Cadernos do olhar#01 Notas de paisagens e viagens nov 2012

Page 1

os adern

do

01 # R

A H L O

C

NOTAS de PaisageNS & viageNS

Porto Alegre, Nova York, Sant Llorenรง


s do o n r e Cad

Novembro/dezembro 20112

02 # R

A H L O

Edição e design Claudio Ferlauto Textos Marcos Vacchetti Luiz Augusto/Revista do Globo Luiz Augusto Fischer Malcom Bradbury e James McFarlane Rem Koolhaas Mercè Rodoreda Francesc de B. Moll Colaboradores Maialu Burger Ferlauto Ricard Pinyol Contatos qu4tro.com.br/blog claudio@qu4tro.com.br

Oliveiras em Sant Llorenç des Cardassar Mallorca, Catalunha


Como um museu se assemelha um pouco a uma bibliotecA

Marco Vacchetti Atalanta e Hipómenes de Guido Reni in Storie dell’Arte, Scuola Holden, Milão, Itália, 2000.

Um dos fascínios desta composição belíssima é sua evidente estrutura em diagonal cruzada e a imprevista alternância d’accento produzida pela aparente quebra do ritmo de Atalanta que se inclina para recolher a maçã. Mas esta quebra é só aparente, porque a perna que não está cruzada com a de Hipómenes está na realidade numa outra diagonal e forma uma pirâmide com a perna esquerda de Hipómenes. Assim, uma composição sensivelmente dinâmica se formaliza em uma estética de gosto clássico... ¶ Desta forma, agora sabemos alguma coisa a mais sobre como esta cena foi idealizada e provavelmente sobre a razão porque esta pintura nos agrada. Mas o sujeito? O conteúdo? A jovem se inclina para pegar uma maçã. Mas por quê? Ela parece observar alguma coisa a distância. Porque motivo? E por que estão nus? E ainda, por que o cenário é assim tão taciturno? Que tragédia se anuncia no horizonte? ¶ O título da obra nos dá o nome dos dois personagens, Atalanta e Hipómenes. Conhecemos o sujeito. Nos lembramos quese trata de um mito e de uma história que foi narrada pelo poeta Públio Ovídio Nasone e por Caio Giulio Igino, o bibliotecário de Augusto. Para conhecer o conteúdo devemos conhecer a história. Se não conhecemos a história não podemos compreender verdadeiramente o quadro apenas admirando sua beleza plástica. n Tentemos compreender. Conta-se que Atalanta, filha de Esqueneu de Sciro, era uma famosa caçadora. Um oráculo havia previsto que a jovem jamais iria se casar, porque se casasse ficaria privada de si mesma. Atalanta belíssima jovem fica assustada e decide manter-se sempre virgem. E sendo imbatível nas corridas, proclama que se casará apenas com um homem mais veloz que ela. Quem perde uma dessas disputas é condenado a morte. Não faltavam pretendentes, corridas e uma sequência de mortes. ¶ O adolescente Hipómenes, chamado pelo outros de Melânion, repreende a imbecilidade de seus companheiros, mas mal olha a jovem, nua para competir em uma corrida, se enamora perdidamente. Com a alma arrebatada, pede conselhos a Vênus que, comovida pela ingenuidade de seus sentimentos, lhe dá três maçãs de ouro do Jardim das Hespérides, oferecidas a ela por Héracles (mas esta já é outra história...) e um conselho. ¶ Acertada a disputa, soadas as trombetas, prepara-se a corrida. E Atalanta já perturbada pela idade do adversário, de sua inocência e talvez por sua beleza, fica em dúvida se prefere a vitória ou ser vencida. Amata et sentit amorem ( Ama e não conhece o amor). As emoções estão suspensas no ar. n A corrida começa. Os pés voam velozes sobre a terra e a rápida virgem ganha terreno, mas não muito. Hipómenes, arquejante observa com medo seu objetivo distanciar-se. Pega uma maçã, deixa-a rolar aos pés da mulher. Atalanta se surpreende, se abaixa, recolhe o fruto esplendoroso. Hipómenes a supera, o público aplaude. Com facilidade a jovem recupera o tempo perdido e de novo toma a frente. Outra maçã, nova parada, segunda ultrapassagem. Entretanto a virgem retoma a corrida e com facilidade recupera a primeira posição. Um grande prêmio emocionante. A chegada se aproxima.


Sulacap

Porto Alegre, RS, Paralelo 30 Edifício SULACAP na esquina da rua da Praia com a avenida Borges de Medeiros. Abaixo, rua Gaspar Martins, no bairro Floresta.

«Os beatnicks gaúchos tiveram a sua reunião mais sensacional na Nuit de Paris, festa divertida, movimentada e sobretudo maluca, promovida por um dos grupos mais simpáticos e atuantes da jovem guarda que é a Equipe GM [Gaspar Martins]. Desde a chegada sentia-se no ar o ambiente enfumaçado e confuso de uma cave parisiense. Um corredor estreito era a entrada da festa. O decor era surrealista. E observando a tudo com seu olhar misterioso, havia um grande desenho: o Homem de Preto».

Composto em Didot (1784), de Firmin Didot

In Revista do Globo #828, setembro 1962


Catedral Metropolitana de Porto Alegre

MARGS Museu de Artes do Rio Grande do Sul

Título em Didot (1784), de Firmin Didot, texto em Syntax (1968), de Eduard Meier

Portoalegrês? Deu pra ti... Na altura de 1986 uma professora portuguesa passou um tempo por aqui, no lugar onde trabalho, o Instituto de Letras da UFRGS. Um dia ela perguntou, como turista, o que devia fazer para sair de seu hotel e ir até não lembro onde. Comecei a explicar: olha tu desces, pega a esquerda, e pela mesma calçada caminhas duas quadras e aí tem uma parada. Precisei parar, em função da expressão dela. “Calçada é passeio, quadra é quarteirão, tudo bem, mas parada eu não imagino o que seja”. ¶ Aí expliquei: ponto de ônibus. Claro que todos da mesa começaram a brincar com outras palavras: que ela precisava subir a lomba, comer um negrinho, comprar um cacetinho... In Dicionário de Porto Alegre, de Luiz Augusto Fischer, Porto Alegra, Artes e Ofícios, 1999.

Praça da Alfândega


Os poetas modernistas de Nova York W ­ allace Stevens,

e.e.cummings, Hart Crane, e Marianne Moore­assumiam

uma ideia de poesia como algo constritivo, inflexível,

árduo. Ao se recusarem a ser poéticos na «antiga acepção», os poetas modernistas optaram por eliminar a maioria das coisas que, para os leitores mais velhos constituíam a própria poesia. Escreviam para um novo público de colegas de ofício e simpatizantes com o novo experimentalismo. A descrição de W.C. Willians sobre o uso

«Com a srta. Moore, uma palavra é uma palavra principalmente quando é decomposta pela ciência, tratada com ácido para remover as manchas, lavada, enxugada e posta pelo lado direito sobre uma superfície limpa».

Malcom Bradbury e James McFarlane in Modernismo – Guia Geral, Companhia das Letras, 1998.

Manhattan

«Manhattan gerou uma arquitetura despudorada,

Rem Koolhaas in Nova York delirante CosacNaify, 2008.

da linguagem por Marianne Moore sugere a diferença:

sendo amada numa relação diretamente proporcional à sua provocadora falta de aversão a si mesma, respeitada exatamente na medida em que foi longe demais. ¶ Manhattan tem inspirado sistematicamente em seus espectadores um êxtase perante a arquitetura».

Título e textos em Gotham (2000) da The Hoefler Type Foundry

Modern ismoin NewYork


Na página anterior: Edifício Flatiron (Fuller), 1902. Edifício Chrysler, 1930. Nesta página: Metro da 2ª Avenida e da Rua 57. Janela na Rua 2. Pia do banheiro do MoMA. Ônibus de Manhattan. Janela na Park Av.


Fotos de Maialu Burger Ferlauto

«Li recomano que vagi al poble d’allà baix, el veu? L’arbreda el tapa però està darrera mateix de l’arbreda, no el veu mig esborrat darrera dels fullatges?», em va dir una dona sense edat, tota de negre, amb faldilles amples, arrugades a la cintura, i amb la cara rodona emmarcada per un mocador molt ben lligat a sota del mentó. «Se’n quedarà ena-

morat». I va fer una mitja rialleta. • […] • S’acostava la nit. El poble es va il·luminar. Però la nit que venia semblava carregada d’històries d’arbres nascuts en un punt determinat per un voler molt segur i d’herba escampada per una mà molt sàvia en els llocs on podia estar més ben estesa. • […] • I tot d’un plegat va sortir un tros de lluna is es va aixecar una mica de vent i tot l’espai entre els adormits i jo es va omplir de fils de flor que passaven volant i quan van haver passat, sense adonar-me del canvi, com si algú molt poderós m’hagués transportat, em vaig trobar no a la vora de la font cantadora sinó a la vora d’un llac de color de plom amb el tros de lluna a dintre, enigmàtic, que de perfil em mirava de reüll i somreia de biaix com aquella dona vestida de negre que m’havia dit que el poble, no el veu darrera d’aquells fullatges?, era el poble més bonic del món. Mercé Rodoreda, Viatge al poble de la bruixeria, dell libre Viatges i fllors, Edicions 62, Barcelona, 1980.

Título em Gil Sans, (1931) texto em Perpetua (1928), famílias tipográficas de Eric Gill

Sant Llorenç des Cardassar, Mallorca ••


Le llengua catalana, Francesc de B. Moll: «Aquesta llengua, que havia estat postergada i perseguida [per Franco], ha adquirit importància social i política; ha començat a ser d’ús oficial i ha passat d’un estat de minoria devota a un altre d’interès general. S’ha reconegut el seu valor educatiu is en comença a introduir en els plans escolars. És una realitat que es manifesta per l’afluència creixent d’alumnes de tots els graus». Dell libre Llengua o dialecte, Editorial Moll, Mallorca, 1993.


Como um museu se assemelha um pouco a umaCONTINUAÇÃO bibliotecA n A última maçã. Desta vez ela é lançada à beira do caminho. Atalanta exita, em dúvida, desvia para pegar o fruto de sua própria derrota, mas cujo sabor não é, no entando, muito amargo. Hipómenes é o primeiro, cansado, imaginamos, mas pronto a exigir o prêmio que lhe é devido. É quase o fim, se diria, mas a história não é finda. ¶ Os dois, agora enamorados, são rápidos não apenas na corrida. Tomados de desenfreado desejo se unem frenéticamente em um gruta à sombra de um templo sagrado dedicado a Cibele. A estátua de madeira ali presente, desvia o olhar pudibundo para o outro lado. No ímpeto Hipómenes se esquecera de agradecer a Vênus e ela, furiosa, transforma no mesmo instante os dois amantes em leões emparelhados ao carro da Mãe Terra. Perder-se de si mesmo significa perder a natureza humana. O oráculo já havia dito. O final é trágico. ¶ O quadro de Guido Reni represente esta história. Conhecendo-a podemos compreender mais profundamente as escolhas do autor, as particularidades, as referências, as implicações teóricas, as razões culturais da pintura e, em última análise, o seu sentido. ¶ As histórias apresentadas nas obras de arte são quase sempre muito bonitas, apaixonantes, curiosas, de certa maneira universalmente reconhecidas, e outras vezes desconhecidas ou obscuras. Algumas histórias foram pintadas dezenas de vezes e, então é interessante procurar entender quais são as razões que produziram estas variantes e o que podem significar as diferenças tão particulares e, aparentemente, marginais em cada uma delas. Muitas são histórias raras, histórias a ser descobertas e pesquisadas, em busca das razões porque foram escolhidas por tantos artistas. n Em ambos os casos são histórias que valem a pena conhecer. Quando entramos num museu observamos as pinturas, as esculturas. São centenas, se não milhares de imagens. Muitas destas imagens relatam temas de deuses, heróis, santos, homens. Neste sentido um museu se assemelha um pouco a uma biblioteca. É um conjunto de textos, documentos, narrativas. Mas quando vamos a uma biblioteca, seria muita tolice ter a pretensão de ler todos os livros que ela contém. Nos museus, ao contrário, a voracidade do turismo cultural nos acostumou a esta postura: queremos experimentar de tudo. Desta maneira acabamos de ver o Louvre, o Prado, os Uffizi, não as obras. O olhar do visitante em um museu pode virar o filho de um olho cego, de uma atenção surda, que se satisfaz com um rápido reconhecimento. ¶ Esta atitude seria o mesmo que imaginar ter visitado e conhecido uma região só porque cruzamos através dela por uma autoestrada.

¶ Nossa percepção das obras de arte não deveria ser uma visão a partir da estrada. Dar uma folheada em um livro não significa tê-lo lido, assim como, dar uma olhadinha na superfície de uma pintura sem questionamentos, não significa observá-la. Olhamos a imagem, mas não a vemos. Para existir um olhar compreensivo, e este nasce originalmente de um olhar curioso, é necessário fazer escolhas. Escolher a sala, escolher uma única obra, um autor. Olhar poucas imagens ao redor, olhar com atenção e curiosidade. Uma pinacoteca não é uma televisão. Isto não porque a Arte seja sublime e a televisão contenha apenas lixo, mas porque a diferentes meios correspondem diferentes lógicas de exibição das imagens. Enquanto o produto televisivo é produzido por acúmulo, a obra de arte, realizada centímetro por centímetro, é pensada por rarefação. Conduzir os próprios olhos no interior das salas de um museu não deveria ser um gesto como aquele de trocar de canal do aparelho de TV. ¶ O esfacelamento do olhar é nocivo a uma percepção em profundidade —única maneira útil a permitir a reflexão. Muitos museus são dominados pelo critério da acumulação. Ou seja, maior o número de obras primas, mais importante parece ser o próprio museu. O efeito é paradoxal: quanto mais obras são agrupadas, tanto menor é a atenção que o visitante lhe dedica, e tanto maior é a canseira. Argo, no entando, com seus cem olhos, arrisca-se a ir dormir com os pés doloridos. ¶ O equívoco de nossa suposta civilização das imagens é afirmar que ler as imagens é mais fácil

e simples que ler a palavra escrita.

Olhar não é ver. Como nas academias de arte e nas escolas de desenho pode ser mais útil educar em primeiro lugar o olhar, antes de treinar a mão, assim nos museus e nas galerias de arte poderia ser produtivo estimular um olhar com inteligência, dar acuidade à perspicácia perceptiva, desenvolver a intensidade da visão. ¶ Procurar compreender se no interior ou diante de uma obra existe uma narrativa e, em caso de resposta afirmativa, compreender qual, significa avançar um passo para apreender a ler as imagens. Entender a maneira como uma história é narrada, tanto quanto representada visualmente, nos permite aprofundar o nosso conhecimento visual. Dirigir a atenção aos princípios narrativos que podem estar presentes numa obra de arte nos empurra a observá-la numa perspectiva diferente. Portanto diante de uma tela ou de um bloco de mármore podemos experimentar algumas perguntas: narra uma história? Qual? De que tipo? De que modo? Marco Vacchetti


La Pedrera, Antoni GaudĂ­, Barcelona, Catalunha

Tacos Cidade do MĂŠxico, DF

Bar na beira da praia Gamboa do Norte, SC


rno Cade

s do

01 # R

OLHA

Gamboa do Norte, SC México, DF Barcelona, Catalunha

Sant Llorenç des Cardassar, Mallorca

Desenhado em novembro de 2012. Composto com as famílias tipográficas Gil Sans, Perpetua, Didot, Electra, Syntax, Gotham, Ubuntu, Akzidenz-Grotesk. Impressão digital de Copytech, São Paulo, sobre papel off-set.

«Recomendo-lhe que vás ao povoado ali debaixo, vês? O arvoredo o cobre no entanto ele está ali atrás, podes vê-lo assim mesmo meio escondido atrás das folhagens», me diz uma mulher sem idade, toda de preto, com uma saia ampla, pregada na cintura, e o rosto redondo emoldurado por um lenço muito bem amarrado sob o queixo. «Vais acabar apaixonado». Diz, fazendo um meio sorrizinho. • […] • Caía a noite. O povoado começava a se iluminar. Mas a noite que chegava estava carregada de histórias de árvores nascidas em pontos determinados por uma vontade muito forte e de erva espalhada por uma mão muito sábia em lugares onde podia estar bem estendida. • […] • E em um instante apareceu um pedaço de lua, levantou-se um pouco de vento, e todo o espaço entre os adormecidos e se encheu de fios de flores que passavam voando e que depois de passar, sem me dar conta da mudança, como se alguém poderoso me tivese transportado, me encontrei não na beira da fonte cantadora, mas na beira de um lago cor de chumbo com um pedacinho de lua dentro, enigmático, que de perfil me olhava de relance e sorria baixinho como aquela mulher vestida de preto que me havia dito que o povoado, você não vê por trás daquelas folhagens?, era o povoado mais bonito do mundo. Mercè RodoReDa, Viatge al poble de la bruixeria, no livro Viatges i Flors, Edicions 62, Barcelona, 1980.

+ Porto Alegre, anos atrás Havia um morro perto de casa. Habitado e incorporado à malha da cidade. Na época ainda lembrava um morro, não parte de uma cidade urbanizada e motorizada. Um morro de verdade que escalávamos nos fins de semana, um bando de gurís, usando nossas trilhas e esconderijos —sob alguma pedra— para cigarros e balas. Sempre subíamos o morro quando íamos à fábrica de botões —no outro lado da cidade—para comprar jogadores para nossos times de futebol de mesa. Essas eram aventuras mais longas e preparadas com antecedência, com paradas para comer sanduíches e frutas e planejar como desviar algum futuro craque para nossa sacola, enquanto seu Nestor se virava para apanhar nossas encomendas. ¶ Ricaldoni era o nome do morro. Nem sei como ainda me lembro do nome, que deve ser de algum imigrante italiano, que como meu avô, escolheu ficar em Porto Alegre em vez de ir para Caxias do Sul. Agora, não passa de um amontoado de prédios sem graça, cheio de gente, mas ainda um belo lugar para se ver o pôr do sol sobre o rio Guaíba. CF, Passando um bombril na memória anos 1980.


os adern

do

01 # R

A H L O

C

NOTAS de PaisageNS & viageNS

Porto Alegre, Nova York, Sant Llorenรง


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.