Índios e Caboclos: Reencontros

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ÍNDIOS E CABOCLOS: REENCONTROS



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ste livro é o registro visual e sensorial da troca de saberes entre duas comunidades rurais distintas – o povo indígena Kapinawá e o Maracatu de Baque Solto Leão Africano –, encontros ocorridos em duas oportunidades no mês de julho de 2013. A primeira, em Buíque, quando os Kapinawá receberam em sua Terra Sagrada os brincantes do Maracatu Leão Africano. A segunda, em Nazaré da Mata, quando os brincantes do Maracatu Rural receberam em seu terreiro o povo Kapinawá. A ideia desse intercâmbio nasceu da observação mais detalhada do Caboclo Arreia-Mar ou Caboclo de Pena, do Maracatu Rural. Quem seria aquela entidade? O que um índio estaria fazendo ali, no meio do maracatu? Em muitos brinquedos, aquele componente é um senhor de idade que impunha grande autoridade e respeito pelo simples fato de estar ali presente, portando uma indumentária indígena de grande beleza e imponência, coroada com um penacho de proporções colossais para o tamanho de uma cabeça humana. E mesmo com uma indumentária recheada, essa figura ainda dança e faz estripulias... Quem já viu um Arreia-Mar dançando maracatu, certamente vai fazer este mesmo questionamento: quem é esse personagem? Pois bem, a partir do Arreia-Mar, uma ideia, um pensamento tornou-se o projeto de intercâmbio envolvendo as duas comunidades que, no nosso entendimento, são historicamente semelhantes. O que as assemelha, é a resistência histórica e cultural diante de um contexto social, político e econômico, que subtraiu desses grupos tradicionais o direito à terra, à vida plena e à alteridade. O que as diferencia, no entanto, são as estratégias de resistência. E nisso residiu nosso interesse em reunir esses grupos para um interconhecimento dessas formas plurais de estar e resistir na história, e para provocar um diálogo intercultural de forma crítica e divergente da perspectiva folclorizada com que esses grupos são vistos e tratados pela sociedade e pelo Poder Público. Brincantes do Maracatu Rural e indígenas tecem os fios de uma história plural, que se desenvolveu no exterior do sistema colonial, enraizado na Zona da Mata e no Sertão pernambucano. Com essa visão, buscamos a parceria com o Maracatu Leão Africano e o povo indígena Kapinawá, e também a colaboração de amigas, amigos, parceiras e parceiros de longa data que têm em comum a vivência com o universo cultural e político dentro dessas comunidades: a consultora em antropologia Caroline Leal, que participa, há mais de 15 anos, da luta com os povos indígenas e comunidades quilombolas em Pernambuco; os fotógrafos Mateus Sá e Guga Soares que há vários anos voltam seus olhares à comunidades indígenas e ao Maracatu Rural, entre outros temas sociais; e à arquiteta e designer Cintia Viana, paulista de nascimento, hoje, cidadã de Tracunhaém. Este livro é parte da história dessas comunidades e é parte da nossa história também. Bruno Lima, Chico Rocha e Lula Marcondes O Norte – Oficina de Criação


O SERTÃO E OS POVOS INDÍGENAS EM PERNAMBUCO “(...) Melhor, se arrepare: pois num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá mandioca-mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhes? A mandioca-doce pode, de repente, virar a zangada”. (Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas. 2001, p.27) O Sertão, tal como toda a extensão do que hoje chamamos Brasil, foi uma região de ocupação de populações indígenas e, assim como ocorreu no restante do país, foi colonizado e exaurido através da violência dos colonizadores. No início, os povos que no Sertão viviam, assim como os que habitavam a região costeira, alimentaram os invasores que chegaram ao continente tal como mandioca-mansa. Em pouco tempo, porém, os indígenas, “com igual formato de ramos e folhas”, passaram a resistir aos colonizadores com o mesmo poder de uma mandioca-brava, que, ao invés de alimentar, mata. No Sertão, a resistência desses povos é tão antiga quanto o Brasil. Portanto, o Sertão sempre foi estratégico à colonização portuguesa e seguiu pelo Império até a República tal como vemos até hoje. Afinal, a Transposição do Rio São Francisco é um projeto de Dom Pedro II. O Sertão foi um dos primeiros espaços sociais a sangrar para que o Capitalismo Colonial pudesse renovar-se em abrangência mundial. Nesse sentido, muito mais do que um espaço geográfico, o Sertão é uma construção social que envolve, em sua teia, as transformações promovidas por mais de cinco séculos de colonização dos incontáveis povos que nele habitam. Talvez, por isso, não falemos de apenas um Sertão. Comumente, as populações que nele vivem são chamadas de sertanejas. Um erro. Como a história de um erro pode deixar lições importantes, aprendemos a enxergar, nesta generalização “sertaneja”, indígenas, quilombolas, também os próprios sertanejos e toda uma gama de histórias, saberes, modos de vida, organização social, religiosidade e a plural natureza de conhecimentos preservada na aliança de resistência entre indígenas, negros e, mais tarde, entre homens e mulheres levados pelas frentes de colonização, ante a homogeneização eurocêntrica. A aliança desses grupos condenados da terra deu-se de forma integral. Se, por um lado, a Confederação Cariri, entre 1683 e 1713, foi um movimento indígena contra a colonização, e que combatia, inclusive, a escravidão de negros, por outro, nos quilombos, os indígenas do Sertão, bem como de outras regiões do Nordeste, encontraram um local onde podiam praticar seus ritos. Prova de tal interação foi a frustração de arqueólogos que, ao escavarem o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, hoje Alagoas, mas que no século 17 foi pertencente à Capitania de Pernambuco, local onde morreu Zumbi e tantos outros, encontraram apenas artefatos indígenas. Tais alianças, além de políticas e religiosas, ocorreram também por intermédio de casamentos e compadrios. Temos, então, um Sertão caleidoscópico, onde cada parte, em movimento, trança a integralidade daquilo que, como diz Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa: “É onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”. Então, se o Sertão passou a ser um espaço de colonização, extermínio e exílio, o pensamento forjado pelos povos resistentes brotou como mandioca-brava “com igual formato de ramos e folhas”,– os “primeiros índios”–, como nas palavras do pajé Pedro Limeira Pankará. Mais de 500 anos depois, a poeira levanta em rituais como 6


o Toré, nas cosmovisões, na incorporação dos Encantos de Luz, no trabalho dos mestres juremeiros, na dança encantada dos Praiá, em Furna, na Pedra d’Água do Rei do Ororubá, na Serra Negra. Não se dizem caboclos, mas indígenas. Houve o tempo em que se autodenominar caboclo era uma forma de fazer parte da estrutura racial colonial, posto que, “se dizer índio” era proibido pela Colônia, não apenas no Sertão, anunciando o fim desses povos por decreto. Desse processo histórico, cuja pluralidade sempre serviu às causas da resistência e da vida, mesmo com os diversos povos exterminados, vários grupos sociais indígenas, sertanejos e quilombolas organizaram-se, e, até hoje, vivem de forma distinta dos padrões capitalistas e eurocêntricos. Com base na interpretação de tudo o que os envolvem, e, muitas vezes, utilizando os mecanismos culturais do dominador, padecendo das mesmas contradições às quais grupos sociais urbanos estão submetidos, os povos indígenas insistem em manter-se na terra de seus antepassados. Derramam seu sangue por ela, como aconteceu a Xicão Xukuru. Reinventam as tradições, silenciadas pela colonização, com base nas histórias dos anciãos e na própria experiência das lutas contemporâneas. Os indígenas afirmam-se, mas vão além: ao auscultar o silêncio das gerações passadas, o grito de dor dos alijados da terra, pisam ligeiro no caminho de volta, cuja poeira reflete as diversas estradas culturais trespassadas. Pouco importa quem profetiza a Terra Sem Males, se um Encanto de Luz, um caboclo incorporado, Padre Cícero, Virgulino Ferreira da Silva ou Antônio Conselheiro; o importante é o anúncio da vida que se restabelece num sertão destinado ao latifúndio e à exploração sem trégua do homem pelo homem. POVOS DE PERNAMBUCO Kapinawá, Xukuru, Fulni-ô, Pankararu, Entre-Serras Pankararu, Pankaiucá, Tuxá, Kambiwá, Pipipã, Atikum, Pankará e Truká. São esses, os 12 povos indígenas de Pernambuco, e estão situados nas macrorregiões do Agreste e do Sertão, com uma população estimada em 49 mil e 500 indígenas (IBGE/2010). São povos que têm interpretado a situação histórica de opressão e violência a qual foram submetidos, e feito insurgir uma sequência de movimentos coletivos de rupturas, ao padrão de poder hegemônico imposto, que atenta contra seus territórios e suas vidas. Os indígenas não têm empreendido lutas para reivindicar somente o reconhecimento à sua diferença, mas, sobretudo, para reivindicar o direito ao território tradicional e à sua autonomia enquanto povos diferenciados da sociedade nacional. Os atos de resistência e insurgência empreendidos pelos povos indígenas, em Pernambuco, são mobilizados, principalmente, através do Toré. Os 12 povos reúnem as forças espirituais que estão à frente da luta, na batida dos pés e no som dos maracás. O Toré, como expressão religiosa, política e espiritual, é, também, a ciência que orienta a luta dos povos indígenas no Estado – em busca de uma vida plena em seus territórios libertos do latifúndio. Olhar para os povos indígenas em Pernambuco exige de nós a disposição e a sensibilidade para enxergarmos esses projetos societários de desobediência à ordem social vigente imposta; para observar como seus rituais os articulam e os mobilizam na luta pela terra e na garantia de direitos; para compreender como as práticas cotidianas vão dando corpo e tessitura à vida pluriétnica localizada em Pernambuco. A insurgência dos indígenas nesse território, sugere uma posição antagônica à lógica eurocêntrica, indicando um objetivo (histórico) de restituir a vida e a liberdade. O Sertão dos Povos Indígenas é um caminho necessário para os povos e as comunidades oprimidas e exploradas em nosso Estado. Um caminho a ser (re)conhecido, (re)visitado, (re)encontrado… 7


O POVO KAPINAWÁ O povo Kapinawá habita a Terra Indígena Kapinawá, situada nos municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, no Sertão do Moxotó. Com uma população aproximada de 3 mil indígenas, distribuise no território em 25 aldeias, organizadas por um corpo de lideranças espirituais e políticas, representadas por pajé, cacique e lideranças de aldeia. No conjunto dessas lideranças, é importante destacar a expressiva força das mulheres Kapinawá, que desde a retomada da luta no século 20, são importantes articuladoras da resistência indígena. Parte do território tradicional desse povo foi homologada no ano de 1998, em 12 mil e 300 hectares. Mas a luta dos Kapinawá para a reconquista do seu território tradicional teve início bem antes, na década de 1960. Ameaçados pelo esbulho violento praticado por fazendeiros da região, os Kapinawá, com a ajuda do povo Kambiwá, desencadearam uma sequência de atos de resistência e insurgência, através da “organização coletiva de uma defesa militar, judicial e espiritual, na aldeia Mina Grande, para resistir às pressões enfrentadas na luta pela terra”, conforme explica o antropólogo Guga Sampaio (Anaí/BA). Não se pode falar dessa luta Kapinawá sem fazer referência aos episódios conhecidos como O Corte do Arame. Entre as décadas de 1960 e 1970, os fazendeiros com seus capangas construíam cercas de arame no território indígena, e os Kapinawá juntavam-se para fazer o corte, fazer a derrubada da cerca, das “malditas cercas”, “que fazem da terra, escrava, e escravos, os homens”, como dito nas palavras de Dom Pedro Casaldáliga. Na luta do Corte do Arame, as mulheres Kapinawá tiveram um papel fundamental, como conta a liderança Socorro Kapinawá, homenageando a anciã D. Maria de João Mariano: “depois da tarefa de todos os dias – arrancar as estacas da cerca do fazendeiro Velho Zuza Tavares – D. Maria dizia: ‘agora vou quebrar as estacas, fazer um feixe de lenha, e vou levar para casa, para cozinhar meu feijão, que é para ter força de estar aqui amanhã’”. A luta Kapinawá registra grandes conquistas, mas ainda é um processo. A regularização do seu território, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), excluiu áreas importantes de moradia, trabalho e espiritualidade. Fora do perímetro homologado em 1998, está um significativo contingente de famílias que habitam a área do Parque Nacional do Catimbau. Esta área é importante para os indígenas, porque nela encontram-se importantes sítios arqueológicos que os Kapinawá compreendem como patrimônios deixados por seus antepassados. Trata-se de uma área repleta de significado histórico, espiritual e identitário para o povo. No ano de 2011, os Kapinawá souberam que um fazendeiro – detentor da posse de 5 mil hectares de terra no Catimbau – ­ estava negociando a propriedade para fins turísticos. Diante dessa ameaça ao patrimônio indígena, os Kapinawá organizaram-se mais uma vez e foram à luta. Desde então, esse povo está em movimento de retomada dessa terra e reivindica providências ao Governo Federal conforme abrir processo administrativo para regularizar o restante do seu território de ocupação tradicional. TORÉ E SAMBA DE COCO: RESISTÊNCIA E ESPIRITUALIDADE O Toré e o Samba de Coco dão forma, movimento e musicalidade ao desejo coletivo de retomada do território tradicional. São duas forças que se aliam, se fundem no Samba-Toré, e resultam numa ação política e espiritual de resistência e desobediência: resistir no território e desobedecer às estruturas de poder regional que, há séculos, os oprimem, os subordinam e os exploram. E os Kapinawá desobedecem, também, através da dança e do canto: 8


A Mina Grande é minha, já tomei, tá tomada. Kapinawá é meu, já tomei, tá tomado. O Julião é meu, já tomei, tá tomado. Ponta da Vargem é minha, já tomei, tá tomada. Os Caldeirã é meu, já tomei, tá tomado. O Maiador é meu, já tomei, tá tomado. Pau Ferro-Grosso é meu, já tomei, tá tomado. A espiritualidade Kapinawá expressa a recusa radical de usurpação de seu território, o que, consequentemente, resultaria na usurpação de sua vida como sujeitos coletivos. Como eles próprios dizem, “o que já se retomou das mãos dos não índios, tá tomado!”. Nessa experiência vivida e ressignificada cotidianamente pelos indígenas, o Samba-Toré é, também, um meio de governar o povo rumo à constituição de um território de vida em oposição à morte, proferida pela exploração humana e ambiental que, há séculos, os fazendeiros e demais forças políticas do Sertão do Moxotó vêm empreendendo. O Samba-Toré é o não calar, o não parar o(s) movimento(s), o não parar o som da luta. É espiritualidade, é política e é um complexo ritual dinâmico, dialógico, e historicamente situado na memória coletiva dos Kapinawá. Desempenha várias funções nos sistemas religioso, curativo, político, social e lúdico nas aldeias. Em estética e conteúdo, simboliza a força do povo Kapinawá, como na palavra deles, a ciência do índio. Os Kapinawá vivenciam o Samba-Toré na Furna Sagrada, localizada na aldeia Mina Grande, e também nos demais terreiros de Toré presentes por todo o território. Ocorre em diversas situações, sejam elas comunitárias, nas curas, nos movimentos políticos do povo e de outros povos, e no encontro com outros povos, grupos e comunidades. Os conteúdos das cantigas e toantes versam sobre o amor, a natureza, a luta, a história, o desafio lúdico entre os puxadores do ritual. Na atualidade, o samba é ritmado por dois elementos percussivos: a batida dos pés dos dançadores, com passos singulares que diferenciam a dança Kapinawá das demais batidas de pé dos sambas de coco praticados no Estado de Pernambuco, e através do som do maracá. Mas trata-se, antes de tudo, de uma experiência cotidiana intensa na vida desse povo, desde as crianças aos anciãos, revelando a simbiótica relação deles com a Natureza Sagrada, pois “os índios Kapinawá pisam na areia macia, onde o pássaro come e canta, descansa no seu soninho” (trecho de um Samba). O Toré está presente no complexo ritual dos povos indígenas no Nordeste e possui formas e significados plurais, pois é parte da história e do modo de vida específico de cada povo indígena, ou seja, possui um significado que é decodificado de forma diferente por cada povo. E é nessa pluralidade que o Toré aglutina, articula e orienta a luta conjunta desses povos durante todo o século 20, até os dias atuais, para a conquista de direitos e de justiça. Nesse sentido, podemos compreender o Samba- Toré como uma expressão e uma representação da resistência Kapinawá, tal como o ritual anuncia: A jurema preta é pau-ferro, É madeira que Deus escolheu. Eu sou índio, eu sou guerreiro, O dono da aldeia sou eu.

Por Caroline Leal 9



CONTEXTO GEOGRÁFICO Distância de Nazaré da Mata à Buíque: 274 km Distância do Recife à Buíque: 281 km Distância do Recife à Nazaré da Mata: 70 km


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