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Para Anne-Emmanuelle, pour toutes les belles choses

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Título Original: How to Read the Air Copyright © 2010 by Dinaw Mengestu. All rights reserved including the rights of reproduction in whole or in part in any form. Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2012. Editor: Paulo Fernando Ferrari Lago Coordenação Editorial: Claudio Kobachuk Coordenação Gráfica: Renata Sklaski Tradução: Christian Schwartz Revisoras: Claudia Cabral Oliveira, Adriana Gallego Mateos e Valquíria Molinari Capa: Fabio Paitra Diagramação: Cláudio R. Paitra e Marline M. Paitra Contato comercial: Rosângela Britto Nota: A edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho de vários profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação e impressão. Grafia atualizada segundo o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. EDITORA NOSSA CULTURA LTDA Rua Grã Nicco, 113 – Bloco 3 – 5.º andar Mossunguê Curitiba – PR – Brasil Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108 http://www.nossacultura.com.br Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Mengestu, Dinaw. Uma perturbação no ar / Dinaw Mengestu ; tradução: Christian Schwartz. - Curitiba, PR : Nossa Cultura, 2012. 288 p. ; 23 cm. Tradução de: How to read the air. ISBN 978-85-8066-084-5 1. Ficção americana. I. Schwartz, Christian. II. Título. CDD (22ª ed.) 813.5

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Você ainda não está entendendo? Lance o vazio que há em seus braços ao espaço que respiramos; talvez os pássaros venham a sentir o ar cada vez mais rarefeito à medida que, voando, mergulhem em si mesmos. Rainer Maria Rilke, Duino Elegies

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a casa dos meus pais em Peoria, Illinois, até Nashville, Tennessee, dava uns 775 quilômetros, distância que, num Monte Carlo vermelho com sete anos de uso, à média aproximada de 95 quilômetros por hora, poderia ser percorrida em oito a doze horas, dependendo de certas variáveis como o número de placas na estrada sugerindo desvios para visitar marcos históricos e a frequência com que minha mãe, Mariam, precisasse ir ao banheiro. Eles se referiam à viagem como férias, mas apenas porque nem ele, nem ela se sentiam confortáveis com aquela palavra, “lua de mel”, que, ao promover o casamento entre duas palavras completamente distintas, cada uma das quais com sentido individual, parecia transformá-las, quando unidas, num desperdício que nenhum dos dois estava disposto a aceitar. Não eram recém-casados, mas o período de três anos que tinham passado longe um do outro os transformara em estranhos. Falavam entre si por sussurros, metade em amárico, metade em inglês, como se uma palavra apenas, pronunciada em tom alto demais, pudesse revelar a ambos que, na verdade, jamais houvera entre eles entendimento mútuo; que jamais souberam, de fato, quem era a outra pessoa. Aprender uma língua nova, no fim das contas, não era tão diferente de aprender a se apaixonar pelo próprio marido uma segunda vez, pensou Mariam. Parada em frente ao espelho do banheiro, de manhã cedo, ela muitas vezes dizia a si mesma, no que imaginava ser a pronúncia quase perfeita:

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“Homens podem se comportar de modo estranho. Esposas são diferentes”. Era algo que tinha ouvido de uma das mulheres da Igreja Batista que ela e o marido haviam começado a frequentar. Um grupo de senhoras estava reunido no estacionamento, depois de encerrado o sermão, e uma delas, voltando-se para Mariam, tinha dito: “Homens podem se comportar de modo estranho. Esposas são diferentes”. Na hora, ela simplesmente repetiu as mesmas palavras, quase literalmente: “Sim. É verdade. Homens são mesmo capazes de se comportar de modo estranho”, pois era o único jeito de ter certeza de que aquilo que dizia seria entendido por todas. O que gostaria de ter dito era muito mais complicado e envolvia uma lista enorme de diferenças que, por qualquer critério, seriam consideradas irreconciliáveis. Mesmo assim, desde que chegara aos Estados Unidos, seis meses antes, vinha se forçando a aprender coisas novas a respeito do marido, coisas, por exemplo, por que ele falava sozinho quando achava que ninguém estava olhando e por que, certos dias, na volta do trabalho, estacionava na frente de casa e ali ficava, dentro do carro, por uns dez ou vinte minutos, enquanto ela o observava por detrás da cortina da sala de estar. Havia madrugadas em que ele acordava e saía do quarto com cuidado para não acordá-la, mas nunca conseguia, pois na maioria das noites Mariam nem mesmo chegava a adormecer. Ele se deitava no sofá da sala, nu, e ela, do quarto, ouvia a respiração entrecortada do marido e, em seguida, um grunhido, e ele então voltava para a cama e dormia profundamente até de manhã. Minha mãe aprendia essas coisas e as armazenava no canto do cérebro que imaginava especialmente reservado para fatos relativos ao marido. Exatamente pelo mesmo princípio, obrigava-se a experimentar também novas palavras e a formar novas frases em inglês, porque, do mesmo jeito que havia um espaço reservado a seu homem, havia outro destinado ao idioma inglês, e outro às comidas estrangeiras, e ainda mais um aos nomes das ruas próximas de casa. Ela aprendeu a dizer: “Foi um prazer te conhecer”. E passou a incorporar palavras avulsas, como “espalhado” e “diligente” e “sarcástico”. Aprendeu

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o tempo passado dos verbos. Por exemplo: fiquei cansada ontem, em vez de fico cansada ontem, ou cansada ontem fico. Aprendeu que a Russell Street ia dar na Garfield Street, que por sua vez levava à Main Street, a qual, quando percorrida até o fim, saía na rodovia I-74 e, por ela, era possível ir aonde a gente quisesse, a leste ou a oeste. Mais tarde, tudo passou a fazer sentido. Os verbos encontravam a ordem correta, o sarcasmo era engraçado, a cidade se tornou familiar: passado, presente, futuro e marido – podia-se entender todos eles, desde que se tivesse a paciência necessária. Àquela altura do casamento, tinham passado mais tempo separados do que juntos. Ela ia somando os dias, arredondando os números para cima em alguns meses, para baixo em outros. A proporção era de 3,18 dias longe para cada dia junto do marido. Para ela, isso significava que havia uma dívida a ser paga, embora quem devia o quê, para quem, não estivesse claro. É a pessoa que fica quem sofre mais, ou é a outra, solta sozinha no mundo em busca de construir uma nova vida? Ela sempre odiara os números, mas, como a maior parte do que ouvia em inglês ainda lhe escapasse, procurava coisas para ir somando porque eles agora lhe pareciam um consolo. Na mercearia, calculava a soma de tudo antes de chegar ao caixa: uma lata de ervilhas, setenta e oito centavos; um pacote de sal, quarenta e nove centavos; um saco de cebolas, quarenta centavos. Os rostos sorridentes atrás das máquinas registradoras sempre lhe ofereciam algumas palavras em alto e bom som antes de anunciar o total da compra. Todas palavras perdidas para ela, mas que diferença fazia que não soubesse como reagir a uma saudação nem jogar conversa fora, ou que não entendesse o que queria dizer a expressão “leve dois, pague um”? Ela sabia qual número viria ao final, e esse número, porque não precisava de tradução, significava poder, e o fato de que já o conhecia enquanto estava se dirigindo ao caixa a enchia de um senso de realização e orgulho como nenhuma outra coisa com que tivera contato desde que ali havia chegado. De um jeito todo próprio, tranquilo e efêmero, aquilo a fazia se sentir uma mulher a quem se devia reconhecimento, uma mulher de quem os outros algum dia teriam inveja.

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Nunca soube o que se passara com o marido nos três anos em que estiveram distantes, tampouco havia tentado, para valer, imaginar. Repita para si mesmo “América” muitas vezes, tente criar para si, muitas e muitas vezes, uma imagem a respeito, e no fim você terá em mente alguns arranhacéus no meio de um milharal com milhares de carros circulando por ali. A única foto que recebeu naqueles três anos mostrava o marido sentado ao volante de um carrão, a porta aberta, seu corpo metade para dentro, metade para fora do veículo. Um dos braços apoiado na direção, o outro equilibrado sobre a perna. Parecia bonito, digno, o bigode cuidadosamente aparado, o cabelo basto e encaracolado, esculpido na forma de uma perfeita bola, realçando uma quase misteriosa semelhança que havia entre sua cabeça e um globo que, em casa, o pai dela mantinha empoleirado sobre uma cômoda. De início, ao ver a fotografia, não acreditou que o carro fosse dele. Pensou que, tendo-o encontrado estacionado junto ao acostamento de alguma rua, o marido aproveitara a oportunidade para se exibir, e, de fato, foi quase exatamente isso que ele tinha feito. O que não a impediu de sair mostrando a foto para a mãe, as irmãs e as amigas, ou de escrever no verso da foto, em inglês: Yosef Car. Achou que, mais adiante, receberia outras fotos: dele diante de uma casa grande com jardim; dele de terno, com uma pasta executiva na mão; e então, à medida que os dias, as semanas e os meses se acumulavam, e dois anos estavam próximos de se tornar três, passou a esperar por fotografias dele abraçado a outra mulher, com duas crianças pequenas ao lado. Secretamente, desde o dia em que ele partira, temia esta última foto, pois quem alguma vez soube de um marido que esperasse pela esposa? O mundo não funcionava assim. Os homens entravam na vida da gente para permanecer somente enquanto pudessem ser convencidos disso. E chegou mesmo a batizar as crianças por ele: Adam, o menino, e Sarah, a menina, nomes que jamais teria escolhido para os próprios filhos, porque eram típicos e comuns, e os filhos de Mariam, quando viessem, seriam extraordinários. Como tais fotografias nunca chegavam, ela quis escrever para o marido e dizer que mostrasse a ela uma foto dele no meio de algum lugar, de uma praça,

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de um parque da cidade, uma foto em que ele aparecesse encarnando apenas um papel, e secundário. “Me mostre uma fotografia de você fazendo alguma coisa”, ela queria ter escrito, mas não era isso, exatamente. O que desejava era vê-lo, de alguma forma, inteiro numa imagem, respirando, andando, rindo, vivendo sua vida sem ela.

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a manhã em que eles partiram para Nashville, minha mãe arrumou uma mala pequena com mudas de roupa de baixo para duas semanas, três pesados suéteres de lã que comprara por dois dólares cada num bazar de garagem, mais algumas calças e camisetas de verão, outono e inverno, embora fosse a primeira semana de setembro e, até ali, os dias continuassem amenos e ensolarados, e mesmo, ocasionalmente, quentes demais para as blusinhas de algodão sem mangas que tinha reparado em outras mulheres que circulavam casuais por entre os corredores da mercearia, nos centros comerciais e pela Main Street deserta. Aquelas mulheres não eram nem magras, nem atraentes. Eram sem graça, pálidas e comuns, a seus olhos totalmente indistinguíveis umas das outras, e isso era precisamente do que mais se ressentia e o que invejava nelas. A previsão era de que a viagem durasse, do começo ao fim, quatro noites e cinco dias, mas, enquanto se ocupava de encher a mala até o limite, ela resolveu que era sempre melhor estar prevenida para o inesperado, para o carro que enguiça, para o caminho errado que pudessem tomar, para uma longa caminhada noturna que, por um motivo ou outro, nunca terminasse. Já havia colocado a vida inteira na bagagem uma vez, e agora, seis meses depois, se tinha uma coisa que aprendera sobre si mesma, era que podia sobreviver com muito menos. Podia, se quisesse, se virar com quase nada. Seu marido, Yosef, já esperava por ela lá fora, ao volante do Monte Carlo cuja compra exigira dele mais de um ano de sacrifício e poupança e, ainda

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assim, ele mal conseguia dar conta de pagar. Não era o mesmo carro que ela tinha visto na foto. Não saberia dizer em quê, ou por quê, mas não era tão elegante quanto o outro, talvez menor, e, embora aquela fosse uma fotografia em preto e branco, pensava no Monte Carlo, com ele dentro a esperá-la, como uma precária sombra avermelhada do carro que tinha imaginado. A buzina soou duas vezes para ela: dois toques curtos e agudos que poderiam ter passado despercebidos, o que não aconteceu porque ela meio que esperava, meio que rezava por eles. Quando vieram, a imagem que lhe ocorreu foi a de um pássaro – um pombo, ou algo parecido – sendo libertado, suas asas batendo ligeiras, agitando o ar. Se conhecesse mais palavras em inglês, ela teria dito que aquele som de buzina perfurava o silêncio, sendo perfurar, nesse caso, a palavra certa para sugerir que alguma coisa violenta havia ocorrido. Se ele buzinar de novo, minha mãe falou para si mesma, me recuso a ir. Era uma questão de princípio e convicção, ou ao menos parecia tanto se tratar disso que, mesmo que fosse meramente orgulho ou raiva disfarçados, ela estava disposta a lutar e a derrubar a casa para fazer valer sua decisão. Havia, afinal de contas, esperado por ele durante anos – virtualmente uma viúva, mas sem o cadáver do marido nem a solidariedade dos outros. Caso tivesse alguma dívida a cobrar, aquele era o momento. Estava na hora de botar as roupas na mala, aprumar o fecho do vestido e tomar conta de tudo aquilo que talvez tivesse deixado para trás e poderia vir a lhe fazer falta. Se ele buzinar de novo, ela disse consigo, desfaço a mala, tranco a porta do quarto e espero até que vá embora sem mim. Era assim que meus pais começavam uma briga na maioria das vezes, senão sempre. Com um pequeno, quase invisível, delito ao qual um deles se agarrava, e era como se discutissem não porque alguém mandara o outro se apressar ou deixara luzes demais acesas pela casa, mas pelo próprio direito de existir, de viver, de respirar o ar puro de Deus. Quando criança, eu logo aprendi a identificar uma briga que se aproximava ou que estivesse em gestação, e a imaginava, às vezes, como uma presença física real, à espreita

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nas sombras de qual fosse o espaço que meus pais ocupavam naquele dado momento – mercearia, carro, restaurante. Sentados no sofá, os três, em frente à televisão, me dedicava a dar forma à discussão que viria, uma figura negra e solene com a túnica de carrasco, uma caricatura da morte e da tragédia tirada de livros e filmes, mas nem por isso menos real. Fantasmas são comuns na vida de qualquer criança: os meus apenas costumavam aparecer para jantar com mais frequência que os da maioria. A última briga que tiveram antes daquela manhã deixou minha mãe com um hematoma preto e arroxeado no braço direito, logo abaixo do ombro. O machucado tinha a cor de uma ameixa madura demais e era assim que ela o via, uma ameixa podre, esmagada ali com uma pressão tão rápida e forte que rompera a superfície para se instalar, achatada, sob a pele. Achava-a quase bonita. Ficava espantada que o corpo pudesse assumir tantos tons diversos, o que a levava a acreditar que houvesse mais do que um emaranhado de sangue e tecidos oculto debaixo da pele. Esperou, uma das mãos pousadas sobre a mala, que o carro voltasse a buzinar. Tentou não insistir naquele pensamento, mas ele lhe ocorreu de qualquer modo, um desejo egoísta, quase irresistível, de ouvir um toque da buzina, mesmo que acidental. Só mais um toque, pensou. Buzine de novo, uma vez só. Prendeu a respiração. Fechou a mala em completo silêncio. Com a mão pressionando em cima, puxou o zíper até a metade. Um fiozinho do tecido azul de um par de meias forrado, apetrecho de hospital que tinha apanhado duas semanas antes, ficou para fora do fecho. Ela empurrou a meia de volta com um dedo, terminou de puxar o zíper e, ao fazê-lo, reconheceu que ele a havia vencido desta vez. Tinha esperado tempo bastante para que ela terminasse uma tarefa menor antes de partirem, e, por mais que se esforçasse, era assim que via a coisa, vitória dele, derrota dela. Ela já estava indo. Mesmo que ele tocasse a buzina agora, com toda força, ela seria obrigada a ir, teria de descer a escada e se desculpar pela demora, pois ele a havia pressionado apenas o suficiente, não demais. Às vezes suspeitava de que o marido sabia

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onde ficavam as linhas invisíveis que ela constantemente traçava como limite. Havia dezenas delas pelo apartamento de quarto e sala, feito armadilhas que, quando disparadas, eram o início de uma nova batalha. Havia a linha de quantos pratos podiam se acumular na pia, e a dos sapatos largados pela casa, e outras que tinham a ver com jeitos de olhar e tocar, com a maneira como ele adentrava o quarto, tirava a roupa e a beijava no rosto. Certa vez, depois de uma noite de sono especialmente difícil, sentiu a respiração dele na nuca. Era quente, e saía em baforadas consistentes, com a constância de um homem profundamente adormecido. Ela não sabia qual dos dois odiava – se as baforadas ou se o homem respirando. No fim, ergueu uma barreira de travesseiros às suas costas, e de tal forma que, pela manhã, pudesse negar tê-la construído.

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s quatro grandes carvalhos que ladeavam a entrada da garagem eram os últimos de sua espécie. O maior e mais antigo deles erguia-se a apenas alguns metros da construção de dois andares que abrigava dois apartamentos, um dos quais era ocupado pelos meus pais, e o outro, por uma senhora mais velha, frágil e encurvada, olhos azuis leitosos, que sibilava baixinho toda vez que cruzava com minha mãe, entrando ou saindo da casa. Os carvalhos tornavam amena a temperatura da sala de estar no verão, filtrando a luminosidade da tarde por entre folhas aparentemente desproporcionais que, pensava Mariam, deliberadamente impediam a parte ruim da luz, deixando entrar somente as sombras mais suaves e calmas. Agora que já era setembro, e supostamente o calor mais agressivo do verão tivesse passado, ela reparou, enquanto se preparava para sair do apartamento, que as folhas mais próximas da copa das árvores começavam a cair; uma pequena pilha com algumas delas se acumulava junto dos troncos. Então aquilo era o outono. Uma das mulheres da Igreja Batista, poucas semanas antes, havia lhe dito: “Espere só até o outono. Você vai ver. Vai amar essa época do ano”. O nome da mulher

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era Agnes e ela usava uma peruca de cabelos pretos encaracolados para esconder as falhas no meio da cabeça. A-G-N-E-S, escreveu Mariam no verso de um folheto da igreja que descrevia em detalhes a agonia de Cristo, e isso a levou a anotar, naquele primeiro encontro, A-G-O-N-I-A no verso do folheto e, ao lado, Agnes agoniza, que era uma frase simples, com sujeito e verbo, formando uma afirmação que Mariam decidiu ser mais do que provavelmente verdadeira. Naquele dia, minha mãe pensou consigo mesma que jamais conseguiria gostar de algo chamado outono. Havia outono e havia ocaso. Ocaso era declínio, como uma queda. Quando minha mãe tinha nove anos, seu avô saiu do quarto que ocupava nos fundos da casa vestindo apenas um penhoar com o fecho desatado. Era surdo e cego, e sempre fora, até onde Mariam podia se lembrar. O avô caminhou até a sala de estar e, parando bem no meio do cômodo, cercado da família por todos os lados, caiu, não de joelhos, mas de cara, como uma árvore que tivesse sido cortada, a cabeça aberta pelo choque contra a lareira, sangue para todo lado, na parede, no sofá. Esse era um tipo de ocaso. A queda poderia ser de um lance de escadas, também, digamos, seu marido despencando dos degraus ao sair para o trabalho certa manhã. Esse pensamento lhe ocorria ao menos uma vez por semana, às vezes até três. Ela o imaginava tropeçando, quicando, de pernas para o ar, feito os personagens dos desenhos animados em que estava viciada, e aos quais assistia entre uma e quatro da tarde. Nesses programas, todos os personagens se recuperavam das quedas em poucos segundos, colocando um braço de volta no lugar aqui, recuperando um tornozelo acolá. Os desenhos a faziam rir e, quando pensava no marido caindo da escada, seu corpo alto e magro perfeitamente adequado à rolagem ininterrupta pelo carpete gasto degraus abaixo, talvez parando por um momento na pequena curva que conduzia ao lance final, apenas em parte tinha em mente as imagens animadas da tevê. Quando corpos reais despencam, Mariam sabia muito bem, não se levantam em seguida. Não saltam de pé, recuperados. Contorcem-se no chão e precisam de ajuda.

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Apesar de se esforçar bastante para resistir ao outono, minha mãe se viu cada dia mais envolvida pela estação. O sol tinha seu ocaso mais cedo, e ela logo descobriu que uma hora inteira de luz ia embora, um fato que ocasionalmente desejava ver se repetir mais e mais vezes até que o dia fosse nada mais do que uma minúscula versão de sua forma anterior. As noites iam ficando levemente, mas perceptivelmente, mais frias. As folhas mudavam e as crianças, que ao longo do verão tinham se comportado como verdadeiras tiranas do bairro, novamente se organizavam comportadas em grupos de duas ou três, subjugadas (ou assim pensava Mariam) pela mudança nas leis da estação. Havia tempo suficiente num dia para se acreditar que o mundo fosse, de alguma forma, sensível à dor e à saudade, e que reagisse a isso do mesmo jeito que ela quando se convencera de que o próprio tempo é que estava errado, mal-arranjado, o que tornava o desaparecimento de mais ou menos um minuto por dia um alívio bem-vindo. Minha mãe jamais poderia ter dito que amava o outono, mas, enquanto descia os degraus com a mala na mão em direção ao Monte Carlo vermelho no qual seu marido a estava esperando já fazia quase uma hora, talvez pudesse ter dito que respeitava sua posição mediadora entre dois extremos. O outono veio e se foi, e suportaram o inverno e celebraram o verão. O outono foi o descanso que tornou ambas essas coisas possíveis e suportáveis, e agora ali estava ela, com o marido ao lado, partindo apressada, numa tarde do início do outono, sem mais do que vagas noções sobre aquilo em se transformavam e o que estava por vir.

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eis meses antes de eu ter abandonado minha mulher, Angela, para refazer o itinerário dos meus pais pelo Meio-Oeste, meu pai morreu na pensão onde estava morando havia dez anos. Na época, sem pensar depositei sua morte no mesmo canto escondido em que, durante muitos anos, vinha enterrando qualquer coisa que considerasse muito problemática – categoria em que entravam cada vez mais coisas e, àquela altura, incluía até mesmo golpes menores, como insultos casuais ou olhares maldosos de estranhos. Fazia três anos que meu pai e eu não nos falávamos, e muitos mais que não nos víamos regularmente, fato que sublinhei para Angela quando ela me perguntou, vários dias depois que soubemos da morte dele, por que eu agia como se aquilo não me afetasse nem um pouquinho. “Você está fazendo a mesma coisa outra vez, Jonas”, ela disse. “Tocando em frente como se nada tivesse acontecido. Não suporto quando você age assim.” Lembro que tivemos essa conversa num sábado à tarde, sentados no sofá de plush verde desbotado no cômodo que nos servia, ao mesmo tempo, como sala de estar e sala de jantar. Era final de julho e eu estava começando a trabalhar na ementa da disciplina de literatura inglesa que daria ao pessoal do primeiro ano do ensino médio de uma escola privada no Upper West Side, em Manhattan, onde era professor. Angela usava um conjunto azul de tecido leve e tinha o cabelo, que havia acabado de trançar em grossos anéis negros, preso num coque, o que lhe conferia um aspecto grave e sério que

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parecia inadequado, como se ela, com seus olhos grandes demais, quase os de uma corça, e bochechas um pouco inchadas e elevadas, estivesse meramente representando o papel da advogada muito concorrida de um escritório de cidade pequena em que era a principal estrela, trabalhando até em finais de semana. “Nunca fomos realmente próximos”, eu disse a ela, “e, além disso, já esperava há muito tempo que isso acontecesse. O que mais você quer que eu diga?” Muitas das conversas que tínhamos, Angela e eu, nessa época, eram mais ou menos nesse tom defensivo. Estávamos casados havia três anos, mas, nos seis últimos meses, mal conversávamos, exceto para desferir ataques agudos um contra o outro. Era comum Angela me acusar de ser absolutamente desprovido de sentimentos, assim como passar largas porções do dia e da noite longe de mim e do pequeno apartamento de quarto e sala, num subsolo, que então dividíamos. Ela era advogada de uma firma de porte médio, em Manhattan, que atendia clientes corporativos de segunda categoria, os quais não tinham dinheiro ainda para contratar um dos escritórios de maior reputação cujas sedes ficavam nos andares mais altos do prédio onde Angela trabalhava. Ela odiava o que fazia, e também a maioria dos colegas de trabalho, mas tinha muito orgulho do emprego em si, uma vez que tivera uma infância pobre e desenraizada, passada em mais de uma dúzia de cidades diferentes do Sul e do Meio-Oeste, do Tennessee e do Misouri aos confins do norte de Ohio. Numa ocasião, ela me contou que ainda se lembrava como se sentiu quando, pela primeira vez, olhando-se no espelho, disse a si mesma que era uma advogada. “Foi estranho”, recordou. “Precisei repetir aquilo três vezes para realmente começar a acreditar.” Foi Angela quem, por indicação de um colega da firma de advocacia, me arrumou aquele emprego de professor. Antes disso, eu trabalhava num centro de adaptação de refugiados, onde ela e eu nos conhecemos. O centro ficava próximo à esquina da Canal com a Bowery, oferecendo, do quinto andar,

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uma vista do East River e das pontes de Manhattan e do Brooklyn. As pessoas que nos procuravam, antes da entrevista com os advogados, normalmente gostavam de parar por alguns minutos em frente às janelas de vidro duplo, como se já soubessem que, considerando-se as leis e a política vigentes, talvez nunca mais tivessem a chance de apreciar uma vista daquelas. Era meu sexto emprego em dois anos, parte de uma série de turbulências constantes, entre as quais mudanças para apartamentos cada vez menores divididos com estranhos que, ao longo do tempo em que morávamos juntos, permaneciam tão completamente desconhecidos para mim quando no dia em que fôramos apresentados. Tinha passado por um ou outro emprego permanente antes disso, mas nenhum que chegasse a ser uma carreira, ou mesmo funcionasse como preparação para uma. Após terminar a faculdade, pensei vagamente em voltar a estudar, entrar num doutorado de literatura inglesa cujo tema seria poesia americana moderna, e muitas vezes, em encontros casuais ou quando perguntado por mulheres a quem estava tentando impressionar, isso me serviu de resposta sobre o que fazia em Nova York, uma vez que, na maior parte do tempo, eu não fazia muita coisa. Uma década depois de me formar, no entanto, não havia ainda me empenhado substancialmente para realizar esses planos, exceto pedir, todo ano, os catálogos e as fichas de inscrição das cinco ou seis universidades que sonhava frequentar. Trabalhara como garçom em dois cafés pequenos, mas transados, localizados em ruas arborizadas e bonitas, margeando o West Village, ambos os estabelecimentos orgulhosos de suas geleias e pães feitos em casa e de seus produtos de hortas locais a preços que refletiam a disposição das pessoas a pagar caro por eles. Nossos clientes eram, em geral, ricos e, muitas vezes, famosos, mas passavam despercebidos. Bastava ser prestativo e servir o café ou os pãezinhos tostados com a geleia escolhida e, só na gorjeta, eu ganharia o dobro do que recebia por hora como salário, além de ter à minha disposição, também em dobro, conselhos desnecessários e não solicitados sobre investimentos, tal era a atmosfera levemente surreal em que estavam envoltos esses lugares onde trabalhei. Vindo somar-se a essa minha múltipla função como garçom, tive também alguns empregos

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temporários em empresas de corretagem de segunda categoria, as quais ocupavam um quarto ou menos de um andar em algum edifício descuidado e em mau estado de alguma avenida também de segunda. Pelo menos uma delas operava um elaborado esquema de sonegação para os muito ricos da cidade, gente praticamente moribunda; as demais eram simplesmente novas no negócio, funcionando aos trancos e barrancos, e ainda tão sem recursos que não podiam mais do que contratar um punhado de empregados em tempo integral e, no desespero da procura por clientes, ou freguesia, muitas vezes se mostravam pouco mais do que elaboradas barracas de feira nas quais homens e mulheres, uma meia dúzia ou algo assim, se sentavam esperando seus telefones tocarem. Minhas únicas tarefas, independentemente do ramo em que atuavam essas empresas e do quanto fossem bem-sucedidas, eram falar pouco, comer rápido e fazer algumas centenas de ligações por hora, e em todas elas eu sempre me saía bem, a ponto de, em duas ocasiões, ter sido considerado, ao menos temporariamente, uma grande aquisição para as empresas. Sem nunca pensar a respeito, tinha me tornado um desses caras que cada vez mais passam as noites solitários, nem incomodados, nem deprimidos com isso, apenas alheios às grandes maquinações da vida social com que se preocupam os outros. Terminada a intimidade forçada da infância, comecei a sentir dificuldades em me manter próximo das pessoas. Todos os poucos amigos que fiz na faculdade haviam, com o tempo, se distanciado e mudado, não para outras cidades, mas na direção de vidas melhores na mesma cidade onde drinques e presentes de aniversário, além de sexo e intimidade, entravam casualmente nas relações. Angela e eu nos tornamos íntimos pouco tempo depois de termos começado a trabalhar juntos no centro para imigrantes. Ela estava entre os muitos voluntários, estagiários de verão ou empregados temporários que passavam por ali todos os anos. Ao contrário de todos os demais, que chegavam e partiam sem que eu ao menos chegasse a saber seus nomes, rapidamente vi em Angela características em comum, em torno das quais

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criamos nossos laços. Éramos os únicos negros trabalhando no centro – qualquer outro, ali, muito provavelmente seria um atual, antigo ou futuro beneficiário do serviço – e foi sobre isso que Angela me fez uma pergunta, poucos dias após ter começado no emprego. “Não te incomoda essa situação? Especialmente por você trabalhar aqui em tempo integral.” “Quase nunca penso nisso”, falei. “Para você é incômodo?” “Não”, ela disse. “Não é. Mas, às vezes, me pergunto se não deveria ser.” A partir dessa conversa, descobrimos que tínhamos outros compromissos culturais e raciais em relação aos quais poderíamos nos incomodar, caso nos déssemos ao trabalho. “E os africanos que procuram o centro?”, ela perguntou, alguns dias depois. “Você gosta mais ou menos deles, em relação aos outros? Seja honesto.” “Depende”, respondi. “Do quê?” “De que parte da África eles vêm. Se são da costa oeste, não estou muito aí, para ser franco. Mas os da costa leste já são outra história.” “Então temos um problema aqui”, ela falou. “Como afro-americano e tudo mais...” “Já sei o que você vai dizer. A questão das lealdades...” “Sou costa oeste e ponto final”, atalhou ela. Começamos a sair para almoçar juntos em Chinatown quase todos os dias. Foi Angela quem sugeriu os almoços, mesmo dizendo que odiava ver os patos pendurados pelo pescoço nas assadeiras das vitrines dos restaurantes. “Sou meio vegetariana”, explicou. “Que é mais ou menos como dizer que sou meio branca porque meu avô era irlandês. Não conta, na verdade, e ninguém mais além de mim dá crédito a essas coisas.” Assim como dividíamos cumbucas de macarrão chinês, passamos a fazer o mesmo com o pessoal que atendíamos no centro, separando a costa oeste da costa leste. Primeiro dividimos os africanos, pois era mais fácil. Benin,

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Togo, toda a costa oeste até a Namíbia, e ainda grandes porções da África central e do norte do continente, foram para a Angela, do Congo para o oeste, e falei que tudo bem, porque fiquei com a Somália, “e ninguém quer ferrar com aquela gente”. Quando terminamos, passamos ao sul da Ásia, que cortamos uniformemente ao meio, o que, por sua vez, pouco importava, já que todas as pessoas daquela região que atendíamos eram paquistaneses, para começo de conversa. A América Central foi a próxima, dividida de acordo com a proximidade de cada país em relação ao Golfo, e depois vieram os pontos mais localizados do mundo, que combinamos caso a caso. Um cara vindo de Fiji ficou com a Angela porque ela disse que ele se parecia com um tio dela que morava em Boston; assumi uma família inteira do Turcomenistão, pois o sobrenome quase rimava com o meu. Uma semana mais tarde, quando acabamos, Angela contava com seu imaginário time do oeste, e eu com o meu, do leste. Se alguém do meu lado ganhasse o direito a uma entrevista para tentar asilo, era uma vitória para a equipe toda. Tudo que precisava dizer para a Angela era “leste”, e ela entendia na hora do que se tratava. Ela podia fazer, e com frequência fazia, a mesma coisa, não apenas comigo, mas também com os advogados e os outros estagiários, os quais olhavam pasmos para ela, que sorria e dizia: “O time do oeste ganhou mais uma”. Ninguém mais no centro além de nós falava coisas assim. Nas conversas sobre as pessoas que nos procuravam, o tom geral era de imensa solidariedade, temperado com frases aparentemente sinceras e sentidas do tipo: “Não dá pra acreditar nas coisas que esse pessoal tem de passar”. Angela nunca conseguiu falar desse jeito, e foi isso, em parte, que me fez admirá-la. Ao contrário de quase todos os outros voluntários ou empregados no centro, ela se sentia feliz com o que fazia ali. “Refugiados”, ela dizia. “Como alguém pode não amá-los? Não tem ninguém que você conheça que esteja pior.” No período de um ano em que trabalhei naquele lugar antes de a Angela aparecer, mais de meia dúzia de voluntários e advogados chegaram e foram embora, e quase todos abandonaram o trabalho pelo que, mais tarde, nas listas

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de e-mails, seria definido como razões pessoais, quando a verdade, claro, era bem conhecida de qualquer um que tivesse passado ainda que um período dos mais curtos de sua vida no centro. Perdíamos o tempo todo, semana após semana, senão todos os dias: os imigrantes desapareciam de repente e, entre aqueles que não sumiam, muitos acabavam sendo deportados; ficávamos impotentes nos dois casos. Numa semana era um hondurenho que debandava; noutra, uma família de quatro pessoas da Libéria, cujo pedido de asilo estava em processo de revisão, evaporava em alguma esquina do Bronx. Como todos os outros que vinham a nós, sabiam quais eram suas chances, independentemente de quanto tivessem sido tranquilizados pelos quatro advogados titulares do centro. Ter pouco mais do que chances razoáveis não parecia, para eles, o bastante – apenas total certeza poderia levar aquelas pessoas que haviam arriscado suas vidas ou perdido tudo que tinham para chegar até ali a sentar-se, calmamente, e esperar que alguém decidisse seus destinos. Além de Bill, o veterano advogado e diretor do centro, careca, envelhecendo a olhos vistos, Angela era a única pessoa que sabia dar nuances às nossas derrotas com algum senso de realidade. Bill costumava brincar dizendo que a verdadeira razão pela qual o centro existia era dar àquela gente tempo para que, antes de sumir, aprendesse como o sistema funcionava. “E os desgraçados”, ele completava, “nem nos agradecem por isso.” As vitórias, na maior parte, eram vitórias fáceis; todo mês, Bill selecionava alguns casos cujos desenlaces eram quase sempre previsíveis – o ex-médico ou advogado cubano, o dissidente político chinês, ou as vítimas recentes de uma guerra africana particularmente horrenda que, de passagem, tinham ido parar nas manchetes e chamado a atenção de algum senador ou deputado. Sabíamos que podíamos contar com casos como esses para incrementar nosso relatório anual, no qual medíamos os ganhos e as perdas antes de maquiar os resultados de modo a garantir um saldo positivo. * * *

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eu trabalho no centro era ler as requisições de asilo assim que chegavam, embora, de início, tivesse sido contratado para atender ao telefone e despistar as frequentes ligações de credores exigindo pagamento por fosse lá qual fosse o pequeno serviço prestado para manter nossos escritórios em funcionamento. Devíamos dinheiro para diversos técnicos de manutenção de fotocopiadoras, além de vários encanadores e um eletricista que frequentemente ameaçava vir fazer a cobrança pessoalmente. Sem dúvida meu sobrenome, e não minha formação em Letras, fora o mais determinante para que eu conseguisse o emprego e, mais tarde, a promoção com a qual vieram novas responsabilidades e um cartão de metrô. Jonas Woldermariam casava à perfeição com a demanda do centro por aparência estrangeira, um nome que soava quase tão enraizadamente americano quanto John ou Jane, mas com alguma coisa confortadoramente “alheia” como complemento final. Eu poderia ser chamado de Jonas, ou Jon, ou J, ou, quando Bill achasse necessário, Sr. Woldermariam, um sujeito que, apesar da distância de suas origens, permanecia um africano de coração. Se muitas das pessoas que nos procuravam, especialmente aquelas oriundas de países vizinhos, na África, ficavam decepcionadas assim que me viam, ao adentrar nossos escritórios, certamente encontravam alento na hora em que eram apresentadas a um dos advogados brancos de meia-idade que, quem sabe, os acompanharia ao tribunal. Que nossos caminhos se cruzassem na rua, ou num restaurante, ou que topassem comigo atrás do balcão de uma mercearia, era uma coisa; outra completamente diferente era ver que seus futuros dependiam de mim. Certa vez ouvi Bill, que, aos 53 anos, ainda não tinha aprendido a cochichar quando queria ser discreto, comentar com alguém ao telefone que havia sido uma sorte ter me encontrado. “Ele é cem por cento americano”, disse Bill, “mas não daria pra adivinhar simplesmente olhando pro cara. É importante que o pessoal que chega aqui veja isso.”

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Na leitura das requisições de asilo que cada candidato precisava escrever individualmente, meu trabalho, ao menos no começo, era separá-las em duas pilhas, a daqueles requerentes que, na minha cabeça, eram os perseguidos, e a dos demais, os não tão perseguidos. As histórias dos primeiros eram as mais fáceis de ler – quase sempre autoevidentes e sucintas –, ao passo que os candidatos que não estavam realmente sofrendo perseguição tendiam a tergiversar, fazer digressões que incluíam frases do tipo “sempre foi meu sonho...” ou “se me for dada essa oportunidade...”. Jamais se encontrava esse tipo de platitude nas narrativas dos outros – ali, a tônica era de um pragmatismo frio, quase áspero, cuja essência, posta de forma simples, era dizer: não tenho pra onde ir ou por que retornar à minha terra. Com frequência apareciam declarações do tipo: “O vilarejo, a cidade, o país de onde venho, onde nasci, onde vivi por 45 anos, 60 anos foi tomado, ocupado, bombardeado, incendiado, destruído, massacrado, e eu, minha família, minha irmã, minha prima, minha tia, meu tio, meus avós fomos capturados, baleados, presos, forçados a falar, torturados até falar, ameaçados caso não falássemos que votaríamos ou não votaríamos, que acreditaríamos ou não acreditaríamos, que apoiaríamos ou denunciaríamos o governo ou o movimento ou a religião X”. No final, as consequências eram sempre as mesmas, e todas as histórias terminavam com o mesmo recado enfático: “Nós, eu, não podemos, posso, vamos, vou nunca mais voltar pra lá”. Somente Bill e os outros três advogados ficavam em contato direto mais prolongado com nossos clientes. Eu os via, basicamente, entrando no centro e circulando por seus corredores mal-iluminados e gastos, cujo carpete, sem dúvida, precisava desesperadamente ser renovado. Quase sempre apenas trocava um breve oi ou tchau com aquelas pessoas. Se não estivéssemos em Nova York, a variedade de rostos que afluía aos escritórios teria me parecido extraordinária, mas definitivamente não era o caso ali. Qualquer menção a uma ideia desse tipo seria frustrada por um caos ainda maior esperando do lado de fora. Um dos advogados voluntários, que, duas vezes por mês, vinha do Upper East Side trabalhar no centro, uma vez afirmou que nossas modestas

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instalações, com sua vasta gama de clientes, eram o perfeito microcosmo da grande Nova York. Depois de apenas alguns meses no emprego, no entanto, eu estava convencido de que nossos escritórios não eram o microcosmo de coisa alguma; nem mesmo eram o reflexo de um todo maior, o que, aliás, para começo de conversa, é em si um mito. Os africanos que atendíamos se concentravam todos no Bronx, os chineses, numa região diferente do Queens daquela que era ocupada pelos imigrantes do sul da Ásia, ao passo que os do Caribe ficavam no Brooklyn; tudo que tínhamos eram nacos estreitos e tortuosos de território, selvagemente empilhados uns sobre os outros. Quem vinha pedir ajuda geralmente o fazia com uma leve sombra de vergonha pairando sobre si – a sensação de que, mais uma vez, pediam a alguém que lhes concedesse um direito que todas as outras pessoas que cruzavam na rua, no metrô e no trânsito tinham por natural os diminuía em quase tudo e os tornava mais submissos do que jamais haviam sido. Às vezes, era difícil olhar para aquela gente entrando no centro de imigrantes nesse estado, e eu mentiria se negasse que desviava o olhar, ainda que Bill tivesse me alertado explicitamente para não agir assim. “Como é que eles podem ter certeza de que serão respeitados aqui, se você não olhar honestamente nos olhos deles?”, dissera Bill. O problema, entretanto, é que eu nunca estava certo de que os respeitasse – aquelas pessoas que ali chegavam com seus rostos cansados de guerra quase sempre pareciam tão desesperadas por agradar e ser acolhidas por alguém que, de minha parte, só conseguia sentir pena delas. De vez em quando, tentava ligar os rostos às declarações que havia lido. Quem, no meio daquela tribo acidental e nômade, era afegão, paquistanês ou sudanês, ou apenas fingia ser porque sabia que isso tornaria o processo mais fácil? Se não sabia com certeza ao vê-los entrar, dedicava-lhes a história que achava que mereciam. O homem grisalho e precocemente corcunda que tentava passar a melhor impressão possível no terno que ganhara de doação era o professor iraniano cuja requisição eu tinha lido alguns dias antes, mesmo que não houvesse a menor chance de isso ser verdade. Sua

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vida real claramente fora muito mais dura. As histórias complicadas, aquelas que incluíam morte ou prisão e estupro, eu deixava de lado. Nunca tentava imaginar a quem pertenceriam. Antecipar-me e trazer um café, um chá ou uma Coca para os clientes antes que tivessem a chance de pedir tornava as coisas um pouco mais fáceis. Após algum tempo, recebi a tarefa de cortar as partes menos críveis ou desnecessárias de algumas das histórias e, ao mesmo tempo, apontar as passagens em que algumas delas poderiam ser expandidas ou incrementadas para alcançar maior efeito narrativo. Eu era tido como o literato do centro, com minha formação em literatura e suposto plano de entrar num doutorado. Angela, como uma das advogadas em estágio de verão, ou seja, trabalhando ali só até que uma carreira mais rentável no direito começasse para ela, encaminhava para mim as histórias que precisassem de “um toque”, ou de ser “melhor desenvolvidas”. Pegava aquelas declarações de meia-página, rudimentares e geralmente de natureza brutal, e acrescentava-lhes os detalhes que as tornariam reais para o oficial da imigração que as leria um dia. Tomava uma frase como “eles apareceram no meio da noite” e a transformava: “Tínhamos ido dormir, minha mulher, minha mãe e as duas crianças. Os lampiões do vilarejo já estavam todos apagados, mas a lua brilhava e era possível, mesmo na escuridão, distinguir os contornos das casas. Foi por isso que o ataque aconteceu naquela noite”. Era fácil achar os detalhes necessários; eles vinham à tona repetidamente no mundo todo, em vários países, por razões diversas e em diferentes épocas. Também descobri rapidamente que aquilo que não desse para descobrir pesquisando poderia ser inventado com base nas suposições que a maioria de nós compartilha, quando se trata de países estrangeiros pobres e distantes. Bill me explicou a ideia da seguinte forma: “Se a gente parar pra pensar, é sempre a mesma história, na verdade. Basta mudar o nome do país. Às vezes também a religião envolvida, mas, fora isso, não tem muita diferença”. Foi sugestão dele que eu usasse uma história para alimentar outras. “Ninguém nunca vai reparar”, ele disse, e nisso, ao menos, estava enganado.

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Depois de algumas semanas trabalhando com Angela, um dia ela veio à minha mesa. Trazia um dos meus relatórios; era a primeira vez que realmente se dava ao trabalho de ler o que acontecia às histórias que passavam pelas minhas mãos. “O que é isso?”, ela perguntou. Me passou o relatório – a suposta história real de uma família arrancada de casa na Libéria. Um dos mais dramáticos e, na minha opinião, melhores relatos que escrevera: a família, conforme a descrevi, forçada a se esconder durante semanas numa igreja, enquanto, do lado de fora, uma milícia permanecia à espera. “Isso não aconteceu, nem de longe”, Angela falou. “Eles fugiram de classe executiva direto para Dubai. Quem são essas pessoas?” Angela estava mais chocada do que furiosa com o que eu havia feito. Uma das muitas coisas em que confiávamos, um em relação ao outro, era que ambos víamos os clientes estritamente como clientes, sem nos deixarmos levar por sentimentalismos quanto ao apuro por que passavam. Com minha atitude, eu traíra a confiança de Angela. “Não inventei essas coisas”, respondi, e era verdade. Algo parecido acontecera a outras pessoas, embora já não conseguisse mais me lembrar se era uma história que tinha escutado ali mesmo, no centro, ou lido no jornal. “Não é isso que eu quero”, ela disse. “Me devolva a requisição original.” Entreguei de volta o relato de uma página que contava a história mais do que comum de uma família obrigada a entregar seus negócios e seu sustento a outra que até ali nada tinha. Tentei argumentar com Angela que somente por um artifício da imaginação seria possível ver algo de especial naquela história. A gente perde o que tem e quase sempre tenta tomar à força o que não tem. O que há de novidade nisso? Quando a requisição chegou ao advogado que representaria a família, foi imediatamente rejeitada e devolvida para mim com um recado do Bill, escrito à mão no alto da página, que dizia: “Dê um jeito nisto, Jonas”. Angela e eu nunca mais falamos no assunto, ou tampouco falamos muito um com o outro nos dias seguintes. Quando perguntei se queria ir almoçar comigo, ela respondeu,

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simplesmente: “Desculpe, Jonas. Hoje, não”, e foi o máximo que conseguiu me dizer para comunicar que estava decepcionada comigo, não por ter inventado uma nova história para alguém, mas porque, aparentemente, eu não via nenhum problema em fazer isso. Foi a facilidade com que menti que a assustou. Só no final daquela semana, numa confraternização de verão organizada pelo centro e realizada num barco, é que começamos a nos reconciliar. Todos os demais advogados estavam lá, e também alguns dos voluntários e estagiários, além de clientes cujos pedidos de asilo haviam sido recentemente aceitos. A atmosfera deveria ser festiva – uma espécie de tour da boa vontade internacional por Manhattan, regado a comida de todas as partes mais conturbadas do planeta, cada prato do buffet identificado com uma pequena bandeira do respectivo país de origem. Na metade do passeio, Angela me encontrou sozinho, parado a estibordo no convés, mirando o que eu imaginava ser o ponto exato de confluência do Atlântico. “Então é aqui que você está se escondendo”, ela disse. “E não faço bem em me esconder?” “É verdade. O negócio lá está deprimente. Alguém está se preparando pra começar um discurso.” “E você não está preocupada com o que vai perder?” “Já sei o que vão dizer”, ela falou. “As coisas estão complicadas. Temos feito o melhor que podemos. Nossos clientes nos inspiram.” Ela deslizou o braço pela amurada do convés até tocar o meu. “Você está bravo comigo, Jonas?” “De jeito nenhum.” “Diria se estivesse?” “Provavelmente, não.” “Foi o que eu pensei. Não é seu estilo. Você é um reflexivo. O Bill me contou que foi ele quem te falou pra mudar as declarações. Disse que você é muito bom nisso.” “Mentir é natural pra mim.”

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“Ontem uma mulher tentou me convencer que tinha oito filhos e precisava de vistos pra todos eles. Disse que tinha 35 anos.” “E quantos anos ela tinha? Dezoito, dezenove?” “Vinte, talvez vinte e três, no máximo. Quis explicar pra ela que era impossível usar aquela história. Ninguém vai acreditar em você, falei. Mas ela só balançava a cabeça e insistia que tudo que tinha dito era verdade. Oito filhos, dizia. E repetia de novo. Chegou a levar umas fotografias. O mais velho era quase da mesma idade dela. Minha vontade era dizer pra mulher ir falar com você e só voltar quando tivesse resolvido a questão.” O barco costeou a ponta sul de Manhattan; à medida que nos aproximávamos da Ponte do Brooklyn, um número cada vez maior dos clientes a bordo foi saindo para o convés. Não tinham chegado a ver as Torres Gêmeas, exceto nos destaques da tevê em que os dois prédios apareciam pegando fogo e prestes a ir ao chão. A maioria, parada ali no convés, tentava imaginar onde exatamente ficavam as torres. Um casal perto de nós apontava para lugares divergentes. Uma das pessoas posicionava os prédios bem à beira-d’água, a outra, mais próximos do ponto exato, na orla, de onde partem as balsas com destino a Staten Island. Bill apareceu para corrigir a ambos. “Eles ficavam ali”, ele disse. “Bem atrás daqueles prédios.” O casal voltou o olhar para onde ele apontava, e pude ver que tentavam recriar a imagem das torres a partir da memória do que haviam visto na tevê, mas o denso emaranhado de prédios à frente atrapalhava. Um, talvez dois anos antes, Bill teria ficado por ali mais tempo, recontando o que ele próprio vivera naquele dia. Teria dito algo como: “Eu estava a caminho do trabalho”, ou “Eu tinha ido pro escritório mais cedo naquela manhã”. “Foi quando eu vi”, ou “ouvi”, algo assim, que o colocasse quase que diretamente no centro dos eventos, que era como via a si mesmo – um cara meio heroico, posicionado na linha de frente. Mas, nesse caso, Bill não estava sozinho. Durante alguns anos, todos tentamos reivindicar o próprio quinhão sobre o que se passara naquele dia. Esse tempo já era, e o máximo que Bill ou qualquer um de nós podia fazer

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agora era, nessas oportunidades, fazer o registro mais correto possível do que acontecera. Quando o barco já havia passado debaixo da Ponte de Manhattan e seguia firme já em águas do outro lado da cidade, o pessoal todo abandonou o convés e sobramos só Angela e eu ali. “O que será que está rolando lá embaixo agora?”, perguntei a ela. “O Bill, o Jack e o John estão se embebedando no bar, chamando os clientes pra junto deles e se exibindo uns para os outros. Os paquistaneses estão sentados sozinhos numa mesa, mal conversando entre si porque ninguém ali se gosta, na verdade. Simplesmente todos falam, por acaso, a mesma língua e não confiam nos liberianos, especialmente nos rapazes, que provavelmente surrupiaram do bar uma garrafa de alguma bebida, mesmo não tendo idade pra beber.” “E se você estivesse lá, com quem ficaria?” “Com os liberianos, bobo. São praticamente minha família, você deveria saber disso a esta altura.” “E eu?” “Depende. Se eu não estivesse junto, você provavelmente estaria sentado quieto num canto, sozinho.” “E se você estivesse junto?” “Aí eu te traria comigo pro time do oeste, e você nunca mais teria que ficar sentado pelos cantos, sozinho e amuado.” Aquela foi a primeira vez que Angela reconheceu minha tendência a, discretamente, escapar à companhia dos outros; mesmo parado num mesmo ambiente com outras pessoas, muitas vezes eu desaparecia num canto só meu. O fato de Angela enxergar isso como algo que ela podia discutir, quem sabe até mudar, só começou a existir para nós quando, naquela noite, eu a ouvi falar abertamente no assunto. Nosso primeiro encontro romântico aconteceu dois dias mais tarde, embora nenhum dos dois chegasse a chamá-lo por esse nome. Saíamos do centro quando Angela se virou para mim e disse: “Não estou a fim de ir direto pra casa”.

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“E o que você está a fim de fazer?” “Queria sair pra beber alguma coisa depois do trabalho. Nunca fiz isso, mas é o que pessoal faz sempre, não é? Tentei uma vez, mas, chegando ao bar, vi que não era o que eu queria. Tomei um club soda e fui embora sem me despedir.” Nos acomodamos num bar italiano recém-aberto a algumas quadras do centro de imigrantes, onde antes havia funcionado uma peixaria chinesa. Sobre o pórtico de entrada, tinham sido mantidos tanto a decoração, com uma perca enorme, quanto a inscrição em mandarim. “Esperto”, comentou Angela, e, para o caso de eu não ter entendido o sarcasmo, acrescentou, exagerada: “Realmente esperto”, seguido de uma piscadela dupla. Desde o começo da noite bebi rápido demais, enquanto Angela lentamente bebericou a mesma taça de vinho por quase uma hora. Queria impressioná-la e ser levado a sério. Quando ela me perguntou quanto tempo eu planejava continuar no centro, estava suficientemente bêbado para tagarelar sem a menor preocupação com os fatos. Disse a ela que estava pronto para abandonar o emprego a qualquer momento. Que tinha planos maiores e mais ambiciosos para o futuro. “Estou concluindo a seleção para a pós-graduação”, falei. “Quase fiz no ano passado, mas queria ter um pouco mais de experiência da vida real. Ajuda na aprovação, especialmente nas melhores faculdades.” “E mentir em pedidos de asilo conta como experiência?” “Claro que conta”, eu disse. “É o melhor tipo de experiência. Ficção, mas ao mesmo tempo real.” “Exatamente como a pós-graduação?” “Isso mesmo.” Por fim, voltamos juntos, a pé, até o apartamento que ela dividia com outras duas moças, suas colegas na faculdade de direito. “Hoje paramos por aqui”, ela falou. “Não quero que as meninas que moram comigo pensem que sou fácil.”

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A partir dali, passamos a nos encontrar todas as noites depois do trabalho. Angela ainda tinha mais três semanas de estágio de verão, o que significou dias inteiros e quase a totalidade das noites, exceto suas últimas horas, de íntima proximidade. No escritório, encontrávamos desculpas para estar permanentemente em contato. Angela vinha à minha mesa, na recepção, em busca de canetas, grampeadores, clipes, borrachas, e, quando não tinha necessidade de mais nenhum material de escritório, inventava alguma outra coisa para me pedir. “Você teria um mapa do Misouri, Jonas?”, ela me perguntava. “Não”, eu respondia. “Esqueci no meu apartamento.” Mais tarde, na mesma noite, encontrei o mapa num sebo. O Misouri era o lugar que Angela mais associava com estar em casa. “A gente morou em um monte de lugares”, ela me contou. “Da maioria, eu preferia esquecer. Mas o Misouri é o primeiro de que tenho alguma lembrança. Acho que foi onde moramos mais tempo, mas vai saber. Provavelmente estava mais preocupada em chupar o dedão do que registrar esse tipo de coisa.” Deixei o mapa, embalado para presente, na mesa dela na manhã seguinte. Ela veio depois dizer que tinha adorado e, desta vez, não havia sarcasmo ou mesmo algum tom jocoso na sua voz. Estava genuinamente tocada, e era importante para ela que eu entendesse o quanto. No restante do verão, saíamos do escritório com dez minutos de intervalo um do outro. Nos encontrávamos no mesmo bar onde tínhamos ido no primeiro encontro e, dali, vagávamos pela cidade por cinco ou seis horas, uma vez que nenhum dos dois contávamos com um lugar reservado que nos abrigasse. Caminhar a céu aberto por tanto tempo só nos fazia mais íntimos. Havia espaço de sobra nas avenidas, e as ruas menores frequentemente lotavam de pessoas e táxis apressados para cruzar a cidade. Decerto que andávamos de mãos e braços dados, envoltos em nossos troncos e cinturas. Angela brincava que éramos como um casal de gatos extraviados. “Na minha infância sempre apareciam alguns pelas ruelas”, ela me disse, “e eu sempre me perguntava o que eles faziam a noite inteira. Agora sei.”

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Apesar de que ambos morávamos em Nova York havia anos, nenhum dos dois tinha criado laços duradouros e profundos com algum bairro em particular. Não havia ruas a que fôssemos especialmente apegados, restaurantes que amássemos ou bares nos quais, algum dia, tivéssemos passado muitas horas sentados em solidão. Angela chegara ali como uma estudante séria, dedicada às leis, ao passo que eu vagava, já fazia tempo demais, de uma vizinhança ou cercania a outra para que pudesse reivindicar minha parte no que quer que fosse além do que tinha imediatamente à mão. Então começamos, deliberadamente, a tentar consertar isso. “Quero que a gente tenha um café nosso”, ela sugeriu. “Um lugar onde eu possa sempre ir e imaginar como sendo da gente.” Em nossa quinta noite juntos, descobrimos um café vagamente francês, mesas com tampo de mármore e cadeiras de madeira em formato de coração, e estabelecemos que o lugar nos pertencia. “A próxima coisa que precisamos é um banco de praça”, disse Angela. “Não dá pra envelhecer como casal sem ter um. Essa é uma das regras da vida.” Dedicamos várias noites a testar bancos por toda a cidade. Era o mais perto que alguma vez chegaríamos de procurar uma casa, embora não soubéssemos disso na época. Ao contrário, encarávamos tudo como ensaio para um futuro namoro que nos faria entrar para a categoria dos casais jovens e felizes que passavam seus dias e suas noites em busca do que imaginavam fosse o lar perfeito. “Não quero um banco pra cima da Fourteenth Street.” “E eu não quero perto de uma rua movimentada.” “Precisa ter apoio para os braços.” “E uma bela vista. Tem que ter algum tipo de gramado ou árvore por perto.” “E quanto a alguns serviços de conveniência?”, perguntei. “Um restaurante com banheiro não muito longe seria legal.”

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“E também uma loja de vinhos”, eu disse. “Tenho sede quando tenho que ficar muito tempo sentado.” Os bancos da Union Square e arredores, onde dava para chegar a pé do apartamento da Angela, foram imediatamente descartados – muito barulhentos e lotados, e as aglomerações de manifestantes antiguerra que havia por ali tumultuavam até mesmo os domingos. “Parece que ninguém nunca vai pra casa por aqui”, Angela reparou. “Sempre tem gente. Precisamos de um lugar mais calmo.” Caminhamos para o leste, até o fim do East Village. Lá, em frente a um condomínio popular e a um jardim comunitário apinhado de salgueiros, encontramos um banco que parecia raramente estar ocupado. “Perfeito. É este o banco, definitivamente.” “Podemos assinar o financiamento amanhã”, falei. * * *

Q

uando o verão terminou, Angela começou sua carreira de verdade na firma de advocacia. Pegou o primeiro pagamento e se mudou para um apartamento próprio – o quarto e sala no porão que viríamos a dividir pelos quatro anos seguintes. Angela nunca foi boa em estabelecer limites e, no mesmo dia em que entrou no apartamento, mandou fazer um molho de chaves extra para mim. “Você sai antes do trabalho”, ela disse. “Não quero mais que fique perambulando por aí feito um gato. Acho que já fizemos o bastante disso. Está na hora de termos uma casa.” O restante dos meus pertences, carreguei oficialmente para o apartamento dela dois meses mais tarde. “Não precisamos criar muito alvoroço com isso”, Angela falou, enquanto me passava o contrato de financiamento que ela mesma tinha esboçado, com

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espaço para os nossos dois nomes. “As pessoas fazem esse tipo de coisa o tempo todo. Ou, pelo menos, é o que ouvi dizer. Faz sentido. Das suas coisas, só o que não veio ainda são as roupas.” Na manhã em que me mudei para o apartamento da Angela, passamos várias horas misturando, de propósito, nossos pertences. “Não quero que haja seu e meu, dele e dela”, ela disse. “Nunca morei com ninguém até hoje e, se vou fazer isso agora, quero que seja direito. Venha. Me dê sua mala.” Entreguei a ela a valise única, preta, que continha todas as minhas roupas. Ela a abriu, tentou abafar uma risadinha ao ver que eram tão poucas peças e, então, começou a acomodá-las, ordenadamente, ao lado das suas nas gavetas. “E se alguém chegar aqui e pensar que aquelas são minhas roupas íntimas?”, perguntei. “Vai descobrir que você gasta demais com roupas. O que mais tem aí?” Apontei para a meia dúzia de caixas de livros que tinha trazido – o principal do que, um dia, fora uma coleção respeitável de poesia e romances em edições de bolso que haviam praticamente se deteriorado por completo. Angela esvaziou a parte da estante reservada aos volumes de textos jurídicos, em capa dura, que acumulara durante a faculdade de direito e começou a preenchê-la com meus livros, e a comparação, entre estes e os textos bem encapados que até então ali estavam, era cruel. Quando terminou a tarefa, ela abanou a cabeça, voltou à estante e esvaziou as duas extremidades de cada prateleira. Nos espaços vazios, encaixou grossos e sólidos livros de direito constitucional e direito penal. Um empenho que ambos admiramos. “Não ficou exagerado, né?”, ela perguntou. “Não quero que pareça algo pensado demais.” “Parece perfeito”, eu disse a ela. “E uma soma justa de nós dois.” Durante pelo menos os primeiros seis meses em que moramos juntos, permanecemos totalmente comprometidos com os princípios estabelecidos naquela manhã. Tínhamos o cuidado de sempre falar das coisas que eram nossas, que nos pertenciam, ou de que nós precisávamos.

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“Quanto dinheiro temos?”, Angela perguntava, às vezes, não porque quisesse realmente saber a resposta, mas para brincar um pouquinho com aquele possessivo plural que ela estava livre para usar quando estivesse a fim. Como num passe mágica, havíamos duplicado nossos parcos pertences e nossos ainda mais parcos seres, e por algum tempo nos sentimos, ambos, mais ricos por isso. “Vou ler tudo que te pertence”, ela me falou, certa tarde. “Mesmo os livros idiotas que você não quer me dizer sobre o que são.” “E vou fazer a mesma coisa”, eu disse. Levantei e tirei da estante o primeiro volume do Direito Constitucional dos Estados Unidos. Angela, para não ficar atrás, foi até o armário do quarto e apanhou, na última prateleira, o exemplar grosso, em capa dura, de um dicionário que tinha sido presente da minha mãe quando me formei na faculdade. “Ouvi dizer que é muito bom”, comentou ela, “e bom, neste caso, quer dizer: excepcional, soberbo, sensacional, maravilhoso, incrível, de primeira, de alta classe, autêntico.” Depois disso, Angela carregou para o trabalho alguns romances dos quais nunca tinha ouvido falar. Fez um esforço comprometido para lê-los no metrô, do mesmo modo que tentei, honestamente, me tornar um leigo especialista nas normas em vigor para o direito internacional e os direitos humanos, que, segundo Angela me dissera, eram as duas únicas coisas que ela conseguia amar na profissão de advogada. “O resto, pra mim, é besteira”, ela me falou. Continuamos assim, embora a convicção de que tudo que disséramos seria possível fosse cada vez menor. Angela desistiu dos meus livros, e desisti dos dela também. Lutávamos, às vezes, para conseguir jantar juntos duas vezes por semana, mas, claro, para muitos jovens casais não é diferente. Foi somente quando perdi meu emprego no centro de imigrantes, nove meses mais tarde, que começaram a surgir as primeiras fissuras na nossa relação. Bill me chamou na sua sala, numa terça de manhã, e falou, com voz sombria e grave, que havia umas coisas sobre as quais precisávamos conversar.

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“Você sabe que estamos muito satisfeitos de ter você aqui, Jonas”, ele começou. Bill sempre teve dificuldades em parar quieto, mesmo nas situações mais banais. Andava para cima e para baixo pelos corredores do centro, manhãs e tardes inteiras, muitas vezes resmungando consigo mesmo. Era ainda pior ali, no escritório acanhado em que estávamos agora, com uma única janela que dava direto para um novo prédio de apartamentos em construção. Ele não tinha espaço suficiente para extravasar sua ansiedade e se sentia o tempo todo encurralado pela escrivaninha, pelas estantes, pelas pilhas de arquivos amontoadas no chão ao seu redor. Esbarrou numa delas e uma torre de papéis desmoronou. Quando me abaixei para apanhá-los, ele me disse que não precisava. “São irrelevantes”, falou. “Devia ter jogado isso fora faz anos. Como a maioria dos arquivos aqui. Melhor deixar onde estão, senão nunca mais vou tocar neles.” Em seguida, começou uma longa fala sobre as dificuldades que um escritório como o nosso enfrentava. Repetiu várias vezes a frase: “O jogo agora é outro”. “As leis. Os imigrantes. Não são mais como antes. O jogo é outro com eles”, disse Bill. “E, quanto às fontes de financiamento, nem falo. Como mudou. Chegávamos a preparar mais de vinte propostas por ano, com a certeza de que pelo menos metade seria bem-sucedida. O jogo agora é outro. Preparamos umas sete, talvez oito. E consideramos sorte se uma delas funciona. Nossos doadores privados sempre querem saber quem são, exatamente, os clientes do centro. Nunca dizem nada específico nesse sentido. Não se rebaixariam assim, mas eu sei que se preocupam que a gente esteja tentando legalizar as pessoas erradas. Digo a eles que temos uma porção de salvaguardas contra isso, mas não é isso que os inquieta. A preocupação é que se vejam envolvidos com algo que, algum dia, possa não parecer boa coisa. Nem mesmo sabem que coisa poderia ser essa, ou por que não pareceria boa, mas não querem arriscar, de modo que estão saindo em debandada, Jonas.”

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Deixei-o falar desse jeito, sem interrompê-lo, por mais de meia hora, durante a qual ele levantou todo tipo de assunto, do Ato Patriota ao FBI ao tanto que alguém precisa estar fodido no país de origem para conseguir um visto americano. Quando finalmente chegou ao motivo pelo qual havia me chamado à sua sala, eu já quase não o escutava. Sabia qual era o final da história desde muito antes, e tinha me poupado o sofrimento da antecipação. Nem me lembro de ouvi-lo dizer: “Vamos ter que te dispensar imediatamente. Simplesmente não temos dinheiro para continuar a pagar seu salário”. A essa altura, já ia fora do prédio, imaginando a caminhada que faria mais tarde, ainda naquele dia, ao atravessar a Ponte do Brooklyn. Era uma tarde clara, quase imaculada, fresca sem ser fria, no fim de outubro, e eu tinha certeza de que haveria um vento bom, soprando forte através do East River para me ajudar na travessia.

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