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5 CHRISTIANE GOMES 6 ALEX HORNEST 7 NABOR JR. 8 RICARDO ALEIXO 9 OSWALDO FAUSTINO
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1 LUCIANE RAMOS RAMOS-SILVA SILVA 2 ALEXANDRE ARAÚJO BISPO 3 JUN ALCANTARA 4 RENATA FELINTO
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MEMÓRIA
O MENELICK 100 ANOS
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PERFIL
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POESIA
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ESPECIAL
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ARTES VISUAIS
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GRAFFITI
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DANÇA
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MODA
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MÚSICA
ART I S T TA S CON V I D DAD O S
CAPA e contra capa Rodrigo Bueno, 2/3 Nina Vieira, 4/5 Peter
ESTEVÃO MAYA MAYA
NABOR JR.
OSWALDO FAUSTINO
NA NOITE CALUNGA DO BAIRRO CABULA
RICARDO ALEIXO
MENINA MULHER DA PELE PRETA, MARROM, BEGE... SÔNIA GOMES
ALEXANDRE BISPO
APROPRIAÇÃO DE UM ESPAÇO
CIA. SANSACROMA
ALEX HORNEST
CHRISTIANE GOMES
ROUPAS DE PERFORMANCE TIGANÁ SANTANA
RENATA FELINTO
JUN ALCANTARA
LUCIANE RAMOS-SILVA
de Brito, 6/7Jorge Pineda, 41/45/46/47/50/51 Marina Arruda, 33 Oubí Inaê Kibuko, 64/65/67/68/71/72 CLARISSA PIVETTA, 74/75 ERICK DINIZ, 79 RAPHAEL POESIA, 93 RODRIGO SOMBRA,
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97 KOSUKE ARAKAWA, 100 JOSÉ DE HOLANDA, 27/48/49 MANDELACREW
O M E N E L I C K 100 ANOS
R E V I S I T A N D O A T R A J E T Ó R I A D A I M P R E N S A N E G R A E M S Ã O PA U L O
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texto NABOR JR.
C
¹Dados da Alliance for Audited Media (Consumer Magazines). Disponível em: auditedmedia.com
aso estivesse sendo regularmente publicado “mez a mez” desde a sua fundação, em 1915, como ambicionava seu núcleo gestor, o jornal O Menelick, que exibia orgulhoso em seu subtítulo a sugestiva frase orgam noticioso, literário e crítico dedicado aos homens de cor, completaria em 2015, um século de existência. Nada mal para um periódico que, entre outros inúmeros obstáculos, superou o fato de nascer no último país das Américas a “abolir” formalmente a escravidão e que enfrentou toda a sorte de um pseudo-movimento eugênico brasileiro que se disseminava por diversos setores da elite intelectual do país. Isso sem contar os escassos recursos financeiros que dispunha, os incontáveis efeitos políticos, econômicos e sociais ocasionados pela Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), e a invisibilidade perante o Estado brasileiro.
3Depoimento
Tivesse sido respeitada a heterogeneidade dos povos responsáveis por alicerçar as bases formadoras da sociedade brasileira, as diferentes matizes que a constituíram e a livre expressão das “minorias”, a utopia da secular longevidade do periódico brasileiro superaria hoje, por exemplo, ícones da imprensa negra mundial. Como por exemplo, as gigantes norte-americanas Ebony (1945), Jet (1951) e Essence (1970) – que, guardadas as especificidades de suas linhas editoriais, juntas somaram quase 3 milhões de revistas vendidas em 2014¹. Outras significativas publicações negras ao redor do mundo vide, as seminais Légitime Défense (1932) e L´étudiant noir (1935), que serviram de plataforma para impulsionar a polêmica e famosa corrente literária Négritude, também teriam sido deixadas para trás pelo periódico paulista.
4Os
Mas a realidade enfrentada pelo jornal O Menelick – assim como a da maioria dos veículos de comunicação da imprensa negra brasileira foi e continua sendo outra, mesmo com as visíveis conquistas adquiridas pela comunidade negra no Brasil especialmente nas primeiras décadas do século 21.
²Não se sabe ao certo se o jornal O Menelick teve duas ou três edições publicadas. O mais provável é que foram apenas duas, e que a edição de janeiro de 1916, onde aparece grafado o número 3, muito provavelmente seja a edição 2, porém com o mencionado erro de grafia.
Com pouquíssimos recursos financeiros para se viabilizar - essa imprensa sobrevivia de maneira geral de módicos anúncios publicitários e da solidariedade étnica da comunidade negra - e, consequentemente, com sérias dificuldades em manter uma periodicidade regular, o jornal encerrou seus trabalhos ainda em seu segundo número, em 1916². Mas a semente estava plantada, e a importância dos negros de São Paulo possuírem um jornal que os representassem, em um movimento editorial iniciado por jornais como A Pátria (1889), O Baluarte (1903), O Propugnador (1907), A Pérola (1911), O Combate (1912) e O Patrocino (1913), tomou fôlego através das poucas páginas publicadas por O Menelick, suficientes, porém, para encorajar que outras publicações semelhantes surgissem a sua luz.
do jornalista Jayme Aguiar, fundador - ao lado de José Correa Leite, do jornal Clarim da Alvorada. Entrevista gravada em 15 de junho de 1975 e publicada no estudo: A Imprensa Negra Paulista (1915 – 1963). Dissertação de mestrado apresentada pela socióloga Miriam Nicolau Ferrara ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 1982.
primeiros estudos acadêmicos a se debruçarem sobre o nascimento e trajetória da Imprensa Negra Paulista foram feitos em 1951, pelo sociólogo francês Roger Bastide no artigo A Imprensa Negra do Estado de São Paulo (a Editora Perspectiva publicou uma segunda edição em 1973, inserida no livro Estudos Afro-brasileiros); em 1960, pelo também sociólogo e político brasileiro Florestan Fernandes (A integração do negro na sociedade de classes), e em 1982, com a socióloga Miriam Nicolau Ferrara (A Imprensa Negra Paulista 1915 – 1963). Em todas essas pesquisas, em especial nas realizadas por Roger Bastide e Miriam Ferrara, há um consenso quanto ao jornal O Menelick ter sido o marco de nascimento da Imprensa Negra Paulista, inaugurando a sua primeira grande fase, que se estenderia até meados de 1923, com o surgimento do jornal Getulino, em Campinas.
5Em
sua pesquisa, a socióloga Miriam Nicolau Ferrara, com base na linha editorial das publicações estudadas e nos contextos político e socioeconômico do país, dividiu as primeiras manifestações da Imprensa Negra Paulista em três fases: A primeira de 1915 a 1923, a segunda de 1924 a 1937, e a terceira de 1945 a 1963. A autora não incluiu em seus estudos as publicações surgidas posteriormente ao ano de 1963.
“O Menelick foi um dos primeiros jornais associativos que surgiram em São Paulo, criado pelo poeta negro Deocleciano Nascimento, falecido, mais ou menos há oito anos. Esse O Menelick, por causa da época da guerra da Abissínia com a Itália, teve repercussão muito grande dentro de São Paulo. Todo negro fazia questão de ler O Menelick”.3 Publicado pela primeira vez em 17 de outubro de 1915, o jornal - segundo as primeiras pesquisas acerca do tema4, inaugurou uma nova era dentro da então embrionária imprensa negra de São Paulo – período este que anos depois ganharia o nome de primeira fase da Imprensa Negra Paulista (1915 – 1923)5 , caracterizado por uma tentativa dos próprios negros de se integrarem à sociedade brasileira e também pelo início da constituição de uma consciência racial que mais tarde ganharia força dentro da comunidade. Ainda em seu primeiro número, os redatores de O Menelick publicaram uma nota na qual esclareciam aos leitores o significado do título e a intenção do jornal: Ao 18 de julho do corrente anno, a convite do Snr. Deocleciano Nascimento reuniram-se em sua residência a Rua da Graça n 207 os seguintes Snrs: Geralcino de Souza, Juvenal de Pádua Mello, Paulo de Souza Lima, Octaviano Ferraz, Marceano Marques de Oliveira, João Benedicto, Marcelino Cruz, Reginaldo Maximo Gonçalves, José Paulino, Aristides Alves da Costa, Avelino Paiva e José Luiz Sampaio. Fundou-se então este jornal o qual buscou adquirir um nome, que não deveria, mas era esquecido dos Homens de Cor, é esse o nome, o de Menelik II, o grande rei da raça preta, falecido em1913. Surgiu então a fundação deste jornal com a denominação de O Menelik. Como resa o cabeçalho deste jornalzinho: orgam mensal, noticioso, crítico e literário dedicado aos homens de cor, é necessário agora que o leitor compreenda que é o destino que cada uma destas palavras tomam, ou função que exercem. • É mensal porque destina aparecer de mez a mez. • É noticioso para travarmos conhecimentos de factos que se dão e passam sem prévio conhecimento da classe nossa. • É crítico (só entre a classe) para colher os ditos filosóficos que navegam nos lábios desse povo. • É literário para mostrar ao mundo a sabedoria que ocultamente vaguea no cérebro da classe. • É dedicado aos homens de cor para prestar-lhe homenagens. (O Menelick, Outubro de 1915)
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6Boa
parte dos jornais da Imprensa Negra Paulista surgidos entre os anos de 1915 e 1963 foram publicações oriundas das chamadas associações dos “homens de cor”, daí seu caráter de orgão noticioso de batizados, aniversários, falecimentos, casamentos, enfim, dos eventos sociais e da vida pessoal dos seus filiados.
9A
listagem não está completa. Há indícios da publicação de outros jornais dirigidos à comunidade negra no interior do estado publicadas entre 1915 e 1963.
Este próspero período foi forjado em grande parte no seio de entidades associativas dos autointitulados “homens de cor”6, e constitui-se através das páginas de jornais e revistas como: Binoculo (1915), A Princesa do Oeste (1915), A Rua (1916), O Xauter (1916), O Alfinete (1918), O Bandeirante (1919), A Liberdade (1919), A Protetora (1919), A Sentinela (1920), O Kosmos (1922), Getulino (1923), Elite (1923), O Tamoio (1923), O Clarim da Alvorada (1924), Maligno (1924), Auriverde (1927), O Patrocínio (1928), Progresso (1928), Chibata (1932), Evolução (1933), A Voz da Raça (1933), Tribuna Negra (1935), A Alvorada (1936), Alvorada (1945), Senzala (1946), O Novo Horizonte (1946), União (1948), Mundo Novo (1950), Quilombo (1950), Redenção (1950), A Voz da Negritude (1953), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Hífen (1960), Níger (1960), Nosso Jornal (1961) e Correio d´Ébano (1963).7 UMA IMPRENSA QUE NÃO SE CALA Mesmo com a asfixia imposta pela ditadura, que inviabilizou toda e qualquer tipo de manifestação que incomodasse o regime militar e que ainda transformou o mito da democracia racial em peça-chave da sua propaganda oficial - os primeiros anos da década de 1970 também registraram a valente e necessária manifestação dos negros de São Paulo através de uma imprensa própria. Alguns dos periódicos desta fase foram os jornais Árvore das Palavras (1974), O Quadro (1974) e Biluga (1974). Concomitantemente à reorganização das entidades negras que retomavam seus trabalhos impondo uma nova agenda democrática ao país, e guiados pelos ideais que nortearam o nascimento, em 1978, do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU), a Imprensa Negra Paulista ressurge. Desta vez apresentando uma maior diversidade ideológica dos temas abordados, espelhando em seus cadernos as múltiplas facetas do negro brasileiro moderno. Fazem parte deste período publicações como Jornegro (1977), publicado pelo Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) e editado, entre outros, pelo jornalista Odacir de Matos e por Isidorio Telles; além dos jornais O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), Derebô (1980), Chama Negra (1986), este editado pelo cantor, compositor e maestro Estevão Maya Maya e pelos jornalistas Oswaldo Faustino e Selma Nunes. Além da revista Ébano (1980), que circulou até 1988. Vale aqui uma menção honrosa ao jornal Versus (1975), símbolo da imprensa alternativa paulistana e que entre os anos de 1977 e 1979, publicou o caderno
Entre o final dos anos 1980 e início dos 90, com a chegada e posterior ascensão do movimento hip hop no país e sua influência nos hábitos e costumes de relativa parcela de jovens negros brasileiros - especialmente os que já não se viam plenamente representados pelas agendas impostas pelos setores mais conservadores do movimento negro - a Imprensa Negra Paulista ganha suas primeiras grandes segmentações. No lugar do “ultrapassado” formato do jornal convencional, passam a ser editadas revistas (de preferência bem coloridas e chamativas). Também saem de cena o protagonismo dos textos puramente políticos e reivindicatórios, e passam a integrar a pauta desta imprensa o entretenimento, o comportamento e a música como ferramentas de inserção social e auto-afirmação. As revistas Pode Crê! (1993), Agito Geral (1995), Rap Brasil (1999), Planeta Hip Hop (2000), Elementos (2007), são algumas representantes desta fase. Neste mesmo período surge na zona norte de Sao Paulo aquele que talvez seja o mais longínquo dos veículos da Imprensa Negra Paulista, o jornal Tribuna Afro Brasileira, ligado às religiões de matriz afro e fundado em 1989 por Cosme Felix. Ainda em circulação, o veículo, que nasceu com o nome de jornal U&C (Umbanda e Candomblé), transformou-se em revista no início deste ano, quando completa 26 anos na labuta. Com a chegada dos anos 1990, e em parte refletindo a pujança e a guinada econômica forjada pelos patrícios norte-americanos, setores da industria e do comércio no Brasil passam a enxergar os negros brasileiros como potenciais consumidores. A imagem desta considerável parcela da população passa, então, a ser um pouco mais recorrente na mídia nacional. Produtos específicos destinados ao grupo também são criados e, consequentemente, modelos e atores ganham mais espaço na publicidade e na teledramaturgia nacional. Foi com este pano de fundo que em 1996, chegou ao mercado editorial brasileiro a revista Raça Brasil, autointitulada “a revista do negro brasileiro”. Mesclando valorização, orgulho e auto-estima, mesmo que com apelo mais estético do que político, a revista, que chegou a vender cerca de 300 mil exemplares em seu primeiro número, segue em circulação como a revista negra de maior alcance e penetração na sociedade brasileira. “Num primeiro momento a Raça Brasil era assim (maioritariamente focada em moda, beleza e consumo), quando surgiu pela editora Símbolo. Mas depois, sob direção do cartunista Maurício Pestana, inverteram-se as prioridades e as questões ligadas ao Movimento Negro foram para o primeiro plano, deixando a perfumaria de lado. Hoje, depois de passar pela editora Escala, a revista será publicada pela Editora Minuano, tendo como editor o Romário de Oliveira, que valoriza muito mais a questão da beleza e orgulho”, conta o jornalista e escritor Oswaldo Faustino, colaborador da revista desde a sua edição inaugural.
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Entre os anos de 1915, quando surge o jornal O Menelick, até meados de 1963 – da instauração da ditadura militar brasileira - mesmo subtraídos os oito anos do regime do Estado Novo (1937 – 1945), mais de 40 veículos da chamada Imprensa Negra Paulista foram publicados no Estado de São Paulo. Um número surpreendentemente alto se o compararmos com a quantidade de publicações impressas que temos hoje.
Afro-Latino-América, dedicado á questão negra e que se tornou um espaço de aglutinação de militantes do movimento negro do qual fizeram parte, entre outros, os jornalistas Hamilton Cardoso, Oswaldo de Camargo, Neusa Maria Pereira, Tânia Regina Pinto e o poeta Jamu Minka.
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1915 - 1963: AVALANCHE NEGRA
Com propósitos e perfil editorial bem diferentes dos mencionados por Oswaldo de Camargo, nasce no início dos anos 2000, por iniciativa da ONG Casa de Cultura da Mulher Negra, de Santos, no litoral paulista, a revista Eparrei (2001) editada pela escritora Alzira Rufino e que circulou fisicamente até 2010, mas que ainda hoje é publicada online. Pouco tempo depois a ONG Afrobrás, mentora do projeto que instituiu a Faculdade Zumbi dos Palmares, lançou em 2004 a revista Afirmativa Plural, que aborda temas de interesse da comunidade negra e que é distribuída gratuitamente para um malling vip da própria ONG e aos alunos da Faculdade.
Em comum, esses sites noticiosos possuem características como: credibilidade dentro da própria comunidade negra, capacidade argumentativa para formar as opiniões deste grupo, forte apelo ao público negro adulto e aos interessados em questões mais reflexivas relativas ao universo do negro brasileiro, em especial profissionais da educação que buscam alternativas para a implementação da Lei 11.645/11 em sala de aula.
A INTERNET E AS MÍDIAS SOCIAIS No decorrer dos anos 2000 e, especialmente após o início da segunda década do século 21, a internet constitui-se em uma importante aliada da imprensa negra, embora sua vangloriada hegemonia ainda seja minoritária para considerável parcela da população 8, a mesma que historicamente vem sendo sistematicamente excluída dos processos “democráticos” do país. Porém, sua eficaz capacidade de difusão de informações, notícias, fatos históricos e acontecimentos cotidianos, aliada a sua relativa acessibilidade econômica e seu crescente potencial de alcance muito tem contribuído para a longevidade desta imprensa.
8Segundo
dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013, cerca de 53% dos brasileiros não tem acesso à internet. Os números fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).
Editorialmente, além dos textos (e em alguns casos vídeos) produzidos por colaboradores de dentro e fora do país (remunerados ou não) que atualizam as páginas destes sites com certa regularidade, os mesmos também costumam republicar postagens de grandes portais brasileiros e/ou estrangeiros, repercutindo os acontecimentos locais e internacionais de interesse da comunidade que atendem. Alguns deles, em razão do baixo orçamento financeiro ou falhas de planejamento, possuem periodicidade irregular em suas atualizações. A repercussão de notícias quentes, ou seja, acontecimentos relevantes para a vida política, econômica e cotidiana do país são muito valorizadas por esses veículos. Outro ponto que une essas iniciativas é a estética visual das páginas, geralmente com muitas informações agrupadas na home e com uma estrutura visual que busca facilitar a leitura dos textos em detrimento de um layout mais arrojado que valorize as imagens e a identidade gráfica do site. Além dessas organizações mais formais, a imprensa negra digital em São Paulo, em sintonia com o que acontece no restante do mundo, conta também com uma forte
Apesar de ainda manterem certa periodicidade de posts em seus sites e blogs, essas iniciativas destacam-se por investirem com desenvoltura nas múltiplas possibilidades proporcionadas por ferramentas como facebook, twitter, instagram e derivados. Chamam a atenção o conteúdo dos textos e postagens de ótima qualidade reflexiva e o volume de acessos e seguidores destas páginas, como, por exemplo: o Blogueiras Negras (com mais de 210 mil seguidores no facebook e dezenas de colaboradoras espalhadas por todo o país), Negro Belchior (hospedado no portal da revista Carta Capital e com mais de 1 milhão de visitas), À Beira da Palavra (blog do poeta Allan da Rosa hospedado no portal da revista Fórum), e páginas como da escritora Cidinha da Silva (apesar de sua idealizadora não estar mais fisicamente baseada em São Paulo), Eumulherpreta, Preta & Gorda, entre outros. São espaços de troca e de difusão de pensamentos críticos com foco na diversidade, com forte teor reivindicatório e político, e que procuram para além de informar seus leitores apresentando o outro lado da informação noticiada pela grande mídia, elevar a autoestima dos que representam, constituindo-se em verdadeiras armas contra o preconceito. Ainda no campo das segmentações da Imprensa Negra Paulista no mundo virtual, é possível observarmos outras boas iniciativas individuais tão ou mais segmentadas quanto as acima citadas, porém, com um viés de unificação entre o jovem negro urbano do século 21 e simpatizantes da cultura afrobrasileira. Nessas páginas o discurso reivindicatório e politicamente engajado são brandos, ou quase não existem. Nelas o negro é retratado como um protagonista intelectual de uma agenda contemporânea hiper-descolada, estabelecedor de novas tendências, pioneiro ou divisor de águas em diversas linguagens e temas do comportamento humano de ontem e de hoje. Um hype na acepção da palavra, ou seja, atual, antenado, positivamente alternativo e moderno.
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Ao identificar características comuns a esta nova imprensa negra que surgia, tais como a valorização do corpo, da beleza, do mainstream e do potencial de consumo da comunidade negra, o escritor e jornalista Oswaldo de Camargo, remanescente do jornal Níger e colaborador de outros periódicos negros paulistas, cunhou o termo Imprensa Negrista para nomear a “imprensa voltada para o negro, porém, sem a vivência em coletividade ou em grupos negros, e muitas vezes dirigida por brancos ou estrangeiros”.
presença nas redes sociais. Fruto de iniciativas individuais e de coletivos politicamente engajados, essas páginas seguem caminhos editoriais semelhantes aos dos sites acima mencionados. Porém, frequentemente são ainda mais segmentados e propositivos em suas abordagens. É o chamado afroativismo na rede, que versa tanto com a notícia como com o relato de alguém.
Ainda tendo São Paulo como recorte deste texto, destacam-se dentro de um segmento que podemos chamar de Imprensa Negra Paulista Tradicional na web, ou seja, páginas que reúnem e notíciam para além de reivindicações e denúncias que marcaram toda a trajetória da imprensa negra, editorias comuns a um jornal dito convencional, ou padrão - com as tradicionais seções de política, economia, esportes, lazer, entretenimento, cultura - organizações como Portal Áfricas, Afropress, Geledés, Instituto Portal Afro, Ceert (Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdade) e Mulheres Negras e Cia., por exemplo.
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Também embaladas pelos conceitos que internacionalizaram as ações do movimento negro norte-americano Black is Beautiful, que exaltava a beleza física do negro, outras publicações surgem em São Paulo como as revistas Black People (1996), Negro Cem por Cento (1998) e Visual Cabelos Crespos (1997).
Essas páginas - algumas com trajetórias que remetem aos conceitos descritos no termo imprensa negrista, geralmente apontam para questionamentos transculturais, apresentando junto com os temas abordados conexões históricas (de maneira geral bem documentadas) que nos permitem não apenas entender os porquês de muitos fenômenos e fatos atuais, mas também as razões do protagonismo negro por de trás das mais variadas manifestações da cultura popular. A identidade visual dessas páginas é algo importante e valorizado. As imagens e vídeos são criteriosamente selecionados e possuem destaque dentro do site. Os assuntos publicados sugerem conexões internacionais relacionando as realidades dos negros ao redor do mundo a uma experiência diaspórica única. Neste grupo, podemos incluir páginas como Ubora, New York Kibe, Per raps, Só Pedrada Musical, por exemplo, que destacam-se por não se prenderem ao noticiário convencional – pelo contrário, muitas vezes o pautam, quando não o antecedem.
xão acerca da produção artística da diáspora africana, bem como das manifestações culturais popular e urbana do ocidente negro, com especial destaque para o Brasil”, como o próprio nome sugere, nasceu com o objetivo de dar prosseguimento a trajetória da Imprensa Negra Paulista. Sua primeira manifestação aconteceu em 2007, por iniciativa deste que vos escreve, quando do surgimento do blog omenelicksegundoato.blogspot.com O contexto que envolve o surgimento da publicação não difere muito da história da imprensa negra em São Paulo, ou seja, a necessidade de se criar um veiculo capaz de enfrentar as barreiras de uma imprensa (branca) impermeável aos anseios e reivindicações da comunidade negra. Contudo, desde o princípio, beneficiando-se das conquistas do movimento negro no Brasil, a proposta editorial da revista O Menelick 2° Ato foi abordar assuntos relacionados a produção artística e intelectual do negro brasileiro em detrimento de outros temas. Em suma, uma revista de artes e comportamento voltada à comunidade negra.
A REVISTA O MENELICK 2° ATO Apesar das facilidades do mundo virtual registradas nas primeiras décadas do século 21 com o início da popularização da internet, a imprensa negra impressa, ou escrita, por sua vez, segue sobrevivendo com dificuldades financeiras e estruturais. Nada muito diferente das fases iniciais que marcaram a sua trajetória ainda no final do século 19. Em São Paulo, tirando algumas revistas e jornais que dedicam com certa regularidade edições ou seções especiais sobre o universo negro em suas páginas, como as revistas Fórum, Caros Amigos e Rebosteio, por exemplo, as revistas O Menelick 2° Ato, Raça Brasil, Crioula, Tribuna Afro Brasileira e a recém lançada revista Legítima Defesa, idealizada pelos atores Sidney Santiago e Lucelia Sergio, da cia. Os Crespos, são as poucas iniciativas da Imprensa Negra Paulista que buscam manter a chama desta imprensa acesa no Estado. Obviamente devem haver mais publicações espalhadas pela capital e interior do Estado, mas com circulação restrita. A revista O Menelick 2º Ato, autointitulada como um “projeto editorial independente de valorização e refle-
Desta forma, ainda solitariamente, passei a cobrir e postar periodicamente no blog fatos noticiosos que versassem sobre a vida associativa, cultural e social dos negros no estado, falando especialmente sobre a contribuição desta população nos campos da literatura, música, arquitetura, teatro, fotografia, artes visuais e demais temas que pertencem ao universo das artes. Sempre buscando unir um texto atrativo e bem escrito à imagens bem feitas e não menos atraentes, utilizando para isso a pouco, mas fundamental experiência acumulada como jornalista, editor e fotógrafo de jornais de bairro. Somente em maio de 2010, após quatro anos buscando materializar uma estética editorial que pudesse aproximar fatos e trajetórias contemporâneas às raízes ancestrais responsáveis por moldar a identidade cultural do negro brasileiro, é que formamos um grupo capaz de dar vida ao sonho de um veículo impresso merecedor da alcunha imprensa negra. Assim foi publicada a primeira edição física da revista. As primeiras duas edições foram publicadas mensalmente, depois, entre as edições zer02 e zero5, diante das dificuldades encontradas, ela passou a ser bimes-
tral e, por fim, a partir da edição zer06 – trimestral. Quatro características porém, acompanham a trajetória da nossa revista desde o principio: a distribuição gratuita, a tiragem de 2 mil exemplares por edição, a heterogeneidade dos formatos e o perfeccionismo do seu núcleo gestor quanto a harmônica convergência entre texto, imagem e design. Formar no início de 2011, a partir da nossa edição zer04, um conselho editorial critico, capaz de organizar e filtrar minimamente o fluxo de informações com potencialidades de publicação, também contribuiu muito para o amadurecimento da revista. Entre os anos de 2010 e 2013, ou seja, em nossas primeiras 11 edições, a revista foi financiada em sua totalidade através de recursos próprios e escassos anúncios publicitários. Somente em 2013, quando o projeto foi contemplado, no ano anterior, pelo edital Premio Funarte Arte Negra, instituído pelo Ministério da Cultura é que conseguimos sair do vermelho, equacionar as contas e remunerar todos os envolvidos na produção da revista. Com o referido prêmio quatro edições foram produzidas ao longo do ano de 2014. Agora, em 2015, novamente contemplados por um edital, desta vez o Proac Proteção e Promoção das Culturas Negras, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado de Sao Paulo, poderemos produzir outros dois números da revista.
PARA LER A Imprensa Negra Paulista (1915 – 1963) Miriam Nicolau Ferrara Dissertação de Mestrado Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) 1982 Disponível em: anpuh.org A Nova Abolição Petrônio Domingues Selo Negro 2008 Imprensa Negra no Brasil do Século XIX Ana Flávia Magalhães Pinto Selo Negro 2010
PARA ASSISTIR Depoimentos de personagens da velha e nova escola da Imprensa Negra Paulista omenelick2ato.com
Diferentemente do jornal O Menelick, pudemos contar em nossa ainda curta trajetória com políticas afirmativas que alocam recursos a grupos historicamente marginalizados pela brutal exclusão socioeconômica aumentando assim sua participação na sociedade brasileira. Deste modo, após cinco anos de vida, mais de 130 textos inéditos publicados, cerca de 100 colaboradores na produção de conteúdo e aproximadamente 32 mil exemplares distribuídos em todo o território nacional e outros países, também nos sentimos seculares e parte integrante dos utópicos 100 anos do jornal O Menelick, efeméride que comemoramos com este breve texto. Os desafios da Imprensa Negra Paulista impressa continuam os mesmos dos enfrentados pelo O Menelick e seus contemporâneos, como o alcance dos veículos, a auto-sustentabilidade, o reconhecimento social e um maior fortalecimento das relações com outros segmentos da cultura negra para, de fato, crescermos juntos.
NABOR JR. é fundador-diretor da revista O
Seguimos, assim, vivendo, morrendo e ressurgindo. Ainda bem que não estamos sozinhos. Pelo contrário, somos milhares, e temos força para lutar e continuar a escrever a nossa própria história.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS AOS
MENELICK 2º ATO. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.
JORNALISTAS Flávio Carrança, Oswaldo Faustino e Oswaldo de Camargo.
MAYA maya U ma eleg â ncia baixo - profunda
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texto Oswaldo Faustino fotos OUBÍ INAÊ KIBUKO e MANDELACREW “Um homem com uma dor É muito mais elegante Caminha assim de lado Como se chegando atrasado Chegasse mais adiante...” (Dor Elegante - Itamar Assumpção e Paulo Leminski) Se, dia desses, alguém nos revelar que Maya-Maya entrou para o Guinness Book of Records por ter gravado mais de 300 canções russas, saberemos que ele, finalmente, conquistou sua obsessiva meta atual. Por conta disso, ele tem estudado russo, incessantemente, e ensaiado com avidez composições e mais composições eruditas e populares compostas no leste europeu. Surpresa nenhuma. Afinal, a música e os estudos são a paixão maior desse maranhense radicado em São Paulo desde 1969. Os militantes do movimento negro, porém, poderão estranhar, afirmando que ele mudou seu foco, que sempre foi a valorização da cultura negra. “Não mudei, não”, ele responde. Afinal, o romancista e poeta Alexander Sergueievitch Pushkin (1799 – 1837), pai da moderna literatura russa, era bisneto de Abram Petrovich Gannibal (1696-1781), nascido na Eritréia, país que pertencia à Etiópia, e que era conhecido como ‘o Negro de Pedro, o Grande’. “Como inúmeros outros expressivos artistas de reconhecimento mundial, Pushkin também tinha suas raízes na África”, explica. As conversas com Maya-Maya, por mais amenas que sejam, sempre se transformam em verdadeiras aulas de africanidade. Filho de Raimundo Maia e Maria da Conceição Silva Maia, Estevão nasceu em 2 de setembro de 1943, no povoado de Pano Grosso, em Viana, distrito de um dos mais afros estados brasileiros, o Maranhão. Desde muito pequeno saboreou a negritude do tambor de mina, do bumba-meu-boi, do vodum e demais tradições brasileiras nascidas das culturas Jeje, Ewé, Fon, Mina, Fante e Axânti, entre outras trazidas da África por nossos ancestrais escravizados. A maioria transmitida através da oralidade e das canções de trabalho, culto, lamento, protesto e de outras tantas motivações criativas.
“Fui criado por minha avó, Rosa Aprígia, que era cantora e violonista, e pela filha dela, minha tia e madrinha Lourença, cozinheira de mão cheia. Ela trabalhou na cozinha do prefeito, antes de se tornar funcionária pública e ir cozinhar no hospital local. Música e comida boa... não tem nada melhor para a formação do corpo e da alma da gente”, brinca Estevão, sempre pronto a repetir algumas de suas frases tradicionais, como: “Não nasci pobre, mas, depois, fiquei miserável”. Segue-se sempre uma gostosa gargalhada. Esta afirmação se deve ao fato de seu bisavô ter sido dono de engenho, quando o café e o açúcar dominavam as exportações brasileiras, e de nada dessa fortuna ter-lhe restado como herança. Alfabetizado aos três anos de vida, pela avó e pela madrinha, teve muito cedo sua atenção voltada a um tipo de canção que não era cantada nas ruas de Viana: “Minha avó gostava de cantar fragmentos de música italiana barroca, ouvidos de uma companhia de ópera que se apresentou em São Luiz, acompanhada pela Orquestra Sinfônica do Maranhão. O que a gente aprende na infância jamais esquece e influencia em nossas preferências para o resto da vida. Ela e minha madrinha previram que eu seria cantor, mas que não seria sambista, mesmo que, vez por outra, eu cantasse este ritmo e também marchinhas, nos bailes de carnaval”, revela. Outra forte influência em sua formação artística foi a música que emanava da campana do gramofone de uma das casas da rua em que morava, onde residia a octogenária professora Cóia Carvalho, apaixonada por óperas e operetas. Ao pensar seu nome artístico, José Estevão Maia, trocou o I pelo Y e dobrou o Maya, como se constata em alguns nomes árabes. Ele garante que nas veias de seus ancestrais africanos corria o heroico sangue árabe.
MAIS FORTE DO QUE AS DOENÇAS Caminhar muitos quilômetros pela manhã é outra de suas dedicações atuais: “Sou de uma família de longevos. Meu pai faleceu recentemente com 89 anos. Meu avô Atanásio, morreu pouco mais jovem, porém, vivia dançando. Era um exímio dançarino. Quer melhor terapia que a dança, principalmente as danças tradicionais de minha terra? Somos um povo forte”. A última frase dessa explicação de Estevão, trouxe à memória deste redator um episódio ocorrido em 1987, quando eu era editor de Cultura, no extinto jornal Diário Popular. Uma tarde, ele entrou na redação dizendo: “Estou vindo de um consultório médico. Descobriram que eu tenho um tumor maligno na cabeça”. O choque diante dessa notícia foi tão forte que fez este jornalista chegar às lágrimas. O amigo, então, me consolou: “O que é isso, Oswaldinho? Eu sou mais forte do que qualquer doença”. Foi submetido a cirurgia craniana e a um longo tratamento de quimioterapia. Não bastasse isto, ele já sobreviveu também a um AVC. Apesar de ter ficado uma pouco mais lento na elaboração das frases, sua memória para nomes e fatos é invejável. Essa força interior e seu talento artístico foram percebidos ainda na infância. “Meu pai contava que eu já nasci com voz grave. Que eu parecia um bezerro berrando, quando chorei pela primeira vez”, comenta rindo. Aos cinco anos, um alfaiate que era cantor de marchinhas o ouviu cantar e lhe concedeu um prêmio. Enquanto lhe ensinava os segredos da arte da alfaiataria, o ajudava a educar a voz. Ali mesmo na oficina do alfaiate, onde se tornou um exímio profissional, ele encontrou um pequeno tesouro cultural: “Livretos de cordel. A primeira literatura de minha vida. Histórias heróicas de Carlos Magno,
Em pouco tempo, Estevão já estava adotado pela elite intelectual de São Luís e se aproximou do Partido Comunista. Era o início de um sonho de voos mais altos, incentivado por todos, principalmente pelo professor Nascimento Morais. Esse amigo se encarregou de angariar doações entre seus irmãos de Maçonaria para bancar a viagem de Maya-Maya para Salvador, onde ele se bacharelou, na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Além de seus estudos sobre música no teatro, ele integrou o Madrigal, coral que percorreu várias capitais e grandes cidades brasileiras. Um ano antes de seu ingresso, o grupo havia se apresentado no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Um dos sonhos não realizados por aquele novo integrante de voz baixo-profundo. Dois anos depois, nova etapa de sua vida: foi para o Rio de Janeiro. O ano de 1968 foi bastante doloroso para a história do Brasil, por conta da promulgação do trágico AI-5, ato institucional que gerou cassações, perseguições, prisões e exílios. Para Maya-Maya, além dos temores relacionados a sua formação esquerdista e sua filiação ao Partido Comunista, uma frustação o aguardava naquela cidade: submeteu-se a teste para integrar o elenco do Teatro Municipal e foi aprovado com distinção. Mas, segundo o diretor do Municipal, Vieira de Mello, o presidente Costa e Silva suspendeu todas as contratações dos órgãos públicos, em especial os culturais. “Foi quando me apresentaram à professora de canto Maria Amélia Martins, que era muito influente, e ela se prontificou a ir comigo falar com o diretor e me garantiu que, a seu pedido, ele iria me contratar. Na data combinada, tive a notícia de que ela faleceu na Escola de Música, vítima de aneurisma cerebral”, lamenta o cantor.
Restaram apenas a boemia, com suas serestas, e as intermináveis conversas com os amigos comunistas. Dessa convivência surgiram dois novos convites: realizar seu primeiro recital individual em Porto Alegre e desfrutar de uma bolsa para estudar canto em Moscou. O primeiro foi um sucesso. O outro, por conta da ditadura militar, foi adiado por tempo indeterminado. Lhe sobraram os recitais solo no sul e sudeste do país e a consagração no Teatro Colón, de Buenos Aires, que estava comemorando 90 anos de existência. NEGRITUDE E RADICALISMO Muito cedo, Estevão percebeu que suas lutas teriam de extrapolar os limites da esquerda brasileira que, historicamente, foca apenas as questões sociais: “As raciais são sempre deixadas em segundo plano”, afirma o militante. Por isso foi preciso radicalizar. Um radicalismo de voz grossa, sempre tonitruante, surpreendendo quem não o conhece. Em pouco tempo, porém, a pessoa percebe que por detrás daquela postura dura se esconde uma docilidade e a ternura preconizada por Guevara. Estevão faz parte daquele grupo de militantes negros dos anos 70 que se aproximou dos que lutaram nas primeiras décadas do século 20, principalmente alguns remanescentes da Frente Negra Brasileira, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral, Henrique Cunha e, principalmente, José Correia Leite, que em 1924 fundou, com Jayme Aguiar, O Clarim, jornal que mais tarde teve seu nome mudado para O Clarim da Alvorada. Conviveu intensamente com Correia Leite: “Uma das missões que determinei para mim mesmo é criar o Memorial José Correia Leite, que abrigará seus jornais, livros e muitas das aquarelas que ele pintava. Ele me tratava como um filho e dizia que minhas filhas, Jamila e Naila, eram suas netas”. O memorial idealizado deverá ter um espaço dedicado a outro amigo que, com ele, gozou da amizade de Leite: Márcio Damázio, um dos fundadores, ao lado de Isidorio Telles, da editora e livraria Eboh, dedicada exclusivamente a obras de negros e sobre negros. Foi com o estímulo e a orientação de Correia Leite que Estevão liderou, com o advogado Agnaldo Avelar, em 1974, a fundação da Cacupro (Casa da Cultura e do Progresso), entidade negra que funcionou no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Ali realizaram-se vários eventos envolvendo artistas, intelectuais e estudantes negros, como Hugo Ferreira, Vanderli Salatiel, Milton Barbosa, Neusa Negritude, Oswaldo Rafael, Antonio Carlos Arruda, Ivair Alves dos Santos, Henrique Cunha Jr., entre outros. O mentor intelectual foi o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, professor da USP que organizou, entre outras iniciativas, debates com intelectuais afro-americanos e criou o coral Brasilafro.
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Voluntarioso, Maya foi expulso da escola paroquial. Mas isso não motivou qualquer resistência aos clérigos, pois deve parte de sua profissionalização ao padre João Mohana, que ao ser-lhe apresentado pediu que cantasse um sucesso de Nelson Gonçalves. Impressionado com a performance do jovem de 19 anos, o padre tornou-se seu amigo e o estimulou a aprofundar sua formação. Pagou sua passagem para a capital, São Luiz, para participar de uma audição na Academia de Música do Estado do Maranhão.
Nenhuma dor, por mais intensa que seja, é capaz de interferir na postura elegante do cantor, compositor, poeta, escritor, dramaturgo e militante do movimento negro Estevão Maya-Maya e em sua voz rara e potente de trovão, com três oitavas de extensão
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O Romance do Pavão Misterioso, o Boi Voador, A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Devorava e decorava tudo aquilo. Paralelamente, fui também me apaixonando pelas serestas e pelas mulheres, muitas das quais ficavam de olhos vidrados ao me ouvir, como cantador de toadas de boi, aos 16 anos, e mais tarde como crooner de orquestra”, revela.
Esta experiência estimulou Maya-Maya a criar um coral que se originou na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, chamado Juventude do Rosário, cujo nome foi mudado para Cantafro e que, por três anos consecutivos, foi contratado para cantar, no período do Natal, em frente à loja Mappin, no centro de São Paulo. Em 1988, esse coral gravou a trilha sonora do seriado Abolição, exibido pela Rede Globo. Maya explica: “O Cantafro tem suas origens na Cacupro, mas iniciou seus ensaios na Vila Brasilândia. Só depois foi para o centro da cidade. Ensaiar corais de empresas e instituições como a Fundação Getúlio Vargas, a Sabesp e a Setesb, e compartilhar meus bons salários com um batalhão de amigos duros, virou minha rotina, naqueles tempos”, comenta, gargalhando.
Maya Maya: erudito e popular, homem das letras e da música.
Na década anterior, emprestou seu vozeirão para o personagem Caifás, na montagem brasileira da ópera-rock Jesus Christ Superstar. Coube a ele também a direção musical do espetáculo Hair, em São Paulo, e do show Síntese da História do Jazz, entre outros. Suas pesquisas sobre os vissungos, cantos responsoriais de escravizados que mesclavam o português com línguas africanas, como o Kimbundo e o Nbundo, bastante praticados nas regiões de lavras de ouro e de diamante, em Minas Gerais, deram origem à ópera Ongira: Grito Africano, que Estevão compôs em parceria com Antonio Padinha e cuja montagem contou coma direção de Thereza Santos. A história se passa em um quilombo imaginário que amanhece com a seguinte canção: “Lua da terra distante Que brilha que nem diamante Vai acordar o Sol Pra vim com sua alegria Furá o buraquim do dia Ai, Senhê! Ai, Senhê!. Do Nbanda, fura buraquim, Senhê!”
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Kalunga ê meia Zambuê (repetido 3 vezes) Nem kuaketê, nem manuete, Kalunga Mukanhaê mukuaeete
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Mais adiante, ao se recordar da travessia do mar, que era chamado de Kalunga Grande, os quilombolas cantam:
UM HOMEM DE LETRAS Sua estreia no campo da literatura foi em parceria com seu conterrâneo, o poeta Vilmar Ribeiro, que hoje vive nos EUA. Eles publicaram, em 1980, o livro de poemas Cantiga para gente de casa chegada em cima da hora. Maya comenta: “Rapaz, foi uma produção independente, mas acredita que, vendendo de mão em mão, faltou pouco para se completarem cinco mil exemplares?”. Um dos poemas tem o título de Carta para o meu pai: “Nhô tu te lembras como era eu na escola? tu te lembras com era eu na vizinhança? Continuo o mesmo mas caminhei no tempo e estou mais amadurecido Com a voz que é semelhante à tua ganho o meu sustento conquisto meus amores, reclamo direito e o respeito para o povo negro, nosso povo que me ensinaste amar. [...] Nhô! Negro sabido e valente. Sua segunda obra foi individual Regresso Triunfal de Cruz e Souza e os Segredos de Seu Bita Dá-Nó-em-Pingo-d’Água, lançada em1982. Na primeira parte ele homenageia o poeta negro catarinense, o maior dos simbolistas do país, corrigindo distorções consagradas até mesmo pela academia. A segunda parte traz poemas com reminiscências da própria infância:
“Canela fina e comprida, Cara preta boca encarnada (pássaro bico-de-brasa), Calça no rendengue, Baladeira no pescoço, O choc-choc dos bolsos (cheios de pedrinhas), lá vem “seu” Bita assobiando. “Seu” Bita era o “diabo”, siô!… muito inteligente, muito bom de serviço, mas era levado da breca. Embora no quintal de sua casa houvesse variadas frutas mas preferia roubar as alheias dizia: “são mais saborosas”… Um dia se descuidou e, bum… um tiro de espingarda carregada de toucinho, bem no peito… caiu meio assustado mas logo se deu conta de que tava vivinho bulindo… pegou uma melancia e saiu correndo rindo às gargalhadas.” Esta obra se encontra no acervo do setor da América Latina da Academia de Ciências de Moscou. Maya-Maya integra a Academia Vianense de Letras, ocupando a cadeira de número 23. Ele também faz parte do grupo de escritores e escritoras negras cujos trabalhos foram estudados na Universidade Federal de Minas Gerais e integram o projeto Literafro, coordenado pelo Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte.
Como ator, além de Jesus Christ Superstar e de outros espetáculos teatrais, em vários dos quais se incumbiu da direção musical, Estevão Maya-Maya participou dos filmes Sonhos Tropicais, de André Sturm, lançado no ano 2000, e De Passagem, de Ricardo Elias, dois anos depois. Este último conquistou cinco Kikitos, no Festival de Gramado. Hoje Maya-Maya vive na Vila Sônia, zona oeste da capital, na casa e estúdio do pintor, gravador, ceramista e escultor João Rossi, falecido no ano 2000. Rossi foi diretor, professor e mentor de várias escolas de comunicação e artes e faculdades, entre elas a Escola de Artes da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Um dos filhos do artista convidou Estevão a morar ali, onde pode continuar seus estudos, cuidar de sua grande biblioteca e ministrar aulas de música. “É uma boa troca, pois faço companhia a Dona Isabel Olmedo, a viúva do Rossi, que já está com mais de 90 anos. Apesar da idade, ela tem uma memória excelente, que renderia muitos livros históricos, principalmente sobre as artes e as ditaduras da América Latina, entre das décadas de 60 a 80”, comenta. Ele para de falar, revira a memória e avisa: “Não se esqueça de que, de graça, compro até casa pegando fogo”. Esta é uma de suas frases preferidas. Ri muito e, apesar de caminhar lenta e elegantemente, se despede: “Agora eu vou. Tão rápido como se furta”.
OSWALDO FAUSTINO é jornalista, escritor, dramaturgo, ator e roteirista. Também pesquisa assuntos relacionados às questões étnico-raciais.
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NA NOITE CALUNGA
DO BAIRRO CABULA um poema e uma fotografia de RICARDO ALEIXO
parceira da morte mas a mãe que pare
Na noite imóvel, a mais longa e espessa,
que despeja o branco de sua indiferença
filhos cor da noite e zela por eles,
morri quantas vezes na noite calunga?
por cima da sombra do que eu já não sou
tal qual uma pantera que mostra, na chispa
A noite não passa e eu dentro dela
nem serei nunca mais). Morri quantas vezes
do olhar e no gume das presas, o quanto
morrendo de novo sem nome e de novo
na noite calunga? Na noite trevosa,
será capaz de fazer se a mão da maldade
morrendo a cada outro rombo aberto
noite que não finda, a noite oceano, pleno
ao menos pensar em perturbar o sono
na musculatura do que um dia eu fui.
vão de sangue, morri quantas vezes
da sua ninhada. Morri tantas vezes
Morri quantas vezes na noite mais rubra?
na noite terrível, na noite calunga
mas sempre renasço ainda mais forte
Na noite calunga, tão espessa e longa,
do bairro Cabula? Morri tantas vezes
corajoso e belo - só o que sei é ser.
morri quantas vezes na noite terrível?
mas nunca me matam de uma vez por todas.
Sou muitos, me espalho pelo mundo afora
A noite mais morte e eu dentro dela
Meu sangue é semente que o vento enraíza
e pelo tempo adentro de mim e sou tantos
morrendo de novo sem voz e outra vez
no ventre da terra e eu nasço de novo
que um dia eu faço a vida viver.
morria a cada outra bala alojada
e de novo e meu nome é aquele que não morre
no fundo mais fundo do que eu ainda sou
sem fazer da noite não mais a silente
SOBRE O POEMA O poema NA NOITE CALUNGA DO BAIRRO CABULA foi escrito especialmente para a revista O Menelick 2° Ato, e versa sob o impacto do massacre, por integrantes da Polícia Militar, de 13 jovens negros da periferia de Salvador, na Bahia, na noite do dia 6 de fevereiro de 2015. O trágico episódio foi batizado por integrantes da campanha Reaja ou será morta, Reaja ou será morto de Chacina do Cabula, nome do bairro onde residiam os rapazes assassinados. Jogando com a dupla acepção da palavra calunga - mar e morte -, o poema, que li, pela primeira vez, em público, durante debate de que participei em 23 de março de 2015 no Salão do Livro de Paris, organiza-se, a um só tempo, como um protesto contra a naturalização das práticas de extermínio da juventude negra no Brasil e em diversos outros países e como um elogio da resistência ativa, em nome da Vida. Dedico-o às minhas filhas Iná e Flora e ao meu filho Ravi.
RICARDO ALEIXO é poeta, músico, cantor, compositor, artista visual/ sonoro, performador, ensaísta e editor. É autor, entre outros, dos livros Mundo palavreado (2013), e Modelos Vivos (2010). Já fez performances na Argentina, Portugal, Alemanha, França, Espanha e México. Tem, no prelo, o livro Impossível como nunca ter tido um rosto, com poemas escritos entre 2011 e 2014.
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(a cada silêncio de pedra e de cal
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Morri quantas vezes na noite mais longa?
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B E G E . . . OM2ยบAto
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texto RENATA FELINTO fotos MARINA ARRUDA e MANDELACREW make-up SIMONE SOUZA
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A célebre música do mestre Jorge Benjor nos fala de uma mulher da pele preta, de uma mulher preta. Em tempos de conscientização, de políticas públicas voltadas às ações afirmativas, da luta e da busca pela representatividade nos mais diversos segmentos da sociedade brasileira, a pele preta dessa mulher não deve ser imaginada como um único tom. As matizes são muitas. Ser e se autodeclarar da cor preta é se assumir pessoa negra, mulher negra. E essa negritude, negrícia, se apresenta numa gama muito mais ampla do que o clássico marrom. Essa mulher preta tem o tom de pele que vai do bege rosado ao marrom azeviche. Ser mulher preta é uma questão de aparência, ou melhor, fenótipo; de textura capilar; de identificação; de conscientização e de pele. Numa sociedade na qual é negada à
enorme porcentagem de negras e negros que constituem esse segmento populacional, exaltar com orgulho os vários tons de peles que compõem esse contingente afrodescendente é uma atitude de auto-afirmação. Para uma significativa parcela das mulheres das peles pretas, marrons e beges, parte dessa exaltação inclui como se aprontam, e por que não dizer, se embelezam para se apresentarem ao mundo. Entre as vestimentas, penteados e acessórios, estão também os cosméticos enquanto elementos que não só apresentam essas mulheres aos olhos de outrem, mas que demarcam personalidades materializadas em estilo. A palavra cosmético deriva do grego cosmos, que significa colocar em ordem, organizar. Cosméticos, portanto, colocam a mulher em ordem segundo um padrão do que seria o visual de uma mulher “arrumada” para o mundo, o ocidental evidentemente. O mercado de cosméticos voltados às peles das mulheres pretas no Brasil sempre foi muito restrito. Para esse segmento industrial, contemplar as mulheres pretas, até os dias de hoje, significa disponibilizar no mercado, entre as diversas linhas de maquiagem, um tipo de pó, pancake, ou base que considere uma única cor de pele preta. Por isso, citamos o clássico marrom, como se todas as mulheres pretas fossem desta cor. Ainda assim, num curto período ou esses produtos não são mais produzidos, ou somem muito rápido das gôndolas o que demonstra que há um público interessado nele. Isso não quer dizer que essa indústria tenha grande interesse por embrenhar-se e lançar mais produtos voltados a esse público,
atendendo essas consumidoras. Muitas vezes mulheres pretas deparam-se com o silêncio, nem vendedoras, nem as próprias empresas conseguem responder aos questionamentos sobre o fato desses produtos não estarem mais disponíveis nas lojas. Eles simplesmente desaparecem. Atualmente, algumas marcas vêm atentando para essa diversidade de peles e de mulheres. Duas das mais interessantes são Quem Disse, Berenice? E Contém 1g. A primeira, pertence ao grupo O Boticário e foi lançada em 2012, ao que parece, pretendendo ser seu braço mais arrojado, jovem e acessível, enquanto que O Boticário permanece com produtos mais sofisticados e clássicos, inclusive com poucas opções de maquiagens para afrodescendentes. Quem Disse, Berenice? investe numa extensa gama de cores que vai do convencional ao mais ousado, atentando-se a diversidade de peles das brasileiras, oferecendo bases líquidas, corretivos e pós compactos com até 18 variedades de cores, da mulher com pele muito clara e rosada até a de pele marrom escuro. Já a Contém 1g, iniciou suas atividades em 1984 voltada ao mercado de vestuário e, em 1993, passou a dedicar-se também aos cosméticos. Há dois anos tem se rendido a esse filão das consumidoras afrodescendentes, e desenvolveu uma variedade de produtos voltados a esse público. Inclusive, uma modelo negra de pele escura é uma das garotas que estampa sua atual campanha publicitária. São corretivos, bases, pós compactos dentre outros produtos elaborados para garantir às suas compradoras afrodescendentes um amplo leque de escolha.
O cenário de cosméticos para as mulheres pretas nem sempre foi assim com tantas opções de escolha. Observando que as duas marcas mencionadas passaram a contemplar esse segmento há poucos anos, destacamos aqui uma personagem, uma marca. Maria do Carmo Valério Nicolau, a Doutora Maria do Carmo, nascida em 16 de julho de 1932, em Brodósqui, interior de São Paulo, onde nasceu o pintor ítalo-brasileiro Candido Portinari (1903-1962), já havia percebido essa dificuldade e propôs-se a desenvolver as tintas, não para telas como o citado pintor, mas para colorir as faces das mulheres negras. Professora, advogada, jornalista, escritora e empresária interessada nessa não representatividade, lançou há 25 anos a marca Muene. Vaidosa, é comum esbarrar com Maria
do Carmo na região central de São Paulo, próxima das Grandes Galerias onde mantém a loja Muene. Marca de sua personalidade é a aparência sempre alinhada e elegante, composta por chapéus, vestidos e maquiagem impecáveis. Toda vez que me encontra diz: “Ah, quer passar um batom? Deixe eu pegar aqui na bolsa”. Muene quer dizer excelência na língua quimbundo, do tronco banto, região central da África. Também é uma forma de tratamento a terceiros, chamando outrem de senhor ou senhora. Entretanto, para a marca, a palavra representa a excelência que deve ser dispensada no tratamento às mulheres pretas. Com esse foco a Muene idealizou e desenvolveu a Muenin Cosméticos, uma extensa linha de produtos que abarcam batons, blushs, rímeis, delineadores, pós compactos, sombras e o pancakes. Projeto de uma vida, Maria do Carmo desfez-se de bens pessoais e investiu no diálogo com químicos que pudessem entender e atender às suas exigências para que seus produtos acolhessem as especificidades das diversas peles das afrodescendentes. Apesar de ter atingido a maioridade, a expansão da marca se dá por meio da divulgação boca a boca: “Foi preciso trabalhar individualmente com as clientes para sanar o temor de alergias e outros problemas que, não raramente produtos para raça branca causam na pele negra devido à quantidade de melanina. A recepção do meu público ainda é uma novidade das melhores, é excelente. Quando experimentam os produtos tornam-se clientes permanentes”, diz Maria do Carmo. Um dos cosméticos mais vendidos é o pancake que possui função tripla, a de corretivo, base e pó, produtos que geralmente são vendidos em embalagens separadas. Maria do Carmo identificou a oleosidade como uma característica comum nas peles pretas e, por isso, de-
senvolveu produtos que, em vez de cobrir totalmente a pele tapando os poros, são translúcidos e agem em camadas. A revista O Menelick 2º Ato propôs um desafio para a maquiadora Simone Souza. Com vasto currículo em maquiagens para editoriais de moda de revista, peças de teatro, filmagens, dentre outros trabalhos, uma de suas especializações são as peles pretas. Habituada a produtos internacionais para encontrar os variados tons dessas peles, a convidamos juntamente com mais duas mulheres de expressão junto ao universo negro da cultura, para experimentar e dar seu parecer sobre os produtos Muene: a consulesa da França, jornalista e apresentadora Alexandra Baldeh Loras e a compositora e cantora de ritmos negros Tássia Reis. “Percebi muita praticidade no produto, tem uma ótima cobertura, e é fácil de aplicar. O mais legal é que o produto absorve o calor assim não é preciso retoque, além de ser a prova d’água, então mantém a pele com aspecto mais natural, sem precisar de retoque ao longo do dia, ou seja custo benefício super vantajoso pra quem busca praticidade e qualidade pra sua vida”, afirma Simone. Confira a maquiagem produzida por Simone Souza em Alexandra Baldeh e Tássia Reis. Produtos aprovadíssimos por uma expert no assunto! Vida longa à Muene e que surjam outras mulheres e homens que criem maquiagens-tintas para nossas faces-telas.
Tรกssia Reis
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SAIBA + Muene Rua 24 de Maio, 116 - 1º Andar - Loja 18 Tel (11) 3222-0443 Facebook: lojamuene lojamuene@gmail.com
RENATA FELINTO é doutoranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes/ UNESP, mestre e bacharel pela mesma instituição. Atua como pesquisadora, artista plástica e educadora. Alexandra Baldeh
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Página Anterior: Detalhe da obra Casulo, costura, amarrações, tecidos, rendas e fragmentos diversos sobre eucatex, 80 x 44 cm. 2006
Mãos de ouro, grafite, caneta, costura, amarrações, tecidos e rendas variadas sobre papel, 47 x 37 cm. 2008.
Sem título, da série Risco do Tempo, caneta permanente, caneta esferográfica e grafite sobre papel de apropriação, 56 x 76 cm. 2012
texto ALEXANDRE BISPO imagens GALERIA MENDES WOOD
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Na prática, contudo, parecem ser outras as referências de Sônia Gomes, embora certos procedimentos e gestos técnicos lembrem fazeres comuns ao Candomblé, como as amarrações de tecidos, nós e embalagens, ou mesmo a cultura mineira dos bordados, das roupas para dias santos, do traje usado em ritos sociais de passagem: casamentos, batizados, nascimentos.
Os manuais tem uma história pregressa das mais interessantes, pois sua produção e difusão tendem a apoiar certas concepções sociais, sobre o que é, afinal ser mulher no mundo moderno, e, complementarmente o que é ser homem. A tarefa destas publicações era ensinar o manejo de técnicas artístico-manuais por um lado, quanto a incorporação de códigos de bom gosto para o trato com o ambiente doméstico e a apresentação pública correta do corpo. Entre o projeto do livro real e a realidade do livro poético de Sônia, instaura-se um fosso enorme que distancia o plano organizador do primeiro, cujo objetivo era ensinar a ser uma boa mulher que entendia os esquemas, que manejasse as réguas, tesouras, ilhoses, lápis e moldes, e do segundo cujo plano delicado foge a qualquer esquema previamente dado. Nesse sentido o livro de Sônia ataca o livro real, na medida que, ao invés de fazer o objeto decorativo, bem aprumado para vestir os corpos ou para arrumar a casa, ela ordena por meio da montagem cumulativa os retalhos, deixando a
Oratório, amarrações, tecidos, rendas e fragmentos diversos sobre gaiola de arame, 250 x 33 x 26 cm . 2012
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O trabalho de Sônia remete tanto as festas populares de matriz afro-brasileira: folia de reis, congo, reisado e ao catolicismo mágico, nos quais os materiais se acumulam e se sobrepõem, quanto às tradições africanas, cujo tecido é base expressiva que permite simbolizações culturais como a presentificação da ausência por meio da roupa, que ocorre com os Eguns no Benim e no culto de Baba Egun, na Bahia. Nesse sentido, poderíamos sugerir que Enwezor viu na produção de Sonia Gomes elementos que não estão distantes de seu universo de referências culturais profundas, fantasmáticas e permanentes, ainda que tendo nascido em África, fora viver nos Estados Unidos muito criança.
Na obra Mãos de ouro (2008), Gomes elabora um livro no qual alude a uma pequena enciclopédia de trabalhos artesanais dirigidos às mulheres. Mãos de ouro também foi uma publicação vendida em fascículos semanais entre fins dos anos 1960 e meados da década de 70, pela então recente editora Abril Cultural. A publicação aprofundava uma tendência, que teve inicio ainda na segunda metade do século 19, de publicar manuais de orientação de técnicas artesanais voltadas para a mulher. Ora, o consumo destes manuais implicava letramento feminino, até mesmo para interpretar as imagens apresentadas através de desenhos esquemáticos e fotografias, que então conviviam, como é comum aos manuais, com os textos. Na versão de Gomes um livro de papel recebe um acumulado de materiais como o grafite, a caneta, a costura, amarrações, tecidos e rendas diversas. Ao mesmo tempo que ela evoca esse manual das artes femininas – bordados, pinturas, caixas decoradas, macramê, tricô e crochê, sabonetes decorativos, porta isso ou aquilo – ela nos oferece também em forma de artefato, sua versão do projeto civilizatório misto de capitalismo, religião, escola e ideologia de gênero. Nesse gesto criativo reconhece nesta pequena enciclopédia semanalmente acumulada, pela regularidade da compra, traços de sua formação artística, de sua disposição corporal para as artes femininas, normalmente restritas ao universo doméstico. Ela vai dizer: “Minha ligação com a arte vem desde sempre. Nasceu comigo. Eu não sabia que era arte, mas depois que eu descobri”.
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A escolha da artista mineira Sônia Gomes, nascida na cidade de Caetanópolis, no ano de 1948, para participar da 56ª Bienal de Veneza, que em 2015, completa 120 anos, aponta para o interesse estrangeiro na produção de arte contemporânea brasileira, fato que já não é mais tão recente. Única brasileira escolhida pelo curador nigeriano Okwui Enwezor (Calabar, 1963), de ascendência Igbo, as peças em pano de Sônia Gomes poderão ser vistas entre maio e novembro deste ano. Suas amarrações, panos, patuás e trouxas dizem muito sobre uma tradição no Brasil da linha, da agulha e dos gestos técnicos em torno do tecido que comparece em obras de artistas como Arthur Bispo do Rosário, Lygia Pape, Mestre Didi, Leonilson, Ernesto Neto, Rosana Paulino, Rosana Palazian, Beth Moisés, Janaína Barros, Lidia Lisboa, Olyvia Bynun entre outros. No cenário internacional, para ficar apenas no trabalho de dois artistas o alemão Anselm Kiefer (1945), quw manipula roupas prontas para falar de memória, como no trabalhoThe Hierarchy of the Angels (2000), e o artista inglês Yinka Shonibare (1962), que mobiliza enormes quantidades de tecidos “africanos” para discutir questões como imperialismo, colonialismo, pós-colonialismo e identidade cultural como em Scramble of Africa (2003), que faz referência à famosa Conferência de Berlim (1885) que dividiu o continente africano entre os países colonizadores.
Memória, costura, amarraçþes, tecidos, rendas e fragmentos diversos, 140 x 270 cm. 2004
mostra o processo que revela costuras as vezes grosseiras. Tais, irregularidades fragilizam os esquemas numéricos e as figuras geométricas exibidas no verdadeiro Mãos de Ouro Parente deste trabalho é Risco do tempo (2012), no qual uma folha de papel envelhecida oferece desenhos sobre os quais Sônia aplica um misto de técnicas decorativas que unem desenho, pintura e costura. Esse gosto pelo pano parece estruturar a poética de Sônia Gomes, que afirma ter consciência de que estava produzindo arte contemporânea apenas quando foi para os Estados Unidos, quando então construía colares e bolsas, e passou a ouvir comentários que alçavam esses trabalhos ao estatuto de arte. Lá ficou seis meses, tempo suficiente para entender e aprofundar o que há muito já fazia. Enquanto no Brasil ao apresentar suas obras ouviu muitas vezes: “Isso é coisa de doido, isso é coisa de negro”, o que indica, no imaginário social brasileiro para como organizamos a patologização moral de uns, ao valorizar a suposta saúde moral de outros. Essas ofensas dirigidas ao corpo negro ganharam força com o advento da república em fins do século 19 e toda a primeira metade do século 20, produzindo tipos estereotipados como os doentes mentais, os desajustados sociais, os suspeitos de colocarem em risco a ordem social e sanitária que o Estado, a Igreja, a medicina e a imprensa pretendiam manter.
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Voltando a Sonia, ela nos diz que ouviu alguém dizer ao ver seus trabalhos: “Só um anjo para fazer isso”, revelando outro aspecto perverso da mentalidade brasileira: é preciso ter valor fora, para ser reconhecido dentro. No retorno do país que ela define como “do preconceito explícito”, eleva sua auto-estima que tanto vem fortalecendo seu potencial criador. Sabemos como no Brasil há resistência em falar ou discutir a produção plástica, nos quais temas como raça, gênero e extratificação social aparecem associados, colocando em debate a ordem estabelecida das coisas. É ainda recente o reconhecimento da produção feminina em geral, e especificamente das artistas negras. Os assuntos com os quais lidão tem formas outras, diversa da produção masculina. Assim enquanto alguns artistas homens fazem coisas enormes, pesadas e volumosas – a exemplo Tunga ou Nuno Ramos, Sônia Gomes transita, como outras artistas entre pequenos e médios formatos como em Oratório (2012) e Casulo (2006), ou em grandes formatos como as obras de até seis metros que estão em Veneza.
Memória, costura, amarrações, tecidos e rendas diversos sobre arame, 50 x 36 x 23 cm. 2006
¹ Marcos Antonio de Moraes (org.). A correspondência Mario de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2001, p.78. ² Peter Stallybrass. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte. Autêntica, 2008, p.11. ³ Rodrigo Naves. A grande tristeza. Em: Farnese de Andrade. São Paulo, Cosac & Naify, 2002, p.p. 12-21.
BRASIL SEM ARTE NEGRA
FAZER MEMÓRIA
Em 1923 Mario de Andrade (1893-1945) escreve a Tarsila do Amaral (1886-1973) que na ocasião estava em Paris: “Tarsila, Tarsila! Volta para dentro de ti mesma [...] abandona Paris! Tarsila, Tarsila! Vem para a mata virgem onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis”¹. Tarsila voltou, é uma de nossas melhores coloristas, deu forma ao discurso de identidade nacional de Mário. Quase 100 anos depois, uma artista negra está entre os representantes do Brasil na Bienal de Veneza, cidade que tem para as artes visuais a importância que Paris tinha a época dos modernistas. Quase 100 anos depois que os negros tornaram-se um dos temas de predileção do modernismo brasileiro aparecendo na cultura visual nacional ligado ao trabalho e a cultura popular, mas também ao passado, enquanto elemento formador da nação, como é o caso de A Negra (1923), de Tarsila ou de O Mestiço (1934), de Candido Portinari. O que a volta de Tarsila trouxe para o Brasil foi entre outras, a tela A Negra e a estética cubista, então deglutida e transformada. Mas com a ida de Sônia, o que esse deslocamento diz acerca das condições culturais para a emergência de artistas afro-brasileiros na cena contemporânea nacional? O que essa guinada permite imaginar quanto ao futuro de jovens artistas negros que começam a ganhar visibilidade introduzindo descontinuidades no sistema estabelecido? Quais os efeitos dos trabalhos de Gomes para a criação e estabilização de um ambiente crítico, mas também mercadológico e institucional que permita que os artistas expandam sua capacidade expressiva, sem perder de vista suas experiências sociais de origem e dificuldades? Isto é, será possível que artistas negros que venham a ser bem sucedidos retornarão combustível para o fomento de novos artistas? Será que surgirão espaços de exibição, pesquisa, documentação e comercialização de obras? O que esses quase 100 anos de diferença entre Tarsila do Amaral e Sônia Gomes pode apontar acerca da diversificação e oferta de arte contemporânea no Brasil? Esses são alguns dos problemas a serem pensados, caso apostemos na ampliação do perímetro crítico-politico e expressivo onde cabem negros, mulheres, indígenas além do referencial estável: homem, ocidental, branco.
É preciso apontar que muitos dos tecidos com os quais trabalha Sônia Gomes são materiais pré-constrangidos, isto é, marcados pela memória do uso, funções e práticas de sentido que permitiram que eles chegassem até o presente. Vestígios de ritos sociais de passagem, alguns deles lhes são confiados enquanto coisas que não querem morrer. “Me deixem viver em outro corpo”, diz Gomes acerca destas coisas/seres que pedem nova vida, que querem continuar a participar do mundo social agindo como quando estiveram vivos acobertando ombros, mãos, braços e pernas, friccionando-se com outros corpos. Em obras como Memória (2004) e Memória (2006), evocam-se a ausência dos corpos que passaram por aquelas roupas. É como se fossem a força que permitem que elas permaneçam no mundo, agora sob forma de obra de arte. Talvez a melhor definição dessa operação com materiais residuais que mantiveram interação com os corpos humanos é a reflexão de Peter Stallybrass, que articula roupas, memória e dor: “Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobreviveram. Elas circulam através de lojas de roupas usadas, de brechós e de bazares de caridade. Ou são passadas de pai para filho, de irmã para irmã, de irmão para irmão, de amante para amante, de amigo para amigo”.² Marcadores da individualidade de alguém que se sabe existiu para aquela e naquela roupa, ou peças que conviveram com a mobília doméstica como toalhas de mesa, colchas de cama, panos de sofá. Ao juntá-las Sônia as aproxima, seja por escolhas formais como a cor predominantemente clara de Memória (2004), que nos lembra um varal com roupas em estado de eterno descanso, e que jamais serão usadas, até porque diluíram-se no contato com outras roupas, seja pela estrutura oculta que se esconde sob os panos – arame –, mas que sustenta e exibe diferentes espessuras temporais que cada roupa empresta ao objeto Memória, (2006). Em Sônia, a memória não é tristeza, como a encontrada por Rodrigo Naves, em grande parte dos trabalhos de Farnese de Andrade (1926-1996), mas é o desejo das coisas continuarem a existir em um novo corpo.³
PANOS PARA ALGUMA HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA Os trabalhos de arte contemporânea estabelecem relações com obras do presente e do passado, mesmo que essas relações não sejam deliberadamente a intenção do artista. Criticamente a compreensão das obras do presente, me parece, ganham muito, quando encontramos os fios e pontos de diálogo com o que já aconteceu. No início do texto sugeri alguns dos artistas que tem nos tecidos um material de alta significação plástica ou simbólica. Nesse sentido, talvez um dos trabalhos mais significativos da nossa história da arte seja Divisor (1968), concebido pela artista Lygia Pape (1927-2004) em que várias pessoas põem em movimento uma espécie de roupa monocromática e coletiva. Seu contemporâneo e colega do Grupo Frente, fundado em 1953, Helio Oiticica (1937-1980), também criou com tecidos os Parangolés, roupas em forma de bandeiras, estandartes e capas que se modificam na situação de uso e manipulação. Distante temporal e plasticamente destes artistas, os trabalhos de Sônia Gomes mobilizam, como já afirmei, panos residuais dado os usos que tiveram como roupa corporal e roupa de cama e mesa. A artista explora o tempo buscando a espessura histórica que fica nas coisas, que as afeta enquanto materiais que mantiveram relações emocionais com os corpos.
Esses aspectos afetivos comparecem em trabalhos de outros artistas como a paulistana Janaína Barros (1979), que toma por referência o universo feminino doméstico e alguns de seus símbolos: avental de cozinha, luvas para pegar panelas quentes, sacos para guardar sacolas plásticas, capas para eletro-domésticos. Tais trajes dado o cuidado de sua feitura e decoração escondem relações desiguais de gênero e classe social, como na obra: Sou todo seu (2010), na qual a artista reflete sobre o desejo da mulher negra, muitas vezes frustrado, de ser desejada. Nesta obra as luvas para manipular panelas quentes assumem o valor de uma declaração de amor ao exibirem bolas de pérolas que formam a frase que dá nome ao trabalho, enquanto um simples avental de cozinha é revestido de um lado com lantejoulas, e do outro lado mantém seu aspecto
natural sem brilho. Essa operação decorativa oculta a função social das coisas ao criarem uma aparência agradável com tecidos que escondem o fato de serem objetos de cozinha ligados à limpeza e cuidados com a casa. Pelo investimento artesanal eles compartilham o mesmo universo de referências de Mãos de ouro, onde a civilidade feminina evidencia-se pelo domínio do fazer artesanal. DESLOCAMENTOS A ida de Sônia Gomes para Veneza parece mesmo indicar que estamos num processo de abertura “democrática” no campo das artes visuais no Brasil. Tal abertura amplia as possibilidades de interesse na diversidade de nossa produção, específicamente quando os artistas em questão não apenas se autodeclaram negros, mas tem uma experiência social negra que modelam os assuntos com os quais trabalham. Sônia Gomes já foi tachada de fazer um trabalho de doido e de negro. Atualmente é uma das artistas da galeria Mendes Wood ,cuja abertura para a multifacetada arte contemporânea nacional aproxima artistas negros e brancos, homens e mulheres como Paulo Nazareth, Tunga e Anna Bella Geiger. Ao propor um “programa baseado em conceitualismo, resistência política e rigor intelectual” a galeria que preparou o ambiente para o deslocamento internacional de Gomes se alinha aos que querem falar de coisas que existem4, entre as quais racismo, sexismo, pobreza, preconceitos que por meio das obras ganham forma, muitas vezes bem humorada, não raro irônicas para além de um discurso panfletário e ingênuo.
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contemporânea no Brasil e as coisas que (não) existem. Fabiana Lopes Revista O Menelick 2º Ato Edição zer015
ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo; Diretor da Divisão de Ação Cultural e Educativa do Centro Cultural São Paulo (CCSP); também atua como curador e crítico de arte.
SAIBA + SOBRE A ARTISTA mendeswooddm.com PARA ASSISTIR Fala de Sônia Gomes para o Projeto Prêmio Pipa 2012 Disponível em youtube.com PARA LER Presenças: A performance negra como corpo político Alexandre Araújo Bispo e Fabiana Lopes. Revista Harper’s Bazaar Art/ Abril 2015 PARA IR Galeria Mendes Wood Rua da Consolação, 3358 Tel: (11) 3081 1735 Bairro Cerqueira César, São Paulo/SP
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Apropriação de um ESPAÇO
texto Alex Hornest fotos Clarissa Pivetta
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Saber um pouco de tudo que estivesse ao meu alcance sempre foi algo muito mais atrativo do que tentar bater logo de frente com o que almejava. O novo, o diferente e o inusitado se mostravam desafiadores e muito mais interessantes do que tudo o que os meus amigos me apresentavam. Me despertava grande interesse poder navegar na direção contrária das coisas relativamente fáceis. Tudo que me diziam que era proibido ou além da minha capacidade se revelava extremamente fascinante e, de forma alguma, compactuava com o que o bairro (a quebrada) podia me oferecer naqueles tempos.
Naquela época não consegui durar muito na profissão de office-boy. Fui subindo de cargos dentro das empresas por onde passava por sempre me mostrar apto em exercer outras funções. Mesmo trabalhando de segunda a sexta e estudando à noite, arrumava tempo para as coisas que realmente me interessavam. Nos finais de semana procurava locais de interesse para frequentar e ainda encontrava tempo para realizar outras atividades - não só pintar ou desenhar - como praticar skateboard, fazer fanzines, produzir vídeos de graffiti e frequentar salas de cinema que exibiam filmes alternativos - que eu particularmente adorava. Considerava algo sagrado o aprimoramento de todas as minhas atividades. Esses eram meus locais de estudo. Me embrenhar em metalúrgicas, mecânica de motos, agências de propaganda, produtoras de vídeo, agências de turismo, escritórios, empresas de tecnologia e até mesmo nos Correios trabalhando como carteiro, me serviram como as faculdades que eu nunca fiz. Sempre optei em aprender colocando a mão na massa para depois saber sobre a teoria. Acredito que isso me rendeu alguns grandes frutos que hoje denomino como atalhos. Minha mente criativa e geniosa me impulsionava a se destacar em qualquer área, e logo percebi que com isso poderia encurtar qualquer caminho na direção do que realmente desejasse ser como profissional. O elemento surpresa, o improviso e a arte incipiente que pode surgir em meio ao caos se tornaram ferramentas para mim, um jovem embalado por toda aquela atmosfera vinda dos anos 1990 e 2000, e me fizeram criar e pensar de forma diferente de como eu poderia ser e reagir perante a diversidade e as descobertas que viria ter.
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No começo da minha carreira (se posso dizer que tive um), pintar e desenhar sempre me pareceram as coisas mais naturais do mundo. Imaginar um dia pertencer ao mundo dos holofotes ou sonhar com a minha arte ganhando o mundo nunca foi algo que passasse pela minha cabeça. Motivado por meus pais e, principalmente, por minha bisavó - Dona Laudelina da Silva - a subverter meus talentos, parte da minha adolescência e inúmeras experiências profissionais (inclusive alguns sub-empregos) foram de grande valia para que pudesse discernir o meu caráter e as coisas que realmente me interessavam, em meio a tantas possibilidades e meios proporcionados pelo início dessas décadas douradas.
O centro da cidade me atraía em meio ao movimento diário. Prédios, praças, ruas, avenidas e vielas... Tudo era fascinante e logo o graffiti surgiu em minha vida como algo novo e relativamente diferente do que eu – em um primeiro momento – acreditei que seria capaz de fazer. Nessa época, exercia a profissão de office-boy e ao me deparar com o primeiro graffiti nas ruas do centro de São Paulo, algo mágico e forte despertou dentro de mim, atuando como um divisor de águas em minha vida. A partir daquele momento minha mente se expandiu, observando no graffiti maneiras de aumentar as possibilidades de projeção daquilo que eu viria a exercer como um hobby e que hoje me traz inúmeros frutos profissionais. Ali vislumbrei a via que seria meu maior meio de expressão artística. Hoje também sou videomaker, editor independente e diretor e curador de arte.
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Os locais onde eu pudesse me expressar (pintar) sempre existiram no bairro de São Miguel Paulista, zona Leste de São Paulo, local onde morei por toda a minha adolescência durante os anos 1990 e 2000, mas por alguma ironia do destino eu não os enxergava. Certamente por falta de imaginação, amadurecimento. Dentro de mim estavam enraizadas dúvidas e questões que me impediam de dar os primeiros passos em direção ao meu destino.
Nunca deixei que minhas limitações se tornassem dificuldades para tudo aquilo que almejava. Estudando muito e mantendo a disciplina, logo percebi que essas atitudes me serviriam como mecanismos de superação. Se algo tinha que ser feito eu logo encontrava meios de executar e fazer da melhor forma possível para que minhas ações não passassem despercebidas. Aprendi rápido que observar, ouvir e aprender era melhor do que tentar fazer tudo logo de cara sem conhecimento e um prévio estudo/planejamento. Mesmo assim, manter esse tipo de postura foi bem difícil em um período onde tantas coisas incríveis estavam acontecendo em frente aos meus olhos de adolescente. Desejava fazer tudo! Mas procurar não tirar conclusões apressadas sobre qualquer fato ou assunto que me chamavam atenção me deram fundamentos para poder pensar e criar meu próprio repertório sobre qualquer assunto. Isso também me ajudou na criação da minha própria identidade como artista. Com isso, percebi que a minha arte não poderia ter os mesmos moldes daquelas que eu admirava na época.
No início não tive maturidade para perceber isso. O que foi ótimo já que minha percepção me guiava para caminhos opostos devido a tantas referências e influências que surgiam e que eu vazia questão de procurar. Era uma época difícil tanto de aprendizado quanto financeiramente, meu bairro se mostrava como um local desinteressante, frio e cheio de obstáculos impostos por quem alí morava, em contraponto a exuberância que sempre me pareceu ser o centro de São Paulo. A periferia era meu lar, mas não podia admitir que ali seria o meu palco. Imaginava que se permanecesse ali, aquele lugar se tornaria o meu túmulo. Nisso eu estava certo. Mas era apenas para aquele momento. Tanto que, hoje, vejo que são nesses lugares que a minha arte realmente se destaca e se engrandece, me motivando a atuar cada vez mais nesses espaços.
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Ao longo deste tempo (de pura atuação com meus graffitis) tomei consciência que meu trabalho não se destacava em meio a paisagem, e sim a complementava, passando a fazer parte do entorno. Isso era, e é, o que
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O grande desafio para que eu pudesse me destacar entre os demais foi perceber onde minhas pinturas deveriam ser aplicadas. Esse seria o meu grande diferencial em meio a tantos talentos que também emergiam naquele mesmo momento.
Esse pensamento serviu como base para o meu aprimoramento e estava logo ali, ao meu lado, ao meu alcance, em todos os lugares que até então eu negava por ser “a periferia” onde eu morava.
mais me agrada e o que me estimula a pintar: poder trazer algo novo para as precariedades arquitetônicas do improviso, impostas pela necessidade de sobrevivência dos habitantes das grandes cidades e das periferias. Dessa forma, efetuar trabalhos sistematicamente em bairros afastados e sempre usufruindo da arquitetura de cada lugar se tornou o meu grande diferencial. Percebi que não era apenas o que eu deixava ali como arte ou como uma marca que faziam a diferença, e sim como eu o realizava. Isso é o que “eleva” o meu trabalho e o possibilita a atingir outras formas de exibição/apreciação. Nas periferias a minha arte se torna um descanso, um refúgio para os olhos fatigados de tanto agito, afazeres e informação por muitas vezes desnecessária que vem dos grandes centros. Hoje compreendo que o que faço é visto como uma porta de acesso rápido a uma arte pública e de qualidade.
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Confesso que no passado ignorei toda a cultura e os valores vindos das periferias por puro despreparo e insegurança. E isso me fez muito bem! Hoje aprecio e sei dar valor a tudo que surge desses incríveis lugares. Foi com muito treino que hoje pude abrir meus olhos para o
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Frequentar ambientes inóspitos ou lugares mais sofisticados aos meus olhos se tornam experiências mágicas, sem regras e sem compromissos perante a minha conduta. Acredito ter informação suficiente (mesmo aprendendo algo novo todos os dias) sobre quem realmente sou e do que me proponho a fazer como artista. Essa postura me permite apreciar e degustar de qualquer tipo de atmosfera, visando sempre tirar o melhor proveito de tudo e de qualquer situação que possa me apropriar.
Receber um elogio pelo trabalho que venho desenvolvendo me serve como uma das inúmeras recompensas que ganho diariamente. Poder inspirar outros que ainda vivem esse mesmo sonho me torna o artista que sempre acreditei que poderia ser.
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Um dia, minha bisavó me disse que a arte, unida à educação e a disciplina poderiam mudar a minha vida ou a de qualquer pessoa que acreditasse nisso. Nunca duvidei…
O ponto fundamental da minha carreira me veio à tona quando percebi que poderia realizar arte pública sem causar nenhum ônus para quem desejasse apreciá-la. Isso fez com que o meu trabalho tivesse coerência e continuidade para que eu pudesse estar sempre em busca de novos desafios. Levar a minha arte para lugares que acredito ter algum sentido hoje se torna o meu grande desafio após vencer minhas próprias batalhas. Estas que me obrigavam a acreditar que eu não me tornaria artista em um país que não acredita na união e na educação de um povo como metas, como ponto-chave para o seu próprio desenvolvimento. Felizmente muita coisa mudou desde então, alguns valores que eram cultuados pela grande massa estão caindo aos poucos e isso ajuda (e muito) aos poucos aventureiros e sonhadores, assim como eu.
Alex Hornest é pintor, escultor e multimídia que vive e trabalha em São Paulo, cidade que o inspira e o faz refletir sobre temáticas urbanas, lúdicas e introspectivas
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Se hoje tenho condições intelectuais para poder digerir com mais respeito, admiração e facilidade a diversidade que aflora de dentro e de fora das periferias é porque no passado nada disso me servia. Poder voltar as minhas origens e estar com os meus se torna muito mais gratificante e prazeroso, recebendo o apoio daqueles que enxergam em minha trajetória alguma forma de incentivo e de esperança para os que querem trilhar os mesmos caminhos.
E hoje tenho essa constatação, pois bons artistas trabalham para saciar seu próprio ego, sempre em busca do aprimoramento, com muito esforço, dedicação e paixão pelo que fazem. Enquanto que os maus apenas aproveitam os momentos sem se preocuparem se deixarão algum legado.
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que antes me era oferecido e parecia ser de pouca valia. Isso me fortaleceu, me ajudou a ganhar o mundo, ir além dos meus conhecimentos e direto ao encontro de tudo aquilo que almejava mesmo que inconscientemente.
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Dona S么nia (esq.) e Dona Maria Jos茅, duas das protagonistas do Projeto Retratos, que tiveram suas trajet贸rias de vida contadas em coreografias.
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texto CHRISTIANE GOMES fotos ERICK DINIZ e RAPHAEL POESIA
Elas são jovens. São mais experientes. São militantes históricas das lutas sociais. Mas também guerreiras das batalhas diárias do cotidiano. Elas dançam. Cantam. Declamam poesias. Vendem cocadas no farol e no metrô para sobreviver. Desenvolvem projetos sociais na quebrada e possuem intensas histórias de superação pessoal. Diversas e heterogêneas vivem todas em um mesmo território: o Capão Redondo, periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Falamos aqui de 10 mulheres que tiveram suas trajetórias de vida contadas através de movimentos coreográficos, que inclui também a produção de documentários, no Projeto Retratos, idealizado pela Cia. Sansacroma, que há 12 anos desenvolve, no próprio bairro, um trabalho de pesquisa em dança contemporânea que está atento e comprometido com as questões que o contexto periférico do território, que conta com cerca de 270 mil moradores¹, apresenta. A ideia do projeto surgiu quando a Cia. colocava em curso seu projeto de AproximAÇÃO (escrito deste jeito mesmo) com o público, que consistia em visitas domiciliares aos moradores da comunidade do Capão Redondo. Estes encontros tinham como objetivo, como o próprio nome diz, estar mais perto das pessoas do bairro de maneira que elas se interessassem a assistir as apresentações realizadas na então sede do grupo, o Ninho Sansacroma. Porém, mais do que apenas fazer com que o público prestigiasse os espetáculos, o que por si só já seria um desafio, o projeto de AproximAÇÃO desejava criar vínculos efetivos e afetivos com os moradores do bairro.
Mas para trazer este público, se aproximar dele, além da sacada de dançar na casa das pessoas, havia também uma vontade antiga de Gal de criar uma TV Online com conteúdos relacionados à dança contemporânea como mais uma ferramenta para divulgar e despertar o interesse da comunidade em conhecer e apreciar esta linguagem artística. “Daí eu liguei tudo: mulher, 100 anos de Capão, 10 anos de Sansacroma, TV on line e pensei: vamos fazer um programa para a internet chamado Retratos homenageando as mulheres do Capão, onde um bailarino vai pesquisar a vida desta mulher, criar um vínculo com ela, gravar isso e colocar em um pequeno documentário. Vai ser incrível. Então, estruturei o projeto”, conta Gal.
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O Projeto Retratos se construiu então com Neide Abate, de 55 anos, presidente da União Popular de Mulheres, que fez parte do histórico movimento Panela Vazia, formado por mulheres de operários que saíam do Capão para o centro para se manifestar contra as demissões e que até hoje segue na luta social. Veio também Anabela Gonçalves, 33 anos que possui uma intensa militância cultural desenvolvida na quebrada; Camila Brasil, 22 anos, uma jovem cantora; a Dona Edith, 72 anos que teve uma participação direta na formação artística de Gal desde os tempos da Casa de Cultura Popular do M´Boi Mirim (conhecido polo cultural também localizado na periferia da zona sul paulistana), que mesmo após a perda de sua visão se manteve firme e evolui a cada dia como artista; a Dona Sônia, de 59 anos, escolhida pelas visitas domiciliares do projeto de AproximAÇÃO. A Marinalva 52 anos, que vende cocada no metrô; Rosangela Alves, 34 anos, bailarina profissional que tem uma dificuldade de entrar no circuito da dança por conta de não se encaixar no padrão estético das grande companhias de dança clássica. Dona Maria José, que por opção, não teve filhos e que, aos 94 anos vive sozinha porque para ela isso é sinônimo de liberdade; Dona Eda, 62 anos, que foi
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A dificuldade com os recursos financeiros fez com que a ação se configurasse de outra forma, mas a essência
Começou então a busca de histórias de vida que representassem a força de tantas mulheres do Capão. A opção foi a busca de perfis diversificados. Havia, inclusive a vontade de ter neste elenco uma transexual. Mas Gal conta que uma das frustrações foi não ter tido sucesso nisso, já que a mulher trans, por conta de um conflito familiar, desistiu de participar do projeto.
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¹Dados do Censo do IBGE de 2010.
Trazer a dança contemporânea para o cotidiano da vida das pessoas é uma tentativa de preencher uma gigantesca lacuna que, já existente em espaços convencionais do centro, se aprofunda na periferia. Afinal este tipo de dança, muitas vezes não representa nada para seus moradores, que a tem como algo distante.
se manteve: a pesquisa dos bailarinos do grupo com a história de vida de mulheres do bairro e o consequente processo de construção coreográfica com base nestas histórias; a apresentação do solo na casa ou ambiente de trabalho delas; e a produção de um documentário.
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Nestas visitas, como não poderia deixar de ser, uma gama de ricas histórias de vida, lutas, alegrias, tristezas e, acima de tudo, coragem de guerreiras e guerreiros cotidianos que ajudaram a construir o Capão Redondo. E nesta luta, em grande parte dos casos, quem tinha o protagonismo eram elas: as mulheres.
Neste mesmo período, final do ano de 2012, a Cia. comemorava uma década de existência e o Capão completava seu centenário. A criadora e diretora da Sansacroma, a atriz, bailarina e arte-educadora Gal Martins, conta que com a coincidência das efemérides veio o estalo: porque não comemorar tudo isso de forma conjunta, homenageando o bairro e a luta das guerreiras que ajudaram e seguem ajudando no dia a dia a construí-lo? Mas como fazer isso? A reflexão em torno dos porquês da comunidade, tradicionalmente, não se interessar em assistir a espetáculos de dança contemporânea trouxe a sacada: “A gente precisa dançar na casa das pessoas”.
A também bailarina, pedagoga e uma das coordenadoras do Projeto de AproximAÇÃO com o público, Ciça Coutinho, se emociona ao lembrar dos momentos das entrevistas. “O fato delas abrirem suas vidas e nos dar o direito de acessar uma parte de suas trajetórias já é muito especial e importante. Foram momentos de troca e aprendizados e também de relembrar as nossas raízes. A maioria delas são mais velhas e isso remete a nossas mães, avós, a nossa ancestralidade. Não por acaso a maioria delas são mulheres negras. Tem esta identificação conosco de lugar de classe, raça e território”, destaca. O Projeto Retratos não se encerrou com a apresentação dos solos coreográficos para as homenageadas. Os 10 documentários além de estarem disponíveis na internet já foram exibidos em mostras em distintos espaços da capital paulista em 2014. E neste ano de 2015, a perspectiva é promover mais sessões e colocar o material para andar. Para cada mostra são escolhidos de quatro a cinco documentários e após a exibição acontece uma conversa com a homenageada ou uma apresentação artística. “A
“A Mostra Retratos tem sido de extrema importância para o Capão Redondo, porque resgata uma memória ancestral que foi perdida. A Cia. Sansacroma tem deixado esta memória mais fresca nos corações dos moradores do bairro, uma quebrada amigável e acolhedora, que tem seus altos e baixos, e é belíssima em suas culturas, tribos, grupos e coletivos”, conta Dandara Gomes, nascida e criada no Capão e que também é uma das coordenadoras do projeto de AproximAÇÃO com o Público. Em primeira mão, Gal Martins nos contou que, neste trabalho permeado pela construção de um vínculo afetivo e de preservação da memória, já existe a ideia de um Projeto Retratos 2. Desta vez com os Griôs (palavra usada na cultura africana para se referir aqueles que são os detentores das histórias e conhecimentos de um determinado povo) da cultura negra e popular, transcendendo as fronteiras territoriais do Capão Redondo para envolver outras regiões da cidade de São Paulo. Dois destes guardiões da cultura popular já foram definidos: Raquel Trindade (a Kambinda) e Sebastião Biano. “Quando a Dona Raquel vem nos visitar e começa a contar suas histórias, nossa vontade é de ouvi-la mais e mais, porque ela ainda tem muito a nos dizer. O Seu Sebastião, criador da Banda de Pífanos de Caruaru mora pertinho, ali no M´Boi Mirim. As pessoas não sabem o que estes dois significam para a cultura popular do Brasil. Elas têm um grande e incrível conhecimento que precisa ser compartilhado. E esta nossa necessidade de ouvir, de descobrir, foi o Projeto Retratos que trouxe”. O projeto Retratos também trouxe para a Cia. Sansacroma, segundo Gal, a necessidade e a importância do diálogo e do encontro, fatores que fortalecem não apenas a relação com a comunidade, mas também a pesquisa estética e coreográfica da Cia.
Cena do espetáculo Outras Portas, Outras Pontes (2012), recentemente apresentado em terminais de ônibus de SP.
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Sobre o processo, Gal conta: “Geralmente iam as agentes de aproximação, o(a) bailarino(a) e eu. Era um primeiro momento de criar um vínculo. Conversávamos e depois o bailarino me contava o que estava pensando e eu tentava não interferir para deixar a criação fluir, mas dialogávamos e ele fazia algumas opções por momentos da vida da personagem. Depois a gente voltava e aí sim era para realizar a entrevista do vídeo, que às vezes coincidia de ser o dia em que o intérprete dançava o solo para ela. Este registro do momento de compartilhar a coreografia, mais a rotina delas que resultou no documentário. Em ambos os casos, o foco é a vida destas mulheres”.
identificação é algo que acontece muito nas exibições, marcadas sempre por muita emoção. Na última que fizemos na Fábrica de Cultura do Capão Redondo com um grupo de adolescentes, dois deles se emocionaram muito com a dona Edith, dizendo que ela tinha mudado a vida deles”, lembra Gal.
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aluna de Paulo Freire e que hoje coordena o Cieja/Campo Limpo (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos), um importante polo de democratização do conhecimento e de mobilização e ação social; Neide Santos, 55 anos ex-atleta que teve marido e filho assassinados e transformou sua dor em um projeto de formação de atletas na comunidade.
E foi estudando muita sociologia, filosofia e arte que a Dança da Indignação começou a ser construída há dois anos. Uma pesquisa corporal, estética e coreográfica que pretende comunicar a revolta diante às injustiças sociais, fazendo com que os movimentos também sejam atos políticos, integrando vida e arte. Nestes estudos do corpo surgiu a Tríade da Tensão: “peito e estômago (onde a gente sente a indignação), a cabeça (que a racionaliza), e a garganta (onde a gente expurga). Estudamos os movimentos destas regiões do corpo”.
DANÇO EU, DANÇA VOCÊ NA DANÇA DA INDIGNAÇÃO
Pela primeira vez desde a sua criação, a Sansacroma, se viu, a partir de 2014, com um elenco majoritariamente formado por mulheres negras. Ainda que, de acordo com Gal, as questões raciais relacionadas a cultura negra sempre estivessem presentes nos trabalhos da Cia. “Como isso nunca tinha acontecido (ter um elenco formado em sua maioria por mulheres negras) eu também não tinha ainda percebido mais claramente a necessidade de ter um elenco negro. Eu me sinto mais amparada, porque posso compartilhar as minhas angústias no trabalho. O machismo, as relações afetivas, a padronização da beleza, os processos de embranquecimento. Tudo isso vem forte nas nossas pesquisas da Dança da Indignação”.
“Estamos no processo de afirmar a nossa resistência. E nosso maior receio é de não conseguir mantê-la por causa do mercado da dança e seus estereótipos. Temos conseguido manter nossas ações por conta das políticas públicas, mas não sabemos até onde este mercado vai aceitar nossa opção artística e política. Às vezes temos medo de desistir desta resistência. Mas quando ouvimos as mulheres do Projeto Retratos, por exemplo, compartilhando suas trajetórias aguerridas de luta, a gente respira e pensa: ainda temos muito o que fazer”, profetiza Gal. E nós, estaremos aqui para aplaudir!
PARA ASSISTIR Projeto Retratos, disponível em youtube.com SAIBA + ciasansacroma.wordpress.com VOZES DO CORPO Desde 2010 a Cia. Sansacroma organiza o Circuito Vozes do Corpo, que reúne diversas ações de fomento e democratização do acesso à dança contemporânea no extremo sul da cidade de São Paulo. O circuito envolve mostras de espetáculos, rodas de conversa e oficinas de formação com grupos e bailarinos de São Paulo e outros lugares do país. Em 2015, a atividade ganhou sua sexta edição com atividades espalhadas por diversos equipamentos culturais da cidade como as unidades do CEU e a rede SESC.
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CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestra em Comunicação e Cultura pela USP e coordenadora do corpo de dança do Bloco Afro Ilú Obá de Min.
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O próximo passo na pesquisa estética e de linguagem da Sansacroma é pensar em formas de interferência do público em suas nas obras. As investigações do grupo alimentam alguns espetáculos que já estão em circula-
Mas será com Sociedade dos Improdutivos, com previsão de estreia para o final deste ano, que a Sansacroma irá abordar a produtividade das pessoas portadoras de psicopatologias no sistema capitalista, que a Dança da Indignação virá com uma “linguagem mais escancarada na sua concepção estética”, segundo a diretora da Companhia.
REPERTÓRIO DA CIA. Outras Portas, Outras Pontes (2012) Fragmentos de um Choque (2011) Angu de Pagu (2010) Solano em Rascunhos (2008) Imagens de Um Só-lano (2006) Orfeu Dilacerado (2006) Identifique-se (2005) Solanidade (2005) Negro Por Brasil (2002)
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A Cia. Sansacroma foi criada em 2002 com a proposta de descentralizar a difusão da dança contemporânea na cidade, levando-a para a periferia da zona sul de São Paulo. Em 2009, quando ganhou seu primeiro Fomento a Dança (edital da prefeitura de São Paulo que viabiliza recursos para grupos desenvolverem suas pesquisas e espetáculos) foi como se a Cia. tivesse conseguido, nas palavras de Gal Martins, um selo de qualidade. “Já falei isso muitas vezes, mas repito: esse carimbo parece que validou nosso trabalho. Mas não falo isso como sendo algo positivo porque a gente já estava há sete anos produzindo dança contemporânea na periferia, mas com o fomento foi como se, a partir disso a gente pudesse ocupar um espaço no Centro”. Ao dialogar mais com o circuito da dança contemporânea na cidade, Gal não encontrava pares, o que causava uma certa angústia. “Percebi que tinha mais referências no teatro do que na dança. E se não havia nada com que eu me identificasse, o caminho seria então criar uma linguagem”.
Atualmente a Cia. Sansacroma é formada por um elenco de oito pessoas, entre intérpretes e interprétes experimentais, dançarinos jovens que, segundo Gal, com muito potencial, não encontram espaço para trabalhar com uma arte mais engajada politicamente. Além de Gal Martins, que acumula as funções de diretora geral e artística, a Cia. é formada por Ciça Coutinho, Djalma Moura, Verônica Santos, Mônica Teodosio, Monique Mendes, Lucas Lopes, Érico Santos, Lucas Bernardo (operador de som) e Dandara Gomes (assistente de produção).
ção, como o Outras Portas, Outras Pontes (2013), recentemente apresentado em terminais de ônibus de grande circulação em São Paulo e que já traz algumas movimentações da Tríade da Tensão.
RO U PA S DE P ER F O R M A N C E UM (PEQUENO) RETRATO VISUAL DA MÚSICA NEGRA NORTE-AMERICANA
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(1950 – 2015)
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Sam Cooke no início da década de 1960.
Sam Cooke, que pode ser considerado o primeiro grande artista pop negro dos EUA, além de ter sido o maior cantor de R&B e Soul Music entre o final da década de 1950 até a sua morte, em 1964, influenciou decisivamente o modo de vestir de toda uma geração de músicos negros de sua época, e também foi o primeiro a parar de alisar os cabelos, assumindo seu crespo natural. Ainda dentro do universo musical dos EUA, a década de 1960 – assim como a de 1950 – foi basicamente caracterizada pelo uso de ternos e roupas formais. Chuck Berry, BB King ou Jackie Wilson, do blues às primeiras manifestações do funk, erm adeptos desse o padrão visual. As exceções, em
As décadas de 1950 e 1960 foram basicamente caracterizadas pelo uso de ternos e roupas formais, como podemos observar nos trajes do então jovem músico BB King.
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Espetáculos musicais sempre foram vistos como ocasiões especiais dentro da sociedade moderna ocidental. Os músicos se apresentavam com suas melhores roupas, assim como o seu público. Nos Estados Unidos, terra do show business e exportadora das polêmicas ideias que permeiam o termo cultura de massa, o crescimento da indústria da música e do entretenimento durante as décadas de 1940 e 1950, fez aumentar a necessidade de se levar ao público performances cada vez mais inovadoras, aprimoradas e financeiramente rentáveis. Deste modo, além de seus talentos musicais, os artistas eram encorajados a levar aos programas de televisão e aos palcos uma postura atraente, vendável, com danças e roupas capazes de influenciar milhares de jovens ao redor do mundo e, assim, popularizar e enriquecer o avassalador sistema capitalista norte-americano que já mostrava sua força nas primeiras décadas do século 20.
Não é nenhuma novidade o fato de que há muito tempo são os artistas da música que ditam as regras quando se fala em visual jovem ao redor do mundo.
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texto JUN ALCANTARA fotos Gilles Petard (Redferns), Gregory Harris, GERED MANKOWITZ
em sua maioria, estavam no jazz, que já não era mais a música “pop” da época. A ousadia do jazz atravessava as barreiras do som e chegava a outros setores relacionados ao mercado musical, como as capas dos discos, por exemplo. O álbum 6 pieces of Silver, de Horace Silver, de 1956, trazia o músico com um casaco e meias brancas, lendo uma folha de pauta no banco de uma praça. Hoje pode parecer um traje que beira o formal, mas na época eram roupas muito casuais. Algo fácil de perceber quando levamos em consideração outros elementos da imagem, como o ambiente e a postura de Silver. Já dentro da música pop propriamente dita, os padrões estéticos eram mais rigorosos. No início da década de 1960, a gravadora Motown, por exemplo, investia não só em fórmulas musicais que garantissem a popularidade das canções e vendas de álbuns, mas em todos os aspectos possíveis, impondo aos artistas padrões visuais que fossem mais agradáveis ao público. Obviamente, ela não era a única. Quem não seguisse as regras do jogo dificilmente alcançaria as grandes audiências.
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No ano de 1966 surge o sujeito com o visual que viria a se tornar o estilo padrão do rockstar: Jimi Hendrix. Com a popularidade atingida por Hendrix em 1967, nos EUA, a música e o visual dos artistas nunca mais foram os mesmos. Embora sua música não tenha conquistado o público afro-americano, a importância dela dentro dos gêneros negros foi grande. O rock teve que evoluir para se adaptar à essa estética musical agressiva (ou então seriam engolidos pelo monstro) e a soul music ganhou novos ares. O breve período da soul music conhecido como psychedelic soul - permeado pelo clima lisérgico e rebelde dos anos finais da década de 1960 - pode ser resumido de um modo genérico como a influência de Jimi Hendrix dentro da soul music. O icônico grupo The Temptations, acompanhou tudo isso, se lançaram no psychedelic soul e mudaram a maneira de
se apresentar. A partir de 1968, os artistas adotaram visuais mais casuais e ousados para suas performances. Muitos artistas do jazz não ficaram para trás e, além da renovação trazida pela fusão do gênero com sonoridades mais contemporâneas como o rock e o funk, acompanharam as tendências da época. Mas na entrada da década de 1970 a coisa mudou. Foi nesse período que surgiram as roupas de performance mais extravagantes. Earth, Wind & Fire, The Isley Brothers, Parliament, Betty Davis e outros artistas entraram de cabeça nisso, com visuais que mais pareciam fantasias. Macacões, babados, couro, brilhos e cores berrantes. O documentário Wattstax e os vídeos do programa Soul Train, mostram claramente o modo como essa estética convencia o público também a montar seus visuais, suas próprias roupas de performance personalizadas, para curtir shows e festas de seus artistas preferidos. Quem viu James Brown com suas calças ajustadas, camisa e paletó dançando I Got You em meados da década de 1960, pouco tempo depois o via abrindo espacates, usando macacão boca-de-sino amarelo e decotado. Curtis Mayfield foi um dos poucos grandes artistas da época que representavam a exceção da regra, mantendo no palco um visual bem comum e sóbrio quando comparado aos outros.
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Funkadelic, liderado por George Clinton, um dos pioneiros do funk na década de 1970.
JUN ALCANTARA é músico, empresário e responsável pelo blog ubora.wordpress.com
Diferentemente das décadas passadas, hoje a obrigatoriedade do uso de roupas exclusivamente performáticas só vale para as grandes divas pop, como Rihanna e Beyoncé. Cantores consagrados do R&B/Soul e rappers, como The Weeknd e A$AP Rocky, apesar do capricho estético costumam se apresentar com roupas que representam seu estilo de vida fora dos palcos, lançando tendências que fazem a cabeça das pessoas pelo mundo inteiro. Até mesmo os artistas adeptos da música e imagem retrô - como Raphael Saadiq, Aloe Blacc e o novato Leon Bridges - traçam um caminho diferente do óbvio e seguem uma linha de pensamento ajustada aos tempos atuais. Apesar de serem fortemente influenciados por artistas da década de 1950 e 1960, eles preferiram deixar de lado as roupas usadas por esses ídolos em shows e recolher inspirações no estilo que não só artistas mas também pessoas comuns da época adotavam em seu dia-a-dia.
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Na entrada da década de 1980, caras como Michael Jackson e Prince dominaram a cena musical e mantiveram a tradição dos figurinos exclusivamente performáticos. Foi o rap, na mesma década, quem rompeu com a mentalidade da roupa de performance. Alguns podem achar que o rompimento aconteceu no próprio nascimento do rap, no final da década de 1970, mas a verdade é que os pioneiros do gênero se vestiam de forma tão extravagante e fantasiada quanto qualquer grupo de R&B ou funk da época. O período inicial da popularidade de nomes como Grandmaster & The Furious Five e Afrika Bambaataa & Soulsonic Force mostram isso muito bem. Ice-T e os membros do Run DMC fizeram parte da primeira geração que realmente deixou de lado as “fantasias” e levaram uma postura mais rueira aos palcos, fosse nas atitudes ou no próprio visual. Mas a ascensão do gangsta rap, na primeira metade da década de 1990, levou essa atitude rueira ao extremo. Esses rappers não usavam apenas roupas comuns. Muitas delas vinham diretamente das culturas de gangues criminosas. E a influência foi muito maior do que se podia imaginar: basta reparar como se vestiam os artistas de R&B contemporâneo, neo-soul e reggae da época. Todos pareciam rappers, mesmo não sendo músicos do gênero. Camisas xadrez, jaquetas MA-1, jeans, botas Timberland ou Dr. Martens, tênis de basquete e etc. A maloqueiragem trouxe não só as roupas, mas também as brigas de fora para dentro do cenário musical. Uma das mais marcantes da época envolveu os rappers Eazy-E e Dr. Dre, antigos amigos e membros do lendário NWA. No rap Real Muthaphukkin G’s, escrito por Eazy-E para atacar seu rival, são citados os trajes que Dre usava em apresentações do World Class Wreckin’
Cru, grupo musical do qual fazia parte antes de ingressar no NWA. Os paletós brilhantes, calças apertadas e as poses de galã não foram perdoadas por Eazy, que tira um sarro sem dó das tendências extravagantes adotadas por Dr. Dre e seus antigos companheiros de banda. Mas ao contrário do que possa parecer, o rap não decretou a morte definitiva do costume de usar trajes apenas para fins performáticos. Ocasionalmente, estereótipos de personagens ligados ao mundo do crime eram usados em videoclipes e shows por alguns artistas. Tudo envolvendo muita ostentação, fosse de jóias, casacos e chapéus de pele, ternos de grandes marcas européias ou qualquer outro adereço que custasse alguns milhares de dólares. Snoop Dogg muitas vezes adota a persona do típico cafetão extravagante dos bairros negros americanos, o pimp. The Notorious BIG, assim como seu contemporâneo Jay Z, se inspirava nos mafiosos italianos em algumas de suas apresentações ao vivo, videoclipes e ensaios para revistas. Lenny Kravitz era praticamente o último representante de uma tradição quase extinta, o único irmão a buscar inspiração não só nas músicas setentistas mas também na extravagância das roupas e exageros que marcaram as duas décadas anteriores. Mas nem ele resistiu. Nos anos finais da década de 1990, Lenny se despediu de seus dreadlocks e, de quebra, dos saltos plataforma e macacões brilhantes.
A$AP Rocky e sua crew. 91
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Enquanto isso, dois outros países exportadores de música para o mundo pareciam não ligar muito para esse tipo de coisa. Na Jamaica, os The Wailers (posteriormente conhecidos como Bob Marley & The Wailers) e outros artistas abandonavam os ternos inspirados nos grandes artistas do soul norte-americano da década de 1960 e passavam a usar suas não menos estilosas roupas do cotidiano, no peculiar estilo de se vestir dos adeptos do rastafari. Na Inglaterra, apesar do fenômeno glam rock, músicos do soul e do reggae seguiam essa mesma linha. No palco, os músicos eram vistos usando os mesmos tipos de trajes usados no estúdio ou na rua.
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F I L O S O F I A
K A L U N G A
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D E S ร G U E
texto LUCIANE RAMOS SILVA fotos RODRIGO SOMBRA, KOSUKE ARAKAWA e JOSÉ DE HOLANDA
Eis me aqui, serei eu a voz que nunca seja, já que voz pode remeter ao que não há. Mama Kalunga
massa rarefeita da fome e da ideia... e a vida, a vida, o emigrante, o ponto, a vez... para se fundar a oca talvez não visitada”.¹
minam formas africanas de concepção de mundo. Num Brasil que insiste em reforçar que a fonte da ciência são as terras europeias, esse upload é sempre bem vindo.
Cantor, compositor, instrumentista e poeta, o soteropolitano Tiganá Santana traz novas correntezas para a música brasileira. Seu pensamento, remete à percepções de tempos, memórias e paisagens que se fundam nos legados africano-brasileiros assim como falam da experiência e aventura humanas, as que se escancaram e as que não se desvenda.
No dedilhar de nossa conversa, Tiganá mostra-se um ser humano interessado pelas percepções plurais de pensamentos e pelas singularidades que nos são formadoras. “O nada é o que não sabemos. Esse nada é o que mais me interessa. Isso talvez seja minha mola propulsora maior. Esse lugar que não tem som, não tem cor, não tem pensamento, sensação nem imaginação”. Ao anunciar a ideia um “oco profundo”, o artista retoma a cosmovisão oriunda das presenças civilizatórias Bantu através do conceito da Kalunga - que pode ser entendida como um processo e princípio de mudança e vitalidade. Um símbolo que agrega os mistérios da morte e a saudade do que ficou para trás. “Kalunga é a força que transbordou o vazio”, comenta Santana. E lembremos que esse valor impulsionou e acalentou a vinda das diversas gentes que partiram do continente africano para as Américas.
As dimensões políticas que inevitavelmente atravessam sua experiência como pessoa e membro de coletividades, trespassam a obra com corte e profundidade. Os dilemas das mulheres negras, as realidades neo-coloniais – Tiganá não se ausenta das questões que remexem as nossas carnes. Muito pertinente sua fala, no início do Concerto de lançamento do álbum Tempo e Magma (2015), no Sesc Pompéia, em São Paulo, quando relata, indignado, a saga que os artistas da banda Sobo Bade enfrentaram para adentrarem solos brasileiros oficialmente - um acontecimento comum, mesmo aos artistas e intelectuais detentores de chancelas, cartas, vistos e demais exigências. Mas como arte é assunção, o artista redesenha as pontes com o continente africano com a devida integridade, inscrevendo sobre as marcas ainda presentes da (pós) colônia.
Já que a palavra nas tradições negro-africanas não são apenas meio de comunicação, mas formas de conferir existência, Tiganá transforma o princípio em corpo-pensamento. Sua dedicação ao verbo vivido atravessa os campos da literatura e da música. Nos três álbuns já lançados Maçalê (2010), produção independente, The Invention of Color (2012), promovido pelo selo sueco Ajabú! primeiramente na Europa e depois no Brasil, e Tempo e Magma (2015), bem chegado no último mês de maio em belíssimo concerto apresentado em São Paulo com a participação da banda baseada no Senegal Sobo Bade, o artista imprime força de realização às suas palavras. Transitando em grafias da academia e das artes, o músico desenvolve pós-graduação no departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – esmiuçando o pensar proverbial Bantu na obra do congolês Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau (1934-2013), referência da moderna escola de pensamento Bantu-Congo.
¹Trecho da obra O Oco-transbordo (2013) na parte intítulada Segunda Carne da Água.
Seu livro, O Oco-transbordo (2013) editado em formato artesanal pela Rubra Cartoneira Editorial, anuncia uma obra poética entrelaçada a discussões sobre o que pode ser o existir senão um transbordar do vazio, expressão pulsante também na narrativa das suas canções. Ali. A reflexão sobre o tempo e os rios da vida, nos seus vários cursos, fazem-se presentes. “É preciso sair de onde se está, apunhalar, de frente, a vocação e tê-la informe, transfigurada, de melancolia, mas de fundo interino, de dutos, mas de opção por uma trilha em vez de outra; é maior precipitar a chuva ainda nas poças urbanas, precipitar o pulso inaugural da intuição discreta frente à
TODAS AS LÍNGUAS Suas canções em português-brasileiro, quicongo, quimbundo, wolof, mandinka, inglês e francês conferem amplitude à obra. Há que se destacar o aprofundamento nas letras em quicongo e quimbundo, raríssimas nas produções musicais de artistas contemporâneos brasileiros. Ao cantá-las Tiganá nos lembra das confluências das línguas africanas que em território brasileiro fizeram brotar esse português de chamego, quilombagens, ginga e outras tantas africanidades. E não se trata apenas de presenças léxicas, mas de sentidos, dinâmicas e, portanto, formas de ver o universo. A música de Tiganá está no mundo. Sem pertencimentos essencialistas abre possibilidades para uma obra de inspirações múltiplas que não perde os fios dos mares que o liga (nos liga) às Áfricas. Seu discurso chega com a dignidade daqueles que têm consciência e afeto por seus alicerces familiares e ancestrais. Sua erudição desconcerta qualquer visão eurocêntrica que aufere aos artistas negros apenas o valor do inato, do negro-máquina. Aos 32 anos acumula saberes que vem de longe, cultivo aprofundado nas filosofias, ciências, estéticas que ger-
Ao mergulharmos na arte de Tiganá Santana aprofundamos moradas muito caras à experiência brasileira. Sua voz grave e terna preenche espaços silenciados, seu violão- tambor (concepção própria com afinação e disposição específicas das cordas) risca na pedra da memória existências de ontem e hoje. Assim, ele não vai sozinho. Nos leva, leva mundos, histórias e tempos. O álbum duplo, Tempo e Magma, criado na paisagem vulcânica de Toubab Djalaw, no Senegal, não recebe a numeração convencional como disco 1 e 2, mas sim as denominações interior e anterior. “A interioridade é caminho para acessar a anterioridade”, afirma o criador. Álbum denso e apurado, exige dedicação na escuta. Em sua aliança com Virgínia Rodrigues, dirigindo o álbum mais recente da cantora, Mama Kalunga (2015), em parceria com o percussionista sueco Sebastian Notini, vemos um primoroso repertório que retoma canções do maestro Abigail Moura (1904 – 1970), tão pioneiro e pouco conhecido, Geraldo Filme (1927 – 1995), legendário timoneiro do samba paulista, Paulinho da Viola, Suzana Baca e outros ouros negros. A irmandade com a cantora Fabiana Cozza já fez brotar novidades que, oxalá, serão lançadas no Brasil ainda este ano.
“Mas aí a música, com toda sua força de água, vem
r a s g a n d o o s t e r r i t ó r i o s e s t a b e l e c i d o s e a p o n t a n d o c u r s o s ”.
Sua escrita não é apenas alusão e homenagem, mas elucidação de pensamentos e cosmologias. Forma e fluência fazem da língua um caminho de acesso à cultura. Suas reflexões assentadas em música alçam voos dilatados - dignos de uma arte que não cabe em setores, tipos e outras tantas caixas. Num tempo em que o espírito do capitalismo embala e sufoca as culturas musicais contemporâneas, águas que arrebatam são necessárias.
OMENELICK 2ºATO: A AFRICANIDADE PRESENTE NO SEU TRABALHO É PONTO DE PARTIDA PARA SABER QUEM VOCÊ É? TIGANÁ SANTANA: Sim e não. Na mesma proporção. Esse lugar de ancestralidade presente é um lugar de assentamento importante, uma bússola importante na experiência de existir como pessoa sem dúvida. E a partir deste lugar que me catapulta a existir de determinadas maneiras, evidentemente ligado a outras combinações - esse lugar me conduz a um abismo profundo. Uma dança entre o que
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nada sei e outra onde supostamente sei alguma coisa.
O tempo pediu pra folha dançar Pra folha dançar e nunca parar E sempre curar o dia DEMBWA*
Apenas uma gota Fará transbordar o quadro da manhã... Num ciclo de dois cortes, três romances, Quatro agruras, cinco rios. A gota dos encantos merece habitar os braços Do homem que não sangra... ... e que devotará ao copo a extradição Do solo errante e do esperar; Bendita mulher é a poesia de partida Sem te onde ficar na embarcação... Bebeste a manhã que, sequer, raiou por ti... PARA A POESIA ÍNTIMA*
OM2ºATO: DOS RIOS QUE LEVARAM À DIPLOMACIA / FILOSOFIA /MUSICA... TS: Minha formação vem de várias pessoas... Mãe, Irani Santana, fundadora do Movimento Nefro Unificado nos anos 70, formou-se em Letras e Artes Cênicas, foi ligada ao bloco afro Ilê Aye, onde posteriormente se tornaria diretora. Sempre militante, sempre preocupada com a educação. Entendo que ela quis que eu fosse diplomata para quebrar a hegemonia racista do Itamarati. Então fui estudando uma língua e outra, numa época em que todas as coisas me interessavam. Hoje não sou assim. Hoje me interesso por algumas poucas coisas. Mas quando mais novo eu me interessava pelas coisas, quaisquer assuntos e sujeitos. Mas a uma certa altura eu declinei dessa história (ser diplomata) e quis estudar filosofia na Universidade. A essa altura o violão já havia chegado (eu devia ter uns 14, 15 anos quando comecei a estudar e tocar) e então na UFBA (Universidade Federal da Bahia) comecei a estudar filosofia e a única coisa que me fez titubear um pouco foi a possibilidade de talvez estudar composição, entrando no departamento de música. Mas aí eu desisti porque não estava interessado na música nessa dimensão. Eu não queria falar, saber de uma literatura musical. Não queria que a música ocupasse um lugar desvendável, devassável na minha vida. Portanto segui na filosofia e me formei. Eu gostava de escrever poesia, fazer livros colados, grampeados... Mas aí a música, com toda sua força de água, vem rasgando os territórios estabelecidos e apontando cursos. Ela foi chegando, chegando de modo que eu não conseguia mais escrever sem auxilio dela. Então os poemas foram se transformando em canção. OM2ºATO: CONHECIMENTO ACADÊMICO E AS FORMAS AFRICANAS DE PERCEPÇÃO DOS MUNDOS TS: Tenho lido o pensador congolês Fu-Kiau. Escrevendo sobre ele na Pós-graduação do departamento de Letras da USP. Meu trabalho aborda as sentenças em linguagem proverbial apontadas em alguns de seus textos que tratam do que ele chama de Cosmologia Africana Banto-Congo. Então por força desse próprio trabalho, e não só, mas por força da relevância desse texto para mim, estou lendo de novo, de novo e de novo. Eu iniciei uma tradução do texto, mas não sei o que acontecerá. A ligação com a Universidade foi algo que surgiu. Não sou acadêmico nem nada. Fui estimulado por algumas
pessoas como o professor Álvaro Faleiros, do Departamento de Letras Modernas da USP, também ligado aos Estudos da Tradução. Como negro não posso me dar ao luxo de não estar nesses espaços. Isso é muito claro. O pensamento se deve espraiar nessas diversas possibilidades de corpo-pensamento. Isso vem através de um tema musical, vem através daquilo que não se desvenda, que não se desvela, dentro de uma perspectiva positiva e ao mesmo tempo se pode encaminhar na escola de pensamento e produção acadêmica. Então, reconhecendo isso é que eu pude estar agora nesse espaço, porque simbolicamente é importante que estejamos nesses espaços. Não só simbolicamente, mas efetivamente como pesquisadores, negros, etc. Então aqui eu já me refiro a outros desdobramentos deste ser que não é nada. Que não é negro, não é homem nem mulher. Por outro lado, muita gente morre, muita gente não tem o direito de viver com alguma plenitude suposta, em nome do fato de apresentarem alguns desses desdobramentos, ou como diria Aristóteles, alguns desse acidentes. Mas, no entanto, muitos morrem em nome disso que tanta gente, quando é conveniente, tenta minimizar ou reduzir a um lugar. Isso essencializa forças do ser. Acho que isso é dialógico com a vida em suas reentrâncias tantas, em suas apresentações tantas. OM2ºATO: A PRESENÇA DAS LÍNGUAS AFRICANAS NOS FALARES BRASILEIROS. TS: O quicongo é uma língua ligada aos Bakongos e o quimbundo não. Mas são línguas com muita similitude, são línguas irmãs. Esse Ki indica “língua de”, língua de Congo, do N´Kongo, que é a pessoa que pertence à civilização dos Bakongo. Essa pessoa é um mucongo ou uma mucongo. O quimbundo é uma língua de Angola basicamente. Há uma presença do quicongo no norte de Angola onde se situa o Mbanza Congo, que foi capital do Reino do Congo e que se espraiou pelo centro sul do país conhecido hoje como Congo. Importante não confundirmos Congo civilização e Congo referente aos territórios que hoje compreendem os países que conhecemos de maneira mais direta como Congo Kinshasa e Brazaville. Essas línguas são extremamente presentes no português corrente falado no Brasil. Eu quero lembrar a pesquisa da professora Yeda Pessoa de Castro, etnolinguista que doutorou-se na então Universidade do Zaire – me
Kisekele kia túbia Kitanga kia henda O kizanga uambata O dinhota dia muenhu Mon´Ami*
de temps en temps, je suis l’arbre qui a fait le Mali etre la peau pour couvrir les femmes tombés sans ses corps La race humaine ici peut- être infinie si elle s´ appele partir Sur de son unité morts L’Afrique est dans les enfants Et le monde est dehors Le Mali Chez la Carte Invisible (O Mali no mapa invisível)*
*Excertos das canções DEMBWA, PARA A POESIA ÍNTIMA, Mon´Ami e Le Mali Chez la Carte Invisible (O Mali no mapa invisível)
refiro ao Zaire (Congo) e não ao Zaire (lugar) que se situa em Angola – o que me faz lembrar de um poema do Rui Duarte de Carvalho (1941-2010) – Uma árvore no Zaire, que é lindíssimo: Uma árvore, no Zaire recorta-se na luz que a tarde inverte e ascende Num derradeiro esforço de energia.
Recupera-se, agreste da rede percutiva que a cercou. Concentra-se na fibra do seu cerne (...) É um poema longo...Quero lembrar, sobretudo as línguas do chamado tronco linguístico Banto e que são enquanto línguas africanas as mais presentes no Brasil. Nós falamos uma série de palavras advindas dessas línguas e que
substituem palavras na língua portuguesa ou indígenas: caçula, bengala, sanha, moleque... e a professora Yeda sustenta a ideia de que há uma influência na sintaxe propriamente então a possiblidade de fazer canções nessas línguas foi algo que aconteceu. Não premeditei fazê-lo. Determinadas melodias solicitavam essa possibilidade de expressão. Determinados lugares sonoros demandavam. Não sou exegeta nessas línguas, portanto falo como um brasileiro descendente de africanos majoritariamente, que tem um interesse por esse mergulho e por estar já previamente mergulhado nisso. Mas também reconheço o lugar político que isso tem. É uma combinação desses lugares de atuação – na academia e no que se chama de arte. OM2ºATO: A ANCESTRALIDADE PRESENTE TS: Esse lugar prévio é estar ligado precipuamente ao candomblé de linhagem que se possa chamar de Congo-Angola; é conviver com esse modus-operandi que vem de uma determinada forma de falar, de se referir as coisas e de se comportar diante delas, que é uma situação que compartilho com tantas pessoas no Brasil e não só. Portanto, já estando nessa situação fui levado a estar nela também de outras formas – a partir de algumas que já estão instauradas e me interesso por isso tudo, isso é formador, traz sentidos – uma vez que a gente dá sentido às coisas na vida eu não acredito que ela traga esses sentidos – a gente os imprimi. É importante compreender porque daí a gente não hierarquiza esses sentidos. O sentido que eu ponho na vida não é mais importante do que o sentido que o outro dá. Eu espero que isso, de alguma maneira possa se comunicar com alteridades e sem que necessariamente essa seja uma comunicação que ocupe um lugar de literalidades. Prefiro que ela ocupe um lugar primeiro de frequências e segundo que ela possa ter essa atuação política ligada à população negra – neste lugar e em outros. OM2ºATO: SOBRE AS DISTÂNCIAS DO BRASIL COM AS LÍNGUAS AFRICANAS TS: A língua é uma possibilidade profunda de penetração numa cultura. Então é sabido que temos vetores culturais importantes, formadores e estruturantes. Daqueles advindos de partes do continente africano. Portanto é importante sim esse mergulho profundo. Uma língua não está dissociada de uma cosmovisão. Só que não temos esse referencial nem advindo de culturas africanas nem indígenas o que evidentemente é sistêmico. Existe uma intenção sistêmica político institucional. Não acho que exista uma língua que evoque alguns setores mais profundos da experiência humana mais do que outras, mas é importante que nós mergulhemos nesses outros lugares de linguagem, pensamento, existência que nos são também tão próximos. Fu-kiau faz uma crítica no seu livro Cosmologia Africana Banto-Congo sobre essas pessoas que se dizem africanistas, estudiosos de tantas coisas advindas do continente africano e muitas delas não sabem nenhuma língua desse imenso continente. Como podem entrar numa determinada possibilidade de pensamento sem esse contato com a língua? No caso de outras experiências, a relação com esses idiomas pode se dar de outra forma, sem uma relação necessariamente formal, racional com essas línguas. OM2ºATO: TOUBAB DIALAW E AS PONTES COM OUTRAS ÁFRICAS TS: Fiz uma residência artística promovida pela Unesco em Toubab Dialaw (Senegal) por quatro meses e meio. Essa experiência reverbera até agora. Lá conheci pessoas e situações muito particulares e que mudaram, revolveram algumas coisas dentro. Lá conheci músicos do Senegal, Mali, Guiné Conacri e ao final da estadia gravamos o disco Tempo e Magma
Tiganá Santana e a banda Sobo Bade, ao fim da apresentação que marcou o lançamento do álbum Tempo e Magma (2015).
que foi lançado em janeiro no Japão, em fevereiro na Europa e na Oceania. Ele foi o quarto disco mais baixado na Europa. O disco teve patrocínio da Petrobrás - com o qual pude pagar todos os músicos africanos que fizeram parte. É como se fosse uma restituição disso. Pagar dignamente todos os músicos africanos. A Petrobrás jamais faria isso. Então foi uma ínfima ação social, racial, histórica que me deu muita alegria, muito orgulho. São músicos impressionantes. Aquele mar, aquelas camadas abertas, as coisas continuam a reverberar por aqui. OM2ºATO: ÁFRICAS - TÃO LONGE E TÃO PERTO. Sobre a composição Le Mali chez la carte invisible TS: África é uma invenção. Ela pode ser uma a partir de muitas coisas profundas. Alí eu falo de um lugar de origem. O Mali é na verdade uma metáfora, uma representação, um lugar presente naquele continente e num mapa que não se vê, que não está nessas projeções cartográficas - Peters, Mercator... que tem uma intencionalidade determinista tão clara. São outros mapas, outros espaços, outras topografias para que não nos atenhamos somente a esse lugar físico, dessas Áfricas quer imaginárias, quer reais. É uma canção num francês crioulizado para dar a dimensão da reconstituição, das respostas, do redesenho à uma situação colonial. Você responde usando a língua de quem impôs. A criança é a origem de uma experiência civilizatória e é quem ainda não pertence totalmente a todos esses códigos civilizatórios. Porque tem em si movimentos peristálticos contracivilizatórios. Fala de algumas Áfricas possíveis, a respeito de indivíduos que tem o direito de ser.
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OM2ºATO: BLACK WOMAN lonely human being TS: É tudo muito direto nessa canção. Ser homem negro é uma coisa. Ser mulher negra é outra. Há muita destituição. Eu quis reunir um homem (eu) e uma mulher branca (Ane Brun, que interpreta a canção) para falar de uma figura que é mote de tantas violências. Não só no continente africano, mas no Americano... Eu precisava falar. É uma das situações mais complexas a da mulher negra. Eu quis reunir os seus principais violentadores protagonizando o homem e o branco. OM2ºATO: Tempo e Magma e suas ideias de profundezas TS: O tempo é o agente de transformação e revelação desse magma. O magma é a forma mais antiga da terra e ao mesmo tempo, quando um vulcão entra em erupção é a lembrança, a presentificação dessa forma primeira, ou não forma. E como você sabe Toubab é uma cidade vulcânica.
DISCOGRAFIA TEMPO E MAGMA Selo Ajabú 2015 THE INVENTION OF COLOR Selo Ajabú! 2012 MAÇALÊ Independente 2010 PARA LER O Oco-transbordo Tiganá Santana Rubra Cartoneira Editorial 2013 Das línguas africanas ao português brasileiro Yeda Pessoa de Castro Revista Afro-Asia, número 14 (1983) African Cosmology of the Bantu-Kongo: Tying the Spiritual Knot, Principles of life &Living Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau Paperback 2001
O bate papo com Tiganá Santana foi gravado no Acervo África. acervoafrica.org.br LUCIANE RAMOS-SILVA é antropóloga, bailarina e mobilizadora cultural. Doutoranda em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.
Obra do artista visual Rodrigo Bueno, o trabalho inspirado na lenda do surgimento do Ecodidé foi produzido especialmente para a edição zer016 da revista O Menelick 2° Ato. Pintura acrílica sobre jacarandá, prisma de madeira e pena vermelha. 40 x 20 cm. 2015 SAIBA + SOBRE O ARTISTA mataadentro.com.br
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