Diário IX – Na porta do engenho – Quarentena

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Claudio Ferlauto

De madrugada levanto para mijar, olho o mar lá embaixo e as águas ainda estão escuras. As ondas batem fortes. Dá para distinguir…

Na porta do engenho


Suiá, Sauê, Maialu e amigas, 1984

…cada uma delas, misturadas com o suave ruído da espuma na arrebentação, em sequência contínua embalam o dia e a noite ditando ritmo ao sono e aos sonhos. Nos sonhos pareces uma pessoa quieta e, talvez, distante. Mas deixas um recado: Querido adoraria te ver por lá em breve. As ondas soam em intervalos breves. Parecem cansadas, lentas, mas sempre sincronizadas, certas de que estão quebrando no tempo certo. Certeiras, assustadoras na escuridão, magestosas e desafiadoras quando começam a ser iluminadas pelos vermelhos do sol nascente. Vai dar praia e ela já tem, na água, alguns surfistas. As cores ficam mais claras. Meus olhos abertos reclamam da luminosidade. Não vou voltar a dormir nem a sonhar. Não quero mais saber o que estava acontecendo enquanto achava que dormia.


Sauê e Sara, 1988

Os sons vão compondo a paisagem: ao longe a batida regular de um carneiro hidráulico bombeando água em um morro; pássaros conversam conversas de macho e femea. Debates, bate-bocas ou algazarras em rede social; sopra uma brisa que sacode as árvores próximas com ruídos e quietudes inesperadas. Alguém dá descarga no banheiro. Passa, distante, um carro, depois uma moto. E uma onda, maior que as outras, arrebenta com um estrondo. Urubus voam alto em cima do morro. Gaivotas rumam para o Sul, dois gaviões do banhado e um albatroz competem em alturas e voos com os urubus. No chão um quero-quero tenta definir seu território enquanto as crianças não começaram a jogar bola. Você, escondida na memória, grita: Que saco! Acho que também vou plantar batatas. Mas vou plantar de mau humor.


Engenho da Ana,1986

Ainda estou apatetado diante da paisagem e absorvendo a chegada das cores. Embebido nas tramas do sonho interrompido. A vida é bela, escondamo-nos dela. Estou em pé, mijando na folhagem mais próxima. Os pássaros começam a se movimentar e enriquecer a paisagem sonora. Não os pássaros marinhos, que estão distantes, mas aracuans, gralhas-azuis, sabiás, pica-paus, saracuras, biguás, saíras. Um raro tiê sangue. O gato atravessa o plano de visão, desconfiado e ladino. Nenhum lagarto saiu da toca, ainda. A cena serve para acalmar a memória que está perturbada pelo final do sonho. Pode ser que tenhamos que jogar fora estas frases e que logo nosso ânimo seja outro. A vida empaca para atrair as vacas. As tainhas morreram e já tem asas. A roda que gira desfaz seu vestido e mostra seus seios sob as ervas e a noite esconde os peixinhos.


Suiá, Sauê, Maialu , Cris e Claudio, fotos de Tonico Alvarez,1979



Topo e Tonico, 1979


Cadernos do olhar 19 agosto 2020 Contato clauf4455@gmail.com

Caminho das areias


Claudio Ferlauto

De madrugada levanto para mijar, olho o mar lá abaixo e as águas ainda estão escuras. As ondas batem fortes. Dá para distinguir…

Na porta do engenho


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