passou sua infância e adolescência em Essex e graduou-se em inglês pela Universidade de Oxford, posteriormente completando seu mestrado em filosofia e literatura pela Universidade de Warwick. É o autor dos romances The Impressionist (2002), Transmission (2004) My Revolutions (2007) (não publicados no Brasil) e Deuses Sem Homens (Editora Nossa Cultura). Seus livros já foram traduzidos para mais de 20 idiomas. Recebeu prêmios importantes como Somerset Maugham, Betty Trask Prize of the Society of Authors e o British Book Award.
“Um romance de uma ambição selvagem que se desenvolve ao longo de séculos.” — Michiko Kakutani, The New York Times “Um romance distintamente americano digno de comparação com o que há de melhor na obra de Pynchon e DeLillo.” — Salon “Kunzru consegue rivalizar... qualquer romancista atual, com a força de sua prosa e sua ousadia imaginativa” — The Wall Street Journal “[Um] grande livro, inovador e questionador… De uma beleza profunda.” — San Francisco Chronicle “Que viagem: Esse é um livro em que monges do século XVIII vagam pelo Mojave com hippies alucinados do Verão do Amor. Um livro em que nativos americanos à beira do abismo, no crepúsculo de uma cultura moribunda, tentam bravamente salvaguardar seus mitos de antropólogos de uma mentalidade literalista implacável... Há veteranos cínicos da Segunda Guerra Mundial, soldados durões recém-retornados do Iraque, comuneiros arruaceiros, banqueiros acabados, groupies chapadas que só pensam em onde encontrar o próximo baseado ou um lugar para encostar o saco de dormir. Aqui tem morte, sexo e rock’n roll. Tudo isso, por mais aleatório que pareça, compõe uma ode apropriadíssima para esse mundo conturbado.” — The Washington Post “Extraordinário!” — Salman Rushdie
Em 2003, a revista Granta o colocou entre os 20 mais notáveis jovens escritores ingleses e a Lire o deixou entre os 50 “écrivains pour demain”. Seus contos e artigos foram publicados em diversos veículos importantes como The New York Times, Guardian, New Yorker, Washington Post, Times of India, Wired e New Statesman. Em 2008 recebeu o prêmio Dorothy and Lewis B. Cullman Center for scholars da Biblioteca Pública de Nova York.
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HARI KUNZRU deuses sem homens
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No deserto da Califórnia… Um menino de quatro anos desaparece. Um rock-star britânico enlouquece em silêncio. Uma seita alienígena nasce. Uma jovem iraquiana participa de jogos de guerra. Jaz e Lisa Matharu são mergulhados em um inferno público depois que seu filho, Raj, desaparece durante as férias da família no deserto da Califórnia. No entanto, o Mojave é um lugar com poderes estranhos. Antes de Raj reaparecer – inexplicavelmente ileso, mas totalmente mudado – o destino desta jovem família vai se cruzar com a de muitos outros, tanto do passado como do presente, que passaram por esta estranha cidade nos confins do deserto californiano, mar cada por uma famosa formação rochosa chamada “The Pinnacles”. Entre eles estão um missionário espanhol do século 18, um messias engenheiro de aviação na Segunda Guerra Mundial e uma estrela do rock que passava incógnito pela região. Conforme suas histórias se colidem e se constroem uma sobre a outra, Deuses sem homens torna-se uma exploração sincera da busca pelo sentido da vida em um universo caótico.
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tradução de ADRIANO SCANDOLARA
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diretor editorial
Paulo Fernando Ferrari Lago editor
Claudio Kobachuk assistente editorial
Getúlio Ferraz tradução
Adriano Scandolara preparação
Claudio Kobachuk e Getúlio Ferraz
Título Original: Gods Without Men. Copyright © Hari kunzru, 2011. Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2013.
revisão
Valquíria Molinari projeto gráfico e diagramação
Maurélio Barbosa capa
Maurélio Barbosa imagem de capa
© Karen Pegg/Photos.com
editora nossa cultura ltda
Rua Grã Nicco, 113 - Bloco 3 - 5º andar Mossunguê Curitiba - PR – Brasil Tel: (41) 3019-0108 - Fax: (41) 3019-0108 http://www.nossacultura.com.br
dados internacionais de catalogação na publicação (cip) index consultoria em informação e serviços ltda. curitiba
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Kunzru, Hari, Deuses sem homens / Hari Kunzru ; tradutor Adriano Scandolara. — Curitiba : Nossa Cultura, 2013. 472 p. Título original: Gods Without Men ISBN 978-85-8066-123-1 1. Literatura inglesa. I. Título.
CDD (20.ed.) 813 CDU (2.ed.) 820-3 IMPRESSO NO BRASIL / PRINTED IN BRAZIL
Nota: A edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Grafia atualizada segundo o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
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No deserto, veja, há tudo e não há nada... é Deus sem os homens Balzac, Uma paixão no deserto (1830)
“De Índio e Negra, nasce Lobo, de Índio e Mestiça, nasce Coiote” Andrés de Islas, As Castas (1774)
“Meu Deus! Está cheio de estrelas” Arthur C. Clarke, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)
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No tempo em que os animais eram homens, o Coiote morava num certo lugar. “Haikya! Já cansei de morar aqui – aikya. Vou para o deserto cozinhar”. Dito isto, o Coiote pegou um trailer e partiu para o deserto para montar um laboratório. Levava consigo dez pacotes de pão WonderBread e cinquenta pacotes de miojo, além de uísque e maconha o suficiente para passar o tempo. Após muita procura, ele encontrou um bom lugar. “Vou me instalar aqui – aikya! Tem tanto espaço! Ninguém vai me perturbar aqui!” O Coiote começou a trabalhar. “Ah”, disse, “haikya! Tenho tantos tabletes de pseudefedrina! Demorou tanto para juntá-los! Eu fui tanto naquelas farmácias – aikya!” Ele esmagou a pseudo até virar um pozinho fino. Encheu um béquer com álcool de madeira e mexeu no pó. Despejou a mistura nos filtros de papel para retirar as impurezas. Aí, colocou tudo no bico de Bunsen para evaporar. Mas o Coiote se esqueceu de verificar o termômetro, e a temperatura subiu. Foi esquentando e esquentando. “Haikya!” ele disse. “Preciso de um cigarro – aikya! Já trabalhei tanto – aikya!” Acendeu um cigarro. Houve uma explosão. Ele morreu.
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O Coelho passou e tocou sua cabeça com o cajado. O Coiote se levantou e esfregou os olhos. “Honrado Coiote!” disse o Coelho. “Feche a porta do trailer. E deixe a porta fechada. Fume só do lado de fora”. O Coiote começou a se queixar. “Ai – aikya! Cadê as minhas mãos – aikya? Explodi minhas mãos”. Ele chorou e ficou deitado e triste por muito tempo. Depois, o Coiote se levantou e fez mãos a partir do cacto de cholla. E recomeçou o trabalho. Moeu a pseudo. Misturou-a com o solvente. Depois, filtrou e evaporou e filtrou e evaporou, até ter certeza de que tinha se livrado de toda impureza. Depois, se sentou e começou a raspar caixas de fósforo para coletar fósforo vermelho. Ele misturou a pseudo com as raspas de fósforo e iodo e muita água. De repente, o frasco começava a ferver. O ar começou a ficar cheio de gás. Entrava nos seus olhos, no seu pelo. Ele uivava e arranhava o rosto. Sufocou com o gás venenoso e morreu. O Monstro-de-Gila passou e espargiu água sobre ele. O Coiote se sentou e esfregou os olhos. “Honrado Coiote!” disse o Monstro-de-Gila. “Use uma mangueira. Pare o frasco, encha um balde com areia de gato e dê uma mangueirada em cima. Isso prenderá o gás. Deixe-o preso e observe enquanto ele borbulha e ferve ali mesmo no frasco. Se conseguir segure a respiração por completo”. O Coiote começou a se queixar. “Ai – aikya! Cadê meu rosto – aikya? Eu arranquei meu rosto arranhando”. Correu até o rio, fez um novo rosto com a lama e o moldou na parte da frente da cabeça. Depois, recomeçou o trabalho. Ele esmagou a pseudo e a evaporou. Arranhou as caixas de fósforo e ferveu o frasco no balde de areia de gato. Misturou à química e cozinhou a mistura e filtrou e acrescentou soda cáustica Red Devil. Ficou de olho no termômetro. Tomou o cuidado de prender a respi ração. Ele resfriou a mistura, acrescentou um pouco de combustível de
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fogão de campismo e a chacoalhou e começou a pular de alegria quando viu a crosta de cristal boiando na superfície do líquido. Ele começou a evaporar o solvente, mas ficou tão empolgado que se esqueceu de deixar a cauda fora do fogo. Dançava pelo laboratório, espalhando o fogo por tudo com a cauda. O laboratório pegou fogo. Ele morreu. A Raposa do Sul passou e o tocou no peito com a ponta do seu arco. “Honrado Coiote!” ele disse. “Você precisa deixar a cauda de fora! Só assim dá para cozinhar”. “Ai – aikya!” queixou-se o Coiote. “Meus olhos, cadê meus olhos – aikya?” O Coiote fez novos olhos com dois pacus e recomeçou o trabalho. Esmagou a pseudo. Filtrou e evaporou, misturou e aqueceu e deixou o gás borbulhar. Filtrou e evaporou um pouco mais, depois dançou para lá e para cá. “Ah, como sou esperto – aikya!” disse o Coiote. “Sou mais esperto que todos eles – aikya!” Ele tinha em suas mãos cem gramas de cristal puro. E o Coiote abandonou o local. Isto é tudo, e assim termina.
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Desde a primeira vez em que Schmidt viu os Picos, ele soube que lá era o lugar. Três colunas de rocha subiam como os tentáculos de alguma criatura antiga, pedipalpos surrados sondando o céu. Ele fez alguns testes, usando varas de radiestesia e o medidor de terra. O ponteiro passava da escala. Havia uma força aqui, sem dúvida, correndo a linha da falha geológica e passando pelas rochas: uma antena natural. A negociação foi rápida. Oitocentos contos para a velha que era dona do lote, alguns papéis para assinar no cartório de Victorville e o terreno seria dele. Um financiamento de vinte anos, fácil fácil. Não conseguia nem acreditar na própria sorte. Comprou um Airstream usado de um lote em Barstow, conduziu-o de guincho até o local e ficou sentado por uma tarde inteira numa cadeira de quintal, admirando a luz que esse trailer de alumínio refletia. A imagem o levava de volta ao Pacífico, os Superforts em suas pistas em North Field. Como os bombardeiros reluziam ao sol. Havia uma lição naquele espetáculo ofuscante, que demonstrava a existência de mundos inteiros impossíveis de se olhar diretamente. Não conseguiu dormir nada na primeira noite. Deitado debaixo do cobertor sobre o chão, fitando o céu, ele manteve os olhos abertos até que o que era preto tornou-se púrpura, depois cinzento, e a lã foi ficando
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malhada de gotículas de condensação, como pequenos diamantes. O cheiro de creosote e sálvia do deserto, a cúpula das estrelas. Havia mais ação no céu do que na terra, mas era preciso ser arrastado para longe da cidade para saber disso. Todas aquelas linhas verticais malditas amontoan do-se sobre sua visão, todos os canos e cabos de aço e assim por diante, debaixo dos pés, atrapalhando, interrompendo os fluxos. As pessoas não se metiam com o deserto. Era uma terra que te deixava em paz. Ele acreditava ter boas chances. Era jovem o suficiente para o trabalho manual, livre dos empecilhos de ter mulher e filhos. E tinha fé. Sem isso, já teria desistido há muito tempo, quando ainda era só um rapaz lendo folhetos de catálogos no intervalo do almoço, experimentando com suas primeiras anotações sobre os mistérios. Agora não queria nenhuma distração. Não se importava em ter uma boa reputação com o povo da cidade. Era educado ao buscar suprimentos na loja, mas não se dava ao trabalho de ir além disso. Os homens, na maioria, eram tolos; foi o que descobriu em Guam. Os filhos da puta nunca o deixavam em paz, davam apelidos, faziam piadas infantis às suas custas. Ele precisou de toda a sua força para não fazer o que tinha vontade de fazer, mas depois de Lizzie ele não tinha o direito, por isso acalmou a raiva e seguiu em frente lutando na guerra. Os coitados tinham feito sabem-se lá quantas missões aéreas já, e, mesmo com todas aquelas horas de voo, todas aquelas chances de ver, ainda achavam que o mundo real era no chão, na fila do refeitório, entre as pernas das pin-ups que colavam em seus leitos rançosos. A única pessoa que conheceu lá com o menor resquício de bom senso foi um bombardeiro irlandês, qual era o nome dele, Mulligan ou Flanagan, um nome irlandês, que lhe contou das luzes que tinha avistado quando estavam para atacar Nagoya, pontos verdes que se moviam rápido demais para serem Zeros. Pediu um livro emprestado. Schmidt emprestou para ele, jamais o pegou de volta. O rapaz se foi com o resto da equipe na semana seguinte, jogados no mar.
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Pouco a pouco o lugar se arranjava. O trailer era quente como o inferno, e ele tentava dar algum jeito de usar a sombra das rochas que encontrou na toca do garimpeiro. Só ficou sabendo do que se tratava quando perguntou num bar da cidade. Foi coberto de concreto havia alguns anos, quando expulsaram o velho lazarento, uma história que achavam que era um espião dos alemães. Por mais doido de pedra que ele fosse, provavelmente morrendo de fome, já que não tinha um centavo sequer de prata ou qualquer outra coisa naquilo que dizia ser sua propriedade, pelo menos sabia cavar. Uma área inteira, 37 metros quadrados, logo abaixo das pedras. Era fresco no verão e tinha isolamento térmico contra as noites de inverno. Um diabo de um bunker. Depois disso, ficou tudo beleza. Ele montou uma pista, afundou um tanque de gasosa na terra, montou um abrigo de blocos de concreto e pintou BEM-VINDO em letras brancas no telhado de zinco. Agora tinha um negócio. O café nunca seria grande coisa, mas também não precisava que ele virasse a General Motors. Sentia que poderia se virar sem outra vivalma, mas a poupança não duraria para sempre. Tinha mais um ano, talvez dois, até o dinheiro começar a apertar, e era o tempo certinho para que uma empresa como essa firmasse os pés. Não havia muitas aeronaves sobrevoando por lá. Uma vez por semana, mais ou menos, alguém pousava. Ele servia café, ovos fritos. Quando lhe perguntavam o que fazia ali, ele dizia que estava só esperando, e, quando perguntavam pelo que esperava, ele respondia que não sabia ainda, mas que com certeza era melhor do que ficar sentado no trânsito, e essa resposta, em geral, bastava. Jamais levava os visitantes até o bunker. Após alguns meses, os números subiram. Os pilotos indo ou saindo da costa começaram a ouvir falar de que tinha um ponto para abastecer. Ele comprou umas cadeiras e mesas de fórmica, fez um estoque de cerveja. Havia problemas, é claro. Seu gerador estragou. Aconteceu um confronto com uns índios que ele flagrou escalando as rochas, teve que
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mostrar a espingarda. Depois que eles foram embora, ele encontrou de senhos na rocha lá em cima, pinturas de mãos e cobras e carneiros sel vagens. No outro dia, uma tempestade de areia forçou um avião a pousar. O vento soprava de lado, no terreno, a oitenta por hora, e só conseguir pousar já foi um feito e tanto para o piloto – parecia que o vento ia pegar sua asa esquerda e revirá-lo, quando ele se aproximou. Schmidt correu para encontrá-lo, com uma bandana na boca. Sem pensar, ele o levou para o subterrâneo, o único lugar lógico para servir de abrigo. O piloto era um jovem garotão, com seus vinte e um, mais ou menos, a cabeça cheia de cabelos escuros, um bigodinho de dândi. Rico. Ao des pir-se da jaqueta e dos óculos de aviador, ele olhou ao redor maravilhado e perguntou onde diabos estava. A esta altura, o projeto já estava bem avançado. Schmidt tinha construído um condensador vorticial para armazenar e concentrar as energias parafísicas que fluíam pelas rochas. Tinha um cristal incrustado em suspensão por cardans na ponta da pilha mais alta, no ângulo de Vênus. Estava em vias de desenvolver um sistema piezoelétrico paralelo, com base em seu estudo de Tesla, mas agora mandava sinais usando uma velha chave Morse, com um conversor etérico para transformar os cliques físicos em modulações da onda portadora parafísica. Ele explicou tudo isso ao piloto, que ouviu com atenção, tentando entender o maquinário, as pilhas de livros e anotações. Parecia impressionado. “E que mensagem você está enviando?” Uma pergunta. A mensagem de Schmidt era o amor. O amor e a fraternidade a todos os seres na galáxia. Duas horas de redenção toda noite, começando logo após o planeta tornar-se visível sobre o horizonte. Duas horas repetindo o seu convite: B E M - V I N D O. Ele não queria conversar sobre isso, não com um estranho, fez uma piadinha sobre forças maiores, coisas que eram não visíveis a olho nu. O piloto sorriu. “Espero que saiba o que está fazendo”.
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“Veremos, eu acho”. A partir daí, o jovem começou a pousar o seu Cub nos Picos quase toda semana. Seu pai era um fazendeiro importante no Imperial Valley, mas Davis, era esse o seu nome, queria da vida mais do que os pomares de laranjas e apanhadores chicanos. Schmidt não lhe pedia nada, mas ainda assim ele lhe dava dinheiro para comprar livros e equipamento. Clark Davis foi o primeiro discípulo, o primeiro a compreender a verdadeira natureza da vocação de Schmidt. Uma noite, os dois voaram sobre a fronteira do estado de Nevada, desceram num rancho próximo a Pahrump, uma propriedade com grandes fachadas de cerveja em neon na janela e uma fileira de caminhonetes estacionadas na frente. Davis queria que ele se divertisse, disse que não era normal ficar tanto tempo sozinho. Contra seu melhor juízo – a escapada toda ia contra seu melhor juízo –, Schmidt se via sentado e nervoso, com a bebida na mão, enquanto as moças faziam fila em suas quase não roupas de seda, fazendo beicinho e empinando os traseiros. Davis agia todo como um homem do mundo, escolhendo uma latina peitudona e dando-lhe uma piscadinha encorajadora ao levá-la para fora, como se Schmidt fosse um adolescente nervoso prestes a molhar o biscoito pela primeira vez. Isso lhe dava nos nervos. Ele virou o conhaque, pediu outro. Não encostava em álcool desde aquela última noite com a Lizzie e logo se lembrou porquê; por mais que a loirinha que ele havia escolhido fosse o mais bonita e gentil possível, tudo que ele sentia era raiva dela, raiva de si mesmo, na verdade, e ela deve ter se assustado e apertado algum botão ou coisa assim, porque logo depois ele estava do lado de fora, com as calças na mão, caçando o outro pé da bota no estacionamento. Ele tentou explicar para o Davis. Como tinha sido louco, demais até para sua mãe falida. Como ele não quis nem saber de ir à escola ou arrumar uma profissão, tudo que desejava era uma grande tela para sua juventude e ares que não tivessem gosto de enxofre, por isso pulou num
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trem de carga e nunca nem olhou para trás, para as pilhas fumegantes de Erie, Pensilvânia. Aos dezessete, trabalhava na linha de uma fábrica de salmão enlatado na Baía de Bristol, gastando tudo em bares e se envolvendo em todo tipo de encrencas, às quais uma hora acabou se somando Lizzie, no auge de todos os seus quatorze anos, mestiça de nativo e mais desvairada que ele. Ela o chupou na entrada de um depósito nas docas, e era como se uma fanfarra começasse a tocar dentro de seu crânio. Muito pouco depois, ela estava grávida, e aí ele ficou na merda mesmo, porque ela tinha irmãos e porque o pai dela era um figurão da cidade, que mais ou menos arrastou os dois até a igreja só para salvar a reputação da família. O velho morria de ódio de Schmidt, por motivos óbvios, mas, para ser justo, tentou ser decente e arranjou um lugarzinho para eles, até deu dinheiro para o filho. O problema era que Schmidt não gostava de caridade e com certeza não gostava de se sentir preso, e porque os berros da criança o deixavam angustiado e porque, por algum motivo, ele havia perdido o tesão por ela, ele começou a bater nela. Os familiares da moça o avisavam, e, cada vez que acontecia, ele chorava no colo dela e jurava que iria melhorar, mas as brigas só faziam com que ele se sentisse mal e encurralado, e uma noite ele bebeu mais do que de costume, e ela respondeu, e ele acabou, de algum modo, amarrando uma forca em torno do pescoço dela e arrastando-a durante quase um quilômetro na caminhonete até dar por si e pisar no freio. Ela sobreviveu, mas sua aparência não foi mais a mesma depois. Na delegacia, uns rapazes o imobilizaram e resolveram se divertir com ele, e ele achou que iriam matá-lo, porque disseram que haviam sido pagos pelo pai da Lizzie, mas pararam quando terminaram o que tinham que fazer, e ele levantou as calças e deitou num canto da cela e estava lá ainda quando o Russo chegou para pagar a fiança. O Russo devia uma para Schmidt desde que ele o impediu de jogar um cara lá da janela do terceiro andar no carteado da sexta à noite. Pense em todos aqueles
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anos, disse Schmidt, e o Russo, surdo de uísque do jeito que estava, prestou atenção. Segurava pelos calcanhares o trapaceiro enquanto ele choramingava, e tinha álcool o suficiente no sangue para deixá-lo cair, mas, em vez disso, puxou-o de volta, deu uns tapas no seu queixo e nada mais foi dito sobre o assunto. Na manhã seguinte, a bebedeira passou, e ele o agradeceu, dizendo que, se algum dia Schmidt se metesse em encrenca, ele estaria lá. Os duzentos paus do Russo foram o seu primeiro golpe de sorte. O segundo foi quando o delegado apareceu na porta da sua casa e disse que, se ele saísse do território naquela tarde mesmo, o velho da Lizzie não prestaria queixas. De novo, a reputação. Valia mais para ele do que sua filha mestiça, pelo visto. E assim Schmidt partiu para o sul e, por mais que tivesse tentado aguentar a barra, contando a história aos homens com quem trabalhava ou dividia o teto como se fosse uma piada, a culpa cresceu dentro dele até apagar toda a felicidade que conhecia, e ele estava ciente de que acabaria se matando, a não ser que fizesse algo para se acertar com o mundo de novo. Sou pura escória, ele dizia a qualquer um disposto a ouvir. Não posso evitar, sempre fui assim. E achou que sempre seria, que era impossível mudar, até descobrir que impossível é uma palavra encontrada apenas nos dicionários dos tolos, uma citação, sua primeira, a segunda sendo quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você, um ditado que ele tirou de uma velha cópia de Seleções e que lhe deu a ideia, estranha até então, de que é possível encontrar a verdade na palavra escrita. Daí em diante, criou o hábito de procurar essas tais verdades por escrito e de copiá-las, primeiro em pedaços de papel, depois em cadernos, até finalmente se dar conta de que estava trabalhando rumo a um sistema, uma tal compreensão do mundo que poucos possuíam. Passou a ler tanto quanto pôde, devorando livros em cada minuto livre do dia, e jamais tocou na bebida de novo até Davis persuadi-lo a beber, e só por causa de um
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desejo momentâneo de ser como as outras pessoas, um direito que, no fundo, ele sabia que havia perdido. Davis ouviu sua história sem dizer palavra. Demorou várias semanas até sua próxima visita. Schmidt se ocupou em sinalizar e observar o céu, arando o terreno que havia ocupado com aquelas citações esparsas e espalhadas. Sua busca o levou primeiro à Bíblia, depois a outros livros. Sempre suspeitou de que qualquer verdade de valor deveria ser algo oculto, que coisa alguma valia a pena possuir a não ser que você precisasse escavar atrás dela. Um ano ou dois se passaram, e ele se flagrou em Seattle, manejando um esfregão dentro de um hangar para aviões, enquanto os engenheiros trabalhavam em aeronaves cujo tamanho e complexidade parecia um milagre. Vendo as grandes máquinas decolarem e pousarem, o modo como a terra as entregava e depois as acolhia de volta com gentileza, ele sentiu que lá estava o segredo manifesto. Decidiu tornar-se piloto, mas, quando fez o teste de vista, descobriu que tinha astigmatismo. Era uma porta que se fechava. Foi até o escritório e pediu para lhe arranjarem um trabalho como mecânico de aeronave. Escola técnica, respondeu o responsável, e logo Schmidt passou a ter aulas durante o dia e trabalhar durante a noite como segurança. Por volta de quando começou a guerra na Europa, ele já tinha um emprego fixo como mecânico de campo para os Boeings e um bangalô cheio de livros, com as margens enegrecidas por sua escrita aracnoide. O projeto começava a tomar uma forma clara: como conectar os mistérios da tecnologia com os do espírito. Ele sabia que as aeronaves nas quais trabalhava – com seus bolos enrolados de cabos elétricos, seu sistema hidráulico, seus medidores calibrados que monitoravam níveis de combustível e potência do motor – eram só a metade da história. Havia forças maiores e mais intangíveis do que empuxo, torque e sustentação. Acabou que teria que ser ele quem deveria unificá-los. Talvez
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quando fosse levado para diante do criador, ele seria julgado não como um monstro, mas como um portador da luz, um homem bom. Depois de Pearl Harbor, ele foi realocado para o projeto XB-29, produzindo um novo bombardeiro de longo alcance para uso contra os japoneses. O cronograma era um verdadeiro castigo. A aeronave tinha todos os tipos de problemas, motores com superaquecimento, falhas elétricas misteriosas que demoravam dias para rastrear. Um dia, um piloto perdeu o controle do protótipo, caindo numa linha de força direto numa usina de embalamento. A equipe de solo pulou nos carros e caminhões e correu para o prédio em chamas, tentando se aproximar dos destroços para ver se alguém poderia ser salvo. Trinta pessoas morreram. Os problemas com os motores eram persistentes, e, depois que o bombardeiro entrou em produção, praticamente todas as partes que as fábricas produziam tinham defeitos. Os generais queriam que os aviões na China começassem as operações, mas, quando chegou a data em que deveriam partir, nem um único avião estava pronto. Schmidt foi man dado ao posto de Wichita, trabalhando em turnos duplos no meio de uma borrasca, supervisionando uma equipe que realizava as modificações finais no sistema de navegação. Eles precisavam parar para se movimen tar a cada vinte minutos, porque esse era o tempo máximo que qualquer um podia ficar do lado de fora até começar a sofrer de congelamento nas extremidades. Por fim, os aviões começaram a voar rumo ao leste, só para então ficarem presos no Egito, quando os motores, que já funcionavam mais ou menos, começaram a dar problema no calor de quarenta e oito graus. Schmidt foi mandado para instalar novos trocadores de calor e um sistema de arrefecimento, mais ou menos improvisados por uma equipe que trabalhava num hangar do campo de pouso do Cairo. Os B-29 seguiram capengando, e Schmidt os acompanhou. A temperatura no cockpit subia para setenta e seis, depois caía para vinte e oito graus abaixo de zero no Himalaia, quando as fuselagens foram
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testadas até a sua quase destruição por bolsões de ar e ventos laterais violentos que arremessavam os gigantescos aviões como brinquedinhos de madeira-balsa. Ele espiou pelas nuvens e flagrou relances de vales e gargantas, rios, vilas, e de vez em quando o brilho sinistro de destroços de alumínio nas rochas negras das montanhas. Alguma coisa o protegia, e após uma semana voando sobre os corcovados, ele se viu pisando o asfalto de Hsinching. Os camponeses se levantaram de seus arrozais nas fronteiras do campo de pouso, protegendo os olhos para ver os noventa bombardeiros da 58ª Ala decolarem rumo às siderúrgicas de Showa em Anshan. Ele já quase alucinava de cansaço, tendo passado as últimas quarenta e oito horas modificando os motores Wright Cyclone e tentando impedir a cascata de horrores que acontecia quando as coisas davam errado em pleno ar: válvulas disparando e destruindo os cilindros, pequenos vazamentos de fluido hidráulico que podiam fazer com que o piloto não conseguisse dar impulso às hélices, de modo que elas começavam a se arrastar e depois se deformavam, ou pior, acabavam tomando o motor inteiro, que então se entortava e saía voando direto para fora da asa. Os aviões pareciam grandes pássaros brancos, como anjos. Ele sentia uma forma indisposta de euforia. Estava cumprindo penitência, ajudando a vencer a guerra. No começo de 45, eles repassaram as operações para as Ilhas Marianas. Em Guam, Schmidt passava o intervalo sentado numa cadeira no convés do quartel em North Field, lendo Ísis Sem Véu numa edição que havia comprado de uma livraria teosófica em Calcutá. Para além do perímetro, na selva, havia animais selvagens e uns japoneses meio monteiros que haviam sido abandonados quando o Exército Imperial evacuou. Ele, por outro lado, estava às claras, no céu aberto. Pela primeira vez em anos, dava para si a permissão de sentir-se feliz. Andava ouvindo a equipe aérea falar de ataques incendiários, e, de algum modo, ele ainda estava intacto, mas depois foi transferido para Tinian. A 509ª
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Ala de Mobilidade Aérea agia como se fossem a segunda vinda de Cristo, desfilando feitos donos de todo o Pacífico, como se todos devessem pagar pelo privilégio de fazer uso do oceano. Segundo rumores, estavam para testar uma nova superarma; ao ver o Enola Gay decolar rumo a Hiroshima, Schmidt sabia que não estava carregado com a carga de explosivos de sempre, mas isso era tudo. Como o restante do mundo, ele só foi saber através de fotos: as crianças queimadas, os relógios parados às 08:15. Suas belas e reluzentes aeronaves, as portadoras da luz, haviam sido utilizadas para liberar trevas. Ele havia sido traído. Retornou a Seattle por volta do outono de 46, mas era incapaz de retornar à rotina do trabalho de civil. O mundo parecia deslizar rumo a algum novo e terrível mal. A promessa espiritual da energia havia sido pervertida: em vez de abolir a pobreza e a fome, a energia atômica iria transformar o planeta numa terra devastada. Incapaz de sair de casa começou a negligenciar o trabalho. O bangalô era frio e úmido. De noite, ele se sentava diante do fogo e tremia até cair no sono, imaginando as coníferas altas do lado de fora da janela fechando o cerco e apagando o céu. Acabou pedindo demissão antes que o demitissem, sacou a poupança no banco, colocou a biblioteca e os papeis em sua picape Ford ano 38 e partiu para o deserto. Em sua mente, ele se via como um dos profetas de outrora, um asceta sentado em posição de lótus numa caverna. Ele mortificaria seu corpo, purificando a mente. O mundo se dividia em dois, os dois lados da Cortina de Ferro. Seria ele quem curaria a ferida. Sua intenção era convocar a única força poderosa o suficiente para transcender o comunismo e o capitalismo e pôr fim à catarata de energias destrutivas. Desde a alvorada da história, os homens haviam feito contato com inteligências extraterrestres. As rodas dentro de rodas de Ezequiel, os pilotos espaciais maias, os armamentos cósmicos da Índia védica – os visitantes possuíam uma tecnologia espiritual muito mais
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DEUSES sem homens
avançada do que os mecanismos rudimentares da ciência terrena. Era hora de se manifestarem, intervirem na vida dos homens. Por isso, passou a enviar seu convite. Duas horas por noite – duas horas para pagar penitência pelo que havia feito com Lizzie, pelos bombardeios, por toda a miséria da existência na Terra. Ao vasculhar os céus, ele viu muitas coisas: chuvas de meteoros, formações de luzes brilhantes se deslocando sobre as Montanhas Tehachapi. Às vezes jatos militares passavam sobrevoando, lançando trilhas de vapor pelo azul do céu. Ele estava sentado do lado de fora numa noite de forte calor, cochilando após seu jantar costumeiro de salsicha e feijões enlatados. Ao longe, um coiote choramingava, e o ruído penetrou o seu sono. Abriu os olhos e se espreguiçou, pensando em ir até o bunker pegar um cigarro. Foi aí que viu: um ponto brilhante de luz voando baixo no horizonte. O céu era opaco, todo carregado com a poeira batida pelos últimos dias de fortes ventos, e demorou alguns momentos até ter certeza do que era aquilo que estava vendo. Enquanto assistia à cena, com a boca seca, o objeto se tornou maior, se aproximando numa velocidade incrível. Não havia nenhum ruído de motores, nenhum som absolutamente. Enquanto o objeto se aproximava, ele viu que tinha um formato de disco, liso, quase sem nenhum traço característico, exceto por um anel de luzes iridescentes em torno das bordas, como pedras preciosas ou os olhos de algum felino. Seu corpo começou a formigar com a carga elétrica, os pelos nos braços descobertos se eriçando. A oval enorme pairava acima dele, flutuando sobre as rochas como se estivesse a estudar o solo. Então, ela desceu altiva e imperial, pousando diante dele sem levantar a menor ôndula de areia do chão do deserto. Ele pensou, era a coisa mais bonita que já tinha visto. Depois do pouso, a nave começou a pulsar – era o único jeito que ele era capaz de descrever – com um brilho verde pálido, depois modulando entre o rosa e o púrpura, um pulso suave como o do coração. Ele não foi
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capaz de segurar o suspiro quando uma porta no casco se abriu, e uma rampa se desdobrou, como a gavinha de uma planta tropical. No limiar havia duas figuras humanas, uma masculina, a outra, de uma voluptuosidade feminina. O cabelo loiro dos dois era agitado por um vento etéreo, ainda que a atmosfera da noite estivesse calma e quieta. A pele deles era tão pálida que chegava a ser quase transparente, e em cada um de seus nobres rostos havia um par de olhos cinzentos notáveis, animados por uma profunda compaixão e inteligência. A dupla vestia robes brancos e simples, acinturados por correntes metálicas reluzentes. Os dois sorriram para ele, e ele foi banhado por uma sensação de benevolência por tudo que existia. Venha, disse uma voz – não alta, mas em silêncio, nas profundezas de sua mente. Era uma voz rica e sonora. Ressoava através dele como uma prece. Venha para dentro. Temos algo para mostrar a você. Finalmente, pensou. Sorrindo, ele seguiu até a luz.
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