POSTA RESTANTE DOS SUBÚRBIOS DA MEMÓRIA
SEBASTIÃO SERPENTIN
Sebastião ainda mantinha seu negócio numa rua secundária no centro de Mairiporã. Estava quase sempre fechado e regularmente perdia parte de sua mercadoria pelo vencimento da validade. Então distribuía o conteúdo dos sacos para os cães vadios da cidade. Ainda não tinha acontecido o boom dos pets idiotas, e muitas pessoas ainda alimentavam seus animais com restos de comida ou com arroz cozido com carne moída de quinta categoria.
A primeira e última vez que vi Sebastião Serpentin foi no verão de 1972 numa praia, nada deserta, do litoral do Rio Grande do Sul. Nascido em Paris, viveu em Porto Alegre, Rio e São Paulo, voltou a Paris, passou por Nova York, experimentou as paisagens exóticas de Bali — pode soar estranho, mas Serpentin era surfista e visto pela última vez em Mairiporã, São Paulo, no final dos anos 1990.
Seus escritos foram influenciados pelos poetas marginais do Rio de Janeiro dos anos 1970 e 1980, notadamente por Chacal e Dunga, que conheceu no Pier de Ipanema em 1973. Os textos em prosa, datilografados em papel barato, estiveram perdidos ou guardados por décadas em caixas de arquivo morto em
DE VOLTA
Mairiporã e São Paulo. Os originais das obras em prosa foram sistematicamente (metodicamente, escrupulosamente, diligentemente, meticulosamente, minuciosamente, primorosamente, aplicadamente) recusados por editoras de Porto Alegre, Rio e São Paulo, e estão desaparecidos. Nascido Sebastian, aportuguesou seu nome depois de sua última viagem pela Europa, em 1992.
Escrevia coisas esquisitas e por vezes alguns textos faziam sentido.
PROSA
“Os sons vão compondo a paisagem: ouve as batidas repetidas de um carneiro hidráulico, ao longe, bombeando água colina acima. Pássaros conversam conversas de machos e fêmeas. Debates, bate-bocas ou algazarras como em rede social. Sopra uma brisa que sacode as árvores próximas. Ruídos e quietudes inesperadas. Alguém dá descarga no banheiro. Passa, distante, um carro, depois uma moto. E uma onda, maior que as outras, rebenta com um estrondo nas areias. Urubus voam alto em cima do morro. Gaivotas voam para o Sul, dois gaviões do banhado e um albatroz competem as alturas com os urubus. No chão, um quero-quero tenta delimitar seu território enquanto as crianças não começam a jogar bola. Você, escondida na memória, diz: Que saco! Acho que também vou plantar batatas. Plantar de mau-humor. Para proteger tua privacidade, as imagens, gravadas remotamente, deste ataque de mau-humor foram bloqueadas.
“Podemos ser amigos simplesmente, coisas do amor, nunca mais”… Ataca um recado, rabiscando uma sórdida despedida. Não vou responder no teu estilo, pois não sei dissimular e, no mais, não quero deixar dúvidas. Você me lê ao pé da letra. Só queria te esgotar
por algum tempo. Não queria te constranger. Adeus. Encerra escorpionianamente. Dobra o papel e o envelopa Cola um selo de 50 centavos com a imagem de um pássaro, o Cardeal de topete vermelho.”
CARTA
Cara amiga
— Querida, o telefone toca de várias cidades, mas quase todas são Do Rio de Janeiro, em março. As vozes de ontem e de agora falam coisas agradáveis, mas também citam cicatrizes e negócios falidos. Noite alta, céu risonho e pontos amenos ou de menos: é o outono que está com tudo. Parou com as aulas, precisa escrever mais. Doutorado? Nem pensar. Pensa que deve se livrar das aulas na universidade e se agarrar a algum sucedâneo jornalístico. A vida precisa de um pouco de escracho e de choques, raios e trovões, caso contrário vamos morrer de tédio. Tilinta o telefone, de novo, com vozes do além. Nenhum recado na secretária eletrônica, refere-se a recados do espaço do além, como de Alfa Centauro, mas nenhum extraterráqueo quer conversa. É um deboche ou desprezo, se fosse no Rio cariocas e cariôcos iam logo compor uma samba enredo. Sobre a Mata Atlântica e o telhado da casa passam apenas naves amigas rumo a Guarulhos ou para outro recanto distante do planeta.
— Cá estamos entre fumaça, discos e conversas telefônicas. Alguém pergunta se quer chá ou um pega no baseado. Observa aquele rosto brilhante no centro do grupo na fotografia do anuário do colégio. Olha com
atenção para compreender os pedaços do coração que ficaram pelo caminho e se dá conta que dentro de nós permanecem todos: as crianças, os jovens e os adultos que já fomos, e não dá para esconder que todos brincam e sofrem. Guarda fotos antigas para não esquecer quem foi e para dizer ao espelho, na hora do barbear, com alguma certeza, que aquele ali ainda é ele e não outro qualquer. Olha para si na imagem refletida na pequena superfície polida de um momento circunstancial. E olha com curiosidade para todos os outros que será. Não há tragédia maior que não perceber os momentos mágicos. Agora lembra de teu rosto tranquilo, quando desvias o olhar de outros olhares no Viaduto do Chá. Estavas cansada. Levas horas para atravessa a cidade. Vou fumar e tomar banho com águas mornas e quentes e escrever, pois me comprometi a escrever, mesmo que sejam abobrinhas. Do seu esquecido amigo Sebastião S
DIVAGAÇÕES
Era um dia de inverno em 2009. Um dia claro, ensolarado como só faz ter nas terras do Rio Grande. Sebastião Serpentin está a caminho da serra, de carona em um grande sedã francês. Dentro do automóvel mal dá para perceber que já está a mais de 140 km por hora. Mas isso não lhe interessa. Os pensamentos andam lá atrás, nas viagens da infância quando ir para a fazenda era demorado. Matutava em silêncio, quanto demoraria a mais para chegar, tal era a ansiedade. Passados os dias de férias, hora de voltar. E a volta sempre lhe parecia muito chata: cochilhas, cochilhas, o morro do Avião, cochilhas, mais cochilhas e os fios elétricos na lateral da estrada formando sem parar imagens onduladas passando velozmente na janela do carro e nas retinas. Chato e deprimente. Mas pelo menos não tinha pressa nem de ir, nem de voltar. Sabia que iria chegar em tempo e não demoraria muito. O dia estava acabando. Na beira da estrada os operários estão a caminho de casa em seus carros, em bicicletas, a pé. A temperatura fica bem baixa e já há sinais que vai anoitecer rapidamente.
Nos pensamentos o tempo anda célere e, sem qualquer ordem, desfilam as lembranças, as saudades, as recordações e os medos. As medidas de tempo são
as décadas: a da inocência, a das descobertas, a das aventuras. O início da vida profissionais, dos sucessos e finalmente da acomodação. Como dizia para si mesmo: minha vocação é para aposentado. Mas nem ele acreditava no que dizia.
Colecionava recortes de jornal com as exigências de astros e super astros: a banda irlandesa quer pizzas depois do show; a de Seattle exigiu água de coco, chocolate orgânico e balas Gummy Bear; os garotos ingleses pediram uma sala anexa com mesa de pingue-pongue, pinball, bilhar, fliperama e também um game retrô, o Space Invaders; a cantora canadense exige água extraída de cratera vulcânica de uma ilha do oceano Pacífico; Marina criou uma conta para mostrar os cafés que toma pelo mundo quando acompanha o marido… Além disso, a estudante informa não ter recebido a comunicação das colegas quando da data referente (sic) a nova entrega, neste ano. Seria possível que reconsiderasse este caso? Assim não dá, exclama e volta aos recortes: Uma das exigências do cantor folk, de quem é fã, é receber o NewYorkTimes, NewsToday e LosAngelesTimes sem o atraso de dois dias, o que é normal no país. O produtor, macaco velho destila: já reservamos 2000 toalhas para depois, podem vir quantos Princes quiser, tem toalha para todo mundo.
O campeão das frescuras foi um velho astro norte americano, duas horas antes do show pediu trinta pratos de comida kosher, que só pode ser preparada por rabinos com carne de animal que tenha morrido
IDIOTICES
sem sofrer. Reclama que o professor não explica direito, fala palavrões, exige qualidade e solicita exercícios trabalhosos. Além disso, se expressa com metáforas, e “não entendo nada disso”. Estudava jornalismo, mas se dizia jornalista freelancer, fã de Smiths, Tolkien e Allen Ginsberg. Gosta de gatos, café, comida vegana e karaokês. Ariana, mas não acredita nesse negócio de signos, com interesse em arte, tecnologia, cinema e listas engraçadas. Esta conversa nunca será gravada.
Cadernos do OLHAR � Verão 2023
PÓS PERÍODO OBSCURANTISTA, NA SEMANA QUE A BRUXA PERDEU AS JÓIAS QUE GANHOU DO SHEIK ASSASSINO
Editor Claudio Ferlauto
Tipografia Graviola, Henrique Beier, 2014 Bodoni, Morris Fuller Benton, 1989
Contatos
clauf4455@gmail.com
issuu.com/olhargráfico