Cad#25 A coisa por dentro: tendões, ossos, carne, sangue

Page 1

A COISA POR DENTRO TENDõES OSSOS CARNE SANGUE

Cad ern os do OLH AR #25 Ver ão 201 8

SEBASTIÃO SERPENTIN


A primeira e última vez que vi Sebastião Serpentin foi no verão de 1972 numa praia, nada deserta, do litoral do Rio Grande do Sul. Nascido em Paris, viveu em Porto Alegre, Rio e São Paulo — voltou a Paris, passou por Nova York, experimentou as paisagens exóticas de Bali — pode soar estranho mas Serpentin era surfista. — e desapareceu em Mairiporã, São Paulo, no final anos 1990. Seus escritos foram influenciados pelos poetas marginais do Rio de Janeiro dos anos 1970 e 80, notadamente por Chacal e Dunga, que conheceu no Pier de Ipanema em 1973. Seus textos em prosa, datilografados em papel barato estiveram perdidos ou guardados em caixas de arquivo morto por décadas em Mairiporã e São Paulo. Os originais das obras em prosa — Instant nostalgia e Cada palavra tem um sabor — foram recusados por editoras de Porto Alegre, Rio e São Paulo, e estão desaparecidos. Nascido Sebastian, aportuguesou seu nome depois de sua última viagem pela Europa, em 1992. Claudio Ferlauto


A COISA POR DENTRO TENDõES OSSOS CARNE SANGUE SEBASTIÃO SERPENTIN


asdfg


1972

1

2

sem dores e amores sofredores falei também? melhor, ela questionou – é assim que se escreve palavras doloridas? faz tempo, fazia, que não pegava a caneta e o papel para escrever para ninguém quem escreve para ninguém, escreve? fazia tanto tempo que havia grilos e palavras ásperas entre nós fazia tempo que não pegava a máquina pelas teclas, ao pé da letra desconfio da metalinguagem usada quando não sabemos o que dizer fazia tempo que esperava um dia de reticências ou de três pontinhos… mas não naquele restaurante faz tempo que deixo o tempo correr entre os dedos fazia tempo que não passava por um verão tão doloroso dias tão calorentos borboletas enlouquecidas mosquitos tão afinados músicas tão absurdas uma flauta doce deslocada tantas dívidas, tantas dúvidas o melhor é nunca juntar dívidas e dúvidas


1973

3

sou novembro e dezembro circulo dolorido em pele e osso no centro da cidade sou a realidade e a luz que me alumia que tem fim num zero redondinho Sou mero infinito em janeiro – vamos nos encontrar nos ramos mais altos de uma mangabeira? sou um desenho e uma fotografia que troco por qualquer coisa – fósforo usado, válvula queimada ou intragáveis gravatas listradas novembro e dezembro são como paisagens de cartões postais pessoas em retratos 3x4 agruras de manchetes de jornal alegrias de filmes technicolor são como cagadas profissionais e transas de loucos delirantes são palavras nebulosas que perdemos sem entender sonados como cães no reveillon

4

hoje é dia de um aniversário vamos comemorar com as vizinhas recatadas e quietas terça feira de muito sol


no sítio distante o milho crescido as flores e alguns aromas do pomar sinto o gosto amargo de uma pedra em cada saudade que medra relógios a barba, o espelho e pronto são muitos anos muitas pessoas na janela saudando com bom dia uma criança, nuvens, confetes e o arrastar de chinelos de alpargatas quentes e sonolentos no amanhecer

5

ainda moramos na mesma rua e se voce vier, ofereço um drink espalho com a música umas fotografias antigas instantâneos de primeiras emoções esperamos o sol nascer o sino tocar e o trem distante sinalizar com apitos dissimulados despertos olhamos a vida como uma história de amor em offset impresso a quatro cores agora em todas as bancas


1972

6

post card post mortem post service sais do mar sai do ar ao mergulhar serviços extras premissas bestas notícias incertas o bruxo o bixo o baixo notam-se notícias notórias satisfatórias raras e inebriantes caras e confortantes raramente neutras dê um abraço na vizinhança tola


7

ver ver melhor o que é agora vejo profundamente cortei o pulso ver a coisa por dentro – tendões, ossos, carne, sangue falhei novamente sem ver enfiei o braço num vidro — um buraco no corpo olhar de volta no reflexo ver a cara de medo – ver o espelho ver o pequeno mundo que afinal de contas está poluído de copos da cica e garrafas de plástico


1973

8

domingo para chá e bolinhos apenas a preguiça de sonhar com saídas ou alçapões há música, ginástica e palhaços na tevê domingo para escrever como só escrevi duas vezes na vida – sempre para a pessoa errada antes as coisas iam e vinham e até ficavam imobilizadas por instantes sutis sonâmbulos ou ludibriados assim, sem mais nem menos o sol de novo sobre as areias alvas e claras do litoral – areia branca e sorridente de anúncio de dentifrício. Ah!

1977

9

aqui na repartição casaco no encosto da cadeira preâmbulo: perambulo anexo xerox de uma antiga matéria sobre a mafia Joe Bananas e Vicent Teresa – esse não passa de um dedo duro


continuo aguardando as fofocas para não perder tempo avise-me se queres o negócio mas nada de – vou pensar tenho já vários nomes alguns em tupi tupiguarani é bom é inteiramente nacional tupi é nosso não exige depósito compulsório nem contrato de risco seja breve

1976

10 olhos negros e infantis

encanto e espanto melancolia, fantasia – Instant nostalgia cantos e desencantos andanças, lembranças Ipanema e Leblon, Brooklin, Pacaembu em tudo o índio adormecido em aeroportos antigos modernistas saudades, uma fonte de saudades


subindo morro acima como uma rima para colares de pena duras penas de festíns indígenas passeando de mini saias pela Barão e Farme É dia de rock?

1976

11 lá vou catando milho

máquina de escrever uma lauda por dia queria ir voando olhando o céu com olhos verdes bem abertos lá vou toda semana antes mesmo do jantar para segurar a barra da saia e as barras da praia oh! quando vamos e descer deste disco voador? na Praça da Sé não é bom tentar na Roosevelt? prefiro em Ipanema ou no Leblon perto de uma casa de sucos


acordar corretamente com o pé direito na alpargata salto agora ou nunca ninguém nota que estamos vivos viva a preguiça

1977

12 notícias não tenho

nem dos inimigos nenhuma surpresa maldade alguma hora das notícias da tevê – das más notícias alguém corrige o país pegou o atalho para a escuridão foi-se o tempo agora é loteria segredos, mar de venenos no mais, escreva e apareça ou desapareça como tantos enquanto a gente chora outros vão embora sem deixar rastros foi assim ontem


poderá ser novamente queiram os deuses poder encontrá-los ansiosos por um copo dágua ou por uma coca cola gelada

1977

13 pelas frestas noturnas

deita seus negros cabelos como veneno sobre os dois travesseiros olhos claros e silenciosos chamam as lembranças antigas tempo de bonecas e frescobol – um mar de mistérios e ventania raio, trovão, maré alta sinais de perigo antes mesmo do pior acontecer acorde – sou apenas palavras

fim


Cadernos do OLHAR #25 Verão 2018 �

Editor Claudio Ferlauto Tipografia Graviola, Henrique Beier, 2014 Bodoni, Morris Fuller Benton, 1989 Contatos claudio@qu4tro.com.br qu4tro.com.br/blog

Mais em issuu.com/olhargrafico Caderno #01 – Paisagens e viagens Caderno #04 – Textos de S.Serpentin Caderno #05 – La nit, la casa, prosa poética Caderno #07 – Arquitetura Caderno #08 – The apple, a maçã, la poma Caderno #09 – Design, mestres suíços… Caderno #13 – Poesia e gravura Caderno #16 – Fotografia Caderno #17 – O vermelho Caderno #18 – Cor e corpo Caderno #19 – Ardentes palávoras, poesia Caderno #20 – Caligrafia Caderno #21 – Designers que ensinam design Caderno #22 – Paisagem, textos e imagens �


Eliminating the Human David Byrne, Nova York, 2017

Cad ern os do OLH AR #25 Ver ão 201 8

We’re a social species—we benefit from passing discoveries on, and we benefit from our tendency to cooperate to achieve what we cannot alone. In his book Sapiens, Yuval Harari claims this is what allowed us to be so successful. He also claims that this cooperation was often facilitated by an ability to believe in “fictions” such as nations, money, religions, and legal institutions. � Machines don’t believe in fictions —or not yet, anyway. That’s not to say they won’t surpass us, but if machines are designed to be mainly self-interested, they may hit a roadblock. And in the meantime, if less human interaction enables us to forget how to cooperate, then we lose our advantage. � Our random accidents and odd behaviors are fun—they make life enjoyable. I’m wondering what we’re left with when there are fewer and fewer human interactions. Remove humans from the equation, and we are less complete as people and as a society. � “We” do not exist as isolated individuals. We, as individuals, are inhabitants of networks; we are relationships. That is how we prosper and thrive.


A COISA POR DENTRO TENDõES OSSOS CARNE SANGUE

Cad ern os do OLH AR #25 Ver ão 201 8

SEBASTIÃO SERPENTIN


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.