Uma corrente para tornozelos

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UMA CORRENTE PARA TORNOZELOS NA POSTA RESTANTE

C adernos do OLHAR#41 Verão 2023
SEBASTIÃO SERPENTIN

O senhor Sebastião Serpentin: trezentos e poucos votos, vereador frustrado some da cidade em retiro muito pouco espiritual. Prepara uma delação como se fosse adquirir uma mega sena premiada. Vê correr silêncios de Volkswagens parados ao relento de milhares de gotas de orvalho ou de garoa sobre suas peles metálicas.

Sem forças para adormecer espera a morte dos ruídos no silêncio escuro da sala, enquanto cantam os grilos, coaxam os sapos e rãs. E na rua, roncam impunemente potentes motocicletas.

UMA CORRENTE PARA TORNOZELOS NA POSTA RESTANTE

SEBASTIÃO SERPENTIN

AMIGA

Aqui São Paulo, 1º de novembro. Feriadão daqueles de muito sol, muita gente na estrada, cidade vazia, vagas para estacionar, lugar nos restaurantes, teatros e cinemas vazios. Muitos programas para fazer: Bienal de S.Paulo, shows, filmes, mas prefiro ficar pondo a cabeça em ordem e recebendo mensagens idiotas nas redes. Anexo meu último trabalho “off the road”, quer dizer meu último poema. “Faço um ou dois por anos” disse-me uma vez o Décio é é isso que acontece comigo agora. Mas nesse caso, é pura preguiça. No mais, algumas novidades despontam nos horizontes dos acontecimentos artísticos da cidade: há uma nova geração de músicos que não são nem roqueiros, nem sambeiros. Esse ano estou curtindo as artes sonoras —shows, ruídos urbanos, canto de animais — mas as artes visuais não estão ruins por aqui. E muita gente escreve. E-mails e mensagens de uáts. Um beijão

AMIGO

Aqui saudades da cidade grande. Não esqueça de olhar o céu quando for fechar a janela. Talvez a coisa mais linda dita para mim por alguém nos últimos tempos.

Custei a escrever. Esperava um momento fluido para sintonizar tua vida. Ainda me embrulho com estes ruídos ambientais do cotidiano, e me engano com essas armadilhas tomando os detalhes como o todo. Me mobilizo ao contemplar o nó do sapato. Ao desatá-lo retomo a consciência do ir e vir do detalhe ao todo e vice-versa. Ainda assim me atrapalho: tuas palavras relembram o que tivemos e hoje se materializa sempre com a forma de um molde existente. Nele a essência de nós mesmo fica gravada. Me emociono em te encontrar com esse sentimento de que somos mais do que conhecidos: questão de signo, de alma ou de tantas divergências. Manhã azul e fria. As crianças brincam. Limpei a casa e os bichos —cachorro, gato, peixes… Descuidei-me. Estou em momento esquisito que promete surpresas, como no tempo que caminhava em Sampa.

Esta oração é para trazer boa sorte. Sua cópia original (sic) veio da Holanda. Ela já deu a volta ao mundo mais de 20 vezes. Agora a sorte escolheu você. Para tanto você deverá contribuir enviando 10 cópias para seguidores e amigos a quem você deseja boa sorte.

HET GELUK IS NAAR JE VERZONDEN.

Mesmo que você não acredite, poderá ter surpresas agradáveis em apenas 9 dias.

Por nenhuma razão esta corrente deve ser quebrada, pois se trata apenas de um poder mental que existe e não se trata de superstição ou crendice!

The luck has been sent to you. É a sorte enviada a você, graciosamente!

Ninguém ganha nada com isso, a não ser você mesmo, a partir do momento que outros tomarem conhecimento desta poderosa corrente. Envie suas cópias em até 96 horas/4 dias após o recebimento desta. Acrescente seu nome ao pé da lista eliminando o que estiver no primeiro lugar. E boa sorte!

Add your name to the botton of the lis and leave off the top ame when copying this letter. (sic)

Esta corrente-pra-frente veio da Venezuela na mochila do almirante Bento, após ter dado muitas voltas pelo mundo. Agora está no Brasil — por sorte nossa e porque ninguém mais segura este país das reviravoltas.

Tome nota: — Sebastian pediu à sua secretária que fizesse as cópias e imediatamente as enviou. Em poucos dias quase ganhou a mega sena sozinho! Caito recebeu e não acreditou: uma semana depois quebrou a perna e não pode assistir ao show do Beleléu. Fly enviou rapidamente suas cópias, todas ilustradas e coloridas. Alguns dias depois foi convidado para expor numa

galeria nos Jardins e em museu no Ibirapuera. Car Minha, diligentemente, enviou mais de 100 cópias.

Em seguida descolou um lindo sítio no interior do Rio Grande. O Sargento deixou suas cópias com outros papéis num balcão do aeroporto de Guarulhos-SP. Não foi buscá-las e esqueceu-as. Dias depois ao retornar para retirar a muamba, ouviu um sonoro não do auditor. O músico enviou apenas 5 cópias e mesmo assim recebeu pelo correio sua guitarra Gibson, que, entretanto chegou com um arranhão no braço. Aquele general do tuiter, ignorou essas recomendações, nada providenciou com seu ajudante de ordens, e acabou sem poder respirar direito, até hoje. Não aguenta mais. São fatos (ou quase) que não pretendem assustá-lo ou forcá-lo a prosseguir. Afinal esta corrente é para bem comum e a sorte (sic).

E NÃO DEVE SER INTERROMPIDA.

Aguarde: em nove dias uma surpresa.

A lista: Rembrandt van Rijn, Blanche Hansen, Kröller-Müller, Mavi Mouse, Moro, Jörn Seemann, Queiroz, Ginger McLure, Prof. San Martin, Michele, Cid, Salles Boiadeiro, Zambeta Pistoleira, Waldemar, Gabriel, Carlos, Nobre, Juju Monster, Lizzie, e Claudio Ferlauto.

Vamos organizar uma mostra comercial, será que vocês poderiam nos apresentar previamente algumas ideias sobre como podemos desenvolver o projeto? Não, de jeito nenhum e essa conversa soa meio tonta? Essa proposta, descarada, não faz sentido. Vou te provar como ela é politicamente incorreta. Gostaríamos de jantar confortavelmente, uma boa comida italiana: será que vocês poderiam preparar uma degustação, com vinho (pode ser nacional, mas não Salton ou Garibaldi) para experimentarmos? Você poderia fazer isso sem compromisso, se aprovarmos vamos comentar com muita gente importante sobre sua casa. Vocês queremfotografar a mostra? Façam as fotos que quiserem, escolheremos algumas para o material promocionale as restantes vocês podem colocar em seu portfólio. O evento será no final de semana de sexta a domingo. Topam? Claro que não, caro capitão do mato. Mas doutor, não dá para substituir a coloscopia por uma lavagem intestinal e a radioterapia por um final de semana de chá e repouso? Durante o evento vocês podem espalhar seus cartões pelos ambientes, o que pode ser um ótimo marketing para vocês. Podes enviar mais algumas ideias, mas por favor utilize um corpo maior para o texto, não gostamos de letras pequenas.

TRAMPO FAKE

Tenho medo de injeção, dá para trocar por antibiótico em cápsula, mais simples e mais barato? Não faço mais frilas pingados, nem de criação, nem de fotografia. Ficamos um tempão em casa, desempregada, agora estamos na Alemanha bebendo cerveja diariamente, casada com um artista holandês famoso e preparando um mestrado quando sobra algum tempo de minhas ocupações como modelo fotográfico. Não fazemos mais nada sem pagamento antecipado. Mas estamos muito bem e não pretendemos ter um chefe tão cedo, sempre fomos meio rica, meio chic, meio tudo.

GEMINIANAS

Duas tinham o mesmo nome e profissões diferentes.

A terceira era fotógrafa mas nada em seu nome lembrava o nome das outra. As três passaram pela vida quase que no mesmo período. Eram contemporâneas. Digamos que o tempo de uma emendou no tempo da outra. Com pequena e quase insignificante sobreposição, liberando nossas personagens de qualquer ilação de mau comportamento sentimental. Uma das fotógrafas

dirigia uma moto pela zona sul, mas teve de desistir porque não tinha onde guardar o veículo. Sofria de insônia. Um amor francês? Não. Não dá não, sabe?

É muito sexo na cabeça, É um dois, três, conheceu, gostou, cama. Devagar que não tenho pressa.

Num caso desses, prefiro os brasileiros, mas não os possessivos, ah! Insuportáveis. E muda de assunto:

O Le Monde, na série intitulada Le Brésil en démocracie relative publicou artigos sobre o Brasil. Voilá: São Paulo mégalopolis brésilenne, une des villes les plus ingouvernables de la planète. Mais adiante: le gouvernement précédent avait manipulé les indices de coût de la vie, afin de contenir les salaires inférieurs.

Num bar, a outra de mesmo nome, tomando um chá de camomila, diz calmamente: caí da asa delta. Foi foda, não me arrebentei por fora, mas por dentro ficou tudo diferente. Nunca escrevi sobre isso, aliás, pouco escrevi na vida, confessa. Ao olhar a cena para fotografar, bate uma incerteza absoluta. Não espero mais nada daquele idiota. Para planos plenos, só com sonhos corajosos, do contrário a vara é pequena e o salto é grande, sem trocadilhos… Ganhamos mais um tempo para refletir e deduzir que não temos mais uma história para viver juntos nesta tropicália marginal, estrangeira, alienígena.

As mudanças constantes enervam, agora todo mundo faz “fotografias”, automáticas e vazias. Antigamente se comprava um filme de 36 poses quando tinha um trabalho importante para fazer e ganhar algum dinheiro. Agora, a outra, a de nome igual, faz mais de trinta selfies enquanto caga no banheiro do shopping, depois de retocar a maquiagem.

NOUTRO BAR

Voltei – grita – e com muita cena: um dia inteiro em frente ao imac para pôr a vida no visual padronizado do xerox preto e branco, e virar representação, descrição virtual… Está foda. Pensando bem, vou costurar as imagens, linearmente como palavras, dando sequência e ritmo às relações entre passado e futuro. O melhor presente de aniversário deveria ser ‘mais tempo para fazer nada’, que nem a preguiça conseguisse impedir de coçar até encher o saco. Escrita desmiolada: caçar as abobrinhas do discurso formal e gratuito. Outros são os tempos e estou de volta com trunfos, triunfos, trancos da linguagem. E truques do raciocínio para alongar esta conversa sem nexo na mesa de um bar de museu, nas infindáveis tentativas de consertar o mundo entre sanduíches e chopes. Antes mesmo de alcançar a esquina maldita já esqueci de tudo. Agora a idade me obriga a conviver com estes brancos de memória, de tempos em tempos, sem saber se estou no Bom Fim, subindo a Protásio Alves ou na esquina da Consolação com a Paulista.

Voltaremos em alguns instantes. Fique aí. Cenas de manifestação na Paulista e na Esquina Democrática.

Fico matutando, para escrever um dia no futuro, mesmo sem acreditar que terei futuro neste país

de merda, ocupado por turistas de érbienbi. Novamente, lembrar de passar um bombril na memória: não foi roubo, foi assalto com a mão da amada.

E tem gente que diz que ela era casada com o chefão.

Cadernos do OLHAR � Verão 2023

PÓS PERÍODO EM QUE A IGNORÂNCIA ERA QUALIDADE DOS ‘HOMENS DE BEM’

Tipografia Graviola, Henrique Beier, 2014 Bodoni, Morris Fuller Benton, 1989

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