Crônicas de Rubem Alves - Religião, Mundo Moderno, Sabedoria e Sentimentos

Page 1


crテエnicas PROF. SAMUEL LAGO

(ORG.)

RELIGIテグ MUNDO MODERNO SABEDORIA SENTIMENTOS

RUBEM ALVES RA_Cronicas_pg001-016.pmd

1

12/11/2008, 17:57


Equipe técnica Coordenação (Org .) (Org.) Prof. Samuel Ramos Lago Apoio técnico Franciele Marcassi, Judith Mota e Analu Koniuchowicz Revisão Marília Bittencourt Projeto gráfico e diagramação Labores Graphici Capa Labores Graphici – Ricardo Luiz Enz Ilustração Labores Graphici – Carlos Cesar Salvadori e Ricardo Luiz Enz Impressão Posigraf Fotos sxc.hu Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira Alves, Rubem, 1933Crônicas : religião, mundo moderno, sabedoria, sentimentos / Rubem Alves ; Samuel Lago (org.). - Curitiba : Nossa Cultura, 2008. 128 p. ; 20 x 27 cm. ISBN: 978-85-98580-33-3 1. Crônicas brasileira. I. Lago, Samuel Ramos, 1941. II. Título. CDD (22.a ed.) B869.8

Copyright – 2008 – Editora Nossa Cultura É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo eletrônico, reprográfico etc., sem autorização, por escrito, do autor e da editora.

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

2

12/11/2008, 17:57


Porque fiz esta coletânea de crônicas Conheci pessoalmente meu amigo Rubem Alves há muitos anos, em uma viagem de navio lá na Patagônia Chilena. Digo pessoalmente, porque já o conhecia há décadas através de seus livros (hoje cerca de 80). Nessa época já tinha lido algumas dezenas de seus livros. Livros que abordam temas que fazem toda a diferença: sabedoria, poesia, religião, política, educação, reverência pela vida etc. Li, aprendi, refleti, cresci. O mesmo aconteceu com centenas de crônicas que estavam “perdidas” – algumas há dezoito anos – em jornais e revistas educacionais. Porque não repartir esse imenso tesouro com outras pessoas? Por isso fiz esta coletânea. Sugiro que cada pequeno texto seja refletido, degustado prazerosamente. Nunca uma leitura corrida, dinâmica. As fantásticas ilustrações utilizadas na diagramação enriquecem o texto e também sugerem prazer e reflexão. Isso tudo foi feito com muito carinho e competência. Desfrute. Cresça. Ao terminar a leitura destas crônicas você não será mais o mesmo. Será muito melhor do que você já é. Tenho certeza disso. Com carinho a todos os leitores, um abraço fraterno, Prof. Samuel Ramos Lago Email: samuel@lago.com.br Curitiba – PR – Brasil

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

3

12/11/2008, 17:57


Quem é Rubem Alves? Afirmar que Rubem Alves é: • • • • • • • • • •

Mineiro, nasceu em Boa Esperança, em 1933; Pedagogo; Filósofo (doutorado na Universidade de Princeton – USA); Teólogo; Professor Emérito da Unicamp; Acadêmico (Academia Campinense de Letras); Cronista do cotidiano; Contador de estórias; Cidadão honorário de Campinas, onde reside; Um dos mais respeitados intelectuais do Brasil...

É muito pouco!!! Além de tudo isso, se conheço um pouco do amigo Rubem Alves, sei que ele: ama a simplicidade; ama as estórias; ama a ociosidade criativa; ama os brinquedos e as ferramentas; ama a beleza; ama a vida; ama a música; ama a poesia; ama as coisas que dão alegria; ama a natureza e a reverência pela vida; ama os mistérios; ama a educação como fonte de esperança e transformação; ama a libertação ecumênica e a busca de uma nova humanidade; ama todas as pessoas, mas tem um carinho muito especial pelos alunos e professores; ama Deus, mas tem sérios problemas com o que as pessoas pensam e ou dizem a Seu respeito; • ama as crianças e os filósofos – ambos têm algo em comum: fazem perguntas; • ama... ama... ama... ama... ama... ama... ama... • • • • • • • • • • • • • • •

Rubem Alves veio ao nosso planetinha Terra para AMAR! Pelo mesmo motivo é amado por milhões de pessoas que foram tocadas pela sua mensagem de AMOR, à semelhança de Jesus Cristo! Com carinho a todos os leitores, um abraço fraterno do Prof. Samuel Ramos Lago Email: samuel@lago.com.br Curitiba – PR – Brasil

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

4

12/11/2008, 17:57


Sumário

R U B E M A LV E S

Religião 8 Sou religioso

crônicas

Mundo Moderno 28 A Bela Azul

11 Ecumenismo

30 Cuidados paliativos

13 Su cadáver estava lleno de mundo

32 Lixo

17 A ética angelical

36 Meu cálculo cerebral está doendo...

19 Será que vou rezar?

40 Conversas com empresários

21 Estrelas ou jardins

42 Sobre o crime

23 As estrelas brilham, os homens sofrem

46 A Torre de Babel

25 O silêncio

51 Sobre armaduras e formigas 54 Mistérios do Egito antigo 57 Uma fábula para crianças 59 Daiane dos Santos 63 Valha-me santo Expedito

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

5

12/11/2008, 17:57


Sabedoria

Sentimento

66 11 de setembro de 2004

96 Amantes

68 A gente é velho...

99 Memórias

70 Em louvor à calvície

103 A cidade adormecida

74 Astutos como as serpentes

105 Baixou o espírito do Drummond

78 Mansidão 83 São Luis do Maranhão 87 Chapeuzinho Vermelho 91 Ética de princípios 93 Gestos amorosos

109 O Barbazul 115 Comemorar, recordar 117 Os artistas 119 Meu querido Artur da Távola 121 A liturgia da morte 123 A preguiça 125 O “homem transbordante”

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

6

12/11/2008, 17:57


RA_Cronicas_pg001-016.pmd

7

12/11/2008, 17:57


Sou religioso Eu sou muito religioso. Por isso, trato cuidadosamente de evitar igrejas e cerimônias religiosas, para que meus sentimentos religiosos não sejam perturbados. Minhas experiências passadas com igrejas não têm sido boas. Sempre que vou a igrejas ou participo de cerimônias religiosas, minha alma fica irritada.

Os porta-vozes de Deus sempre falam demais. Parecem gostar do som da sua voz. Gostaria de uma igreja onde não houvesse sermões, só silêncio, música e poesia. Houve exceções de que não me esqueço. Uma missa na catedral de Cuernavaca, México. Se houve homilia eu nem me lembro. Lembro-me da dança, todo mundo dançando, ao ritmo da música dos mariachis. Foi alegria pura. Lembro-me também de uma semana que passei num mosteiro da Suíça onde se cultivava o silêncio. Três vezes ao dia, às seis da manhã, ao meiodia e às seis da tarde havia uma meia hora litúrgica onde nada era dito. Apenas o silêncio, as velas, a contemplação dos ícones de Cristo. Foi beleza. Deve ter havido outras ocasiões. Mas não estou me lembrando delas no momento. Quando me perguntam, eu deveria dizer que não sou religioso. Dizendo-me religioso, os outros logo pensam que sou adepto de alguma religião. Eles imaginam que as religiões e as igrejas são semelhantes

8

RUBEM ALVES

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

8

aos supermercados, lugares onde a gente vai se abastecer de mercadorias sagradas. Para eles, ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas ou pertencer a religiões seria o mesmo que dizer que me abasteço de verduras, frutas, legumes, carnes, leite, cereais sem fazer compras. Daí não entenderem que eu possa ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas. De fato, eu não pertenço a grupo religioso algum. Meus sentimentos nada têm a ver com igrejas e rituais religiosos. Talvez eu devesse simplesmente dizer que sou místico sem religião. Se os religiosos disserem que isso não é possível, que é preciso ter uma religião, eu lhes direi que não há indicações de que Deus tenha concordado em se tornar uma mercadoria a ser distribuída com exclusividade pelos seus supermercados religiosos. Deus é livre como o Vento, pelo menos foi isso que Jesus disse. Claro que há religiões que dizem que o Vento só pode ser obtido engarrafado. Elas se acreditam distribuidoras de Vento engarrafado.

crônicas 12/11/2008, 17:57


Uma religião que afirme que o sagrado é um monopólio seu está dizendo que conseguiu engarrafar o Vento, que conseguiu por o Vento sob seu controle. E isso é idolatria. Os teólogos medievais sabiam que o finito não pode conter o infinito. A minha experiência com o sagrado vem sempre fora de lugares religiosos, diante do mistério da noite estrelada, de uma teia de aranha, de uma árvore florida, da ternura do amor, do riso de uma criança, da frescura dos riachos, da graça do vôo dos urubus, da alegria do cachorro que me recebe. Essas coisas que me dão alegria e que, por isso mesmo, são para mim sagradas, eu nunca as encontrei nas igrejas. Sagrado, para mim, é aquilo que meu coração deseja que seja eterno. O sagrado é a realização do amor. Meu misticismo, assim, nada me diz sobre seres de um outro mundo. Ele não me informa sobre deuses, céus, infernos,

pecados, demônios e anjos. Meu misticismo não aumenta o meu conhecimento sobre o universo. Meu misticismo não é um substituto para a ciência. Meu misticismo também não me dá conselhos morais. Não ordena que eu seja bom. Não me manda ajudar os pobres. Não me manda lutar pela justiça. Não é preciso ser místico para ser bom, para amar os pobres, para lutar pela justiça. Acho vergonhoso ser bom, amar os pobres e lutar pela justiça porque Jesus manda. Então é porque ele manda? Se não mandasse a gente não faria? Se Deus não mandasse e não ameaçasse não seríamos bons? Se assim é, então somos bons, amamos os pobres e lutamos pela justiça porque temos medo. Mas tudo o que brota do medo é o oposto do sagrado. O amor lança fora o medo. Meu misticismo nem me dá conhecimentos de um outro mundo e nem me dá ordens

crônicas RA_Cronicas_pg001-016.pmd

9

12/11/2008, 17:57

R U B E M A LV E S

9


morais. Ele é um sentimento ou como se fosse uma música que ouço dentro de mim. Schleiermacher, um teólogo romântico do fim do século 18, dizia que o sentimento religioso é o sentimento de “dependência absoluta” diante do universo. Eu não existo em mim mesmo. Eu existo somente em relação a uma coisa enorme, gigantesca, fantástica, coisa que não compreendo, mas que me envolve, na qual eu nasço e para a qual voltarei um dia. Sou uma nota numa sinfonia com milhares de notas, uma folha num jequitibá com milhares de folhas, uma única gota num mar com gotas sem fim. De um lado eu me descubro infinitamente pequeno. De outro lado eu me descubro imensamente grande: estou ligado em tudo. Sou tão grande quanto o universo, que se transforma então no meu grande corpo. Alguns dão o nome de Deus a esse Grande Corpo no qual todas as coisas existem. Gosto dessa idéia. Aconteceu faz muito tempo, quando ouvir o rádio exigia paciência e atenção. Havia a barulheira constante da eletricidade estática que era ouvida ora como pipocas estourando numa panela, ora como uma série de intermináveis assobios. Eu me lembro. Era noite. Já estava na cama. Luz apagada. Gostava de dormir com música. Rádio Ministério da Educação: havia sempre

10

RUBEM ALVES

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

10

músicas do meu gosto. De repente, no meio dos estouros e assobios da estática, uma música linda que mal se podia ouvir. Mas, em meio aos ruídos sem sentido da estática, o meu ouvido percebia a beleza que mal se ouvia, perdida no meio da estática. Aí eu pensei que o sentimento religioso é assim mesmo: em meio à barulheira da vida, a gente ouve uma melodia. Há um lindo texto de Nietzsche em que ele descreve precisamente essa experiência. Ele fala de uma melodia de beleza indescritível que repentinamente começou a ouvir dentro da sua alma, beleza tão grande que ele começou a chorar. Nietzsche era uma dessas pessoas possuídas por um profundo sentimento místico e que, precisamente por causa dele, tinha de ficar longe de todas as religiões. As igrejas o horrorizavam. Dizia que elas mais se pareciam com sepulcros de Deus. E tinha horror das músicas que ali se cantavam, que ele comparava ao coro de rãs dentro de um charco... Sim. Sou religioso. O universo é o meu templo. O ruído dos regatos, o barulho do vento nas folhas dos eucaliptos, o perfume do jasmim, as cores do crepúsculo, as experiências de arte e de brinquedo são, todos, para mim, sacramentos fugazes, experiências do sagrado. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas sempre que tenho uma efêmera experiência de beleza e de amor é como se eu tivesse visto, num breve segundo, uma cintilação do sagrado.

crônicas 12/11/2008, 17:57


Ecumenismo 1954. Eu, adolescente, com certeza absoluta sobre as minhas idéias, entrava no seminário presbiteriano de Campinas para me tornar um pastor. A missão era clara: libertar o Brasil da superstição e da idolatria católicas. Que a Igreja Católica era idólatra, não havia dúvidas.

Seus fiéis ajoelhados diante de ídolos eram uma prova da transgressão do segundo mandamento, o qual afirmava: “Não farás para ti imagem de escultura...” Mas que fiel católico havia jamais lido a Bíblia? A Bíblia era livro proibido, livro protestante, seita criada por um monge apóstata para se casar com uma ex-freira... E as superstições? O sacerdote era um mago que, ao pronunciar determinadas palavras, fazia com que o pão e o vinho se transformassem magicamente no sangue e no corpo de Cristo, a tal transubstanciação... Quem mordesse a hóstia faria o sangue de Cristo jorrar. E as invenções: o purgatório, o limbo... E a missa? Toda vez que é celebrada, Cristo é de novo sacrificado... Então o sacrifício de Cristo na cruz não fora perfeito e suficiente? Precisava ser repetido para valer?

A sua impiedade era confirmada por fatos históricos: Deus retirara sua mão dos países católicos, deixando-os mergulhados na pobreza e na ignorância, enquanto abençoava os países protestantes que ficavam cada vez mais adiantados na educação, na ciência, na riqueza... Então, não havia dúvidas sobre a missão do protestantismo: pregar a verdade das escrituras para, assim, abrir os olhos do povo enganado pelos padres... Mas aí apareceu no seminário de Campinas um novo professor, missionário norteamericano, expulso da Colômbia por exigência da Igreja Católica. Richard Shaull era o seu nome. Ele tinha idéias diferentes e fazia coisas jamais imaginadas. Uma delas foi a seguinte: lá pelo ano de 1956, ele convidou um restrito grupo de seminaristas para uma aventura: sair de Campinas e ir a São Paulo para um encontro com os dominicanos do convento da rua Caiubi. Isso era impensável!

crônicas RA_Cronicas_pg001-016.pmd

11

12/11/2008, 17:57

R U B E M A LV E S

11


Conversar com católicos idólatras... Saíamos ao cair da tarde, sob segredo absoluto. Se o que iríamos fazer chegasse às autoridades eclesiásticas, estávamos perdidos. Não se fazem visitas amistosas aos demônios... Uma das seduções desse pecado nada tinha de teológico. No convento tomaríamos vinho... “Pecca fortiter”, dizia Shaull citando Lutero. Foi a primeira de uma série de experiências ecumênicas de que tenho notícia, vários anos antes do Concílio Vaticano II, do saudoso Papa João XXIII, pastor manso e tolerante. Nessas experiências, nossas idéias mudaram. Percebemos que o Espírito Santo é

12

RUBEM ALVES

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

12

como o vento que sopra onde quer, sem jamais se deixar prender em garrafas dogmáticas. Surgiu então uma imagem diferente para simbolizar o que seria a igreja... “Olhai os pássaros do céu...” Sim, os pássaros... Canários, pintassilgos, ticoticos, pombas, rolinhas, beija-flores, anus, pássaros pretos... Todos diferentes, cada um cantando uma canção que é só sua, cada um mostrando, do seu jeito, a infinita variedade da beleza divina. Mas agora Sua Santidade Bento XVI declarou que Deus criou um pássaro só, e que só o canto desse pássaro é permitido. Todos os outros pássaros devem, então cessar o seu canto...

crônicas 12/11/2008, 17:57


Su cadáver estava lleno de mundo Eu era jovem e andava por um caminho plano e seguro. Todos os seus detalhes me haviam sido ensinados. Ele estava todo sinalizado com tabuletas para evitar que alguém se perdesse. Em algumas tabuletas se liam “certezas”. Em outras, “proibições”. Certezas e proibições têm importantes funções psicológicas. As certezas nos dizem que já encontramos a verdade.

Quem já encontrou a verdade deixa de procurar. As certezas, então, embalam a inteligência que se põe a dormir. É tranqüilizante saber-se possuidor da verdade. Eu vivia tranqüilo. As proibições, por sua vez, nos dizem o que não se pode fazer. Sabendo-se o que não se pode fazer, somos libertados da terrível necessidade de tomar decisões. As decisões são necessárias quando nos defrontamos com uma encruzilhada, bifurcação, dois caminhos à nossa frente. Posso tomar o caminho da direita, posso tomar o caminho da esquerda. Mas não há nenhuma tabuleta indicando qual deles conduz ao fim desejado. Toda encruzilhada nos coloca numa situação de incerteza. E a incerteza produz ansiedade: é preciso decidir, sem saber ao certo... Mas se existe uma tabuleta num dos caminhos com a palavra “Proibido”, a dúvida se resolve. A proibição decide por mim. Livro-me, assim, da terrível condição de ser um

ser moral — que é, precisamente, a condição de tomar decisões sem ter proibições que decidam por mim. Eu não tinha conflitos morais porque as proibições já haviam tomado as decisões por mim. Assim caminhava eu, dezenove anos, pelo caminho das certezas e proibições, tranqüilo, pelo caminho que levava aos céus. Pois os céus não são o destino dos homens? Tão convencido estava eu do caminho que estava seguindo que até me havia matriculado numa escola onde se ensinam certezas e proibições — um seminário, porque o meu desejo era conduzir as almas pelo caminho que eu seguia. Aí, o inesperado aconteceu. Um homem apareceu no meu caminho, andando na direção contrária. Perguntei-me, espantado, se ele não se dava conta de estar andando na direção errada. Aí, ao nos aproximarmos, ficamos um diante do outro, e olhei bem dentro dos olhos dele,

crônicas RA_Cronicas_pg001-016.pmd

13

12/11/2008, 17:57

R U B E M A LV E S

13


e vi, refletido como num espelho, um mundo que eu nunca havia visto, o mundo que estava atrás de mim, o mundo do qual eu fugia em busca dos céus. Olhando bem, vi que naquele mundo não havia caminhos. “Caminhante, não há caminhos! Os caminhos se fazem ao caminhar!” E também não havia nem certezas e nem proibições. O que havia eram horizontes, direções, possibilidades, liberdade. E o mundo muito bonito, me convidava... O estranho não disse nada. Mas os seus olhos apontaram. E os meus olhos se abriram. Experimentei então os medos e os risos das dúvidas. Pois não é isso que experimenta o alpinista que escala o Aconcágua? O risco da morte bem vale a emoção dos desafios! Os que não suportam dúvidas jamais escalam picos; eles ficam nas planícies andando pelos caminhos conhecidos e seguros. Experimentei a alegria e o sofrimento de ter de tomar decisões sem que ninguém me desse ordens ou proibições, tendo apenas o meu próprio coração como conselheiro. Troquei o caminho que leva aos céus pelos muitos caminhos que levam ao mundo. E assim tenho andado pela vida afora, sem certezas e sem proibições... Tudo por causa do olhar daquele homem... Ele, o estranho com que me encontrei, viveu aqui em Campinas. E posso dizer que a minha vida se divide em dois

14

RUBEM ALVES

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

14

períodos: antes de conhecê-lo e depois de conhecê-lo. O seu nome era Richard Shaull. Lembro-me perfeitamente bem: encontramo-nos pela primeira vez na Avenida Brasil, próximo ao cruzamento com a rua Frei Antônio de Pádua. Era o ano de 1953. As casas eram poucas, os eucaliptos eram muitos. Não falava português. Falava espanhol. Havia sido expulso da Colômbia, por ordens da hierarquia católica. Uma igreja construída sobre verdades e proibições não pode suportar a presença de alguém que ensina dúvidas e liberdade. Viera então para o Brasil como professor do Seminário Presbiteriano, à Avenida Brasil, 1.200. Se me perguntarem: “O que foi que você aprendeu com ele?” A resposta é simples: “Dick Shaull me ensinou a pensar.” Lembro-me de um prova que fiz em uma de suas disciplinas. Eu estava certo de que teria 10, porque a prova tinha sido completa, perfeita. Mas ganhei um 9,0. Fui reclamar. Aleguei que havia escrito precisamente o que ele havia dito nas aulas. Ele me respondeu: “Por isso mesmo. Você apenas repetiu o meu pensamento. Lendo a sua prova eu não aprendi nada. Eu esperava encontrar na prova o seu pensamento...” Profetas não são videntes que anunciam um futuro que vai acontecer. Profetas são poetas que desenham um futuro que pode acontecer. Profetas sugerem um caminho. Richard Shaull falava de futuros com

crônicas 12/11/2008, 17:57


que nós nunca havíamos sonhado. Ele via o que ninguém mais estava vendo. Em seis meses, ele já sabia muito mais sobre o Brasil do que eu. Foi ele que me apresentou a um catolicismo inteligente. Sugeriu que eu lesse A Descoberta do Outro e Lições de Abismo, livros dos anos de lucidez de Gustavo Corção. Foi através dele que fiquei sabendo dos movimentos de renovação que silenciosamente fermentavam dentro da Igreja Católica, a renovação bíblica, a renovação litúrgica, movimentos esses que haveriam de influenciar profundamente o Papa João XXIII — de saudosíssima memória! — e o Concílio do Vaticano II. Pensador profundamente mergulhado na tradição da Reforma Protestante (celebrada no dia 31 de outubro, data em que Lutero afixou suas “95 Teses”, às portas da catedral de Wittenberg), ele nos ensinou a lição fundamental de teologia: “O problema do céu, Deus já o resolveu por nós. Não há nada que tenhamos de fazer. Resolvido o problema do céu, estamos livres para cuidar da Terra, que é o nosso destino...” Shaull tinha visões de um mundo diferente. Foi o primeiro que me falou da responsabilidade social dos cristãos. Se, para a igreja tradicional o mundo era o lugar da perdição do qual os cristãos deveriam fugir — foi isso que os monges fizeram —, para Shaull o mundo era o lugar da

crônicas RA_Cronicas_pg001-016.pmd

15

12/11/2008, 17:58

R U B E M A LV E S

15


nossa vocação. É preciso estar presente no mundo para que ele se renove, ele dizia. Essa palavra, “presença”: como era importante no seu pensamento! E foi assim que ele liderou um projeto impensável: um grupo de seminaristas, durante as férias, trabalhando como operários numa fábrica na Vila Anastácio, em São Paulo. A inspiração para esse projeto veio de um movimento católico, os “padres operários” que, na França, resolveram parar de esperar que os trabalhadores fossem à igreja, e foram, eles mesmos, até onde eles viviam: as fábricas. Sem o saber, Shaull estava lançando as sementes da “teologia da libertação”. Cerca de 10 anos antes do Concílio do Vaticano II ele já sonhava com o ecumenismo. Ecumenismo: essa palavra era maldita tanto para protestantes quanto católicos. Para os católicos, donos da verdade, maldita porque os protestantes eram apóstatas. Para os protestantes, donos da verdade, maldita porque os católicos eram idólatras. Inimigos irreconciliáveis, como poderiam católicos e protestantes se assentar para partilhar de uma fé comum e do mesmo ritual eucarístico? Pois o Shaull, andando na direção contrária como convém a um profeta, resolveu transgredir o proibido: organizou encontros secretos com os dominicanos de São Paulo e nos convidou, um pequeno grupo de seminaristas,

16

RUBEM ALVES

RA_Cronicas_pg001-016.pmd

16

a participar da conspiração. Sabíamos que se a conspiração fosse descoberta a punição seria certa: seríamos expulsos do seminário. E assim, com uma mistura de medo e de alegria, lá íamos nós com o Shaull, para uma experiência com que jamais havíamos sonhado. Foi bom descobrir que os católicos eram pessoas inteligentes, amantes da Bíblia, fraternos... Até então não sabíamos disso! Não conheço ninguém que em tão curto espaço de tempo tenha semeado tanto. Não é possível contar tudo. Só posso dizer que um homem que anda na direção contrária não o faz impunemente. Os profetas são seres malditos. Nietzsche, um outro que caminhou na direção contrária, sabia o preço que se paga por ver o que os outros não vêem. Dizia ele: “Os fariseus têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude”. Aqueles que não vêem odeiam aqueles que vêem. Richard Shaull foi crucificado. As igrejas não o suportaram: expulso da Colômbia, pelos católicos, expulso do Brasil, pelos protestantes... Agora ele ficou encantado. Partiu. É certo que plantarei uma árvore para ele no meu lugarzinho solitário, no alto de uma montanha, à beira de um vulcão, junto com as árvores de outros conspiradores... No silêncio, quando não houver ninguém por perto, as árvores conversarão entre si...

crônicas 12/11/2008, 17:58


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.