Crônicas de Educação de Rubem Alves

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crônicas PROF. SAMUEL LAGO

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EDUCAÇÃO

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Equipe técnica Coordenação (Org .) (Org.) Prof. Samuel Ramos Lago Apoio técnico Franciele Marcassi, Judith Mota e Analu Koniuchowicz Revisão Marília Bittencourt Projeto gráfico e diagramação Labores Graphici Capa Labores Graphici – Ricardo Luiz Enz Ilustração Labores Graphici – Carlos Cesar Salvadori e Ricardo Luiz Enz Impressão Posigraf Fotos sxc.hu Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira Alves, Rubem, 1933Crônicas : educação / Rubem Alves ; Samuel Lago (org.). - Curitiba : Nossa Cultura, 2008. 136 p. ; 20 x 27 cm. ISBN: 978-85-98580-31-9 1. Crônicas brasileira. I. Lago, Samuel Ramos, 1941. II. Título. CDD (22.a ed.) B869.8

Copyright – 2008 – Editora Nossa Cultura É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo eletrônico, reprográfico etc., sem autorização, por escrito, do autor e da editora.

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Porque fiz esta coletânea de crônicas Conheci pessoalmente meu amigo Rubem Alves há muitos anos, em uma viagem de navio lá na Patagônia Chilena. Digo pessoalmente, porque já o conhecia há décadas através de seus livros (hoje cerca de 80). Nessa época já tinha lido algumas dezenas de seus livros. Livros que abordam temas que fazem toda a diferença: sabedoria, poesia, religião, política, educação, reverência pela vida etc. Li, aprendi, refleti, cresci. O mesmo aconteceu com centenas de crônicas que estavam “perdidas” – algumas há dezoito anos – em jornais e revistas educacionais. Porque não repartir esse imenso tesouro com outras pessoas? Por isso fiz esta coletânea. Sugiro que cada pequeno texto seja refletido, degustado prazerosamente. Nunca uma leitura corrida, dinâmica. As fantásticas ilustrações utilizadas na diagramação enriquecem o texto e também sugerem prazer e reflexão. Isso tudo foi feito com muito carinho e competência. Desfrute. Cresça. Ao terminar a leitura destas crônicas você não será mais o mesmo. Será muito melhor do que você já é. Tenho certeza disso. Com carinho a todos os leitores, um abraço fraterno, Prof. Samuel Ramos Lago Email: samuel@lago.com.br Curitiba – PR – Brasil

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Quem é Rubem Alves? Afirmar que Rubem Alves é: • • • • • • • • • •

Mineiro, nasceu em Boa Esperança, em 1933; Pedagogo; Filósofo (doutorado na Universidade de Princeton – USA); Teólogo; Professor Emérito da Unicamp; Acadêmico (Academia Campinense de Letras); Cronista do cotidiano; Contador de estórias; Cidadão honorário de Campinas, onde reside; Um dos mais respeitados intelectuais do Brasil...

É muito pouco!!! Além de tudo isso, se conheço um pouco do amigo Rubem Alves, sei que ele: ama a simplicidade; ama as estórias; ama a ociosidade criativa; ama os brinquedos e as ferramentas; ama a beleza; ama a vida; ama a música; ama a poesia; ama as coisas que dão alegria; ama a natureza e a reverência pela vida; ama os mistérios; ama a educação como fonte de esperança e transformação; ama a libertação ecumênica e a busca de uma nova humanidade; ama todas as pessoas, mas tem um carinho muito especial pelos alunos e professores; ama Deus, mas tem sérios problemas com o que as pessoas pensam e ou dizem a Seu respeito; • ama as crianças e os filósofos – ambos têm algo em comum: fazem perguntas; • ama... ama... ama... ama... ama... ama... ama... • • • • • • • • • • • • • • •

Rubem Alves veio ao nosso planetinha Terra para AMAR! Pelo mesmo motivo é amado por milhões de pessoas que foram tocadas pela sua mensagem de AMOR, à semelhança de Jesus Cristo! Com carinho a todos os leitores, um abraço fraterno do Prof. Samuel Ramos Lago Email: samuel@lago.com.br Curitiba – PR – Brasil

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Sumário

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crônicas

O ipê e a escola

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O desejo de furtar a educação

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O sapo

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Sobre a inteligência

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Boca de forno

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A educação como descoberta

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Que pipoquem os experimentos!

52

A escola dos meus sonhos

64

Esquecer

20

Escola e sofrimento

66

A imagem do professor

23

Não esqueça as perguntas fundamentais

68

Formação do educador

70

Mude

72

“Diretoria”

74

Diretores e diretoras

76

Diretoras...

78

A libélula e a tartaruga (seduzindo diretores)

80

O aluno computador

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26

Avaliação da performance das escolas

29

A utopia do fim do vestibular

32

O prazer da leitura

36

O vírus da “gripe literária”

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Os livros e a infidelidade

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Vamos construir uma casa?

104 Homeschooling

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Para pensar

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Conte esta estória para seus alunos

106 “As pessoas ainda não foram terminadas” 108 Sirenes ou músicas

88

Sonhos...

110

Como conhecer uma vaca

90

O caminho apócrifo

112

O sexto sentido

92

Ensinar com o coração

115

Explicando política às crianças

94

Gansos & patês

118

Livros para serem furtados...

96

Cara de absurdo

120 Cigarro e sacramento

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Sem notas e sem freqüência

122 Camelos e beija-flores...

100 Sobre cisternas e fontes 102 Aprendendo com as caravelas

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124 O professor tem que ser um provocador de sonhos 135 São Jorge e o dragão

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O ipê e a escola O Manoel Moraes é meu amigo. Engenheiro por diploma, é amante da natureza por vocação. Grande devorador de livros, está sempre à procura de “conspiradores”, isto é, pessoas que respiram o mesmo ar que ele. Faz uns dias, ele me trouxe um artigo xerografado. Autor: Bruno Bettelheim.

Bettelheim era um homem amorável e inteligente. Amava as crianças. Passou a vida pensando no que fazer para tornar as crianças mais felizes. O artigo tem o título Os livros essenciais da nossa vida. Falou sobre os livros que tiveram um significado especial para ele. Fiquei feliz ao ver que ele citou Martin Buber. Feliz por saber que nós dois bebemos da mesma fonte. Buber também amava as crianças. Conta-se que, numa festa em que ele estava sendo homenageado, viu-se cercado por professores e filósofos que tentavam impressioná-lo, falando coisas profundas e complicadas. É sempre assim: todo mundo quer impressionar bem. Buber, cansado daquilo tudo, delicadamente interrompeu a conversa com um comentário: “Cada vez eu me sinto mais distante dos adultos e mais próximo das crianças...” Eu me lembro perfeitamente bem da primeira vez que li Buber. Era de tarde, deitado numa rede, lá em Minas... À medida em que eu lia a alegria ia tomando conta de mim. Ficava alegre porque as palavras de Buber traziam luz ao meu

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mundo interior. Naquilo que ele dizia, eu me reconhecia. O seu livro mais importante é Eu-Tu. Não seria aceito como tese em nossas universidades. Não tem notas de rodapé. Não cita fontes. Não enuncia teorias. Não explica o método. Curto demais para uma tese. Mas, como sabia Nietzsche, “pensamentos que chegam em pés de pombas guiam o mundo...” Lendo Eu-Tu os meus olhos se abriram. Compreendi aquilo que eu vivia sem compreender. Eu quero contar a vocês o que eu vi. Aqui o meu pensamento ficou paralisado. Não sabia como contar a vocês o que vi. Resolvi dar uma caminhada. E lá ia eu, absorto em meus pensamentos, quando, de repente, bem à minha frente, uma explosão de cores: a terra ejaculando flores – flores que estavam escondidas dentro dela! Um ipê rosa florido! Já pensaram nisso? Que as flores são os pensamentos da terra? A terra pensa flores! Dentro dela, as flores ficam guardadas,

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dormindo, mergulhadas na escuridão. Mas, pela magia de uma árvore, os pensamentos da terra se oferecem aos nossos olhos sob a forma de flores! Dentro da terra estão todas as flores do mundo, à espera de árvores... A terra sonha ipês! As árvores são os psicanalistas da terra! Aí descobri um jeito de explicar Martin Buber... Aquilo que aconteceu, aconteceu comigo. Só comigo. Tive vontade de abraçar aquela árvore, de comer as suas flores. Fiquei agradecido por ser a natureza coisa tão maravilhosa, sagrada! Mas sei que muitas pessoas já haviam passado, estavam passando e irão passar por aquele ipê sem se assombrar. Para elas aquele ipê é apenas um objeto a mais, ao lado de postes, casas e carros. Já contei

de uma mulher que odiava um manso e maravilhoso ipê amarelo que havia à frente de sua casa. Ela odiava o ipê porque suas flores sujavam o chão! Chão de ouro, coberto de flores amarelas, flores que deveriam ficar lá! Seria necessário tirar os sapatos dos pés para andar sobre elas! Mas aquela mulher não via com os olhos. Via com a vassoura. E uma vassoura dá sempre a mesma ordem: varrer, varrer! Tudo o que pode ser varrido é lixo! E ela, para se livrar do trabalho, envenenou o manso ipê. O ipê morreu. Não mais suja a calçada da mulher. Agora explico Buber. Para Buber as coisas, as árvores, os bichos, as pessoas, não são coisas, árvores, bichos e pessoas, nelas mesmas. Elas são, a partir da

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relação que estabelecemos com elas. Para a mulher da vassoura, o ipê amarelo era um objeto inerte, sem mistério. Ela podia fazer com ele o que quisesse. Mas para mim os ipês são um assombro, beleza, alegria, revelação do mistério do universo. Há um tipo de relação que transforma tudo em objetos mortos. Uma mulher se transforma em objeto para o homem que faz uso dela para ter prazer. Um homem se transforma em objeto para a mulher que o usa para obter status ou segurança. Uma criança se transforma em objeto quando seus pais a manipulam para realizar os seus sonhos. Para um professor que só pensa no cumprimento do programa todos os seus alunos são objetos. Para quem está atrás de milagres, Deus é um objeto que faz milagres. O eleitor é um objeto que o político usa para ganhar poder. Um doente, para o médico, pode ser apenas um “portador de uma doença”. (Ah! Os professores e alunos, à volta de um doente sobre quem nada sabem, nem mesmo o nome, numa enfermaria de hospital! Ali não está um ser humano! Ali está um “caso” interessante...). Buber deu a esse tipo de relação o nome de “eu-isso”. Tocadas pela relação eu-isso, todas as coisas, pessoas, animais, árvores, Deus, se transformam em coisas que uso para atingir os meus propósitos. Eu sou o centro do mundo. Tudo o que me cerca são utensílios que uso para os meus propósitos.

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Quando, ao contrário, meus olhos estão abertos para o assombro e o mistério das coisas que me rodeiam, eu refreio minha mão. Não posso usá-los como se fossem ferramentas para os meus propósitos. São meus companheiros — não importa se um ipê florido, um cãozinho, um poema, uma criança que quer me vender um drops no semáforo... Buber deu o nome de “eu-tu” a essa relação. Já falei que as nossas escolas são planejadas à semelhança das linhas de montagem: as crianças são “objetos” a serem “formados” segundo normas que lhe são exteriores. Ao final, formadas, são objetos portadores de saberes, centenas, milhares, todos iguais. Pertencem ao mundo do euisso. Na relação eu-tu cada criança é única — por ser uma companheira na minha vida, companheira que nunca se repetirá, nunca haverá uma igual. No mundo do eu-isso se usa o poder porque o que desejo é manipular o objeto. No mundo do eu-tu o poder nunca é usado porque o que desejo é acolher, dentro de mim, o objeto à minha frente. Escrevi tudo isso porque tenho pensando na magia da Escola da Ponte. Qual o seu segredo? Sua magia se encontrará, por acaso, nos seus princípios pedagógicos? Não. Definitivamente não. Princípios, quaisquer que sejam, são normas gerais. Por isso eles pertencem ao mundo do euisso. Se tentássemos reduplicar a Escola da Ponte usando os mesmos princípios

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pedagógicos como receitas, se apenas conseguíssemos construir uma linha de montagem mais gentil e, talvez, mais eficiente. Me parece que o segredo da Escola da Ponte se encontra em outro lugar. Ele se encontra no mesmo lugar do ipê florido: o absoluto abandono do uso do poder e da manipulação. Imaginem uma escola onde não há um diretor. Todos os professores são diretores. Pela simples razão de não haver quem tome as decisões finais; onde “diretores” não ousam e nem querem usar do poder para fazer valer suas idéias. Onde as decisões são todas compartilhadas. Onde os professores não valem mais que as crianças. Onde os professores não dão ordens e as crianças obedecem. Sabedoria, disse Roland Barthes, é “nada de poder, uma pitada de saber e o máximo possível de sabor...”

deles e olhe para cima. Se o céu estiver azul você verá aquelas bolas de flores rosa contra o azul do céu. Você já ensinou seu filho a ver? Pois trate de ensinar. Mostre a árvore de longe. Mostre de perto. Mostre uma flor. Explique a sua simetria: pentagonal... Olhando para as flores se aprende matemática, se aprende a pensar abstratamente...

DICAS

A propósito, esse poema de Emily Dickinson (1830-86): “Alguns guardam o Domingo indo à Igreja — / Eu o guardo ficando em casa — / Tendo um Sabiá como cantor — / E um Pomar por Santuário./ — Alguns guardam o Domingo em vestes brancas — / Mas eu só uso minhas Asas — / E ao invés do repicar dos sinos na Igreja — / nosso pássaro canta na palmeira./ — É Deus que está pregando, pregador admirável — / E o seu sermão é sempre curto. / Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final — / eu o encontro o tempo todo no quintal.”

A coisa mais importante para se fazer nesse domingo: ver os ipês floridos! Mas, por favor: não olhe para eles de dentro do carro. Saia. Fique debaixo

“Deus é assunto delicado de pensar. Faz de conta um ovo: se apertamos com força parte-se; se não seguramos bem cai.” (Dito do avô Celestino).

Qual a receita? Não há receitas. Não há receitas para fazer o ipê florir. Não sei como o ipê floresce e nem por que alguns têm flores rosa, outros flores amarelas e outros flores brancas. Certo estava Ângelus Silésius: “A rosa não tem por quês; ela floresce porque floresce.” Assim é a Escola da Ponte.

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O sapo Era uma vez um lindo príncipe por quem todas as moças se apaixonavam. Por ele também se apaixonou uma bruxa horrenda que o pediu em casamento. O príncipe nem ligou e a bruxa ficou muito brava. ”Se não casar comigo não vai se casar com ninguém mais!” Olhou fundo nos olhos dele e disse: “Você vai virar um sapo!” Ao ouvir esta palavra o príncipe sentiu um estremeção. Teve medo. Acreditou. E ele virou aquilo que a palavra de feitiço tinha dito. Sapo. Virou um sapo.

Bastou que virasse sapo para que se esquecesse de que era príncipe. Viu-se refletido no espelho real e se espantou: “Sou um sapo. Que é que estou fazendo no palácio do príncipe? Casa de sapo é charco.” E com essas palavras pôs-se a pular na direção do charco. Sentiu-se feliz ao ver lama. Pulou e mergulhou. Finalmente, em casa. Como era sapo, entrou na escola de sapos para aprender as coisas próprias de sapo. Aprendeu a coaxar com voz grossa. Aprendeu a jogar a língua pra fora para apanhar moscas distraídas. Aprendeu a gostar do lodo. Aprendeu que as sapas eram as mais lindas criaturas do universo. Foi aluno bom e aplicado. Memória excelente. Não se esquecia de nada. Daí suas notas boas. Até foi o primeiro colocado nos exames finais, o que provocou a admiração de todos os outros sapos, seus colegas,

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aparecendo até nos jornais. Quanto mais aprendia as coisas de sapo mais sapo ficava. E quanto mais aprendia a ser sapo, mais se esquecia de que um dia fora príncipe. A aprendizagem é assim: para se aprender de um lado há de se esquecer do outro. Toda aprendizagem produz o esquecimento. O príncipe ficou enfeitiçado. Mas feitiço assim nos ensinaram na escola - é coisa que não existe. Só acontece nas estórias de carochinha. Engano. Feitiço acontece sim. A estória diz a verdade. Feitiço, o que é? Feitiço é quando uma palavra entra no corpo e o transforma. O príncipe ficou possuído pela palavra que a bruxa falou. Seu corpo ficou igual à palavra. A estória do príncipe que virou sapo é a nossa própria estória. Desde que nascemos,

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continuamente, palavras nos vão sendo ditas. Elas entram no nosso corpo, e ele vai se transformando. Virando uma outra coisa, diferente da que era. Educação é isso: o processo pelo qual os nossos corpos vão ficando iguais às palavras que nos ensinam. Eu não sou eu: eu sou as palavras que os outros plantaram em mim. Como o disse Fernando Pessoa: “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim”. Meu corpo é resultado de um enorme feitiço. E os feiticeiros foram muitos: pais, mães, professores, padres, pastores, gurus, líderes, políticos, livros, tv. Meu corpo é um corpo enfeitiçado: porque o meu corpo aprendeu as palavras que lhe foram ditas, ele se esqueceu de outras que, agora permanecem mal... ditas...

A psicanálise acredita nisso. Ela vê cada corpo como um sapo dentro do qual está um príncipe esquecido. Seu objetivo não é ensinar nada. Seu objetivo é o contrário: des-ensinar ao sapo sua realidade sapal. Fazê-lo esquecer-se do que aprendeu, para que ele possa lembrar-se do que esqueceu. Quebrar o feitiço. Coisa que até mesmo certos filósofos (poucos) percebem. A maioria se dedica ao refinamento da realidade sapal. Também os sapos se dedicam à filosofia... Mas Wittgenstein, filósofo para ninguém botar defeito, definia a filosofia como uma “luta contra o feitiço” que certas palavras exercem sobre nós. Acho que ele acreditava nas estórias de carochinha.... Tudo isso apenas como introdução à enigmática observação com que Barthes

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encerra sua descrição das metamorfoses do educador. Confissão sobre o lugar onde havia chegado, no momento de velhice. “Há uma idade em que se ensina aquilo que se sabe. Vem, em seguida, uma outra, quando se ensina aquilo que não se sabe. Vem agora, talvez, a idade de uma outra experiência: aquela de desaprender. Deixo-me, então, ser possuído pela força de toda vida viva: o esquecimento...”

ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me, e ser eu...”

Esquecer para lembrar. A psicanálise nenhum interesse tem por aquilo que se sabe. O sabido, lembrado, aprendido, é a realidade sapal, o feitiço que precisa ser quebrado. Imagino que o sapo, vez por outra, se esquecia da letra do coaxar, e no vazio do esquecimento, surgia uma canção. “Desafinou!” berravam os maestros. “Esqueceu-se da lição”, repreendiam os professores. Mas uma jovem que se assentava à beira da lagoa juntava-se a ele, num dueto... E o sapo, assentado na lama, desconfiava...

Acho que o sapo, tão bom aluno, tão bem educado, passava por períodos de depressão. Uma tristeza inexplicável, pois a vida era tão boa, tudo tão certo: a água da lagoa, as moscas distraídas, a sinfonia unânime da saparia, todos de acordo... O sapo não entendia. Não sabia que sua tristeza nada mais era que uma indefinível saudade de uma beleza que esquecera. Procurava que procurava, no meio dos sapos, a cura para sua dor. Inutilmente. Ela estava em outro lugar.

“Procuro despir-me do que aprendi”, dizia Alberto Caeiro. “Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me

Uma bela imagem para um mestre! Uma bela imagem para o educador: fazer esquecer para fazer lembrar!

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Assim se comportavam os mestres Zen, que nada tinham para ensinar. Apenas ficavam à espreita, esperando o momento de desarticular o aprendido para, através de suas rachaduras, fazer emergir o esquecido. É preciso esquecer para se lembrar. A sabedoria mora no esquecimento.

Mas um dia veio o beijo de amor — e ele se lembrou. O feitiço foi quebrado.

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Boca de forno “ — Boca de forno! — Forno! — Furtaram um bolo! — Bolo! — Farão tudo o que seu mestre mandar? — Faremos todos, faremos todos, faremos todos...”

A gente brincava assim, quando era criança. O mestre cantava o refrão, e os outros respondiam, repetindo a última palavra, como se fosse eco. Sempre perguntei sobre o sentido destas palavras e, por mais que me esforçasse, nunca encontrei sentido algum. É puro nonsense, e imagino que este brinquedo bem que poderia figurar entre os absurdos por que Lewis Carroll fez a pobre Alice passar nas suas aventuras pelo País das Maravilhas e no País dos Espelhos. Mas todo absurdo é apenas o avesso de uma coisa que parece lógica e racional, como o lado de trás de uma tapeçaria, escondido contra a parede. O absurdo é o avesso do mundo. Aí fiquei a me perguntar: “Este absurdo é o avesso de quê?” Veio-me, então, uma iluminação repentina: não deve ter sido por acidente que o inventor desta brincadeira, quem quer

que tenha sido, deu o nome de mestre ao líder que canta o refrão, pedindo a resposta-eco-repetição das crianças. Ele deve ter sido arguto observador das escolas, daquilo que via acontecendo entre os professores e alunos. Mas sem coragem para dizer às claras aquilo que estava vendo, por medo de punição (o seu filho devia ser aluno de uma das tais escolas), inventou este brinquedo, como uma parábola. O que é precisamente, o caso das loucas histórias de Lewis Carroll. Professor da Universidade de Oxford, via os absolutos que ali aconteciam. Mas se os dissesse em linguagem clara, certamente ganharia o ódio dos colegas e a ira das autoridades e acabaria por perder o emprego. Por isto, ele os disse de forma matreira, dissimulada: brincadeira de criança... No mundo das crianças, todos os absurdos são permitidos.

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Acho que esta brincadeira é uma repetição do que acontece nas escolas. As crianças são ensinadas. Aprendem bem. Tão bem que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se ecos das receitas ensinadas e aprendidas. Tornamse incapazes de dizer o diferente. Se existe uma forma certa de pensar as coisas e de fazer as coisas, por que se dar o trabalho de se meter por caminhos não-explorados? Basta repetir aquilo que a tradição sedimentou e que a escola ensinou. O saber sedimentado nos poupa dos riscos da aventura de pensar. Não, não sou contrário a que se ensinem receitas já testadas. Se existe um jeito fácil e rápido de amarrar os cordões dos sapatos, não vejo razão para submeter os alunos às dores de inventar um jeito diferente. Se existe um jeito já testado e gostado de fazer moqueca, não vejo razões por que este cozinheiro se sinta na obrigação de estar sempre inventando receitas novas. O saber já testado tem uma função econômica: a de poupar trabalho, a de evitar erros, a de tornar desnecessário o pensamento. Assim, aprende-se para não precisar pensar. Sabendo-se a receita, basta aplicá-la quando surge a ocasião. Senti isto muitas vezes, tentando pensar com minha filha problemas de matemática. É preciso confessar que isto já faz muito tempo, pois o que me restou de matemática já não me permite nem mesmo

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entender os símbolos que ela maneja. Claro que minha maneira de pensar era diferente da maneira de pensar de hoje. No meu tempo ainda se cantava a tabuada... Mas o que me impressionava era a sua recusa de, pelo menos, considerar a possibilidade de que um mesmo problema pudesse ser resolvido por caminhos diferentes. Ela havia aprendido que há uma maneira certa de fazer as coisas, e que caminhos diferentes só podem estar errados. A conversa era sempre encerrada com a afirmação: “Não é assim que a professora ensina...” É como nos catecismos religiosos: o mestre diz qual é a pergunta e qual é a resposta certa. O aluno é aprovado quando repete a resposta que o professor ensinou. A letra mudou. Mas a música continua a mesma. Pois não é isto que são os vestibulares? Ao final existe o gabarito: o conjunto das respostas certas. Claro que há respostas certas e erradas. O equívoco está em se ensinar ao aluno que é disto que a ciência, o saber, a vida, são feitos. E, com isto, ao aprender as respostas certas os alunos desaprendem a arte de se aventurar e de errar, sem saber que, para uma resposta certa, milhares de tentativas erradas devem ser feitas. Espero que haja um dia em que os alunos sejam avaliados também pela ousadia dos seus vôos! Teses que serão aprovadas a despeito de

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