PORTUGAL MUDOU-SE comédia infantil em 2 atos um texto original do
Sobrenatural de Almeida
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PERFIL DOS PERSONAGENS Bufões, de coração puro, como palhaços de um circo mambembe de periferia. São pierrôs que vestem a capa do arlequim para enfrentar o mundo, como no autorretrato de Ans Markus, acima. Dom João: Príncipe regente de Portugal, é autoridade, mas sofre pressões de todos os lados. Bobo da Corte: Meio pierrô, meio arlequim, é narrador da história e faz-tudo do reino. Clementina:
Meio
colombina,
meio
“grilo
falante”,
às
vezes interage, outras vezes atua como coro.
AMBIENTE e ENCENAÇÃO Espaço cênico de fundo infinito, poucos objetos e um telão para projeção. Cada ator tem uma câmera go-pro, usada em cena para
projetar
suas
expressões
faciais
no
telão.
Versão
infantil da Ópera Bufa, bem ao estilo do teatro Tablado de Maria Clara Machado. Encenação farsesca, com quarta parede explodida e recursos de metateatro.
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ATO I
ABERTURA. INT. DIA. SALA DO TRONO No telão vemos um amanhecer em Lisboa, começo do séc. XIX. O BOBO entra na sala do trono procurando sua amiga CLEMENTINA que se oculta atrás dos poucos objetos cênicos. Seus “esconderijos” são evidentes para o público, como nas peças infantis. Sobre tal ação sobrepõe-se, na tela de fundo, o texto de abertura:
NO COMEÇO DO SÉCULO XIX AS AMBIÇÕES DE NAPOLEÃO E SUA RIVALIDADE COM A INGLATERRA, CAUSARAM A MAIOR CONFUSÃO NO PACATO REINO DE PORTUGAL...
CENA 01. INT. DIA. SALA DO TRONO Clementina está escondida atrás do relógio de pêndulo. O Bobo CANTA:
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BOBO Oh querida... Oh querida Clementina! Porque te escondes do teu amigo sincero? Aparece, vai? Não vou mais te fazer cosquinha. Eu juro.
O Bobo beija os dedos em cruz. Espera um pouco, mas nada acontece. Clementina se esconde atrás do trono. Desiludido, o Bobo se senta no trono pra descansar.
BOBO Foi tão bom conhecer-te... Vivo nesse palácio, cheio de gente. Mas ninguém me compreende!
O Bobo suspira e cai no sono. Clementina o acaricia. Anoitece. Vem o dia. Chega DOM JOÃO, ela se esconde de novo e fica lixando as unhas, “escondida” atrás do trono. Suas expressões faciais e interferências não são percebidas pelos demais atores em cena, apenas pelo público, sobretudo por causa da projeção ao fundo.
D. JOÃO Oh Bobo abusado, que fazes aí?
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BOBO (sonolento) Durmo.
D. JOÃO Como é?
BOBO Como, não. Durmo.
D. JOÃO Como é?!
Destaque pra expressão de incredulidade de D. JOÃO no telão.
BOBO Ah meu Deus, tá difícil... Sono, soneca, pestana, cochilo. Tão gostoso, Seu Príncipe...
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Destaque para a cara de Clementina no telão, lamentando a estupidez do Bobo. Enfim, o Bobo “acorda”. Ele se senta ereto no trono, fazendo reverências e salamaleques.
BOBO Seu Príncipeee! E aí, beleza? Como vai a nossa alteza real, nesta manhã fagueira?
D. JOÃO Deixa de preâmbulos, explica-te.
BOBO Explicar? Explico. É só falar o que. Nossa alteza está necessitada de alguma explicação especial esta manhã?
D. JOÃO Acaso não percebes onde depositaste este teu traseiro infecto, Bobo infeliz?
BOBO Bem, nossa alteza, o caso é o seguinte...
D. JOÃO Nossa Alteza?
CLEMENTINA (para a câmera) “Nossa” Alteza!
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BOBO Sim.
D. JOÃO Não.
BOBO Não?
D. João perde a paciência e “espana” o Bobo pra fora do seu trono e toma assento. Clementina ri.
D. JOÃO Nossa é que não! Minha. Minha Alteza. Fui claro?
BOBO Como água limpa. Me perdoa? De manhã mistura possessivo, átono, tratamento...minha cabeça fica uma pronomaralhada só!
Clementina conta os muitos pronomes nos dedos, enquanto fala baixinho olhando para a câmera.
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CLEMENTINA (para a câmera) Me - Teu - Se - Lhe - Minha - Santidade Me - Teu - Se - Lhe - Nossa - Magestade
BOBO Fiquei assim doido também porque tive um sonho ótimo. Ê cadeirinha maneira!
D. JOÃO Acudi-me, Pai Celestial! Arranjei o Bobo mais burro de toda Europa. Não vês que se trata de um trono? Ou pela manhã tua mente confunde também os substantivos?
BOBO Sabe que é isso mesmo? Sua alteza acertou na mosca.
Clementina cantarola uma cantiga triste, como o lamento de um fadista. D. João suspira melancólico. O Bobo se aproxima compadecido e faz cafuné. O telão destaca suas expressões.
BOBO Que houve? De repente o Senhor ficou tristinho... Conta qui pro seu Bobo confidente? Libera os podres, que eu não vou condenar... nem vou contar pra ninguém.
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O Bobo beija os dedos em cruz. Clementina também está com uma certa peninha do Príncipe. D. João se lamenta, choramingando.
D. JOÃO Ousaste chamar meu trono de cadeirinha! BOBO Ah é isso?! Não esquenta, Eu vivo falando bobagem!
D. JOÃO Não repitas isso, jamais. Este trono é um símbolo do meu poder absoluto!
Clementina e o Bobo reagem para a câmera, com pena da ilusão do Príncipe.
CLEMENTINA e BOBO (pra câmera) Poder absoluto?!
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D. JOÃO Neste trono, sento-me para ser adorado por meus súditos fieis, a quem estendo a mão para ser beijada por todos.
BOBO Sua Alteza vai desculpando aí a franqueza, mas só quem beija sua mão são os puxa-saco de sempre.
D. JOÃO Tanto faz, não me interrompas! Beijam-me as mãos porque nenhum deles têm um trono como este que vês!
BOBO Aliás, muito bem feito! Olha pra esses entalhes de madeira... que espetáculo! Quem é o artista que fez essa carpintaria?
D. JOÃO Sei lá, eu? De que me importa?
CLEMENTINA (para a câmera) O trono é o poder. Quem se importa com o carpinteiro?
Pausa.
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Todos os três personagens suspiram. Cada um por um motivo diferente. O telão destaca suas expressões.
CENA 02. INT. DIA. SALA DO TRONO De repente: BUUUM! Barulho de explosão. O cenário escurece e treme. Clementina sai do esconderijo assustada. Ela e o Bobo pulam no colo de D. João, que se agarra a eles apavorado. No telão vemos um navio francês com seus canhões fumegantes apontados para Lisboa. Uma bala de canhão entra quicando pela janela. As luzes se acendem. Quando o Bobo pega a bola negra ouve-se uma mensagem de áudio, onde uma voz ameaçadora, com divertido sotaque francês, CANTA:
NAPOLEÃO (voz off / cantando) Prrrezado Dom João VI, Trrrata de respeitar o Bloqueio Continental. Se eu souberrr que Portugal está fazendo comerrrcio com a Inglaterra... Hum! Mando meus navios arrrazarem Lisboaaaa! Hahahaha... (risada maligna)
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O Bobo segura a bala de canhão no sovaco. Ele e Clementina estão atônitos. D. João tem uma expressão misteriosa, como se arquiteta-se um plano genial.
CLEMENTINA Ih, lascou-se! E agora, D. Joãzinho? O povo fala por aí que esse tal de Napoleão é ruim como o diabo... Ele vai acabar com a vossa raça e vamos nós todos também de ralo.
DOM JOÃO Calma, menina, confia no teu Rei. Tenho um plano infalível, que nos há de salvar a todos. Dá-me cá papel, pena e tinta... Ligeira que é assunto de vida ou morte!
D. João VI rabisca algo num papel, depois sopra a tinta fresca do seu tratado de paz com Napoleão, todo satisfeito. A cena fica escura. O telão mostra um CLOSE do tratado com uma ilustração de Napoleão e D. João VI abraçados como amiguinhos de infância, e os seguintes dizeres:
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NAPOLEÃO BONBAPARTE E DOM JOÃO DE BRAGANÇA BEST FRIENDS FOREVER MELHORES AMIGOS PRA SEMPRE!
Volta a luz do espaço cênico:
DOM JOÃO Pronto, está resolvido.
CLEMENTINA (desconfiada) Fácil assim?!
BOBO Sei não... Oh, sem querer jogar água no seu açaí... Mas algo me diz que o Rei Jorge III da Inglaterra não vai deixar barato...
DOM JOÃO Bobinho... Napoleão nos protegerá. Jorge III que vá catar coquinho. Larga mão de ser agourento!
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Dom João se senta relaxado no trono. Bate palmas e Clementina lhe serve uvas. Bate palmas outra vez e soa música suave. Ao som dessa música, o Bobo começa a fazer uma coreografia de Ginástica Rítmica desportiva com a bala de canhão, alusiva ao gestual de Chaplin com o globo terrestre em O Grande Ditador. O telão mostra ilustrações antigas, como charges humorísticas da época. Dom João se diverte. Clementina lhe serve milk shake com canudo. Clementina e o Bobo se olham desconfiados. De repente: BUUUM! Nova explosão, ainda maior que a anterior. Tremor e escuridão. Dom João e o Bobo se escondem debaixo da saia da Clementina, que os acalma maternalmente. No telão, fogo e fumaça, não há imagens claras dos acontecimentos. Uma bala de canhão, maior que a primeira, entra pela janela. Essa rola e não quica, pois é muito mais pesada. Clementina se adianta e tentar pegar a bala, mas não consegue erguê-la. Gira a bola até achar um botão. Quando aperta o botão ouve-se uma mensagem de áudio, com um divertido sotaque britânico, que CANTA:
REI JORGE III (voz off / cantando) Dear Dom John, se Portugal entra no Bloqueio Continental acaba todo o Money emprestado e ainda, mais pra piorar tudo a Gran Bretanha manda bala em cima de Lisboa... Humhum!!!(murmúrio maligno)
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Silêncio. Os três personagens se olham sem saber o que fazer.
BOBO Ih! Tá feia coisa...
CLEMENTINA Não leva a mal, Alteza... Mas parece que seu plano genial está descendo a ladeira.
DOM JOÃO Calma, minha gente. Pode ser lorota!
BOBO Será? Vamos olhar direito.
O Bobo até a janela. Conforme a janela se abre a imagem no telão vai ficando mais clara e revela uma esquadra inteirinha de navios de guerra com os canhões voltados para Lisboa. A cena escurece.
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ATO II
CENA 03. EXT. DIA. NAVIO No convés de um navio, entre muitos baús e malas, os três personagens estão mareados. No telão vemos a Torre de Belém e depois o Oceano Atlântico.
Dom João vomita no mar, amparado pelo Bobo e pela Clementina.
DOM JOÃO Ai ai ai... Estou a morrer! O navio não para de sacudir, isso me embrulha o estômago.
CLEMENTINA Seu príncepe, o Sr. bem podia aproveitar a viagem e... fazer assim um jejunzinho de leve. De repente, perder uns quilinhos. Vai ser bom pra sua saúde!
DOM JOÃO É a depressão. Quando fico muito triste, como e bebo para esquecer o sofrimento.
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BOBO Tá deprimido porque, Sua Alteza? O Senhor escapou aos quarenta e cinco do segundo tempo, rebocando quinze mil pessoas... família, nobreza, criadagem uma biblioteca com sessenta mil livros mais o ouro todinho de Portugal?
DOM JOÃO Mas tive que deixar o meu trono, tão bonitinho... Ficou para trás!
CLEMENTINA e BOBO (para a câmera) O símbolo do seu poder absoluto!
CLEMENTINA Pois é... vão se os anéis ficam os dedos. Vida que segue!
BOBO Agora essa, transferir a capital do Império Português pro Brasil? Cheio de florestas selvagens, mosquitos, gente pelada... Que decadência!
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DOM JOÃO Não é ideia nova. Já o haviam cogitado desde o século XVI! Mesmo assim, temo pelo futuro. Tudo tão incerto... Mas o tempo avança sempre. Seja o que Deus quiser!
Os três suspiram. Dom João se senta num baú degustando uma coxa de frango assado que trazia escondida no bolso, com o olhar perdido no horizonte, a sós com seus pensamentos.
CENA 04. EXT. DIA. SAMBÓDROMO DO RIO Cena escura. O Bobo vai à boca de cena falar com a plateia:
BOBO Dom João desembarcou em Salvador, no dia 24 de janeiro de 1808. Já no dia 28, abriu os portos da colônia às nações amigas – a primeira de muitas transformações que viriam. E assim, começou uma nova etapa na história desta terra, (mais garrida!) que se tornaria, em setembro de 1822, o Império (independente) do Brasil!
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As luzes se acendem. Entram Clementina e Dom João. No telão um desfile no Sambódromo do Rio em homenagem à chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808. Os três personagens cantam e evoluem ao som de uma animada batucada.
DOM JOÃO, CLEMENTINA, BOBO (cantando) Ói nós aqui, brasileirada de mala e cuia nessa terra ensolarada. Ói nós aqui! Ói nós aqui! Pintou sujeira do lado de lá. Na Europa tá a maior confusão. Por isso a gente se mandou pra cá com a Inglaterra a nos escoltar. Ói nós aqui! Ói nós aqui!
CAI O PANO. Sobre a tela escura lemos os seguintes versos:
PORTUGAL NÃO FOI À GUERRA MAS TAMBÉM NÃO ACOVARDOU-SE COBRIU LISBOA COM UM PANO E ESCREVEU POR CIMA: “PORTUGAL MUDOU-SE”1
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Ditado popular português alusivo à transferência da corte para o Brasil. In Brasil Vivo, de Chico Alencar e Marcos Venicio Ribeiro, Ed Vozes, Petrópolis 1986.