'Hipômenes e Atalanta', Guido Reni, Marco Vacchetti

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AS PÁGINAS Cadernos do Olhar AMA RELAS Hipômenes e Atalanta Storie dell’Arte, La narrazione nelle immagini. ed. Scuola Holden A leitura de uma obra prima de Guido Reni por

Marco Vacchetti "Uma pinacoteca não é uma televisão. Isto não porque a Arte seja sublime e a televisão contenha apenas lixo, mas porque a diferentes meios correspondem diferentes lógicas de exibição das imagens."


PÁGINAS AMARELAS de Cadernos do Olhar Verão 2021 Texto

— Marco Vacchetti Tipografias

Bembo —Stanley Morison The Monotype Corporation Gothan —Tobias Frere-Jones/Jesse Ragan The Hoefler Type Foundry

Editor Claudio Ferlauto Contato clauf4455@gmail.com Outras publicações disponíveis em issuu.com/olhargrafico

Atalanta e Hipomenes é um óleo sobre tela de 1620–1625 de Guido Reni, agora no Museu Nacional de Capodimonte, em Nápoles. A obra era uma segunda versão de uma obra de 1618 a 1619 do assunto feita pelo artista, que agora está no Museu do Prado. Wikipedia


m dos fascínios desta composição belíssima é sua evidente estrutura em diagonal cruzada e a imprevista alternância

d’accento produzida pela aparente quebra do ritmo de Atalanta que se inclina para recolher a maçã. Mas esta quebra é só aparente, porque a perna que não está cruzada com a de Hipômenes está na realidade numa outra diagonal e forma uma pirâmide com a perna esquerda de Hipômenes. Assim, uma composição sensivelmente dinâmica se formaliza em uma estética de gosto clássico... ¶ Desta forma, agora sabemos alguma coisa a mais sobre como esta cena foi idealizada e provavelmente sobre a razão porque esta pintura nos agrada. Mas o sujeito? O conteúdo? A jovem se inclina para pegar uma maçã. Mas por quê? Ela parece observar alguma coisa a distância. Porque motivo? E por que estão nus? E ainda, por que o cenário é assim tão taciturno? Que tragédia se anuncia no horizonte?


Para conhecer o conteĂşdo devemos conhecer a histĂłria.

Eliane Bettochi, 2015.


¶ O título da obra nos dá o nome dos dois personagens, Atalanta e Hipômenes. Conhecemos o sujeito. Nos lembramos quese trata de um mito e de uma história que foi narrada pelo poeta Públio Ovídio Nasone e por Caio Giulio Igino, o bibliotecário de Augusto. Para conhecer o conteúdo devemos conhecer a história. Se não conhecemos a história não podemos compreender verdadeiramente o quadro apenas admirando sua beleza plástica.

Tentemos compreender Conta-se que Atalanta, filha de Esqueneu de Sciro, era uma famosa caçadora. Um oráculo havia previsto que a jovem jamais iria se casar, porque se casasse ficaria privada de si mesma. Atalanta belíssima jovem fica assustada e decide manter-se sempre virgem. E sendo imbatível nas corridas, proclama que se casará apenas com um homem mais veloz que ela. Quem perde uma dessas disputas é condenado a morte. Não faltavam pretendentes, corridas e uma sequência de mortes. ¶ O adolescente Hipômenes, chamado pelo outros de Melânion,


repreende a imbecilidade de seus companheiros, mas mal olha a jovem, nua para competir em uma corrida, se enamora perdidamente. Com a alma arrebatada, pede conselhos a Vênus que, comovida pela ingenuidade de seus sentimentos, lhe dá três maçãs de ouro do Jardim das Hespérides, oferecidas a ela por Héracles (mas esta já é outra história...) e um conselho. ¶ Acertada a disputa, soadas as trombetas, prepara-se a corrida. E Atalanta já perturbada pela idade do adversário, de sua inocência e talvez por sua beleza, fica em dúvida se prefere a vitória ou ser vencida.

Amata et sentit amorem (Ama e não conhece o amor). As emoções estão suspensas no ar.

A corrida começa Os pés voam velozes sobre a terra e a rápida virgem ganha terreno, mas não muito. Hipômenes, arquejante observa com medo seu objetivo distanciar-se. Pega uma maçã, deixa-a rolar aos pés da mulher. Atalanta se surpreende, se abaixa, recolhe o fruto esplendoroso. Hipômenes a supera, o público aplaude.


Com facilidade a jovem recupera o tempo perdido e de novo toma a frente. Outra maçã, nova parada, segunda ultrapassagem. Entretanto a virgem retoma a corrida e com facilidade recupera a primeira posição. Um grande prêmio emocionante. A chegada se aproxima. ¶ A última maçã. Desta vez ela é lançada à beira do caminho. Atalanta exita, em dúvida, desvia para pegar o fruto de sua própria derrota, mas cujo sabor não é, no entanto, muito amargo. Hipômenes é o primeiro, cansado, imaginamos, mas pronto a exigir o prêmio que lhe é devido. É quase o fim, se diria, mas a história não é finda. ¶ Os dois, agora enamorados, são rápidos não apenas na corrida. Tomados de desenfreado desejo se unem frenéticamente em um gruta à sombra de um templo sagrado dedicado a Cibele. A estátua de madeira ali presente, desvia o olhar pudibundo para o outro lado. No ímpeto Hipômenes se esquecera de agradecer a Vênus e ela, furiosa, transforma no mesmo instante os dois amantes em leões emparelhados ao carro da Mãe Terra. Perder-se de si mesmo significa perder


Guido Reni, 1620–1625.



a natureza humana. O oráculo já havia dito. O final é trágico. ¶ A obra de Guido Reni representa esta história. Conhecendo-a podemos compreender mais profundamente as escolhas do autor, as particularidades, as referências, as implicações teóricas, as razões culturais da pintura e, em última análise, o seu sentido. ¶ As histórias apresentadas nas obras de arte são quase sempre muito bonitas, apaixonantes, curiosas, de certa maneira universalmente reconhecidas, e outras vezes desconhecidas ou obscuras. Algumas histórias foram pintadas dezenas de vezes e, então é interessante procurar entender quais são as razões que produziram estas variantes e o que podem significar as diferenças tão particulares e, aparentemente, marginais em cada uma delas. Muitas são histórias raras, histórias a ser descobertas e pesquisadas, em busca das razões porque foram escolhidas por tantos artistas. ¶ Em ambos os casos são histórias que valem a pena conhecer. Quando entramos num museu observamos as pinturas, as esculturas. São centenas, se não milhares de imagens.


Muitas destas imagens relatam temas de deuses, heróis, santos, homens. Neste sentido um museu se assemelha um pouco a uma biblioteca. É um conjunto de textos, documentos, narrativas. Mas quando vamos a uma biblioteca, seria muita tolice ter a pretensão de ler todos os livros que ela contém. Nos museus, ao contrário, a voracidade do turismo cultural nos acostumou a esta postura: queremos experimentar de tudo. Desta maneira acabamos de ver o Louvre. ¶ Nossa percepção das obras de arte não deveria ser uma visão a partir da estrada. Dar uma folheada em um livro não significa tê-lo lido, assim como, dar uma olhadinha na superfície de uma pintura sem questionamentos, não significa observá-la. Olhamos a imagem, mas não a vemos. Para existir um olhar compreensivo, e este nasce originalmente de um olhar curioso, é necessário fazer escolhas. Escolher a sala, escolher uma única obra, um autor. Olhar poucas imagens ao redor, olhar com atenção e curiosidade. Uma pinacoteca não é uma televisão. Isto não porque a Arte seja sublime e a televisão contenha apenas lixo,


Olhar não é ver.

Vick Muniz, 2006.


mas porque a diferentes meios correspondem diferentes lógicas de exibição das imagens. Enquanto o produto televisivo é produzido por acúmulo, a obra de arte, realizada centímetro por centímetro, é pensada por rarefação. Conduzir os próprios olhos no interior das salas de um museu não deveria ser um gesto como aquele de trocar de canal do aparelho de TV. ¶ O esfacelamento do olhar é nocivo a uma percepção em profundidade —única maneira útil a permitir a reflexão. Muitos museus são dominados pelo critério da acumulação. Ou seja, maior o número de obras primas, mais importante parece ser o próprio museu. O efeito é paradoxal: quanto mais obras são agrupadas, tanto menor é a atenção que visitante lhe dedica, e tanto maior é a canseira. Argo, no entando, com seus cem olhos, arrisca-se a ir dormir com os pés doloridos. ¶ O equívoco de nossa suposta civilização das imagens é afirmar que ler as imagens é mais fácil e simples que ler a palavra escrita. Olhar não é ver. Como nas academias de arte e nas escolas de desenho pode ser mais útil educar em primeiro lugar


o olhar, antes de treinar a mão, assim nos museus e nas galerias de arte poderia ser produtivo estimular um olhar com inteligência, dar acuidade à perspicácia perceptiva, desenvolver a intensidade da visão. ¶ Procurar compreender se no interior ou diante de uma obra existe uma narrativa e, em caso de resposta afirmativa, compreender qual, significa avançar um passo para apreender a ler as imagens. Entender a maneira como uma história é narrada, tanto quanto representada visualmente, nos permite aprofundar nosso conhecimento visual. Dirigir a atenção aos princípios narrativos que podem estar presentes numa obra de arte nos empurra a observá-la numa perspectiva diferente. Portanto diante de uma tela ou de um bloco de mármore podemos experimentar algumas perguntas:

narra uma história? Qual? De que tipo? De que modo?


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Marco Vacchetti "Uma pinacoteca não é uma televisão. Isto não porque a Arte seja sublime e a televisão contenha apenas lixo, mas porque a diferentes meios correspondem diferentes lógicas de exibição das imagens."


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