Ardentes palávoras | Cadernos do Olhar#19 | Verão 2017

Page 1

José Otávio Dedé da Rosa Ferlauto

ardentes palávoras como aftas na língua


Aqui fechamos a edição

19 dos Cadernos do Olhar

com poemas de jorF (1951–2007) – autor, poeta, jornalista, letrista, meu irmão Dedé e companheiro de algumas jornadas juvenis como o jornal Pato Macho, e o show Liverpool Sound & Sons, realizado pelo Signovo em Porto Alegre nos anos 1970. A edição destes poucos poemas escolhidos em antologia ainda não publicada, resgata seu trabalho e foi inspirada, ou melhor dizendo, na descoberta da foto da capa que Uscha Roig pôs na roda no final de 2016. Aproveitamos as palavras do autor para justificar as escolhas dos poemas: A

edição [de 1991] é aleatória, pois não se pretendeu encarcerar poemas em capítulos, conduzindo o leitor pela mão. Tampouco há a pretensão de sermos levados a sério. Séria é a vida, que não nos poupa, cobra cotidianamente e nos conduz à morte. A morte, o tabaco e a cidade são temas recorrentes, porque sou filho da cidade, fumante inveterado […]. ¶ O título foi retirado de um poema desta seleção, a tipografia que vocaliza o poeta é a Bodoni (1780) , todos os outros textos, incluindo os títulos dos poemas foram compostos em Stone Sans (1987) de Sumner Stone. Claudio Ferlauto, março 2017.

Um dia olhei com atenção o velho alfabeto moderno, de um italiano nascido em 1740, o primeiro a fazer uma serifa digna de Mies van der Rohe [o arquiteto]. Seu nome era Giambattista Bodoni, o Mozart da tiporafia. Esse encontro mudou sutilmente minha vida. CF


José Otávio Dedé da Rosa Ferlauto

ardentes palávoras como aftas na língua

todavia pera escreber huma chronica “ simto humas quenturas até no hinverno e tenho medo também que se apague a lanterna et como disse algueem meu polegar estaa doendo

Baudolino começa a escrever, Baudolino, Umberto Eco, 2000.


bicho ao bicho que cresce dentro de si cede o Homem, a cada passo, seus espaços com passos largos e noturnos vai pelo caminho o Homem que cede, palmo a palmo seus espaços mais claros (azuis de todos os tons) prum bicho informe que circula como os rios na face da terra como sangue nas veias e piolhos na cabeça

choravmaria Eu sonhei que a mulher sem nome não sabia que Maria havia morrido Os homens das ruas consolavam a mulher sem rosto que choravmaria Eu peguei o enxadão e fui pra cima do homem que desatava o cabeldela A mulher sem homem choravmaria e me dizia sem ela não dá não dá Então acordei para atender o Ivoy que ligava pra saber se eu tavaqui

4


definição propósitos? os tenho nas prateleiras é só pegar são eles que rompem meu sono me jogam na contramão os propósitos sempre serão os mais louváveis mais dignos e altruísticos enquanto seremos inevitavelmente a mais indigna conduta o egoísta animal (e quanto mais falo menos digo qualquer coisa)

5


domésticos domestica-se até crocodilos mas o automóvel coitado além de indomável não cresce

ontem ontem foi a festa de mais uma despedida hoje é dia de juntar os cacos montá-los será mais demorado o rastro da alegria também tem desfeitas

6


Estou triste Estou triste como alguém que se prepara para uma festa Estendo um ruidoso silêncio na soleira sem sol e avanço contra o cão A vida refeita nos detalhes me substitui na última hora Busco a pedra na sombra inquieta e não consigo recolher as palavras na manhã incandescente: não há mais nem menos corpo não há mais nem menos carne Estou triste estou chato de atar e enviar como alfinetes na lânguida língua

7


retrato gosto da cidade em suas imperfeições nas pichações que a tatuam nas armadilhas para desatentos em recantos para lentos nos túneis dos apressados esquinas para encontros na ostensiva contradição com o Guaíba

lsd se um dia o ácido lisérgico tomares não confies nas cores que vires nem na alegria que por ventura sentires e não se assuste se a realidade for mais brutal e clara do que quando de cara limpa encaras

8


palávoras não novilíngua nem ontem jamais amanhã: ardentes palávoras como aftas na língua ardem navios no mar nafta mordendo o ar enxôfre chumbo e ar dência densa no olho ferido pela paisagem banal, urbana

liberdade a traça amiga me livra um dia do livro

9


nova república preciso me livrar desta bronca coisantiga assim há muito tempo não engolia tão apressado tão sem dentes todo goela se você souber de um lance onde se possa embarcar me conte, dê uma pista e já estou indo pois preciso me liberar disso quero riscar mapas penetrar outras paisagens

10


o amante todos os cais são iguais gente que vem e que vai gente que chega e sai bandos de anormais agentes federais todos os cais são iguais uns têm muros outros têm mais presta atenção, presta atenção paredes tem ouvidos teus ouvidos têm paredes pra nunca mais pois todos os cais são iguais onde tudo, tudo é permitido (mas nada, nada é possível)

a passar não há tempo: não vá com pressa a vida é curta mas custa a passar

11


maloquêru A partir do célebre poema do pastor alemão Martin Niemoeler do qual também se apropriaram Bertolt Brecht e Mario Quintana.

da primera veiz qui a pulícia levô êli éra di menór e a gênti nãu sôbe u qui fazê na sigunda, entráru pedalandu a porta levaru coiza, reviráru tudu arrastáru u cara sem culpa formada pra delegacia di furtu i a gente nãu tinha dinhêru pru adeva quandu, infim, entráru di árma na mãu atirando i matându u omi levaru u corpu comu si fossi sácu di lixu pru agá-pê-éssi nóis que nunca dissemu nada já pocu pudía dizê na porta du i-emi-éli buscandu u corpu qui era penera di muita bala

12


sonho solto Musicado por LĂŠo Ferlauto

sonho solto sono solto somos sonhos sonhos soltos a sonhar capinar, amar a terra plantar enraizar sonhos no chĂŁo virar a terra com a mĂŁo fruto na boca o sonho de boca a ouvido

13


ladrão de tantos furtos parco arrependimento dos arrombamentos alegres lembranças (dores, recordações) de todos os crimes silêncios e convivências todos os flagrantes têm seu preço

instante quero lavar os poemas esfregá-los na tinta das matas findas na textura seca dos desertos no frescor dos vales molhados a humanidade não dura mais do que o exato instante hesitante de um olhar de algum deus

14


filosofia quanto mais bato asas mais crescem minhas raízes

fumando a fumaça do cigarro que invento-engulo todo dia tem o amargo doce sabor das matas incendiadas

fumo entre os dedos vira fumaça o cigarro acaba sempre e rápido só a vida é eterna

primavera não sou dos bailes sou da dança!

15


Publicações do autor

Cadernos do

Verão

OLHAR#19

Verão/Summer/Été /Estiu Edição & Design Claudio Ferlauto Poemas de José o R Ferlauto Foto/Photo arquivo Usha Roig Composto em/Set in ITC Stone Sans e Bodoni Contatos/Contacts/Contactes qu4tro.com.br/blog claudio@qu4tro.com.br Desenhado em março 2017

Agenda Poética, com Poemas Passionais edição do autor para GoldenExport, Novo Hamburgo, RS, 1983. Ilustrações de Cris Burger e Suiá Burger Ferlauto. Vi Vendo, Poemas de Dedé Ferlauto Edições Taí, Porto Alegre, 1988. Colaboração de Clara da Rosa Ferlauto, Mario Pirata e Walkíria Grehs Ilustração Cris Burger


José Otávio Dedé da Rosa Ferlauto

ardentes palávoras como aftas na língua


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.