço minha narração Dos dezesseis anos de um desajeitado e estranhão, Que foi pra Londres e então... Morrissey, “Half a Person”

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16 de junho de 1991 Posto Birch Rodovia M62

Caro Morrissey, Estou me sentindo superdeprimido e pra baixo. Tipo um poste de rua sem lâmpada ou um peru perto da época do Natal. Então, sei lá, pensei que podia rascunhar umas linhas pra alguém que me entendesse. Sei que você não vai me responder; não sei nem se esta carta vai chegar até você. E, também, mesmo que você responda, o que eu sei que é bem improvável, sua carta não chegaria até mim porque eu já teria ido embora. O endereço aí em cima é de um posto onde estou fazendo uma parada. Eu provavelmente nem vou botar esta carta no correio. Estou escrevendo ela num caderno que eu uso pra escrever minhas letras e anotar minhas ideias. Tipo de um diário, acho; mas isso faz parecer que o negócio é mais importante do que é, na verdade. Que seja: é nele que estou escrevendo, aqui, sentado no meio de uns caminhoneiros e turistas e viajantes e passageiros. E acaba de me ocorrer que você mesmo pode ter parado nesta lanchonete, nos primórdios da banda, talvez, voltando de um show, você e os rapazes fazendo aquele pit stop pra uma xícara de chá. Meio que me conforta pensar que você quem sabe passou por aqui, Morrissey, que talvez sentou nesta mesma mesa em que estou agora. Fico imaginando no que você pensava quando parou neste santuário da satisfação self-service, com seu bar galpão e seus peixes à romana e à milanesa escarrapachados em pratos quentes, longe, bem longe das ondas do mar. Estou sentado bem de frente pra um caminhoneiro supergordo, que é quem está me dando uma carona. Preferia que o filho da mãe não tivesse topado me trazer. Era capaz de andando eu ter chegado aqui mais depressa. A gente já gastou quase duas horas desde Manchester porque o cara não consegue passar por uma lanchonete ou por um posto sem dar uma paradinha pra comer alguma coisa. Quando eu ia subindo na cabine do caminhão, ele perguntou: “Tá indo pra onde?” Falei: “Grimsby”. Ele disse: “Pra quê?” Respondi: “Trabalhar”. Ele apontou com o queixo pro meu violão: “Trabalhar com quê”, falou, rindo da minha cara, “arte de rua?” “Não”, eu disse, “em alguma construção lá!” ...1

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Ele pareceu meio em dúvida. “Só vou trabalhar um pouco”, falei, “servir uns chás pros operários e tal.” Ele fez que tudo bem com a cabeça. Aí perguntou: “Por que viajar essa distância toda atrás de trabalho?” Pensei um pouco. Então falei: “Por causa do Morrissey”. “Morris do quê?”, ele disse. “Morrissey”, expliquei pra ele, “não é Morris de alguma coisa. Morrissey, o maior letrista de música vivo. Cantava nos Smiths.” “Ah”, ele falou, “aquele mala!” Não conversei mais com o cara. Ele colocou uma fita do Phil Collins pra tocar e soltou uns peidos, o que, considerando a trilha sonora, combinava, pensei. Agora acabou de abocanhar mais um pedaço do sanduba de bacon e está rindo de novo, a boca aberta com pão mastigado e bacon e saliva à mostra. Está achando superengraçado eu ter dito que sou vegetariano. Foi por isso que começou a rir. “Não sei por que você está rindo”, eu disse, “tem um monte de gente que é vegetariana; tipo, o George Bernard Shaw era vegetariano. E o Gandhi! E saiba que a maioria do mundo é”, falei, “inclusive o Morrissey. E eu.” Ele simplesmente riu mais ainda. “E foi por isso que me tornei vegetariano”, contei pra ele. “Por causa do Morrissey.” Mas era desperdício continuar, então calei a boca e deixei ele rir. O que se pode dizer pra um filisteu que curte Phil Collins e Dire Straits e outras frivolidades do gênero? Coloquei meu Walkman pra tocar, assim pelo menos não ouço a risada dele. A única coisa que salva essa carona é que o cara é tão gordo que me faz sentir realmente magro. Não que eu seja obeso ou algo do tipo, Morrissey. Mas, mesmo não sendo mais gordo hoje em dia, às vezes ainda penso que sou corpulento. E odeio ter que olhar pra fotos minhas de quando era gordo. Fotos são que nem computadores – nunca dizem a verdade. É que nem como aquela foto do Oscar Wilde, Morrissey, sabe, aquela em que ele está com umas botas, encostado numa parede? Se aquela fosse a única foto que tivesse sobrado do Oscar Wilde, todo mundo ia pensar que ele era gordo, não ia? Mas o Oscar Wilde não era gordo, no fundo. E eu não era gordo, no fundo eu não era. Era só uma fase que eu estava passando. E provavelmente era só uma fase que o Oscar Wilde estava passando e ele não podia evitar aquilo, assim como eu não pude. Me chamavam de Moby Dick! Quando a gente se mudou pra Wythenshawe e me puseram naquela escola onde eu não conhecia ninguém e já estava no meio do semestre quando me matricularam, entrei na sala e o Steven Spanswick olhou e falou: “Puta que pariu, é a Moby Dick!” 2...

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E todo mundo na sala começou a rir, até o professor! Mas não tô nem aí pra eles mais. Não quero nem saber do Spegga Spanswick e do Barry Tucknott e do Mustapha Golightly e daquele bando todo. Engraçadões filhos da mãe! Porque agradeço a eles, sério. Foi por causa de gente como o Steven Spanswick e o Jackson e todas aquelas pessoas patéticas que escrevi minha primeira letra de todas. Se chamava “Tô nem aí”: Tô nem aí Se você puxa meu cabelo Tô nem aí se você quer é rir de mim Tô nem aí Se você olha e aponta o dedo Tô nem aí se você joga bosta em mim Tô nem aí Quando me rapam até as meias Tô nem aí se só me chamam de baleia Tô nem aí Se você rouba meu quinhão Tô nem aí quando me xingam: “manezão” Tô nem aí Tô nem aí Tô nem aí Porque não tô aqui. Olhando hoje, parece bê-á-bá pra caramba e meio simplista. Na verdade é bem constrangedora, previsível e nada original. Mas todo artista tem que começar de algum lugar, e o importante é que, apesar do que eram essas minhas letras na época, pelo menos eu tinha começado a escrever elas. Ah, merda, que será que o imbecil do ogro-oleoso está me dizendo agora...?

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Mais tarde, Na traseira da van de uns colocadores de carpete Em algum lugar dos Montes Peninos (aparentemente)

Caro Morrissey, Ainda estou morrendo de vergonha. Não consegui fugir daquele posto de gasolina rápido o suficiente. Esses colocadores de carpete estão indo pra Halifax e prometeram me levar pra lá. Na verdade, nem sei se Halifax fica no meu caminho, mas eu teria aceitado carona pra qualquer lugar só pra sumir daquele posto de gasolina. Pelo menos a parada aconteceu num ambiente meio que transitório e, se tudo der certo, nunca mais vou precisar ver ela de novo! Como estava ouvindo meu Walkman e escrevendo pra você, não me dei conta de que ele estava falando comigo, o Super Bolha. Quando finalmente tirei os fones, ele já estava gritando: “Ei, olha só isso”. Olhei na direção que ele estava apontando. Foi aí que vi a garota, de pé ao lado do balcão, se servindo de cereais. Ela estava sorrindo pra mim e meio que me cumprimentou. Normalmente eu não sou muito simpático, mas não pude evitar um sorriso, porque, mesmo só tendo visto essa garota daquela vez – no ponto do ônibus, perto das lixeiras de recicláveis do bulevar Failsworth –, nunca esqueci a Garota dos Olhos Castanhos. Eu não conhecia ela. Ela não me conhecia. A gente estava de pé na fila do ônibus, como todas as outras pessoas. Ela, parada quase no começo da fila, e eu, lá no final. Fiquei um pouquinho surpreso, de início, quando ela me cumprimentou com um discreto movimento da cabeça. Acho que fiquei com uma expressão confusa, porque ela sorriu e abriu a jaqueta jeans pra eu poder ver a camiseta. Então entendi tudo. E sorri de volta. Porque ela estava usando uma camiseta exatamente igual à minha! A mesma que estou vestindo hoje, com uma foto da Edith Sitwell na frente e Morrissey escrito atrás. É sempre sensacional quando a gente encontra outro fã do Morrissey. Mesmo que você nunca tenha visto a pessoa, sabe que compartilha alguma coisa importante com ela. Lá da frente da fila, ela me disse: “Onde o Morrissey perdeu sua mala?” Sorri. E respondi: “Essa é fácil, em Newport Pagnell”. Ela também riu, e todas as pessoas da fila começaram a olhar pras nossas caras como se a gente fosse idiota ou algum tipo de delinquente drogado a respeito de quem elas tinham lido na Failsworth Fanfare. Não liguei. Não ligamos. A gente era fã do Morrissey! Eu disse: “O que ele foi procurar na Associação Cristã de Moças?” 4...

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Ela riu de novo e respondeu: “Essa é fácil: a outra metade da sua pessoa”. A gente estava se divertindo muito só de ficar ali no ponto de ônibus, eu e a Garota dos Olhos Castanhos. “O que o Morrissey tinha na mão quando invadiu o Palácio da Rainha Morta?” Ambos gritamos a resposta ao mesmo tempo: “Uma esponja!” E demos risada. E foi quando reparei nos olhos dela, foi quando notei que eram escuros e cintilantes como castanhas recém-tiradas da casca. Acho que encarei os olhos dela de um jeito um pouco exagerado, porque ela meio que deu de ombros. E então perguntou: “Você tem o disco da mixagem feita em Nova York pra ‘This Charming Man’, aquele que teve um erro de impressão na capa?” Assenti. E ela olhou pra mim como se tivesse ficado realmente impressionada. Mas o ônibus chegou, e alguém atrás da Garota dos Olhos Castanhos disse pra ela se mexer e parar de segurar a fila. Ela andou na direção do ônibus e entrou. Não queria que a Garota dos Olhos Castanhos pensasse que eu estava me achando quando falei que tinha o disco da mixagem feita em Nova York pra ‘This Charming Man’, aquele com um erro de impressão na capa. Não queria que ela achasse que eu estava me gabando. Enquanto a fila andava, decidi que, se fosse conversar com ela de novo, quando entrasse no ônibus, não devia mencionar que tenho o disco de ‘Hand in Glove’ com erro de impressão também! Ela podia achar meio ostensivo, até um pouco vulgar, uma pessoa que tem, não só um, mas dois dos discos mais colecionáveis entre os colecionáveis do Morrissey. Mas, no final das contas, nunca cheguei a falar com ela no ônibus. Nem sequer cheguei a entrar no ônibus! Porque quando estava na porta, o motorista me disse: “Não tem mais lugar. Tá lotado!”, e eu quis protestar, mas ele simplesmente fechou a porta na minha cara. E nunca mais encontrei com ela depois disso. Nunca mais encontrei a Garota dos Olhos Castanhos em nenhum outro lugar. Sempre imaginava esbarrar com ela mais uma vez, mas sabia que era muito improvável, especialmente porque nunca me aventuro em ambientes externos a não ser que seja absolutamente necessário. Na maior parte do tempo, fico bastante satisfeito em me sentir deprimido no meu próprio quarto. E, mesmo se eu saísse mais, como minha mãe vive insistindo que eu faça, ainda assim acho que não esbarraria com ela, com a Garota dos Olhos Castanhos. Percebi, pelo sotaque, que ela não era de Failsworth. Então, naquele dia, quando nos encontramos no ponto de ônibus, podia ter sido a única vez em que ela pisou em Failsworth em toda sua vida. Por isso, eu sabia que provavelmente não veria ela de novo. Algumas vezes, cheguei mesmo a pensar que nem tivesse visto essa garota de verdade, que talvez ...5

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ela fosse apenas o tipo de pessoa que eu queria ver, a Garota dos Olhos Castanhos. Mas então, hoje, enquanto estava sentando de frente pro motorista de caminhão Super Bolha, lá estava ela, na lanchonete do posto de gasolina! E ela me reconheceu e estava sorrindo novamente pra mim e trazendo sua bandeja na minha direção. Mas nunca chegou até a mesa onde eu estava sentado. Porque, quando ela estava se aproximando, de repente ouvi o ogro-oleoso motorista de caminhão dizer: “Isso. Vem sentar pertinho de mim, queridinha. E te digo mais: se você se comportar direitinho posso te mostrar meu cano de escape”. Morrissey, foi como se de repente baixasse uma onda misteriosa de silêncio e calma, daquelas posteriores à explosão de uma bomba. O sorriso no rosto da Garota dos Olhos Castanhos começou lentamente a esmaecer. E o pior de tudo é que ela ainda estava olhando pra mim, mas agora só com mágoa e ressentimento nos olhos, como se tivesse sido mortalmente ferida. Ela ainda estava olhando pra mim, mas o desapontamento e a decepção tomaram seu rosto e ela parou de repente, virou de lado e andou até outra mesa, onde um casal de meia-idade a recebeu com sorrisos melosos. E aí, ainda sentado, praticamente catatônico de choque pelo que o ogro-oleoso e filho da mãe tinha dito pra ela, de repente me dei conta: ela devia pensar que eu estava com ele! Que era o tipo de pessoa que andava com gente do tipo do ogro-oleoso! Então saí do meu lugar e fui na direção dela pra tentar explicar! Mas quando fiz isso, ele começou a gritar de novo todo tipo de coisas grosseiras, imbecis e pervertidas, e ela percebeu que eu me aproximava e fez menção de mudar de mesa novamente. Cheguei em tempo pra impedir que ela levantasse e tentei explicar e me desculpar por tudo aquilo. Mas quando minha mão tocou seu braço, ela me empurrou, e esbarrei no prato de cereal que virou em cima dos dois aposentados, e os flocos de aveia, pedaços de trigo e algumas passas invadiram seu recém-servido café da manhã de bacon com ovos. “Me deixe em paz”, ela disse, a Garota dos Olhos Castanhos. E ficou ali, meio trêmula, que nem um passarinho que tivesse caído do céu quando um chumbinho atingiu sua asa. “Isso mesmo, suma daqui! Deixe a pobre garota em paz!”, disse a aposentada. “E nos deixe em paz também”, disse o homem. “Olha aí, olha aí!”, ele falou. “Olha só o que você fez! Como vou tomar meu chá agora? Está cheio dessas porcarias de grãos e frutas e todo tipo de coisa boiando”. Eu disse que teria o maior prazer em pegar outra xícara de chá pra ele. E pra esposa dele. Disse que pagaria um novo café da manhã pra ambos, se quisessem. E falei pra a garota: “Pra você também”. Falei: “Posso pegar mais cereal”. 6...

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Mas ela nem olhou pra mim. Ficou encarando a mesa, como se tivesse fechado as portas pro mundo exterior. E disse: “Me deixa em paz. Sai de perto de mim. Sai daqui!” E, pela maneira como ela falou, saquei que não adiantava insistir no pedido de desculpa, tudo que pude fazer foi murmurar que sentia muito. E me virei, e saí andando, e só queria ter um cobertor pra colocar na cabeça e esconder minha vergonha e meu constrangimento. Voltei pra minha mesa, peguei meu violão e minha mochila, com a intenção de simplesmente sumir dali. Mas aí me dei conta de que aquele motorista de caminhão porco e obsceno tinha pegado o caderno com minhas letras! Tinha catado de dentro da minha mochila e estava lendo minha carta pra você, Morrissey, lendo e rindo! Tentei tirar o caderno da mão dele, mas o ogro era rápido demais pra mim e ficou segurando o caderno de um jeito que eu não conseguia alcançar. E ficava dizendo o tempo todo: “Tudo bem, Moby, fique calmo, Moby. O que foi, Moby Dick, ela não quis dar umazinha?” Eu só pensava no que o Oscar Wilde teria feito numa situação dessas, que epíteto cortante e apropriado ele teria cunhado pra ferir, frustrar e derrotar seu adversário. Mas nada me vinha à cabeça, então simplesmente agarrei um garfo e enfiei na mão gorda daquele filho da mãe. Ele gritou como um porco e atirou meu caderno no chão. Mas quando me abaixei pra pegar, ele levantou o joelho e me atingiu em cheio no rosto. Não vi estrelas, Morrissey, foi mais como uma festa de fogos de artifício. Aparentemente, foi nessa hora que os colocadores de carpete entraram em cena e seguraram o cara, bem quando ele ia esmagar o meu rosto de vez. Quando voltei a mim, um dos colocadores de carpete estava me ajudando a chegar até a porta e o outro estava carregando minhas coisas. Conforme a gente se aproximou da mesa da garota, o colocador de carpete que estava me carregando disse ao que levava minhas coisas: “Ei, eu também podia dar um trato nessa menina”, e ambos começaram a rir daquele jeito horrível e abjeto como só os homens sabem. E, quando passei por ela, percebi que a Garota dos Olhos Castanhos me lançava um olhar de relance, superamargo e cheio de decepção. Foi quando parei, parei ao lado da mesa dela. E disse: “Não compartilho dos pensamentos e atitudes desses caras; você não entendeu direito. Na verdade”, falei pra ela, “fiz um voto de celibato!” Bom, foi aí que os colocadores de carpete colocaram na cabeça que eu era um noviço. E, enquanto me ajudavam a entrar na traseira da van, o cara que levava minhas coisas se desculpou por sua grosseria e lascívia. Então agora estou sentado aqui, em cima de cinco rolos de carpete com estampa floral, rumando pra algum lugar dos Montes Peninos. E os colocadores de carpete estão supercomportados e me chamam de “Padre” o tempo inteiro. ...7

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Estou me sentindo um pouco culpado por ter dito que fiz um voto de celibato. Não por causa dos colocadores de carpete, mas pela garota. Pois é, Morrissey, além de todo o resto, ainda por cima menti pra ela. Não é que eu tenha feito um voto de celibato, apenas sou assim. Celibatário! É um fato. Como a água é molhada, a grama é verde. Raymond é celibatário. E como isso é um fato incontestável, pensei em transformá-lo em uma espécie de virtude. Estava na cidade um dia desses e vi um muro pichado ao lado do Kentucky Fried Chicken. A pichação dizia: “Raymond Marks é virgem”. Voltei lá à noite com um spray e escrevi: “Na verdade, Raymond Marks não está a fim!” Isso foi logo depois de eu ter lido aquele artigo sobre você, Morrissey, aquele em que você disse pro entrevistador que era um “celibatário ocasional”. Achei genial. Queria poder dizer o mesmo, mas até agora acho que o “celibatário” é mais fácil de atingir do que o “ocasional”. Mas não fico pensando o tempo inteiro nisso. Tenho meus discos do Morrissey, meus discos do Smiths e meu livro com citações do Oscar Wilde. E tenho minhas composições, que são importantes pra caramba pra mim. E sabe de uma coisa que reparei, Morrissey, lendo ou vendo entrevistas de outros escritores: todos dizem a mesma coisa – que, no fundo, escrever é melhor do que sexo. Bom, se isso for verdade, estou por cima. Seu amigo, Raymond Marks Do Caderno de Letras de Raymond James Marks Lá por detrás das arcadas das lojas Uma castanheira cresce e aparece, Como tranqueira de épocas remotas Que só de birra não apodrece. Atirei um pau naquela árvore velha E esperei que um fruto caísse; Mas o pau me ricocheteou na testa E fiquei ainda mais triste com isso. Então catei o pau, e ao partir escutei Os céus grunhindo risos estranhos E aí ouvi uma voz chamar: ‘Ray!’ Era a Garota dos Olhos Castanhos. Ela disse docemente: ‘Nada feito, É muito cedo pra gastar os punhos. 8...

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Os frutos só cairão em novembro E estamos no meio de junho.’ Então tentei segurá-la ali Mas meus dedos só cataram o ar, Apesar de na medula eu saber que a vi, Com a certeza que ela era real. Então esperei que as andorinhas voltassem A fazer os ninhos nas subidas E os buracos e os fundos dos vales Ficassem cheios de folhas caídas. Daí, com gigantesca ansiedade, Retornei àquela árvore lá; Porém não restara mais nada, Só restara deserto o lugar. Meu coração ficou roído de traças, Mais triste que palhaço bêbado; O Departamento de Parques e Praças Pusera abaixo todo o arvoredo. Fiquei feito um pugilista que vence Mas não recebe o prêmio maior; Grita pelo que sabe que merece E na injustiça chora de dor. Tão estricnado quanto um motorista, Tão passado quanto gelo ao sol, Como Deirdre (quando Ken Barlow a atiça); Saí correndo à luz do arrebol. E corri até chegar às águas Às quais chamam Canal de Rochdale; Agora nada mais nos organizava: Olhei para cima e falei: ‘Meu, valeu.’ Os amanhãs nunca mais socorrem-se, E eu seria um ‘fui’ – ‘sou’ não mais. Então dei meu adeus ao Morrissey, Ao Oscar Wilde e à minha mãe. Contudo ao deslizar canal adentro, Entre restos quebrados de bicicletas, Ouvi uma voz que dizia: ‘Meu Deus, O que fez agora este pateta?’ Então tudo se acalmou qual chá na xícara, Eu afundava, a água ficava preta, Quando algum boçal me puxou para cima Me pegando pelo capuz da jaqueta. ...9

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Eles me deitaram num local bem claro Onde a luz estava sempre acesa, E escreveram que eu era mais um caso De rapaz que perdeu sua cabeça. Então gritei e tentei explicar Que não era loucura, mas manha, Que minha cabeça era fácil de achar E só me faltava uma castanha. Mas quanto mais eu falava, mais caçoavam, E mais eu ficava deprimido, E mais louco me diziam que eu ficava, E mais me enchiam de comprimidos. Para acalmar, para ajudar, diziam eles, E transformavam minha mente em geleia Até eu ficar na cama, como sempre, Vendo TV, sem ter qualquer ideia, Ou passeando, amparado, no jardim, Meu furor adolescente acabado, Feito um bebum com a bebida no fim Na marcha dos corações partidos. Passaram o inverno, a primavera e o verão Mas eu não estava nem aí, Com a cuca mais cozida que um pirão Misturado com mingau de caulim. Entretanto as folhas foram se soltando E quando eu flanava um belo dia Achei que ouvi todo mundo falando: ‘Por aqui! Por aqui, Vossa Senhoria.’ A cabeça pesada feito um saco de moedas Ergui os meus olhos do chão, E lá, através da névoa de doces e remédios, Me surgiu a seguinte visão: Um mastro dourado de Galeão espanhol Sob a forma de uma castanheira; Pensei, merda, será efeito do Valium Ou será uma visão verdadeira? Aí vi que não estava drogado nem louco E que não só truques tacanhos, Pois quem saiu por detrás do tronco? A Garota dos Olhos Castanhos. Ela me envolveu em seus ternos braços 10...

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E sussurrou: ‘Não tenha medo. Jure acreditar nos meus abraços E a salvação eu te prometo.’ Então jurei, e imediatamente A terra pareceu dilacerar-se, Os esgotos do inferno vieram à frente Feito uma viagem numa Acid House. A garota em meus braços virou chicote Que fatiou minha pele lacerada; Eu não escapava de nenhum golpe E ela tornou-se uma lata cortada Que me rasgou a carne em pedaços E lançou os meus olhos ao céu, Mas eu não soltava aqueles braços; Tinha que garantir meu troféu. Então ela virou um escorpião E ferrou as mãos que a agarravam, Todavia segui firme na situação Confiando nas próprias garras. Ela tornou-se a doença em pessoa, Ela tornou-se um míssil nuclear, Virou mil almas mortas com peçonhas Porém eu continuava a segurar. Finalmente ela tornou-se o centro Do núcleo incandescente do sol; E quando estava insustentável o tormento Até que enfim acabou. Caminhávamos numa rua da cidade, Ela rindo do que eu dizia ali, Eu sorrindo, sem depressão nem saudade, Sem ter mais a expressão de um zumbi, Tendo todas as pílulas e cápsulas tomado, A tudo resisti, e recebi meus ganhos, E foi assim que eu fui conquistado Pela Garota dos Olhos Castanhos. RJM

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Num estacionamento, Na A58, Arredores de Halifax

Caro Morrissey, Aqueles colocadores de carpete malucos me deixaram aqui. Enquanto eu saía da van, eles indicaram a direção da cidade e disseram: “Chegamos, Padre. Só vamos até aqui”. Olhei pra além da colina em direção a uma pletora de pizzarias, casas pré-fabricadas enfeitadas com seixos na fachada e todo tipo de vulgarização da arquitetura vitoriana. “Aí está Halifax”, anunciou com certo orgulho o motorista. “Obrigado por avisar”, eu disse. “Era capaz de me confundir e achar que estava em Paris!” Eles franziram o cenho. “Não era pra cá que você estava vindo?”, um deles perguntou. Neguei com um movimento da cabeça. “Não”, falei. “Estou indo pra Grimsby.” Eles se entreolharam, os colocadores de carpete. E depois olharam pra mim com um grau considerável de pena e compaixão. Então um deles bateu de leve no meu ombro e disse: “Não há de ser nada, Padre, não há de ser nada!” Antes de se mandarem, disseram que eu podia conseguir uma carona fácil por ali. Espero que suas habilidades em colocar carpete sejam superiores a seus poderes de fazer previsões! Estou preso nessa porra de estacionamento por mais de duas horas e o mais perto que cheguei de conseguir uma carona foi quando um carro de playboy diminuiu a velocidade e dois filhos da mãe engraçadões se inclinaram pela janela pra tirar sarro e me mandar pra aquele lugar. Um micro-ônibus carregando um bando de freiras também desacelerou pra me pegar, mas quando agarrei minhas coisas e corri até o veículo, o motorista acelerou de novo e as Irmãs de Caridade de Hebden Bridge começaram a rir nas janelas e me fazer aquele sinal com o dedo médio. Então desisti e sentei perto da placa de trânsito. Estou começando a achar que deveria ter pegado o ônibus pra Grimsby, como disse pra minha mãe que ia fazer. Mas pedir carona me pareceu mais romântico, por alguma razão; um tributo à altura dos meus últimos dias de liberdade. Estou começando a suspeitar, porém, que pode ter sido um erro abandonar minha cautela costumeira e flertar com essa ninfa caprichosa que é a aventura. Odeio o filho da mãe do meu tio 12...

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Jason! Peguei uma das minhas canetas hidrográficas há pouco e escrevi, bem embaixo da placa de trânsito: “Meu tio Jason é um filho da mãe e um ladrão; roubou a antena do meu vô! E assiste TV por satélite enquanto meu vô está enterrado em uma caixa de chumbo, dentro de um túmulo apertado e contencioso!” Odeio o filho da mãe do tio Jason. Não estaria indo pra um pulgueiro feito Grimsby se não fosse por ele. Sei que disse que estava indo pra Grimsby por sua causa, Morrissey, mas não é culpa sua. Seu papel nisso tudo foi meramente incidental e eu realmente te eximo de responsabilidade por minha fuga forçada de Failsworth. Foi minha culpa, sei disso. Eu simplesmente nunca devia ter mostrado seus discos pra minha mãe. Mas, sabe, minha mãe estava feliz. Naquele sábado à noite, minha mãe estava superfeliz. Sei disso porque ela começou a fazer uma torta de maçã seguindo a receita da Delia Smith, que tinha pegado na BBC. O fato é que minha mãe estava colocando canela, cravo e raspas de limão na torta, coisas com as quais ela não se importa quando faz uma torta de maçã comum. Mas minha mãe estava feliz naquela noite. Quando minha mãe está infeliz, ela não cozinha. Simplesmente pega alguma coisa do congelador e joga no micro-ondas, num ritual conveniente pra preparar uma refeição superficial. Mas quando ela faz comida de verdade, sei que está bem, sei que está feliz. Naquele sábado à noite, ela estava até cantando enquanto esticava a massa da torta na mesa da cozinha. Cantava “I’m Not in Love”, aquela canção antiga do 10 CC. Minha mãe adora essa música. E eu estava feliz porque ela estava feliz. Quando entrei na cozinha pra pegar um copo d’água, ela chegou a fazer o rolo de microfone! Foi um momento de embrulhar o estômago, um momento daquele tipo muito constrangedor que, desafortunadamente, as mães são pródigas em produzir de vez em quando. Pelo menos foi dentro da nossa cozinha, então não tinha ninguém por perto pra testemunhar o lapso excruciante da minha mãe. Mas eu estava feliz porque ela estava feliz e então tentei esboçar um sorriso. Ela parou de cantar e olhou com curiosidade pra mim. “Credo, Raymond”, ela disse, “isso é um sorriso ou você está com gases?” Eu falei: “Sabe essa música que você está cantando? Foi gravada no Strawberry Studios. Os Smiths também gravaram lá”. “Adoro essa música”, minha mãe disse, e vi surgir nela uma expressão meio sonhadora acompanhada de um suspiro. Aí ela voltou a cantar. Foi ajeitando a massa na fôrma e falou: “Mas esse não é o seu estilo de música, né, Raymond?” Dei de ombros. “É legal”, eu disse. “Até gosto dessa música, na verdade.” Minha mãe olhou pra mim muito surpresa. “Sério?”, disse. “Mesmo?” ...13

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E percebi que era muito importante que eu aprovasse uma música que ela gostava. “É legal”, falei. “Legal. Não é maravilhosa, mas, é... legal. Tipo assim, é bacana o jeito como ele fala as coisas ao contrário”. O rosto da minha mãe se iluminou com um sorriso adorável, ela fechou os olhos e disse, de um jeito intenso: “Adoro. Simplesmente adoro o jeito como ele tenta dizer pra ela que não está apaixonado... quando na verdade está a ponto de sufocar de tanta paixão”. Quando minha mãe disse isso, vi que seus olhos ficaram brilhantes e molhados com a grande beleza daquela situação triste. Achei que as lágrimas que ela estava segurando iam começar a escorrer pelo seu rosto, mas minha mãe suspirou, um profundo e lamentoso suspiro de satisfação, e começou a pincelar com os ovos batidos o topo da torta de maçã. “Sabe, Raymond”, ela falou, “sabe o que significa quando você começa a gostar do tipo de música que seus pais escutam?” Estava começando a me arrepender de ter falado sobre a droga da música do 10 CC; tinha dito que aquela era legal, mas não estava a fim que ela me chamasse pra ouvir a porcaria dos Bee Gees ou o lixo do Leo Sayer, ou qualquer outra frivolidade a que minha mãe era suscetível. “Significa, Raymond, que você está se tornando um adulto.” E ficou ali, olhando pra mim toda orgulhosa, sorrindo, gratificada. Estava na ponta da minha língua dizer pra ela que não tinha interesse em ser adulto. Mas não queria estragar a alegria dela falando uma coisa desse tipo. Então disse apenas: “Mãe, vou pro meu quarto”. Mas não fui pra lá, porque ela respondeu: “Ei, por que você não traz alguns dos seus discos pra cá e a gente ouve um pouco juntos? Você só ouve seus discos no quarto!” Dei de ombros. Disse: “Só acho que não é o tipo de coisa que você gosta”. “Ora, como vou saber se gosto ou não?”, ela falou. “Você nunca me deixa escutar direito. Só consigo ouvir uns ruídos que saem pela porta do quarto. Posso até vir a gostar dos seus discos se você me mostrar as músicas de verdade”, falou. “Quer dizer, você começou a gostar das minhas músicas, por que eu não ia gostar das suas? Vamos fazer o seguinte, Raymond”, ela disse, “deixa eu colocar esta torta no forno e depois vou sentar com você pra ouvirmos juntos... como chama aquela banda mesmo?” “The Smiths”, eu disse. “The Smiths”, ela disse. “Vamos sentar juntos e ouvir os Smiths”. Hesitei. Hesitei muito mesmo. Mas sentia que minha mãe estava bem satisfeita com o novo canal de comunicação aberto entre mãe e filho e estava disposta a fazer o esforço de levar aquilo adiante. E eu não queria 14...

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que ela ficasse chateada. Então deixei de lado a hesitação, entrei no quarto e peguei minhas fitas-cassetes. Minha mãe sentou na ponta do sofá, ajeitando a saia e fazendo o melhor possível pra parecer uma daquelas mães dos comerciais da televisão, alertas e atentas, numa pose perfeita de entusiástica expectativa. “Vamos, Raymond!”, ela disse, toda radiante. “Vamos logo com isso!” Eu não disse nada. Só fiquei constrangido por ela. Então pressionei o botão play e tentei olhar pra algum outro lugar, e minha mãe ali, sentada no sofá, sorrindo, balançando a cabeça e batucando com os dedos ao som de “This Charming Man”. Ela disse: “Ei, isso é legal, Raymond! A guitarra é gostosa, né?” “Você tem que prestar atenção na letra”, eu disse. “Estou prestando”, ela falou. “Estou prestando.” E ouviu mais um pouco. “Ele tem uma voz bonita, né?”, disse. “É um tipo de voz diferente, mas é uma voz muito boa, na verdade.” “É o Morrissey”, eu disse. “Ele é quem escreve as letras. Ele é genial.” “O que ele está dizendo?”, minha mãe perguntou, aproximando o ouvido do aparelho de som. “I would go out tonight but... como é o resto?” “Ele está dizendo que não tem uma roupa decente pra sair naquela noite”, eu disse a ela. “Me sinto assim de vez em quando”, minha mãe disse. “É genial, né? Alguém que você nunca viu na vida escrever uma música... que fala sobre uma coisa que você sente.” “Mas esse é o Morrissey, mãe!”, eu disse, sentindo uma onda de entusiasmo bem pouco característica. “Isso é o que ele faz. Ele é poeta, pode articular as coisas pra nós. Você realmente gostou”, perguntei, “ou está falando por falar?” “Gostei mesmo, Raymond”, ela disse, levantando do sofá assim que a música terminou. “Gostei muito mesmo.” Eu podia sentir o cheiro da torta de maçã no forno e estava tão feliz – tão feliz de ter uma mãe que conseguia gostar dos Smiths – que fiquei empolgado e falei: “Vou tocar mais uma pra você”. Minha mãe olhou de relance pra cozinha, depois pra mim. “Tá bom, então”, ela disse, sentando de novo no sofá, “mas não posso me esquecer da torta.” Toquei pra ela “Barbarism Begins at Home” e “Hairdresser on Fire” e “Heavens Know I’m Miserable Now” e “Girlfriend in a Coma”. E, conforme as músicas iam tocando, eu contava pra minha mãe tudo sobre os Smiths e sobre você, Morrissey, e sobre as músicas e seus significados, e sobre como elas eram geniais, e sobre as suas influências e sobre onde tinham sido gravadas. E eu não parava de dizer: “Ouça essa parte, mãe, essa parte é ótima”. Ou: “Presta atenção nessa letra, mãe, não é genial?” ...15

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Acho que me empolguei um pouco. Cheguei a colocar “Vicar in a Tutu”, sem pensar no que estava fazendo. Me sentia tão entregue em meu zelo religioso que nem sequer reparei que minha mãe começou a parecer preocupada, olhando pra mim de uma forma interrogativa, não percebi que seus dedos pararam de tamborilar e agora torciam nervosamente o pano da saia. Então adiantei um pouco a fita e disse: “Espera até você ouvir essa, mãe, ‘Death of a Disco Dancer’”. E minha mãe falou: “Acho que não quero ouvir mais nada, Raymond, se você não se importa”. “Não”, eu disse. “Mas você vai adorar ‘Death of a Disco Dancer’”. Mas quando apertei o botão play, minha mãe se levantou e correu pra cozinha gritando: “Droga, Raymond, a torta de maçã!” Desliguei o som. Quando cheguei na cozinha, minha mãe estava de pé, encarando os restos torrados e carbonizados, da torta da Delia Smith. A cabeça dela pendia pra frente e vi uma lágrima rolar pelo seu rosto. A lágrima escorreu até o topo carbonizado da torta e desapareceu. Eu disse: “Mãe, é só uma torta de maçã. Não tem problema. Podemos comprar uma pronta”. Minha mãe disse: “Não é a torta, Raymond!” Ela olhou pra mim e estremeceu de leve com um soluço. “O que você pensa que está fazendo, Raymond, ouvindo esse tipo de música?” Falei: “Eu gosto”. Ela disse: “É mórbido, Raymond, é muito mórbido”. “O Morrissey não é mórbido”, respondi. “Não é tão mórbido.” “Não é mórbido?”, minha mãe gritou. “Não é mórbido? ‘If a ten ton truck should kill the both of us… to die by your side, the privilege, the pleasure is mine’? Morrer com você é um privilégio e um prazer? Não é mórbido, Raymond? Ah, não…. ‘Oh Mother I can feel the soil falling over my head! Mãe, já posso sentir a pá de cal? Heaven knows how miserable I feel’.” “‘Heaven knows I’m miserable now!’”, corrigi. “Não me admira, Raymond, estar me sentindo realmente deprimida depois de ouvir isso. Não é mórbido? É uma droga de uma música suicida. Não é só mórbida”, ela disse, “é criminosa. ‘Lifting some lead off the roof of the Holy Name church!’ Roubar da igreja? Que tipo de música é essa, Raymond?” “Do tipo genial!”, eu disse a ela. “Você não entende”, falei. “E não é mórbido como você pensa! Ser mórbido não quer dizer ser infeliz. Você pode ser bem feliz se sentindo deprimido, como o Morrissey: como eu!” Voltei pra sala e comecei a organizar todas as fitas dentro das caixinhas. Quando olhei pra trás, minha mãe estava lá, balançando a cabeça em negativa enquanto olhava pra mim, os lábios trêmulos e os olhos preocupados. 16...

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“Raymond, filho”, ela disse, “achava que essa fase tinha terminado; pensei que já tínhamos superado isso. Já estava considerando você um garoto normal. Achei que você era normal agora, Raymond.” Fiquei constrangido quando ela disse isso. Sabia que minha mãe ambicionava que eu fosse normal. Sabia que seria uma glória pra ela me ver em conformidade e correspondência com os outros. Ela sempre me dava umas indiretas sobre esse tipo de troço. Cada vez que aparecia a propaganda do NatWest, ela olhava praquele estudante cara de bunda e dizia: “Olha como o cabelo dele é bonito, Raymond” ou “Esse é o tipo de paletó que cairia bem em você, Raymond”. A maior das ambições da minha mãe era que eu um dia desabrochasse miraculosamente como um jovem normal – essa coisa que me dá vontade de vomitar. Mas eu nunca me tornei um jovem normal. Detesto jovens normais; todos eles têm seus passes de ônibus e risadas escandalosas, e escutam Steve Wright e sua trupe patética. Preferia ser um jovem morto que ser um jovem normal. Eu nem acho que tem muita diferença entre uma coisa e outra, de qualquer maneira. Então eu disse pra minha mãe: “Não sou normal! Não quero ser normal. Odeio a normalidade! Vou pro meu quarto”. Enquanto eu fechava a porta do quarto ainda ouvi o grito dela: “Você não pode viver sua vida trancado num quarto”. Mas estava bastante satisfeito em viver minha vida trancado no meu quarto. Gosto do meu quarto. E ainda podia estar nele até hoje se minha mãe não tivesse saído pra encontrar o filho da mãe do tio Jason. Tudo estaria tranquilo se ela não tivesse ido encontrar com ele. Eu teria saído do meu quarto mais tarde e teria perguntado pra minha mãe se a gente ia comer torradas e tomar café com leite. E, embora ela fosse me lançar um daqueles olhares da cabeça aos pés, tudo ficaria bem no final das contas. As coisas teriam acabado assim: a gente sentado na frente da tevê comendo torradas e tomando café com leite. Tudo estaria bem. Mas não ficou tudo bem porque, quando minha mãe voltou da visita aos meus parentes repulsivos, ela só ficou parada ali, sem nem tirar o casaco, lançando pra mim um olhar suspeito e profundamente dúbio. Eu disse: “Você quer comer torradas e tomar café com leite?” Ela olhou diretamente pra mim. “Tomei café no tio Jason”, ela falou. “Raymond, você é homossexual?” Olhei pra ela. “Então você vai querer só torradas, é isso?”, eu disse. “Não quero torradas, Raymond”, ela respondeu. “A tia Paula fez sanduíches de pão árabe pra gente. Agora, você pode me responder? Quero saber a verdade: você é homossexual?” “Quem disse isso?”, perguntei. “Não interessa. Quero saber se é verdade.” ...17

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Eu não neguei. Fiquei só pensando no quanto minha mãe tinha me traído ao ir falar com o filho da mãe do tio Jason, ao escolher conversar com ele, mesmo sabendo que era o criminoso que tinha roubado a antena de satélite do meu vô. Podia até ver minha mãe sentada no pufe de veludo da tia Paula, com o patife criminoso do meu tio de um lado e a indescritível tia Paula do outro, os três comendo um sanduíche de pão árabe e especulando sobre a natureza de minha sexualidade. Eu disse: “Não tem nada de errado com pessoas homossexuais”. Ela falou: “Eu não disse que tem, Raymond. Só estou perguntando o que você é”. Eu disse: “Você sabe o que eu sou”. “O que, então?”, ela perguntou. “Me diga, Raymond. O que você é?” Fiquei olhando pra ela. Dei de ombros. Estava tentando não chorar. Falei: “Sou só um garoto! Só isso. A boy with a thorn in his side!” Minha mãe ficou ali me olhando como se eu fosse o mais inescrutável dos quebra-cabeças, um mistério que nunca poderia ser desvendado. E eu fiquei olhando pra ela também. Queria que ela viesse me abraçar. E me dizer que jamais devia ter ido na casa do tio Jason, e que ele era um ladrão filho da mãe. Queria que ela me fizesse rir contando histórias sobre a reforma luxuosa que a tia Paula estava planejando pra suíte deles. Queria que minha mãe ficasse do meu lado. Queria que ela sentasse perto de mim pra comer torradas e tomar café com leite, que não me considerasse um adulto, queria explicar pra ela que não era homossexual, era apenas um garoto que estava tendo uma grande dificuldade em se tornar uma porra de um heterossexual. Queria que minha mãe me abraçasse e me compreendesse. Mas ela apenas ficou ali, olhando pra mim; me encarando como tinha feito por todos aqueles anos, depois da parada do canal. Quando aquela garotinha desapareceu. Eu disse: “Por que você está me olhando desse jeito?” Minha mãe apenas balançou a cabeça em negativa e falou, como se fosse uma mulher em sofrimento constante: “Meu Deus”, e de novo, tirando o casaco, “Meu Deus!” E, como eu não podia suportar a dor do desespero da minha mãe, e como, apesar de tudo, eu queria que ela fosse feliz, concordei. Em ir pra Grimsby! Foi tudo ideia do filho da mãe do tio Jason. Ele apareceu no dia seguinte e falou pra minha mãe que tinha um colega que estava trabalhando em Grimsby, na construção de um complexo imenso com trinta e duas salas de cinema, uma grande loja de varejo, um estacionamento de primeira linha, lojas de fast-food e um espaço com ambientação marítima onde ficaria a réplica de uma traineira feita por um arquiteto/designer. E como um favor especial ao meu tio Jason, esse colega estava disposto a 18...

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me aceitar. No começo, pra algum trabalho leve, servir chá pro pessoal. Porém, se mostrasse disposição, eu podia ser promovido, subir um pouco e ter a chance de ganhar um bom dinheiro. Minha mãe achava que isso era a resposta pra tudo, que eu só precisava de um emprego, algo que me tirasse de casa, que me obrigasse a me misturar com outras pessoas. Não gosto de pessoas. Pelo que tive oportunidade de conhecer delas, as pessoas são uma espécie superestimada: especialmente pessoas em um canteiro de obras. Odeio canteiros de obras: é fato documentado que canteiros de obras são terreno fértil pra brutalidade, e que são cheios de frívolos filhos da mãe suarentos se chamando por apelidos e com “amor de mãe” tatuado no braço. Eu não queria ir pra uma droga de um canteiro de obras. Não queria uma porcaria de um emprego. Estava perfeitamente satisfeito em ser um fracassado em Failsworth. Mas minha mãe ficou toda contente, como se tivesse acabado de saber que eu tinha ganhado o Prêmio Nobel de literatura. “É uma oportunidade, Raymond”, ela disse. “É a oportunidade que você sempre mereceu. Vamos”, ela disse, “se vista logo, vamos fazer um programa especial, um jantar de domingo, pra comemorar”. E foi aí que minha mãe finalmente me abraçou. E foi como se todos os seus sofrimentos tivessem arrefecido, e o bálsamo da alegria trouxe de volta um pouco do brilho de sua própria juventude. Então, quando ela me deu um beijo estalado em uma das bochechas e disse: “Você não está empolgado, Raymond? Não está empolgado?”, falei pra ela: “Estou, mãe, muito empolgado!” E a semana inteira, conforme o dia da minha viagem se aproximava, minha mãe continuou radiante, e a casa ficou envolta pelos mais maravilhosos aromas das delícias culinárias preparadas por ela especialmente pra mim. Normalmente, minha mãe reclamava de eu ser vegetariano, dizia que era superchato cozinhar pra mim. Mas a semana antes da minha viagem foi uma orgia vegetariana, e todos os pratos foram feitos e servidos com amor, alegria e fé no futuro. Fiquei na minha. Só podia rezar pra que essa tal Grimsby fosse atingida por uma estranha, mas benevolente, onda de desastres naturais, um terremoto ou até uma bomba nuclear, algo que fizesse a cidade e seu embrião de palácio com trinta e duas salas de cinema desaparecer das vistas. Mas, como Grimsby não recebeu nenhuma menção especial no noticiário matinal, concluo, com pesar, que a Pavorosa Grimsby continua lá, onde sempre esteve (e que preciso dar um jeito de chegar até ela). Mas vou ser forte, Morrissey. Seu amigo, Raymond Marks ...19

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Um banco, Saguão da Estação de Trem, Halifax, West Yorkshire

Caro Morrissey, Pedi pro atendente do guichê de passagens uma só de ida pra Grimsby. Ele falou: “São quinze libras e noventa, por favor.” Eu disse: “Quinze e noventa!” Ele se limitou a fazer que sim com a cabeça. Falei: “Mas de ônibus custa só nove e cinquenta, e saindo de Manchester!” Ele disse: “Olha só, você vai querer a passagem ou não?” Perguntei se ele tinha alguma passagem mais barata pra Grimsby. Falei que viajava numa boa na cabine do fiscal, se saísse um pouco mais em conta. Mas ele falou simplesmente o seguinte: “Ei, cara! Quantas vezes? Não tô nem aí se você vai na cabine do fiscal, no banheiro ou na porra do teto do trem, o preço é quinze e noventa. Tá me ouvindo? Quinze e noventa!” Só olhei pra ele. E disse: “Achei que o roubo não compensava”. Ele falou: “Quem é você? Um comediante ou o quê?” “Eu?”, retruquei. “Quinze e noventa daqui até Grimsby! Você é quem está de piada por aqui!” O cara então baixou a voz e disse: “Ei! Você quer a porra da passagem ou não?” Falei: “A questão não é o que eu quero ou deixo de querer!”, eu disse, “a pessoa ser obrigada a ir pra Grimsby já é bem ruim, pra começar, e ainda ter que pagar os olhos da cara pelo privilégio!” Aí ele ficou todo ofendido e, desdenhando, jogou a passagem pro alto. “Então você não quer comprar?” “Não, não quero”, respondi, “mas preciso!” Ele soltou um longo suspiro e juntou a passagem outra vez, enquanto eu me abaixava pra pegar minha carteira na mochila. E foi quando descobri que ela não estava lá. Minha carteira! Tinha sumido! Minha carteira, desaparecida! Conferi de novo na mochila, depois chequei em todos os meus bolsos, e novamente na mochila. Aí lembrei daquele caminhoneiro imbecil, ogro-oleoso, lá no posto. Que ele tinha pegado meu caderno de letras pra ler, então devia ter fuçado na mochila. “Filho da mãe!”, falei. “O filho da mãe surrupiou meu dinheiro!” O atendente do guichê de passagens apenas olhava pra mim, as sobrancelhas arqueadas de um jeito assim de quem não acredita: “Pela 20...

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última vez”, ele disse, “você vai ficar com a passagem?” “O caminhoneiro”, falei, “o Super Bolha que me deu carona roubou todo o meu dinheiro!” “Certo! Você não quer a passagem”, o atendente do guichê de passagens falou e, olhando pra além de onde eu estava, pra fila que começava a se formar, disse: “Ok, quem é o próximo?” “Olha”, insisti, “olha, eu quero a passagem, sim. Acontece que todo o meu dinheiro sumiu!” Ele assentiu, então, o atendente do guichê de passagens. E, forçando um sorriso, falou: “Então o que você quer que eu faça, meu filho; que te dê de presente a passagem, com meus cumprimentos? Quem sabe com um cincão de volta também? Sabe, já pago meus impostos, inclusive. Trabalho pra caralho pra entregar metade da porra do meu salário pra que essa raça de folgados e bicões e preguiçosos como você possa dar seu rolê pela porra do país à vontade, sem jamais fazer porra nenhuma do dia em que nasce ao dia em que morre, enquanto desgraçados que nem eu trabalham da manhã à noite pra, no fim, terminar sem nada além de uma hipoteca atrasada, três adolescentes reclamões do caralho querendo um tênis de setenta libras a cada porra de quinze dias, uma mulher que antes da tinta no papel da certidão de casamento ter secado já virou um bucho e a porra de uma lata velha que acaba de ser apreendida porque não passou numa tal de inspeção veicular do caralho!” Só olhei pra ele. “E eu?”, ele disse. “Você não acha que eu bem que gostaria de ir pra Grimsby? Não acha que eu queria ser um filho da mãe de um estudante vagabundo com um violão, um corte de cabelo horroroso e uma porra de uma camiseta imbecil estampada no peito?” Achei particularmente desagradável, aquilo. Então falei pra ele, eu disse: “Na verdade, não sou estudante!” Mas ele só olhou pra mim e balançou a cabeça e, em seguida, uma pessoa que era uma das próximas da fila anunciou que, se eu não andasse logo, ia arrancar as cordas do meu violão e teria o prazer de me estrangular com elas. O cara tinha o cabelo raspado com máquina um e um brilho violento nos olhos, e eu podia jurar que era do tipo que sai abrindo garrafas de cerveja no dente no café da manhã. Então eu simplesmente catei minhas paradas todas e saí dali e parei perto da loja daquela franquia de gravatas e fiquei ruminando meu infortúnio. Tudo que tinha me restado eram duas moedas de uma libra e outra de vinte pence, o que não dava pra me levar a lugar algum. Pensei em tentar levantar o resto da passagem fazendo um showzinho improvisado, mas as únicas músicas que sei tocar são as minhas e umas poucas das suas, Morrissey. E, olhando pro saguão da estação, o que eu via era um bando de gente de agasalho esportivo, ou toda arrumadinha, ...21

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misturada com uns sobreviventes de sábado à noite em manhã de domingo; os quais, eles todos, me levaram a concluir que aquela não era uma plateia que estaria muito inclinada a mostrar seu apreço monetário por “Girlfriend in a Coma”. E também, tipo, o único lugar que alguma vez me viu tocar violão, até agora, foi o recesso do meu quarto. Então acabei tendo que fazer a ronda por ali, perguntando pro pessoal se não teria um trocadinho pra nóis. Mas a ideia não chegou a ser um sucesso espetacular; um sujeito de terno falou: “Claro, meu jovem. A gente pode conversar ali no banheiro masculino”. Saí dali rapidinho, parei perto da loja daquela franquia de meias e perguntei pra uma mulher toda chique se ela não arranjava umas moedinhas. Ela me disse que eu era um parasita de programa social e me acertou a cabeça com um jornal respeitável. Dei o fora de novo e parei debaixo do relógio da estação. Mas minha sorte não mudou. Quando pedia pra alguém uma ajudinha pra chegar até Grimsby, o pessoal simplesmente me ignorava; menos um engraçadinho filho da mãe que me perguntou se eu aceitava American Express! Aí, depois de um tempo, uma menina de cabelo curto e cheia de espinhas veio pra cima de mim, gritando e dizendo pra eu sair da frente dela senão ela me chutava o saco. Como ela estava usando uns coturnos bem pesados, resolvi dar um tempo daquela labuta e, com meus últimos trocos, ir pegar alguma coisa pra comer. Dei uma olhada pelo saguão da estação, mas a atmosfera era consideravelmente carnívora, e achei que ali, no meio daqueles santuários à cultura nutricionalmente sem identidade do fast-food, seria difícil eu encontrar alguma variedade de comida vegetariana. Mas aí, quando passava na frente de um lugar chamado Orgia dos Hambúrgueres, vi a foto de um negócio que era descrito como Hambúrguer de Feijão Picante. Falei: “É vegetariano, esse Hambúrguer de Feijão Picante?” A moça disse: “Claro que é vegetariano – por isso se chama Hambúrguer de Feijão Picante”. “Ah, tá certo”, falei. E olhei pra foto pendurada acima do balcão. Mas, apesar de seu suposto status vegetariano, o tal Hambúrguer de Feijão Picante parecia tão apetitoso quanto isopor prensado. Depois de concluir, porém, que um pedinte não pode ficar escolhendo, eu disse: “Tá certo, vou querer um Hambúrguer de Feijão Picante, então”. Ela falou: “Não vai dar”. Eu disse: “Por que não?” Ela falou: “Porque hoje é domingo. E não temos o Hambúrguer de Feijão Picante aos domingos. Nem aos sábados, aliás. Só servimos o Hambúrguer de Feijão Picante nos dias de semana. Não está no cardápio dos finais de semana”. 22...

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Respondi com uma careta. Falei: “Mas isso não tá certo! O cara não deixa de ser vegetariano nos finais de semana, sabe?” Ela só me olhou feio. E ralhou, dizendo: “Você está é atravancando a fila”. “Desculpe”, falei, “não era minha intenção atravancar a fila”, eu disse. “Só o que eu estava fazendo era perguntar acerca do Hambúrguer de Feijão Picante e de sua aparente não disponibilidade aos sábados e domingos.” A moça soltou um suspiro e largou o pegador de batatas fritas. E, com os olhos faiscando e toda ofendida, falou: “Não temos o Hambúrguer de Feijão Picante aos sábados e domingos porque a droga do Hambúrguer de Feijão Picante não é compatível com o conceito de uma atmosfera apropriada ao ambiente de lazer dos finais de semana!” Ficamos olhando um pro outro. “Sacou?”, ela disse. “Sacou ou quer que eu desenhe?” Só pude dar de ombros. Estava patentemente demonstrado que ela não era o tipo de pessoa que se importava em ler e respeitar o Código de Defesa do Consumidor. Falei: “Vou querer apenas umas fritas, então. Em pão de hambúrguer”. Ela respondeu: “Não vai dar”. Eu disse: “Por quê?” Ela falou: “Porque a Orgia dos Hambúrgueres não inclui o conceito de fritas”. Apontei pra foto acima do balcão e disse: “Ora, então por que elas aparecem ali?” Ela falou: “Frits! Aquilo ali são Frits”. Olhei de novo pra foto e disse: “Parecem fritas!” “Pois é, mas não são!”, ela falou, inclinando-se pra frente e me encarando. “São Fried Frits, e não batatas fritas.” “Tá legal, então”, respondi, “vou querer essas Fried Frits.” Ela soltou um longo suspiro e apanhou o pegador. Então eu falei: “A porção pequena, por favor”. Ela parou, pôs de lado a cabeça e me encarou outra vez, um brilho ameaçador nos olhos. E, apontando com o pegador de batatas fritas pra mesma foto grotescamente colorida, disse: “Você está vendo a palavra ‘pequena’ em algum lugar aí?” Me encarou de volta e balancei a cabeça. “Isso mesmo, não está!”, ela disse. “E por que você acha que não?” Apenas balancei de novo a cabeça. E ela, com um toque do triunfal orgulho corporativo no tom de voz, disse: “Porque ‘pequeno’... pequeno não é um conceito incluído na Orgia dos Hambúrgueres! Oferecemos nossas Frits nos tamanhos Small, Medium, Major e MegaMajor.” ...23

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Meio que derrotado pela semântica pedante daquela Orgia dos Hambúrgueres, diligentemente pronunciei o termo apropriado e fiquei observando a moça usar a metade da capacidade do pegador de batatas fritas pra servir minhas Small Fried Frits num recipiente de papelão fino. Então pedi um Little Cappuccino e fui achar uma cadeira de plástico numa mesa de plástico, onde sentei pra comer minhas batatas fritas de plástico e olhar em volta pra todas aquelas almas desafortunadas tendo suas experiências de um final de semana de lazer, cortesia da Orgia dos Hambúrgueres. Aí um cara usando uma blusa de lã chegou na mesa onde eu estava. E disse pra mulher dele: “Vai, senta aí, pra não ficar na passagem”. E ela fez como ele mandou, diligentemente deslizando pro banco atrás da mesa enquanto, desconfiada, beliscava sua porção de Fried Frits, ao passo que o marido tentava vencer um Colosso com Dobro de Queijo. Foi quando, de repente, ele levantou a vista do sanduíche e me perguntou quem, na minha opinião, tinha falhado. “Falhado no quê?”, eu quis saber. Ele disse: “Halifax”. “Não sei se foi falha de alguém”, eu disse. “Essa é provavelmente uma daquelas falhas tipo a Falha de San Andreas, que está lá e não tem o que fazer.” Mas ele me disse que eu estava errado a respeito, e passou a falar sobre Halifax e todo o condado de Yorkshire antigamente terem sido uma verdadeira comunidade, mas que agora estava caindo pelas tabelas, com todo mundo deprimido por conta do governo ter fechado todos os moinhos e as minas e dos mineiros não poderem mais tirar o carvão. Fiquei na minha, mas, pelo que sei, o pessoal de Halifax também não andava aos pulos de alegria quando as porcarias dos moinhos e das minas ainda funcionavam. Mas não ia adiantar dizer um “a”. Porque o cara era daquelas pessoas que nunca escutam ninguém, só elas mesmas. Olhei pra mulher dele, sentada ali, quieta, encarando as Frits dela na mesa. E ela parecia uma pessoa que tinha virado refém muitos, muitos anos atrás e desistido de qualquer possibilidade de resgate ou fuga àquela altura. E dava pra ver que tinha sido esmagada como pessoa pelo peso daquele marido opiniático e mortalmente chato, que certamente era tipo o destaque entre os ouvintes da rádio local que ligavam pra participar, ocasiões em que provavelmente discorria durante horas sobre esse monte de pichações hoje em dia, e que quando ele era jovem não tinha pichação e ninguém precisava trancar a porta de casa porque todo mundo era bonzinho e bacana e uns doces de pessoas nos velhos tempos, quando todo mundo usava tamancos e xales e não tinha assassinos e pedófilos e psicopatas e serial killers porque as pessoas eram educadas pra serem respeitadoras e as crianças sabiam a diferença entre certo e errado e não tinham nem sapatos pra usar ou vídeos pra assistir ou pizzas pra comer porque comiam pão com 24...

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banha e sopa de cartilagem e suculentos pés de porco, e por causa disso eram crianças mais boazinhas que obedeciam às regras na escola, onde hinos eram entoados e poemas recitados e todo mundo já sabia ler e fazer exercícios de álgebra com sete anos de idade, e essas crianças adoravam levar uma meia dúzia de varadas porque sabiam que era pro seu bem e que aquilo ajudava elas a crescerem como aquele tipo de abençoado samaritano, decente, virtuoso, adepto da moral e dos bons costumes, com espírito de comunidade, e uns doces de pessoas, de tamancos e xales, como era todo mundo uns poucos anos atrás, nesse tempo do qual tão saudosamente se lembram tão bem os sinceros cidadãos que tão compelidos se sentem a partilhar suas profundas e instigantes reflexões pela rádio local. Fiquei ali, na minha, encarando meu copo de café e pensando na minha vó. Porque a minha vó foi a única pessoa velha que eu conheci que dizia que essa parada toda de velhos tempos não passava de um monte de baboseira e besteirol. Minha vó costumava dizer que os tais velhos tempos eram só um grude meloso inventado por esse pessoal que tem medo dos novos tempos. Mas minha vó sempre dizia que adorava os novos tempos e queria ter sido moça neles, porque aí teria queimado os sutiãs dela e participado de umas passeatas com a Germaine Greer e ido morar em Londres num apartamento próprio onde ela e os amigos seriam adeptos da nouvelle cuisine, fariam experiências com drogas recreativas e conversariam sobre Simone de Beauvoir e coisas importantes. E eu sempre dizia pra minha vó: “Ora, talvez a senhora ainda vá fazer tudo isso, vó”. Mas ela então só me fazia um cafuné na cabeça e dizia que o tempo acaba aprontando com todo mundo no fim. E falava que, embora não desejasse outra coisa que tudo de bom pra todos os jovens com suas peles adoráveis e seus cabelos radiantes, provavelmente era um pouco tarde demais, àquela altura da vida, pra que ela agora fosse começar a usar piercings e ecstasy. “Mas acredite, filho”, ela dizia, “se eu fosse moça, hoje em dia, não cometeria os mesmos erros que cometi. Não ia ter suportado aquele homem, pra começar. Não ia ter casado com ele, mulherengo filho da mãe, que é o que ele era!” Minha vó odiava meu vô. Mesmo depois dele ter morrido, ela nunca falava bem dele. Dizia que o velho lascivo filho da mãe tinha merecido totalmente a morte trágica causada por suas inclinações libidinosas: meu vô caiu do telhado enquanto tentava instalar uma antena parabólica pra poder assistir os filmes indecentes e os programas pornográficos transmitidos da Europa. Todo mundo tinha dito que ele não devia se meter a acertar o negócio sozinho, que devia chamar um técnico pra fazer ...25

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o serviço. Mas não tinha nenhum disponível pra antes da terça seguinte, e os impulsos lúbricos do meu vô pela pornografia do continente estavam deixando ele impaciente demais pra esperar tanto, e então, contra todas as recomendações, ele decidiu que podia dar um jeito. E deu mesmo, posicionando a antena junto à chaminé. Mas aí, tão excitado ficou pelos pensamentos lascivos em torno do pornô europeu que logo estaria fluindo por aquela parabólica, que pisou em falso, caiu do telhado e quebrou o pescoço. Tinha instalado a antena direitinho, porém; minha vó estava sentada na sala da frente assistindo um documentário belga sobre comida e sadomasoquismo, achando que era a versão galesa do Channel 4. Quando meu vô despencou gritando, ela simplesmente ignorou, achando que o som era parte da trilha sonora do filme, no qual um sujeito se autoflagelava com um girassol-batateiro. Ao desligar a tevê, tendo aprendido uns truques com pimentas malaguetas e abobrinhas com os quais Delia Smith jamais sonhou, meu vô já era apenas um cadáver estropiado no pátio. “Viveu pela lascívia, morreu pela lascívia!”, minha vó dizia sempre. “Você é muito novo pra entender isso agora, Raymond”, falava, “mas um dia vai entender.” Só que eu já entendia, porque, quando estava no último ano do primário, meu vô se ofereceu de repente pra me acompanhar a pé até a escola todos os dias. Minha mãe achou que, chegada a idade, ele estava apenas sendo gentil, tentando conhecer melhor o neto. Mas ele só tinha inventado aquilo porque queria ter uma desculpa pra se aproximar da guardinha de trânsito que trabalhava na rua de mão dupla. Ele sempre parava pra falar com ela, o que sempre me fazia chegar atrasado pra formação no pátio antes da aula. Estava sempre se engraçando pra moça, que segurava aquelas plaquinhas de trânsito que parecem pirulitos, dizendo pra ela que o que ela precisava era de um pirulito de verdade, e que ele tinha exatamente isso que ela precisava. Naquele tempo eu era muito novo pra saber o que era uma metáfora. Mas sabia muito bem o que era ter um pirulito! Costumava ficar superenvergonhado. Aí, depois de um tempo, as piadinhas sobre pirulitos pararam e, assim que chegávamos ao cruzamento onde ela trabalhava, os dois ficavam só ali, olhando desejosos nos olhos um do outro. E, em vez de segurar a minha mão pra atravessarmos a rua, a guardinha segurava a do meu vô, e eu tinha que me virar sozinho no meio da porcaria do trânsito. Então, certo dia, chegamos ao cruzamento e a guardinha não olhou amorosamente nos olhos do meu vô, e sim avançou com o pirulito em riste e lhe deu uma sova. Parece que alguém tinha informado pra ela que meu vô andava socializando o pirulito dele com a tia bissexual da cantina da Escola Santa Bernadete do Perpétuo Socorro. Depois disso, meu vô e eu passamos a ter que subir a ladeira até outro cruzamento e atravessar no semáforo. Aí ele caiu do telhado e o padre falou que aquilo era uma tragédia. 26...

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Mas minha vó falou: “Tragédia o cacete!”, ela disse. “Minha vida só foi começar quando ele se estatelou naquele pátio, e a única coisa que lamento é que a gente não pudesse ter tevê por satélite uns trinta anos atrás!” O padre disfarçou e disse que talvez fosse melhor deixar aquele assunto pra lá e discutir quais músicas minha vó gostaria que fossem entoadas no funeral. Minha vó respondeu: “‘Um dia feliz’ e ‘A vida é uma festa’”. O padre pigarreou e comentou, baixinho, que o luto afeta as pessoas de jeitos bem peculiares. Então disse pra minha vó que precisava ir, mas antes queria saber se minha vó gostaria que meu vô fosse enterrado ou se preferia que fosse cremado. Minha vó disse que era melhor que fosse calcinado. O padre pareceu confuso, pigarreou de novo e saiu dali rapidinho. “Esse pessoal não entende, sabe, Raymond”, ela falou depois de ter despachado o padre. “Não entende as coisas que eu tive que aguentar esses anos todos. Tragédia? Vou contar pra essa porcaria de padre o que é tragédia. Você conhece a minha tragédia, né, Raymond?” “Conheço, vó”, falei. “A tragédia da senhora foi ter sido obrigada a viver uma vida medíocre, quando nunca foi uma mulher medíocre.” “É isso aí, Raymond”, ela disse, “é isso mesmo. Vivi uma vida medíocre. E tudo por causa dele. Conheci o sujeito, né, casei com ele. Sempre falando em se divertir. ‘Vamos pra Blackpool, Vera. A gente vai se divertir em Blackpool.’ Ele adorava se divertir. Sempre adorou se divertir. Mas eu odiava essa porcaria de se divertir. Odiava algodão-doce e o Arthur Askey e bambolê e a droga das colônias de férias Butlin e comédia pastelão e o Charles bobo alegre Chaplin e cantorias em ônibus de excursão e o lixo das dancinhas coreografadas. Me divertir? Eu nunca quis me divertir. Eu queria me alegrar! Mas ele não enxergava isso. E sabe de uma coisa Raymond, meu filho? Quando eu descobri que ele andava por aí fornicando e se engraçando pra outras, que andava com aquela operadora de calculadora mecânica de Cheadle, sabe o que ele me disse? Ele falou: ‘Ela gosta um bocado de se divertir. Ela é bem divertida, Vera. Coisa que você não é mais’.” Minha vó então ficou olhando ao longe por um momento. Aí apagou o cigarro e começou a recolher os pratos da mesa. “Você sabe o que o Thomas Hardy disse, né, Raymond?”, minha vó me perguntou. “Sabe o que o Thomas Hardy escreveu sobre a Tess, dos Ubervilles, não sabe?” Eu sabia, mas disse que não porque sabia também o tanto que minha vó gostava de recitar aquilo. “‘Ela foi vítima da mais comum das tragédias’”, ela declarou. “‘Casou-se com o homem errado!’” Minha vó ficou ali, parada, a cabeça em movimento afirmativo enquanto segurava os pratos. “E ao escrever essas frases, Raymond”, ela disse, “Thomas Hardy podia muito bem estar falando de mim!” ...27

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Apanhei as xícaras e os pires e segui minha vó até a cozinha. “Você sabe com quem eu devia ter casado, não sabe, Raymond?”, ela falou enquanto ligava a torneira da pia. “Sei, vó”, respondi, “a senhora devia ter casado com o Jean-Paul Sartre.” “Isso mesmo”, falou minha vó, “isso aí. Jean-Paul Sartre, era com ele que eu devia ter casado. Nunca consegui ler os livros dele, mas, pelas fotos, dava pra ver que o Jean-Paul Sartre, de frívolo, não tinha nada.” Minha vó começou a lavar os pratos; peguei um pano e comecei a enxugar. “E eu sempre disse, Raymond, sempre disse, filho, que você parece um pouco o Jean-Paul Sartre. Nenhum dos dois se dá bem com frivolidades. É por isso que você me entende, filho, é por isso que posso conversar com você.” E minha vó estava certa; eu entendia mesmo ela, e adorava conversar com ela, mesmo que fosse só ela quem falava. Minha vó já não fala mais. Culpa do filho da mãe do meu tio Jason e da nojentona da minha tia Paula; queriam pra eles a antena parabólica e a casa da minha vó. E foi por isso que mandaram ela embora, pro Santuário Stalybridge para Pessoas da Terceira Idade. Foi tudo culpa deles. E nada disso teria acontecido se eu pudesse ter continuado a conversar com a minha vó; eu nunca teria me metido numa tamanha encrenca nem teria deixado minha mãe tão preocupada. Minha vó sempre me entendeu. E ela jamais deixaria alguém falar mal de mim. Mesmo depois do que aconteceu lá no canal. É isso. A maior parte do que está acontecendo não aconteceria se a minha vó ainda estivesse aqui. Eu nem estaria indo pra essa porcaria horrorosa de Grimsby se a minha vó ainda estivesse aqui. Foi por causa desse pensamento sobre Grimsby que levantei a cabeça e me dei conta que ainda estava sentado ali, naquele lixo de Orgia dos Hambúrgueres. Acho que devia estar no mesmo lugar há horas. O cara da blusa de lã tinha ido embora e levado sua mulher-refém com ele de volta pro cativeiro. E saquei que precisava me mandar e tal. Prometi pra minha mãe que ligava hoje à noite pra dizer que cheguei bem. Mas já é quase uma da tarde e ainda estou empacado aqui em Halifax. E é por isso que decidi arriscar. Estou nervoso, na verdade, porque normalmente jamais faria o que estou prestes a fazer. Mas preciso chegar a Grimsby. Me deseje sorte, Morrissey, me deseje sorte. Seu amigo, Raymond Marks 28...

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