Biriba - Centro de Instrução de Capoeira Angola (CICA)

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Entrevista com Bernardo Alves Texto de Octávio Paz A biriba, por Felipe Pimentel Ensaio de Lula Marcondes Outras Capoeiragens

Jornal Cultural do Centro de Instrução de Capoeira Angola - CICA Ano I . Número Zero - Abril de 2002 - Recife / PE Brasil cica-pe@ig.com.br


Jornal Cultural do Centro de Instrução de Capoeira Angola (CICA) Edição e Pesquisa: Janayna Cavalcante Lucia Duncan Lula Marcondes Distribuição: Centro de Instrução de Capoeira Angola Projeto Gráfico e Apoio Cultural: O Norte - Oficina de Criação Sindicato dos Bancários de Pernambuco - FETEC / NE


LadaInhA E d i t o r i a l

d o

B i r i b a

Biriba é pau, é madeira de lei... E aqui é um sonho materializado: um jornal cultural da Capoeira Angola. Falando para o mundo da capoeira e para o mundo todo. Falando de capoeira, de maracatu, de cultura popular, de lutas e resistências e de artes. Abolindo o gueto e invadindo a praia da mídia alternativa. Num movimento de alma, o CICA entrega ao Recife e ao mundo este jornal com matérias, fotos, com o design gráfico de Lula Marcondes, com textos de angoleiros do grupo como Felipe Pimentel, com notícias que interessam ao mundo da capoeira tanto quanto ao público em geral. É por acreditar que a Capoeira Angola é extremamente importante para a resistência contra todas as formas de opressão, sejam elas políticas, religiosas, morais ou pedagógicas, que os integrantes batalharam para pôr este veículo na roda: era preciso falar para o mundo que formas de convivência pacíficas, sinceras e livres são perfeitamente possíveis. E a Capoeira Angola é uma dessas formas, é um dos principais elementos de resistência e socialização que herdamos de nossos irmãos africanos, que foram arrastados até aqui num dos primeiros holocaustos da era moderna. Apesar de toda dor, nos legaram as lições mais sérias sobre a vida e as formas mais contundentes de resistência: se fazem presentes em nossas comidas, em nossa relação com o divino; com os quilombos nos ensinaram o caminho da existência social livre; com a Capoeira Angola nos legaram armas para não deixar a opressão se instalar em nossos corpos. No fundamento da biriba (madeira que dá origem ao nosso principal instrumento: o berimbau) fundamos também a certeza de que este jornal vem como uma contribuição ao fim dos preconceitos ainda existentes sobre o mundo da capoeira. Desejamos que ele seja um veículo de informação para os capoeiristas sobre tudo que acontece na roda do mundo pois, como disse nosso querido Mestre Pastinha, "capoeira é tudo que a boca come". Iê, viva meu Deus...


Foto: Lula Marcondes

entre


vista Bernardo Alves

Objetivando desenvolver uma consciência crítica a respeito de nossa história e de nossos valores, o Centro de Instrução de Capoeira Angola - CICA e o seu novo veículo de informação, o BIRIBA, inaugura o caderno de entrevistas, sempre trazendo bate-papos a respeito de temas para a nossa reflexão diante de nosso trabalho na capoeira e na vida. Iniciamos esse caderno com uma troca de idéias com Bernardo Alves, autor de um livro sobre a origem do samba. As suas buscas por informações sobre a origem do ritmo acabaram levando a uma grande quantidade de dados sobre a capoeira. Ele foi registrando essas informações e finalizou um livro sobre a capoeira em Pernambuco que, por ironia do destino e de nossas políticas culturais, está sendo lançado por um editor de Nova York. O encontro aconteceu em junho de 2001, numa tarde de sábado, na sede do CICA no Derby, dentro do Grupo de Estudos Culturais do CICA, que são encontros mensais de discussão sobre temas afins à capoeira. A seguir, trechos da conversa. Bom proveito a todos... CICA: O CICA trabalha no intuito de estudar, praticar e divulgar a Capoeira Angola. Dentro das suas pesquisas, você pode nos dizer por que a capoeira não fincou raízes aqui em nosso estado, abrindo um vácuo até pelo menos a década de 80? Bernardo: Na Bahia, a capoeira se desenvolveu por causa da academia, se não houvesse a academia não teria desenvolvido. Aqui teve uma repressão muito grande, como no Rio, uma perseguição muito grande. No meu livro, eu mostro um pouco dos nossos capoeiras num capítulo chamado Esporte como Valentia. Eu listo quem foi pro Pará, foi muita gente pro Pará. Por que não vingou lá? Nascimento Grande era pra ter biografias, era pra ter filmes sobre ele. O cara foi fantástico. Merecem as homenagens Pastinha, Bimba, mas a gente tem que lembrar dos nossos. Capoeiras como Jovino dos Coelhos... Todo esse pessoal tem que ser lembrado, homenageado e resgatado. Por exemplo, Benedito Pretinho, tem uma música sobre ele, um dos mais famosos capoeiras daqui. Era mais ou menos assim: “Benedito pretinho é das ondas do mar lê lê ô É das ondas do mar Ele vai, ele vem, ele torna a voltar lê lê ô... É das ondas do mar”


CICA: A capoeira já era proibida no séc. XIX e começo do séc. XX? Bernardo: Já. Quer dizer, aumentou mais a repressão no governo Vargas. Mandaram muita gente, inclusive do Rio, para Fernando de Noronha. E não era só o homem do povo que lutava capoeira não, tinha delegados que faziam capoeira, exatamente para enfrentar os capoeiras. Havia playboys. Tinha um cara famoso que era da família do ministro Aranha, do governo Vargas, que foi preso. Foi levado para Fernando de Noronha. CICA: O fato das maltas se reunirem para brigar, essa rivalidade que se criou entre elas, nos mostra que não houve uma união em torno de um trabalho, só o choque. Será que isso também determinou o não-desenvolvimento da capoeira em Pernambuco? Bernardo: Eu acredito que não. Aquilo ali era um partidarismo. Então havia aqueles que torciam pelas bandas mais famosas do 4º Batalhão de Infantaria e os caras que torciam pela outra que também era famosa, a do Pedro espanhol, o Espanha. Eram os marginais fazendo a segurança dos oficiais. Eles iam tocando ali e os capoeiras na frente fazendo a segurança. Na verdade eles não estavam interessados em fazer segurança. Eles queriam jogar. Se você tirasse os capoeiras que torciam por essa banda, os outros quebravam a banda no cacete. Mas eu vou chegar lá onde você quer. Então havia essa coisa do partidarismo. Na Bahia foi preservada porque o baiano preservou a capoeira nas academias. Se não tivesse criado as academias, tinha acontecido o mesmo que aconteceu aqui. Os daqui foram expulsos e os de lá ficaram. A grande maioria dos capoeiras da Bahia ficaram lá. Então eles transformaram aquela coisa numa dança, coisa e tal, eles a disfarçaram, houve um disfarce e aqui não teve isso. Eu acredito, que não se passou mais de geração pra geração e acabou. Não houve o repasse e lá na Bahia houve porque existiram as academias. CICA: Aqui os capoeiras dançavam de acordo com a música das orquestras. Se os oficiais tocassem uma música mais rápida havia a possibilidade do confronto ser maior e a violência também... Bernardo: Do mesmo jeito que os capoeiras eram partidários daquela banda e a admiravam, os músicos militares tinham seus ídolos ali. Então o cara estava tocando aqui, mas ele estava olhando o ídolo dele pular lá na frente, jogar a perna. Depois ele ia escrever, porque quem escrevia as músicas para as bandas era exatamente o pessoal que tocava.


Aí melhorava o andamento da música, apressava mais, porque quanto mais apressada a música, mais o cabra pula melhor. E posteriormente, com o frevo, quando os músicos das bandas, querendo ver o circo pegar fogo, ver o pessoal se matar de dar porrada, aumentou o andamento do dobrado de 100 pra 120 até dar no frevo. CICA: Até hoje a gente tem um resquício disso no ruge-ruge atrás da orquestra. Quando toca o frevão, você vê que lá atrás... Bernardo: Mas tem um pessoal na frente que protege a banda. Tem um pessoal que tá ali só pulando, mas fica protegendo a banda. Isso aí eu acho que é uma herança... CICA: Fale-nos um pouco sobre a hipótese de que o passo do frevo contemporâneo nasceu do capoeira que dançava na frente da banda de frevo... Bernardo: Em capoeira sempre teve uma coisa disfarçando a outra. Como na Bahia se disfarçou de espetáculo, de dança. No frevo, na capoeira do início do frevo também era tudo disfarce. Essa questão de um clube que se chamar das pás, das pás de carvão, outros machadeiros, outros vaqueiros, é simplesmente desculpa pra você usar um machado, tá entendendo? É só pra isso. Ou então uma sombrinha que na verdade não era essa sombrinha bonitinha de hoje. Era uma sombrinha que eles cortavam e faziam espingarda com o cano. Aquele negócio de sombrinha era só disfarce. Mesma coisa dos carreadores de boi porque eles usam uma guiada. Os carreadores usam uma guiada. Saía todo mundo com uma guiada. Então tudo isso é disfarce. CICA: Uma das coisas que pode ter influenciado essa não-difusão da capoeira pode ter sido a repressão em cima dos candomblés e afoxés. O que você acha? Bernardo: Nos anos 30 também teve muita repressão aos candomblés. Inclusive um que Gilberto Freire ia muito era o terreiro de Pai Adão, se eu não me engano. Sabe-se que um dia entraram lá, quebraram tudo, roubaram as coisas. A repressão à religiosidade também atingia a capoeira. CICA: Na Bahia houve uma valorização cultural desde a década de 40 e 50. Houve uma maior liberdade de culto nessa época. Isso pode ter influenciado também a organização da capoeira baiana?


Bernardo: Foi um deputado baiano, Jorge Amado, quem apresentou a lei de liberdade de religião. Eu não tenho bem certeza, mas eu creio que foi na mesma época que surgiram as academias. CICA: Fale-nos um pouco dessa pesquisa com 750 capoeiras, da história dessas pessoas, de Nascimento Grande... Bernardo: Olha, toda a referência que a gente pega, com exceção de Nascimento Grande, que foi um grande ídolo da época dele, em todas as classes, tudo que você pega é no noticiário da violência, é na notícia policial. Logo, você já tem uma coisa contra, tá entendendo? Você nunca vai pegar uma notícia favorável a um capoeira, “O bandido fulano de tal se atracou ali...” Naquele tempo, ninguém analisava do ponto de vista de uma arte, por exemplo. Era coisa do facínora fulano. Então você tem que filtrar aquilo ali. Os jornais oficiais têm a visão deles, que é contrária à cultura do povo. Então você pega aquela notícia e vê as entrelinhas, você filtra aquilo ali. Foi o que eu fiz. CICA: Bernardo, você tem conhecimento de como era transmitida a capoeira, como era a forma de ensinamento de um capoeirista para o outro aqui em Pernambuco, aqui no Recife? E onde era o foco dos encontros, onde aconteciam as rodas? onde estavam os bambas daqui do Recife? Bernardo: A gente deduz que um ensinava ao outro, porque tinha que ser. Aonde, meu amigo, eu não sei. Provavelmente, na praia, porque eles não poderiam em outros lugares. Mas que eles ensinavam uns aos outros isso é certeza. O cara não aprende por si próprio. Eles sabiam porque uns ensinavam aos outros, obviamente. CICA: Você conseguiu encontrar alguma fonte, alguma imagem, um desenho ou caricatura que mostrasse a presença do berimbau, dos instrumentos juntos aos capoeiristas? Bernardo: Não. Mas, existe o Rugendas, por exemplo; e outros estrangeiros que vieram para cá e registraram. CICA: Em Salvador tem muitas referências do capoeira fazendo a sua música. Aqui, a escassez de referências a capoeiristas unidos em torno de um grupo e também os poucos registros de suas músicas podem ter influenciado no seu não-desenvolvimento. Quem fazia a música dos capoeiras daqui eram as bandas que ditavam o ritmo para eles. Qual a sua opinião sobre esses fatos?


Bernardo: Sabe o que foi? Descaso. Se você ler Franklin Távora, “O Cabeleira, o Matuto, o Outro”, nós tínhamos aqui em Pernambuco uma arte marcial que acabou. Os nossos capoeiras, muitos deles eram faquistas. É aquela arte de lutar com a faca, com a peixeira pernambucana, a lambedeira. Você joga de uma mão pra outra, roda, passa no chão. Bota ela assim, joga pra baixo, quer dizer, tem toda uma malandragem no jogo da faca. Devia ser hoje uma arte marcial pernambucana. E acabou. Por quê? Descaso. CICA: Você falou da falta de organização. Enquanto isso, na Bahia, a capoeira estava na academia, estava sendo repassada, deixou de ser aquela coisa informal, passou a ter uma didática. Isso deu um novo andamento na difusão da capoeira baiana? Bernardo: Na verdade tem sempre aqueles caras que dizem não, isso é coisa do povo, tem que ser espontânea, não pode ser em academia. Mas se não fossem as academias, também na Bahia teria sumido. CICA: Dentro desses registros que você fez, Bernardo, você encontrou alguma coisa se referindo a capoeira daqui como Capoeira Angola ou Capoeira de Angola? Bernardo: Não. Eu nunca vi nenhuma referência nos jornais do século XIX a adjetivar a capoeira. Capoeira é isso, capoeira é aquilo. Na verdade eles falavam muito nos capoeiras. Agora, quando ele diz: “estava jogando capoeira na frente da banda”, ele estava se referindo à luta. E você encontra “o moleque fulano de tal estava jogando capoeira no centro de Afogados”. Você vê muito “os capoeiras fulano de tal”. Inclusive alguns deles eram guarda-costas de gente rica por aí. CICA: O termo capoeira, nos textos antigos era referente a um capoeira, um cara que era capoeira. A capoeira que a gente vê hoje vem revestida de toda uma organização didática... Bernardo: É verdade. Não havia uma codificação de golpes. Isso não é exatamente legítimo dentro dessa dança. Um ia passando pro outro. Sem essa preocupação de catalogar, de sistematizar, de codificar. Não havia essa preocupação. CICA: Você não encontrou referências a agrupamentos organizados. E quanto aos palcos das lutas?


Bernardo: Era aquela coisa dos bairros. O capoeira da Madalena não entrava nos Coelhos nem danado. Não ia de jeito nenhum. São as tribos. Isso é coisa muito primitiva. CICA: Sem uma sistematização, nem academia, a capoeira aqui era mais malandragem... Então antigamente só eram os brabos e os valentes que a praticavam? Bernardo: Sim, lembrou bem. Tinham essas duas correntes na capoeira de Pernambuco. Que esse aqui era brabo e esse aqui era desordeiro. O brabo era um cara mais ético, tinha mais escrúpulo. E o desordeiro era aquele cara que era bagunceiro mesmo. Chegava e quebrava o cacete. Mas o brabo, não. O brabo era na dele, era muito mais perigoso que o outro. Não era disputa de técnica. Era luta m e s m o p a r a d e r r u b a r. S ó q u e o Nascimento Grande era um cara muito interessante. Ele era engraçado. Quer dizer, ele derrubava o cara e depois botava o cara nas costas e levava ao hospital e dizia “olhe, cuide bem do meu compadre, aqui está o dinheiro, viu?” CICA: Existia alguma ética entre os capoeiristas no combate corpo a corpo? Bernardo: Entre os brabos. CICA: E entre os desordeiros? Bernardo: Com os desordeiros era vale tudo e mais um pouquinho. FIM


Octávio Paz INVENÇÃO, SUBDESENVOLVIMENTO, MODERNIDADE Octávio Paz foi poeta, crítico literário e filósofo. Nasceu no México e recebeu o prêmio Nobel de literatura. Falecido na década de noventa, é considerado um dos mais importantes intelectuais latinoamericanos do século XX. Neste texto, ele discute os conceitos de tradição e modernidade

Para nós o valor de uma obra reside em sua novidade: invenção de formas ou combinação das antigas de uma maneira insólita, descobrimento de mundos desconhecidos ou exploração de zonas ignoradas nos conhecidos. Revelações, surpresas: Dostoievski penetra no subsolo do espírito, Whitman nomeia realidades desdenhadas pela poesia tradicional, Mallarmé submete a linguagem a provas mais rigorosas que as de Gongora e inventa o poema crítico, Joyce faz do idioma uma epopéia e de um acidente lingüístico um herói (Finnegans é a queda e a ressurreição do inglês e de todas as línguas), Roussel converte a charada em poema... Desde o romantismo, a obra de arte haverá de ser única e inimitável. A história da arte e da literatura se desdobra como uma série de movimentos antagônicos: romantismo, realismo, naturalismo, simbolismo. Tradição não é continuidade, mas ruptura, e daí que não seja inexato chamar à tradição moderna: tradição da ruptura. A Revolução Francesa continua sendo nosso modelo: a história é mudança violenta e essa mudança se chama progresso. Não sei se estas idéias são aplicáveis à arte. Podemos pensar que é melhor conduzir um automóvel a montar um cavalo, mas não vejo como se poderia dizer que a poesia egípcia é inferior à de Henri Moore ou que Kafka é superior a Cervantes. Creio na tradição da ruptura e não nego a arte moderna;


afirmo que utilizamos noções duvidosas para compreendê-la e julgá-la. As mudanças artísticas não têm, em si mesmas, nem valor, nem significações; a idéia de mudança é que tem valor e significação. De novo: não por si mesma senão como agente ou inspiradora das criações modernas. A imitação da natureza e dos modelos da antiguidade, a idéia de imitar, mais que o ato mesmo - alimentou os artistas do passado; depois, durante cerca de dois séculos, a modernidade, a idéia de criação original e única nos nutriu. Sem ela não existiriam as obras mais perfeitas e duradouras de nosso tempo. O que distingue a modernidade é a crítica: o novo se opõe ao antigo e essa oposição é a continuidade da tradição. A continuidade se manifestava antes como prolongamento ou persistência de certos traços ou formas arquetípicas nas obras; agora se manifesta como negação ou oposição. Na arte clássica a novidade era uma variação do modelo; no barroco, um exagero; na modernidade, uma ruptura. Nos três casos a tradição vivia como uma relação, polêmica ou não, entre o antigo e o moderno: o diálogo das gerações se rompia. Se a imitação se transforma em simples repetição, o diálogo cessa e a tradição se petrifica; e do mesmo modo, se a modernidade não faz a crítica de si mesma, se não se postula como ruptura sendo apenas um prolongamento do "moderno", a tradição se imobiliza. Isto é o que sucede com grande parte da chamada "vanguarda". A razão é clara: a idéia de modernidade começa a perder vitalidade. Perde, porque já não é mais uma crítica senão uma convenção aceita e codificada. Em lugar de ser uma heresia como no século passado (XIX) e na primeira metade do nosso, se converteu em um artigo de fé que todos partilham. (...)


Nunca se imitou tanto com tal frenesi e descaramento em nome da originalidade, da invenção e da novidade. Para os antigos a imitação não só era um procedimento legítimo mas um dever; contudo, a imitação não impediu o aparecimento de obras novas e realmente originais. O artista vive na contradição: quer imitar e inventa, quer inventar e copia. Se os artistas contemporâneos aspiram a ser originas, únicos e novos deveriam começar por colocar entre parêntesis as idéias de originalidade, personalidade e novidade: são os lugarescomuns de nosso tempo. Alguns críticos mexicanos empregam a palavra "subdesenvolvimento" para descrever a situação das artes e das letras hispanoamericanas: nossa cultura está "subdesenvolvida", a obra de fulano rompe o "subdesenvolvimento da novelística nacional", etc. Creio que com essa palavra aludem a certas correntes que não são de seu gosto (nem do meu): nacionalismo fechado, academicismo, tradicionalismo, etc. No entanto, a palavra "subdesenvolvimento" pertence à economia e é um eufemismo das Nações Unidas para designar as nações atrasadas, sem indústria ou com uma indústria incipiente. A noção de "subdesenvolvimento" é uma excrescência da idéia de progresso econômico e social. Além do que me repugna reduzir a pluralidade de civilizações e o destino mesmo do homem a um só modelo: a sociedade industrial; duvido que a relação entre prosperidade econômica e excelência artística seja de causa e efeito. Não se pode chamar de "subdesenvolvidos" Kavafis, Borges, Unamuno, Reyes, apesar da situação marginal da Grécia, Espanha e América Latina. A pressa por "desenvolver-se", além do mais, me faz pensar numa desenfreada corrida para chegar mais rapidamente que os outros ao inferno. Extraído do livro Corriente Alterna, editado pela Siglo XXI, no México, ano de 1969. Trecho traduzido por Janayna Cavalcante.


A BiribA

Por Felipe Pimentel

"Biriba é pau pra fazer berimbau, biriba é pau"... Provavelmente nossa geração nunca viu uma Biriba, ou Imbiriba no seu estado natural, com raras exceções dos que freqüentam áreas de remanescentes florestais. Mas a Biriba é mais do que um pau pra fazer berimbau. No Recife há um bairro com o nome de Imbiribeira, ou "lugar das Imbiribas". A madeira que os nossos irmãos negros escolheram para confeccionar os berimbaus lá no início da história da capoeira por ser abundante, leve e dura, e que ainda hoje é usada, tem um nome científico estranho e quase impronunciável para nós: Eschweillera ovata. Pertence a família das Lecitidáceas, a mesma da castanha-do-pará e ocorre desde a Amazônia oriental até São Paulo nas matas úmidas. As Biribas velhas e grandes abrigam uma grande quantidade de epífitas que são plantas que crescem sobre outras plantas como Bromélias e Orquídeas. Seus frutos servem de comida para morcegos, cutias, pacas e porcos-do-mato. A Biriba é uma árvore majestosa com até 35m de altura e que produz uma quantidade impressionante de um fruto que parece um "chapéu de doende". Mas hoje em dia, a Biriba está ameaçada, assim como outras muitas espécies vegetais e animais, pelo desmatamento. Quando se vai buscar Biriba para fazer um berimbau, geralmente as pessoas que conhecem o pau, retiram aqueles jovens que estão quase no tamanho de um berimbau, porém essa prática não é muito boa, pois esses indivíduos jovens são aqueles que vão substituir os adultos velhos. O ideal seria que sempre que se fosse buscar biriba na mata, para cada pau tirado plantássemos outras 3 mudas. Capoeiras sustentáveis... Felipe Pimentel é capoeirista e biólogo.


Foto: Lucia Duncan


PoNto PoNto -dEViSta ViSta RESISTÊNCIA AFRO-INDÍGENA EM PERNAMBUCO Por Lula Marcondes

A história da miscigenação brasileira começa a se desenhar alguns anos antes da posse do Brasil. Data-se de 1494 a divisão da América do Sul em duas partes entre Portugal e Espanha. O Tratado de Tordesilhas acordo feito entre os dois países - traçava uma linha divisória, vertical e imaginária separando o continente recém "descoberto" em áreas leste e oeste tomados respectivamente por Portugal e Espanha. De posse das novas terras, era necessário e imprescindível povoar, colonizar e desenvolver, para que em tempo hábil, pudessem fornecer matérias-primas para a metrópole. Foi com esse objetivo que o rei de Portugal D. João III criou em 1532, as Capitanias Hereditárias, ou seja, a divisão da sua parte de terra em 15 lotes divididos geometricamente e doados aos nobres da corte portuguesa, denominados mandatários. Cada mandatário tinha plenos poderes diante de sua Capitania e deveres perante o rei. Das 15 Capitanias Hereditárias constituídas e distribuídas pelo rei, grande parte foi à bancarrota. Apenas São Vicente (atualmente Santos) e Pernambuco prosperaram e puderam desenvolver atividades rentáveis a Portugal. Para obter êxito nas empreitadas em terras ainda desconhecidas, era primordial que os mandatários fizessem alianças com os antigos habitantes, profundos conhecedores dos segredos do lugar. Isso nem sempre aconteceu e a situação do colonizador se complicava com as guerras, levando inevitavelmente à sua desistência e até mesmo sua morte.


O casamento era uma forma de selar essa união. O colonizador casava numa sociedade poligâmica e passava a fortalecer a tribo fornecendo armas enquanto recebia matéria-prima para enviar à metrópole. Eram os primeiros passos do processo de miscigenação no Brasil. Em São Vicente, Martim Afonso de Souza teve êxito nas suas investidas graças a João Ramalho, Capitão-Mor português que vivia com os índios há 20 anos e que o alertou quanto à necessidade das alianças. Obedecendo a este aviso, em pouco tempo o donatário português pode fundar os primeiros engenhos de cana-de-açúcar. Na Capitania de Pernambuco, onde os europeus indianizados eram, em sua maioria, franceses, Duarte Coelho já aportou em guerra e por esse motivo teve dificuldades em desenvolver sua capitania passando a viver algum tempo em fortificações que o protegiam contra ataques e emboscadas por parte dos índios. Mas graças a Vasco Fernandes Lucena, náufrago português casado com uma índia, Duarte Coelho se entende com os Tabajaras e em pouco tempo instala os engenhos. Começa aí uma próspera fase da Capitania de Pernambuco com a expansão dos engenhos de cana-de-açúcar acarretando, conseqüentemente, uma maior necessidade de mão-de-obra boa e barata que não fosse a indígena, considerada "indomável" e "imprestável". Desenvolveu-se então, o infame tráfico negreiro que iria alterar profundamente os rumos da história do Brasil e Pernambuco se transforma no primeiro porto de desembarque dos negros em terras brasileiras.

To d a e s s a r e s i s t ê n c i a t i n h a b a s e s n a s r e l i g i õ e s (Candomblé e Toré). Intimamente ligados a terra, os povos indígenas e negros, em seus rituais religiosos, adoravam a divindade representada pelas forças da natureza. A religião foi, sem dúvida, o motivo pelo qual esses povos mantiveram firme a fé na luta pela liberdade de agir e pensar e também serviu de guia para as expressões culturais que derivaram dessa mistura de raças no processo de formação cultural do povo brasileiro.

Foto: Damon Rich

Com grande demanda na Europa, a produção de cana-de-açúcar no Brasil cresce vertiginosamente: mais engenhos, mais dinheiro, mais invasão de terras indígenas, mais conflitos, maior quantidade de fugas para os quilombos, principalmente no período da invasão holandesa (1630 a 1654) e também maior resistência por parte dos oprimidos e escravizados que não aceitavam tal situação.


Dessa transformação sócio-étnica-geográfica, surgem, com o passar dos anos, novas formas de encarar a vida, a sobrevivência, os desafios da natureza. Surgem diferentes modos de comportamento, hábitos. De uma verdadeira salada de etnias, crenças, costumes, geografias, desenvolvem-se diversas manifestações culturais que com o tempo desaparecem, reaparecem, relocam-se, enfim, se transformam pouco a pouco. Em Pernambuco, local de grandes conflitos devido a grande quantidade de escravos que aportaram, o mapa cultural fruto desse processo histórico foi desenhado de forma diferenciada, variando de acordo com a maior ou menor influência étnica que a originou, localização geográfica, tipo de cultura agrícola local, entre outros, definindo um estado rico em manifestações culturais. No litoral, local de comércio, relações exteriores, porto, etc, desenvolveram-se as manifestações mais passíveis de certo controle e vigilância por parte das classes dominantes, devido ao policiamento mais fortalecido. A partir da zona canavieira, zona dos engenhos, hoje zona-da-mata o quadro muda. Aí aconteceu mais fortemente a fusão das culturas dos povos indígenas e negros, que aos poucos, com a expansão mais a oeste dos engenhos, foram adentrando ao agreste e sertão fugindo da escravidão e formando grupos de quilombos. As manifestações surgidas dessa união têm um caráter de luta contra a dominação branca, assumindo uma feição libertária. Em meio a toda sorte de privações, humilhações e dores, o instinto de defesa do ser humano cria uma reação pela própria necessidade de mudança para uma situação melhor. Disso resulta um movimento que vai de encontro àquele que fere, que machuca. Então dá-se o choque, o conflito. A resistência do oprimido é a defesa pelo direito de viver. É uma reação violenta a uma violência. E muito sangue correu de ambos os lados nos momentos de maior ignorância na estrutura sócio-política do país com a institucionalização da barbárie humana pela legitimação da escravidão. As suas seqüelas ainda são visíveis e dolorosas.


A luta é travada ainda hoje. A opressão existe, mas a resistência continua assumindo uma outra feição. A luta ainda é por dignidade, por igualdade de direitos em meio às dificuldades, frutos da má distribuição de renda no país. A resposta vem pelas mãos dos descendentes dos antigos oprimidos de tempos atrás através da arte das legítimas manifestações culturais remanescentes de um passado conflituoso. E assim a nossa história não-oficial é contada. História que nos remete à escravidão e à luta pela liberdade de agir e pensar. Luta que faz aflorar a arte libertadora, desdobrada no tempo e no espaço através da perseverança de pessoas que conseguiram, mantendo viva e firme a sua crença, ensinar-nos a lição da simplicidade, de sabedoria e de amor à arte. Lições de vida do povo brasileiro.

Lula Marcondes é capoeirista, arquiteto e músico

Foto: Bruno Lima


MuNdo ao

VoLTa

NoTíciAs do

CiCa

O CICA celebrou o 8 de março - Dia Internacional da Mulher - com uma roda comemorativa junto ao Grupo São Bento Pequeno, na sede deste, localizada no Alto do Monte de Olinda. Depois da capoeira, Janayna ressaltou a participação feminina na história da capoeira e nas lutas dos povos em todo o mundo. Foram lembradas as mulheres do Afeganistão, as mulheres zapatistas e as mulheres pobres de todo o mundo, inclusive do Brasil, como as grandes guerreiras na luta pela sobrevivência. No dia 05 de abril o CICA celebrou com uma roda aberta de capoeira o aniversário de nascimento de Vicente ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, guardião da Capoeira Angola. Ele nasceu em Salvador em 1889.

Foto: Lucia Duncan

Nos dias 22 e 23 de Março, o CICA realizou a segunda Oficina de Confecção de Berimbau no núcleo do Derby. Os participantes aprenderam todos os passos desde preparar a biriba e a cabaça, até fazer a baqueta e o a r a m e . To d o s saíram com seus instrumentos finalizados. A próxima oficina será no núcleo de Ouro Preto com data a definir.


Desenho de Nivaldo

“O Grupo Mulher Maravilha e seus participantes agradecem ao CICA pelas oficinas dadas no mês de Dezembro e Janeiro. Hoje, com a continuidade do curso, todos só têm a ganhar com esta parceira, atingindo quase sessenta pessoas." O Grupo Mulher Maravilha é uma ONG que trabalha com jovens e adolescentes no bairro de Nova Descoberta há 27 anos e recentemente em Afogados da Ingazeira. A entidade desenvolve cursos profissionalizantes nas áreas artístico-culturais.

MuNdo

Mensagem do Núcleo de Nova Descoberta:

ao

Os por quês? Segundo Inaldo, "Energia de Angola, porque precisa de energia para responder o coro, tocar, jogar, brincar e soltar a mandinga. Sem energia não toca, nem canta, nem joga" e "Resistência de Angola, porque angoleiros tem resistência nos movimentos e pela resistência dos negros que lutaram para se libertar."

VoLTa

Na procura de nomes para o jornal do CICA, as crianças do núcleo de Ouro Preto, Inaldo, Romário, Natanael, Navison e Marcelo deram as seguintes sugestões: Raízes de Angola, Pastinha - Príncipe Herdeiro de Angola, Aprendizagem de Angola, Pastinha e Rei da Angolinha.


AgENda

DATAS IMPORTANTES:

- 21 de março: dia internacional de luta contra a discriminação racial; - 05 de abril: aniversário de nascimento de Mestre Pastinha, o guardião da Capoeira Angola. Vicente Ferreira Pastinha nasceu em Salvador e estaria completando 113 anos nessa data; - 02 / 03 de maio: Oficina com Mestre Moraes do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - GCAP. Informações com o professor Rogério do Grupo São Bento Pequeno, Alto do Monte - Olinda / PE. Oficina de Criação

- 31 de maio: Dia Internacional Contra o Militarismo e a Favor da Paz; - 05 de junho: dia mundial do meio ambiente;


BAZAR do CICA

Berimbau Completo R$ 25,00

Camiseta Artesanal R$ 12,00

Camiseta Artesanal R$ 12,00

Camiseta Artesanal R$ 12,00

Caxixi R$ 8,00

Camiseta Artesanal R$ 12,00

Contatos: Tel. (81) 3421 8393 . O Norte - Oficina de Criação cica-pe@ig.com.br


Apoio Cultural:

CENTRO DE INSTRUÇÃO DE CAPOEIRA ANGOLA - CICA Rua Manoel Caetano, 42 - Derby - Recife/PE Brasil Tel. (81) 3421 8393 cica-pe@ig.com.br


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