A lixeira e a borracha – Quarentena 2020

Page 1

Album 12:40

A LIXEIRA e a borracha Claudio Ferlauto TEXTOS


(born 14 November 1943) is a French composer and arranger, born in Vaires-sur-Marne. After accompanying jazzmen in his childhood, Petit went to the Conservatoire de Paris, where he studied harmony and counterpoint. He did the string arrangements for Mink DeVille's Le Chat Bleu album, as well as orchestrating the backing parts to some French pop singles in the mid-to-late 1960s, including those of Erick Saint-Laurent and yé-yé girls Christine Pilzer and Monique Thubert. Wikipedia

Isaac Bashevis Singer

(born November 21, 1902 – July 24, 1991) was a Polish-American writer in Yiddish, awarded the Nobel Prize in Literature in 1978. The Polish form of his birth name was Icek Hersz Zynger. He used his mother’s first name in an initial literary pseudonym, Izaak Baszewis, which he later expanded. He was a leading figure in the Yiddish literary movement, writing and publishing only in Yiddish. He was also awarded two U.S. National Book Awards. Wikipedia

Cadernos do Olhar ¶ Quarentena 2020

Jean-Claude Petit


O segredo de escrever, está na borracha. Jean Claude Petit

E na tecla do delete. Claudio Ferlauto

&

A cesta de papéis é a melhor amiga do escritor. Isaac Bashevis Singer


Cadernos do Olhar Âś Quarentena 2020

1


Primeira cena

O personagem atravessa um tunel no norte da Itália. Mais um tunel à frente. Toca de novo um Mozart meloso e nostálgico no toca fitas, a paisagem se repete —montanhas, e rápidas vistas de mar e de pedaços de praia. Em seguida outro tunel e mais uma placa indicando o nome de uma cidadezinha perdida e esquecida, como em filmes sem créditos, para cutucar e complicar a memória. E a única coisa que lembra é que aqui, bem longe, atravessando infindáveis tuneis, a cabeça andava a mil. Os projetos eram inúmeros e a preguiça formidável. Neste momento sai da estrada e desce até um povoado ao nível do mar. Toca novamente o Concerto para piano e orquestra nº 21 e, em seguida, ele sabe, virá o nª6, com uma orquestra de câmara de Israel. Pega um quarto com vista para o mar, embora seja inverno e a paisagem esteja triste e deserta. Mas é melhor que ficar espiando o fundo daquelas casinhas cheias de roupa penduradas do varal. Sonha.


sou novembro e dezembro vulto dolorido em pele e osso no centro da cidade sou a realidade a luz e a sombra que tem no fim um zero redondinho no infinito de janeiro sou um desenho e uma fotografia que troco por qualquer coisa – fósforo usado, válvula queimada ou intragáveis gravatas listradas novembro e dezembro são como paisagens de cartões postais pessoas em antigos retratos 3x4 agruras de manchetes de jornal alegrias de filmes technicolor são como palavras nebulosas cujo sentido perdemos sem entender sonados e loucos como cães no reveillon

Cadernos do Olhar ¶ Quarentena 2020

Fósforo usado


Anúncio

domingo para chá e bolinhos e preguiça de sonhar com saídas ou alçapões há música, ginástica e palhaços na tevê domingo para escrever como só escrevi duas vezes na vida – sempre para pessoas erradas antes as coisas iam e vinham e até ficavam imobilizadas por instantes sutis e sonâmbulos ludibriados assim, sem mais nem menos, domingo para o sol se pôr nas areias alvas e claras do litoral – areia branca e sorridente de anúncio de dentifrício.

Ah!


Ando a esmo pelo centro da cidade, Passo na Casa da Marquesa de Santos, no Patio do Colégio onde nasceu a cidade. Descubro sem querer encantos e espantos. Passa o ônibus amarelo e não lembro de embarcar. Escreverei para dizer adeus, mais tarde, nas horas noturnas com palavras raras, num bilhete de metrô, como faziam antigamente os amigos de Londres e Lisboa. Na despedida escreverei para lembrar que um dia ou uma noite seremos todos os papéis, carimbos, números, algorítimos, literalmente, nas nuvens. Hora de tirar meu cavalo das nuvens de chuva e pronto eis-me escrevinhado, revisado, repetido.Todo mundo anda de mau-humor, mas cá entre nós, não tenho nada com isso, por conseguinte, após ler tantas linhas “tanças” chegamos ao fim dessa desconversa, dessa descrevinhança Pela janela o sol detona a luz fluorescente e tudo desaparece ao som dos rolistones.

Cadernos do Olhar ¶ Quarentena 2020

Nuvens


Mensagens

Ao acordar, o telefone toca de lugares inesperados. Mensagens de trabalho, recados comerciais e vozes muito antigas. Quem ainda liga para telefones fixos? Robôs, escravas de call centers, gente antiquada como nós? No céu, do fim do dia cai a tarde e passam vozes de crianças. É tudo que vemos e ouvimos. Aliás, o chiado continua na eletrolinha portátil que despeja um som qualquer dos rolistones. Um carro chega: luzes, ruídos, buzinas, um discurso de cidade. Vermes morrem sob nossos pés e insetos queimados pelas luminárias nos postes dos parques caem lentamente em parques da cidade, lá longe dos olhos. Nada de novo. Aqui passou um outono simpático e típico com temperaturas amenas, lufadas de vento que derrubam folhas de árvores, chuvas esparsas, simpáticas e reconfortantes anunciam o frio. A noite desce rápida como panos de teatros antigos enquanto insetos ancestrais invadem ruidosos nosso espaço aéreo e etéreo. Olho, pela vidraça, o silêncio noturno. Nenhum extraterráqueo enviou mensagens. E lá no alto só passam naves amigas da TAP e da GOL. O telefone toca, animado, mais uma vez.


Chego correndo ao mar pela trilha que desemboca no meia da praia. Logo um grupo de pássaros levanta voo acompanhado de estridentes trinados. Piro Piro. Não sei se em protesto ou comemoração por mais um momento de liberdade. Parecem gritos assustados mas tranquilizo-me ao ouvir o farfalhar escandaloso das asas em preto e branco. Muitas asas que sinalizam que não reclamam de nada e estão seguros de suas possibilidades de se livrar do perigo que introduzimos nas areias ao chegar. Voltando para casa, depois do avião, pego o metrô. Já é noite alta e escura. Me recosto na janela do vagão vazio em direção a uma estação na Paulista pensando nas pedras da praia. Sequestradas e espalhadas em centenas de casas, dispersas nos jardins, formando hortas ou canteiros de flores nos páteos (vou deixar na forma arcaica em respeito à idade dessas pedras). Muitas estão longe da água e das areias, claras e finas, mas ainda sob um céu luminoso e límpido, sentindo na superfície esse vento enervante que sopra do Sul e com saudades do rumor incessante do bater, agora longínquo, de ondas e das asas do Piro Piro.

Cadernos do Olhar ¶ Quarentena 2020

Na idade das pedras.



Cadernos do Olhar Âś Quarentena 2020


Vendo a bunda passar

Acabo de ligar para o Sul. Fazia dias que deveria ter ligado e fui deixando prá depois. Terminei de zapear preguiçosamente a TV no fim do dia e pensei cá com meus botões «não deixe para depois o que deves fazer hoje» e fui logo pegando do velho telefone fixo e digitei aqueles números começando por 051… Treinei por alguns segundos meu gauchês e ataquei: como vão as coisas tchê? Tô prá ligar desde teu aniversário mas… — ­Estamos bem. Aqui faz um tempo meio ruim, mas ontem foi um dia primorosamente primaveril para Porto Alegre. Mas nesta situação não faz muita diferença, não saio de casa nem par dar uma volta na quadra. Nem para ativar a bateria do carro. Nunca vimos tanta série de TV e nunca escrevi tão pouco. — Bem, por outro lado, em S Paulo a coisa está difícil, ninguém mais aguenta ficar recolhido, olhando pelas frestas da janela as bundas passarem fumando de um lado e do outro da rua.


Era um dia de inverno. Dia claro, ensolarado como só faz acontecer nas terras do Sul. Dentro do automóvel mal dá para perceber que está a mais de 140 km por hora. Mas isso não lhe interessa. Os pensamentos andam lá atrás, na infância, quando a viagem para a fazenda demorava, demorava muito. Não chegava nunca, tal era a ansiedade. Mas voltar era ainda mais chato: cochilhas, cochilhas, o morro do Avião, cochilhas, e os fios elétricos na janela lateral formando ondas e linhas que passam velozmente pelas suas retinas. Cochilhas. Chato e meio deprimente. Mas agora não tinha pressa nem de ir, nem de voltar. Sabia que iria voltar e não demoraria muito. O dia estava acabando. Na beira da estrada os trabalhadores estão a caminho de casa em carros, bicicletas, a pé. A temperatura está bem mais baixa e há sinais que vai anoitecer rapidamente. Nos seus pensamentos o tempo anda célere e por eles desfilam as lembranças e as saudades. As medidas de tempo agora são as décadas: a da inocência, a da descoberta, a da aventura. Era monótono lá do alto ver apenas as partes de cima das grandes nuvens, o tapete branco e que cobre o trajeto do voo. Adormece.

Cadernos do Olhar ¶ Quarentena 2020

Cena final


Cadernos do olhar Quarentena – 1º novembro 2020 Claudio Ferlauto Tipografia Times New Roman e EHU Sans Contato clauf4455@gmail.com

Outras publicações em www.issuu.com/olhargrafico


www.issuu.com/olhargrafico Cadernos do Olhar Âś Quarentena 2020


Album 12:40

A LIXEIRA e a borracha Claudio Ferlauto TEXTOS


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.