Sózinhos, ma non troppo

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Claudio Ferlauto

Sรณzinhos Ma non troppo


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Sรณzinhos Ma non troppo



Em tempos que somos forçados a pensar, produzir e trabalhar sozinhos ficamos remexendo arquivos e baús procurando sarna para se coçar, ou resignificar. As vezes precisamos misturar alhos com bugalhos, imagens e textos, coisas sem pé nem cabeça, que acabam com duas cabeças ou sem pé algum. Sem dar pé, ou sem alcançar o fundo da piscina, quer dizer, pandemia, que continua sem dar pé para afogados. Nada mais tosco que chorar as pitangas, já que não temos as vernissages onde encontrar os mesmos personagens, aqueles tipos 'arroz de festa'. Nada de bate boca em mesa de bar com discussões que sempre acabam em pizza, e ninguém quer ir ao fundo… do poço. Ou, porque aquele chato de galocha não para de nos interromper, avisando que as paredes têm ouvidos e que o teu vizinho de mesa não passa de uma amigo da onça, e que se não te prevenires isso vai te custar os olhos da cara, e vais ter que te virar matando cachorro a grito no instagram. Sozinhos, não dá nem para rodar a baiana, pois não há plateia, nem likes. Fica meio chato até prá santinho do pau oco, em quem não colocamos a mão no fogo, nem se a cobra estiver fumando um baseado. Por favor não nos cancelem. Se uma gripezinha nos abater, esperamos ser salvos pelo gongo. Claudio Ferlauto



sul cidade do a ra a p ir a ldeia: Eu queri em nossa a iz d e s l a rmem!” u da q que não do s a o s s e p “Lá existem não?” s.” ”E por que m cansada a c fi o ã n e “Porqu não?” ”E por que s?” ão loucas.” " Porque s m cansado a c fi o ã n s uco eriam “Então os lo loucos pod s o e u q é “Como dos?” ficar cansa Franz Kafka

, 1912.


“Não existe uma só coisa no mundo que não seja misteriosa, mas esse mistério é mais evidente em determinadas coisas do que em outras. No mar, na cor amarela, nos olhos dos velhos e na música”. Jorge Luis Borges




"Pingue uma gota em um oceano de significados e note que ondas concêntricas se formam. Definir uma palavra isoladamente significa tentar agarrar essas ondas; ninguém tem mãos tão ágeis. Agora, lance duas ou três palavras de uma única vez. Padrões de interferência se formam, reforçando um ao outro aqui, e cancelando-se mutuamente acolá. Alcançar o significado das palavras não é agarrar as ondas por elas originadas, mas sim perceber as interações entre essas ondulações. Isto é o que significa escutar, o que significa ler; algo incrivelmente complexo, embora os seres humanos o pratiquem dia após dia e freqüentemente riem e choram ao mesmo tempo. Escrever, comparativamente, parece completamente simples, pelo menos até que se tente fazê-lo. A escrita é a forma sólida da palavra, ela é impetuosa. A fala sai de nossas bocas, mãos e olhos de forma quase líquida e, depois, evapora-se. Parece-me que isso é parte de um ciclo natural: uma das maneiras formadas pelo tempo no oceano de significados". Robert Bbringhurst, 2004.


Escrevo diante da janela aberta Minha caneta é cor das venezianas Verde!… E que leves, lindas filigranas Desenha o sol na página deserta! Mário Quintana 1938



“Disse-me um estudante e arquitetura: — Quando o ‘programa’ prevalece sobre a linguagem criativa os medíocres submergem os bons, pois qualquer um pode adotar um programa. E quando uma equipe de estudantes apresentou um projeto de reurbanização em que os principais edifícios do centro cívico eram iguais ­— prefeitura, câmara municipal, fórum, centro comercial ­—, por aí destruindo,


pela parataxe icônica, a topologia do poder, que usa a linguagem da contiguidade, do volume e do tamanho para reestabelecer hierarquias dentro do sistema analógico, o juri de arquitetos, urbanistas, planejadores […] desclassificou o projeto. E os meninos ainda reservaram a praça central para um circo de rebu permanente! Santo Bakhtine!” Décio Pignatari, 1979



"Sabes, eu, no fundo te quero bem: a tua ingenuidade me comove, a franqueza das tuas maquinações vitais me diverte; e depois me parece ter compreendido que tu, como ocorre com alguns sicilianos da melhor espécie, conseguiste realizar a síntese dos sentidos e da razão. Mereces então que eu não te deixes de mãos abanando, sem ter explicado as razões de algumas minhas estranheza, de algumas frases que eu disse diante de ti e que decerto te pareceram dignas de um maluco. Protestei sem convicção: “Não compreendi muitas coisas ditas pelo senhor, mas sempre atribuí essa incompreensão à falta de condições da minha mente, nunca a uma aberração da sua.” Deixa estar, […], dá no mesmo. Todos nós velhos parecemos malucos a vocês jovens e, em vez disso, seguidamente ocorre o contrário. Para explicar-me, porém, deverei contar-te a minha aventura, que é incomum. Ela aconteceu quando eu era aquele rapaz ali, e me indicava a sua fotografia. É preciso recuar a 1887, tempo que te parecerá pré-histórico mas que para mim não o é". A sereia, conto de Giuseppe Tomasi di Lampedusa.


Aquesta aigua que ni es blava ni verda, amb sol trencat i cel trencat, és plena de barcasses que l’aigua de la font, que vostè diu, es va empassar amb un xuclet… Essa água que não é azul nem verde, com sol e céu partido, está cheia de barcaças como água da fonte, que você disse que vai engolir como uma mancha… Merce Rodoreda 1967



Cartões postais, ticckets de trem e metrô, catálogos de exposições e museus, embalagens vazias de bombons, de aquarelas, mapas turísticos, tudo misturado e com nexo apen as para aquele que os guardou. Parecem meio descuidados, sem ordem, amontados. Se alguma lembrança eles despertam ou exista, essa estará em outro lugar, em espaço etéreo e misterioso, as vezes melancólica, outra eufórica, ou esquecida em um laptop, ou em disk drive externo, nos fundos de uma gaveta de aço empoeirada. ¶ Composto em Akzidenz Grotesk e Bodoni, com imagens de iPhone e água do filtro de barro. Quarentena, Novembro, 2020.


Claudio Ferlauto

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