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Mindful Eating: muito além do peso
................. Introdução ..................
Mindful Eating é uma abordagem não prescritiva, não dieta; um tema recente na literatura científica que traz perspectivas animadoras quanto aos benefícios para a saúde física e mental, ao mesmo tempo que suscita vários questionamentos, dúvidas a serem respondidas. Ao traduzir a palavra mindful eating como comer com atenção plena ou comer consciente ou ainda alimentação consciente possivelmente haveria um espaço para uma diversidade de interpretações, envolvendo diferentes aspectos do comer e toda a amplitude da temática alimentação. Um aspecto muito importante para a compreensão de mindful eating é lembrar que é uma abordagem baseada em mindfulness e que, portanto, para a sua compreensão é preciso voltar à base, o que pode não ser tão simples, já que este apresenta vários construtos. Mindfulness, traduzido como atenção plena ou consciência plena, possui diferentes construtos. A palavra mindfulness vem sendo empregada em dois contextos: a) conceitos e práticas meditativas, remontando às práticas budistas e (b) como um construto psicológico, o qual pode, ou não, estar relacionado ao contexto da prática meditativa segundo Ellen Langer (1992). Uma das definições mais citadas de mindfulness diz respeito ao estado psicológico que surge ao prestar atenção de uma forma particular: intencionalmente, no momento presente, e sem julgamento (KABAT-ZINN et al., 1992). Uma forma de sair do automático, de estar presente na vida, com uma atitude mais aberta, curiosa, gentil e menos julgadora. Mindfulness não é exatamente meditação, ou relaxamento, uma vez que é um convite à auto observação; uma habilidade da mente (traço)(DREYFUS, 2011), desenvolvida pela prática meditativa regular (EBERTH; SEDLMEIER, 2012). Mindfulness também não é deixar a mente “em branco” ou parar de pensar; a mente foi feita para pensar, o treinamento permite tomar consciência do pensamento, percebendo como eventos mentais transitórios. Assim como mindfulness, mindful eating possui várias definições e uma das definições bastante difundida e aceita é a do Centro Americano de Mindful Eating que conceitua como: a) Permitir tornar-se consciente das oportunidades positivas e nutritivas que estão disponíveis pela seleção e preparação da comida, respeitando sua sabedoria interior;
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b) Usar todos os sentidos na escolha de comer; c) Tornar-se consciente da fome física e dos sinais
de saciedade para guiá-lo nas decisões de começar e parar de comer. De maneira ampliada e não em contraposição, defino mindful eating, como uma forma de estabelecer uma relação mais prazerosa, amorosa e pacífica com o corpo e com a alimentação; um caminho de autoconhecimento e autocuidado que tem o alimento como norteador para construção da saúde integral, ou seja, a saúde não é apenas a ausência de doença, mas envolve o bem estar físico, mental e psicológico.
............. Desenvolvimento ...............
Ainda existem muitos questionamentos sobre a ação (bA partir de mindfulness foram criados protocolos, programas ou intervenções nele baseadas; as intervenções baseadas em mindfulness (IBMs) para aplicação em populações clínicas. As IBMs mais recentes são intervenções psicossociais baseadas em evidência, clinicamente orientadas, influenciadas pelas práticas contemplativas de mindfulness, ciência, medicina, psicologia e educação, cujo objetivo principal é proporcionar alívio de sintomas físicos e psicológicos indesejados, tais como a dor crônica ou sintomas depressivos (CRANE et al., 2017). Nesse sentido, mindful eating é uma das IBMs existentes e à semelhança de Mindfulness, como padrão, apresenta-se no formato de 8 semanas (até 12 semanas) em programas estruturados de caráter incremental, ou seja, a cada semana uma nova habilidade é aprendida. Os grupos, geralmente composto por até 18 pessoas, na maioria dos protocolos, são fechados, de forma que após o início do grupo, novos participantes não são admitidos na turma iniciada, em função do conteúdo trabalhado sessão a sessão. Mindful Eating pode ser uma abordagem promissora para cuidar de forma integral das pessoas mediante os reflexos observados na saúde física e emocional (ROGERS et al., 2017), com resultados promissores na melhora do comportamento alimentar (MANTZIOS, 2018; O’REILLY et al., 2014; WARREN; SMITH; ASHWELL, 2017), hábitos alimentares mais saudáveis (SEGUIAS; TAPPER, 2018) redução e manutenção do peso corporal (PALMEIRA; PINTO-GOUVEIA; CUNHA, 2017), prevenção do reganho de peso (DUNN et al., 2018), redução do comer compulsivo (KRISTELLER; WOLEVER; SHEETS, 2013) e melhora do perfil bioquímico, além de exercer efeito médio na redução da ansiedade e depressão (ROGERS et al., 2017). Comer com atenção plena pode reduzir em até três anos os sintomas de depressão (WINKENS et al., 2018) e como comer faz parte de nossa rotina e, de maneira geral, nos alimentamos várias vezes por dia, permite maior possibilidade de aprendizagem (repetição). Embora o considerado pai de mindfulness no ocidente, Jon Kabat Zinn, possa ter iniciado seus trabalhos em uma clínica de dor em 1979, somente após os anos 2000, com a entrada da universidade de Oxford e seu protocolo específico para recaída de depressão, é que o número de publicações sobre o assunto se torna mais expressivo. No Brasil, a temática passa a ser abordada mais comumente a partir de 2010. Em relação a mindful eating, a professora Jean Kristeller, pioneira nessa abordagem, faz sua primeira publicação no final da década de 90, trazendo então ao mindful eating também um caráter mais clínico, intimamente ligado à obesidade, à compulsão alimentar e binge eating; onde se concentram as pesquisas até o momento. A alimentação é um tema transversal de saúde e educação e, nesse sentido, revela muito sobre nós, nossos padrões, comportamentos. Uma importante autora da área, a monja e pediatra Jan Chozen Bays, diz que o problema não está na comida. O problema está ancorado na mente. Reside na nossa falta de consciência das mensagens que o nosso corpo nos envia”, ou seja, por trás dos quilos acumulados no corpo, do consumo exagerado de alimentos, existem histórias, desafios, manifestos no campo alimentar, uma forma de concretizar o abstrato. Diferentemente de um tabagista ou alcoolista que pode parar de fumar ou beber, nós comemos todos os dias; sendo imprescindível tornarmos a relação com o alimento mais harmoniosa, equilibrada, feliz. Nesta direção, a médica de família professora de mindful eating, Michelle May, ressalta: “nossa relação com os alimentos é uma conexão importante para a vida toda e merece ser nutrida e, quando necessário, ser curada”, precisamos encontrar maneiras de adotar o caminho do meio, sem terrorismo, com menos culpa, julgamento e mais prazer. Mindful eating abre esta possibilidade de, saindo do modelo biologicista, fragmentado, enxergar e cuidar do ser humano em suas diferentes dimensões, dada a relação tão íntima e perene que temos com o alimento. A partir da neuroplasticidade cerebral, a possibilidade de melhorar a intercepção (sinais internos de fome e saciedade), aumentar a autocompaixão, reduzir a reati-
vidade, impulso e aumentar a regulação emocional, bem como a flexibilidade psicológica. Como nutricionista pioneira na aplicação e pesquisa de mindful eating no Brasil, percebo tanto individualmente como em grupos, no âmbito público e privado, a amplitude e complexidade dos papeis e significados da alimentação na vida, bem como quanto esta abordagem pode contribuir a fim de trazer consciência para o comer e aliviar o sofrimento agregado ao ato de comer. Os relatos sobre o quanto a forma de comer também modificou a forma de viver foram inúmeros ao longo desta jornada dos últimos 8 anos. As mudanças foram observadas do prato para a vida e da vida para o prato, dado que as IBMs são intervenções complexas e que afetam não apenas a dimensão física, mas também a dimensão psicológica e emocional (SALVO et al., 2022a, 2022b). Olhar para mindful eating como uma forma de perder peso apenas, representa não somente uma visão reducionista desta intervenção, mas também equivocada, já que a perda de peso é resultado de um processo de autoconhecimento, de consciência corporal, de ressignificar o comer e reaprender a olhar para o alimento e para o espelho de forma distinta. Muitas vezes a mudança de peso é a última a se processar, já que muitas vezes é necessário cuidar de outros contextos que são a causa de um comer disfuncional. Faltam estudos longitudinais a fim de verificarmos os efeitos desta intervenção ao longo do tempo. Estudos com amostras maiores também são necessários afim de que os resultados apontados sejam mais robustos e possam ser generalizados. Em meu trabalho, bem como de outros autores, mindful eating trouxe melhora dos sintomas da ansiedade e depressão, além da redução do consumo alimentar exagerado, motivado em grande parte pelo comer emocional, em função da inabilidade de lidar com emoções difíceis, de uma autocrítica severa, de forte sentimento de culpa. Não por acaso, diferentes trabalhos na literatura associam o comer emocional a estados mais ansiosos e depressivos (SALVO et al., 2021, 2022a, 2022b). Ao longo do programa os participantes também demonstraram um aumento do autocuidado e autorrespeito, deixando de colocar a perda de peso como o principal desfecho, deixando de colocar a felicidade a muitos quilos de distância (só se atingisse a meta).
................. Conclusão .....................
Apesar de mindful eating ser conhecido por sua aplicação, especialmente em população com excesso de peso e compulsão alimentar e, de vários trabalhos ressaltarem a perda de peso como um dos desfechos; estes
resultados não são conclusivos na literatura. Os benefícios de mindful eating vão além do peso, se estendem aos relacionamentos familiares, profissionais, interpessoais. Abre-se um novo caminho para o praticante, recheado de mais autocuidado, autorrespeito, consciência, valores e flexibilidade psicológica desta abordagem, permitindo assim que as pessoas possam cuidar da saúde de maneira ampliada e melhorar a qualidade de vida.
Sobre os autores
Profa. Dra. Vera Salvo - Nutricionista pelo Centro Universitário São Camilo. Pós doutora nos temas Mindfulness e Mindful Eating. Especialização em Nutrição Clínica e Teorias e Técnicas para Cuidados Integrativos. Instrutora de Mindfulness (UNIFESP), Mindful Eating (Califórnia) e Cultivo da Compaixão Baseado em Mindfulness (México). Prêmio Destaque Profissional 2019 (CRN3). Autora do Melhor trabalho científico do CONGREPICS 2021. Autora do 1º protocolo brasileiro de Mindful Eating e da 1ª formação profissional em Mindful Eating no Brasil. Autora do livro Pitadas de consciência – Temperando a vida com Mindfulness
REFERÊNCIAS
CRANE, R. S. et al. What defines mindfulness-based programs? the warp and the weft. Psychological Medicine, v. 47, n. 6, p. 990–999, 2017. DREYFUS, G. Is mindfulness present-centred and non-judgmental? A discussion of the cognitive dimensions of mindfulness. Contemporary Buddhism, v. 12, n. 1, p. 41–54, 2011. DUNN, C. et al. Mindfulness Approaches and Weight Loss, Weight Maintenance, and Weight Regain. Current obesity reports, v. 7, n. 1, p. 37–49, 2018. EBERTH, J.; SEDLMEIER, P. The Effects of Mindfulness Meditation: A Meta-Analysis. Mindfulness, v. 3, n. 3, p. 174–189, 2012. KABAT-ZINN, J. et al. Effectiveness of a meditation-based stress reduction program in the treatment of anxiety disorders. American Journal of Psychiatry, v. 149, n. 7, p. 936–943, 1992. KRISTELLER, J.; WOLEVER, R. Q.; SHEETS, V. Mindfulness-Based Eating Awareness Training (MB-EAT) for Binge Eating: A Randomized Clinical Trial. Mindfulness, v. 5, n. 3, p. 282–297, 2013. MANTZIOS, M. Editorial: Mindfullness and Eating Behavior. Frontier in Psychology, v. 9, p. 1–2, 2018. O’REILLY, G. et al. Mindfulness-based interventions for obesity-related eating behaviours: A literature review. Obesity Reviews, v. 15, n. 6, p. 453–461, 2014. PALMEIRA, L.; PINTO-GOUVEIA, J.; CUNHA, M. Exploring the efficacy of an acceptance, mindfulness & compassionate-based group intervention for women struggling with their weight (Kg-Free): A randomized controlled trial. Appetite, v. 112, p. 107–116, 2017. ROGERS, J. M. et al. Mindfulness-based interventions for adults who are overweight or obese: a meta-analysis of physical and psychological health outcomes. Obesity Reviews, v. 18, n. 1, p. 51–67, 2017. SALVO, V. et al. Mindful eating for overweight and obese women in Brazil: An exploratory mixed-methods pilot study. Nutrition and Health, p. 1–11, 2021. SALVO, V. et al. Comparative effectiveness of mindfulness and mindful eating programmes among low-income overweight women in primary health care: A randomised controlled pragmatic study with psychological, biochemical, and anthropometric outcomes. Appetite, v. 177, n. July 2021, p. 106131, 2022a. SALVO, V. et al. Exploring perceptions about Mindfulness and Mindful Eating Programs for low-income women with overweight in primary health care. Nutrition and Health, p. 1–11, 2022b. SEGUIAS, L.; TAPPER, K. The effect of mindful eating on subsequent intake of a high calorie snack. Appetite, v. 121, p. 93–100, 2018. WARREN, J. M.; SMITH, N.; ASHWELL, M. A structured literature review on the role of mindfulness, mindful eating and intuitive eating in changing eating behaviours: Effectiveness and associated potential mechanisms. Nutrition Research Reviews, v. 30, n. 2, p. 272–283, 2017. WINKENS, L. H. H. et al. Associations of mindful eating domains with depressive symptoms and depression in three European countries. Journal of Affective Disorders, v. 228, p. 26–32, 2018.