Cartilha do Angoleiro Iniciante Mestre Moraes visita Olinda A Cabaça, por Felipe Pimentel Entrevista com Fred Abreu Retrato de um Angoleiro Outras Capoeiragens
Jornal Cultural do Centro de Instrução de Capoeira Angola - CICA Número 2 - Novembro de 2002 - Recife / PE Brasil cica-pe@ig.com.br
Jornal Cultural do Centro de Instrução de Capoeira Angola (CICA) Pesquisa e Edição: Bacco Andrade Janayna Cavalcante Lucia Duncan Lula Marcondes Distribuição: Centro de Instrução de Capoeira Angola Projeto Gráfico e Apoio Cultural: O Norte - Oficina de Criação Sindicato dos Bancários de Pernambuco - FETEC / NE
LadaInhA
E d i t o r i a l
d o
B i r i b a
... “Vem jogar mais eu, irmão meu”... O segundo Biriba nasce imbuído do sentimento coletivo depois de vivências especiais compartilhadas com capoeiristas de diversos grupos. Falamos do convívio com Mestre Moraes, do GCAP, e com Professor Rogério do Grupo São Bento Pequeno em oficinas ministradas recentemente. A oficina de Mestre Moraes nos fez refletir sobre a importância de uma pedagogia que desenvolva uma consciência crítica a respeito da história, a prática da capoeira, e da nossa contribuição para uma sociedade mais igualitária. Esta foi uma das motivações que nos levou a um diálogo entre aluno e instrutor sobre a pedagogia da Capoeira Angola no nosso grupo. A oficina ministrada pelo professor Rogério e alunos do Grupo São Bento Pequeno foi um reencontro e um testemunho da evolução da Capoeira Angola em Pernambuco, pois demonstrou que é possível o diálogo entre grupos e também o quanto é válido o aprendizado proveniente desse diálogo. Esperamos que o espírito de brodagem demonstrado nesses encontros continue crescendo. Além de serem experiências ricas pela troca de informações e práticas, estes momentos remetem ao forte significado espiritual das festas nas culturas africanas e indígenas. A festa é uma celebração da vida. A arte é o veículo desta celebração. E assim renovamos nossas energias vitais para continuar o aprendizado na capoeira e na vida. Iê, é hora é hora !!! O BIRIBA está aberto a contribuições diversas, textos, desenhos, charges e cartas. Neste número publicamos os poemas de Zé Carlos, instrutor do CICA e do angoleiro França; desenhos de Sil, Murilo, Lucia, Lula e um ensaio do Mestre Moraes.
Cartilha do Angoleiro Iniciante
Seja bem-vindo,angoleiro, à Capoeira Angola! Essa é uma relíquia deixada pelos nossos ancestrais para as gerações vindouras. Ela é descendente do N’Golo ou Dança da Zebra, ritual de alguns grupos étnicos da Angola antiga.
Arma corporal desenvolvida pelos escravos no período colonial brasileiro, a capoeira se desenvolveu, evoluiu e se tornou uma bela expressão artística: de arma mortal à arte.
É a arte do improviso com o corpo, do faz que vai e não e vai, da graça, do riso, da picardia, da malandragem... Enfim, a fina arte de ser mandingueiro.
O angoleiro é músico (toca percussão e berimbau), cantor (canta ladainhas, chulas e corridos), artesão (confecciona instrumentos e artesanato) e ainda joga capoeira.
Tudo isso, graças a mestre Pastinha (1889 - 1981), o guardião da Capoeira Angola, que a organizou e criou uma didática para o seu ensino e aperfeiçoamento. Seu grupo usava fardamento preto e amarelo, cores do seu time Ypiranga Futebol Clube.
Diante da luta ancestral para preservar esta arte libertadora, os angoleiros devem muito respeito à ancestralidade da Capoeira Angola. Este respeito se faz através da disciplina e dedicação a esta arte.
Além disso, a Capoeira Angola é elemento educador, pois melhora o equilíbrio psico-físico do indivíduo, desenvolvendo-o moralmente, conscientizando-o a respeito de si mesmo e do seu papel diante de Deus e da humanidade.
E o ponto máximo dessa arte maior é a Roda de Capoeira Angola, onde a alegria, o sentimento coletivo, o respeito mútuo e a cordialidade devem estar sempre presentes. Novo angoleiro, cuide bem desse tesouro!
F I M
Mestre Moraes Visita No início do mês de maio, o Mestre Moraes, fundador do Grupo Capoeira Angola Pelourinho (Salvador Bahia) e grande referência no resgate da Capoeira Angola, ministrou uma oficina de três dias no Mercado Eufrásio Barbosa, em Olinda. O Grupo São Bento Pequeno de Capoeira Angola, liderado pelo professor Rogério, organizou e divulgou o evento que teve a participação de mais de 50 capoeiristas de diversos grupos da angola e da regional. A visita foi significativa pelo fato do Mestre Moraes ter um papel importante na história da Capoeira Angola em nosso estado. Em 1993, o GCAP iniciou um trabalho de Capoeira Angola em Olinda, criando uma relação com os angoleiros de Pernambuco. Vários dos participantes da oficina, inclusive os professores Rogério e Barata, têm mantido um intercâmbio com o Mestre.
Depois de Mestre Moraes aceitar o convite de fazer uma oficina em Olinda, o Grupo São Bento Pequeno enfrentou o grande desafio de realizar o evento. A princípio, cada aluno contribuiu com 20 reais para cobrir os gastos de passagem e alimentação do Mestre. Através da Secretaria de Cultura de Olinda, o grupo conseguiu o espaço no Eufrásio Barbosa e o fechamento da Rua Prudente de Morais na noite de abertura. O grupo de dança Daruê Malungo e o afoxé Alafim Oyó contribuíram com belas apresentações. A divulgação do evento foi feita pela Rádio Amparo e pelo Jornal do Comércio. Enfim, foi uma mobilização vitoriosa. A oficina consistiu em aulas de música e movimentos, rodas internas e palestras sobre a história e a situação atual da capoeira. “Mestre Moraes é uma pessoa que se preocupa com a Capoeira Angola. Está sempre atento ao jogo, ao canto, à bateria, porque a capoeira envolve tudo isso, não só o corpo, mas também a mente e o espírito”, diz Rogério. Esta vivência foi significativa pela presença de um Mestre com mais de 40 anos de experiência, mas também por ter sido uma oficina aberta a todos os capoeiristas. Contou com a participação de angoleiros de grupos como o Grupo São Bento Pequeno de Capoeira Angola, Centro de Instrução de Capoeira Angola, Grupo Espírito de Angola, Grupo de Capoeira Angola Olinda, e também com grupos de Capoeira Regional como, Meia Lua Inteira, Grupo Quilombo São Salomão, entre outros. No Domingo à tarde houve uma roda para os participantes da oficina com um grande público interessado em ver o reconhecido Mestre jogar. Segundo Rogério, “o nosso objetivo com a vinda do Mestre Moraes foi oferecer mais informação sobre a Capoeira Angola para fortalecer as nossas bases”.
Bate-papo com Mestre Moraes Durante a sua estada em Olinda, Mestre Moraes concedeu uma entrevista ao BIRIBA cujos trechos mais interessantes publicamos a seguir: BIRIBA: Sabemos que um dos principais objetivos do GCAP é a conscientização social, político e cultural dos capoeiristas e a população em geral. De que maneiras o GCAP têm feito isto? Mestre Moraes: Os membros do GCAP não se limitam a jogar capoeira. Somos o único grupo de capoeira na Bahia que em épocas de eleição convida os candidatos ao futuro governo municipal a levar ao nosso conhecimento a sua forma política. Também somos o único grupo de capoeira na Bahia que reconhecidamente faz parte do Movimento Negro. BIRIBA: Como é que um processo de educação e conscientização combate as formas de opressão que nós enfrentamos hoje? Mestre Moraes: Um dos caminhos para lidar com a opressão é estar informado. O sistema sabe disso. A educação no Brasil é ruim por isso. Ela é ruim porque quanto mais o povo é ignorante e desinformado, mais facilmente é manipulado. Sabendo que a educação é o caminho, o GCAP faz o que o governo deveria estar fazendo: procuramos orientar os membros do nosso grupo a estudarem para que seja possível entender e interagir na sociedade. BIRIBA: Você pode nos falar de algum trabalho social que o GCAP desenvolve? Mestre Moraes: Estamos construindo um espaço só para as crianças lá na Ilha de Maré*. São crianças que têm família, mas em estado precário, na linha mais baixa da pobreza, que não têm escola, não têm trabalho, com difíceis condições de sobrevivência. Nós vamos, através da capoeira, orientá-los para vida.
* Pequena ilha na Bahia de Todos os Santos, antigo reduto de capoeiristas.
Mestre Moraes
CICA: Qual é sua posição em relação às letras de músicas de capoeira que apresentam pontos de vistas preconceituosos, quanto ao gênero ou à etnia? Mestre Moraes: Não precisamos continuar a cantar estas músicas. Discordo com letras como, por exemplo, “ô dendê, ô dendê, sou homem, não sou mulher”, ou “trabalha negro, trabalha para não apanhar”. Mas não devemos esquecê-las, até para poder mostrar dentro da capoeira as situações de opressão. Porque amanhã o filho do Marcelo, se nunca ouviu estas músicas, vai acreditar que a capoeira sempre, durante todo tempo, foi um sistema perfeito. Neste último CD do GCAP, houve uma solicitação para que gravássemos aquela música “Riachão tava cantando”, mas dentro do grupo nós não cantamos esta música. Se você me perguntar se já foi cantada, eu diria até que já. Você vai aprendendo e se corrigindo, mas não pode permanecer no erro. Aí é que eu digo que a capoeira, essa “mandinga de negro em ânsia da liberdade” vai se desenvolvendo conforme a mudança da sociedade.
Pedro Moraes Trindade nasceu em Salvador em 1950. Iniciou-se na capoeira aos 8 anos, com Mestre João Grande, na Academia de Mestre Pastinha. Em 1980, no Rio de Janeiro, fundou o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), voltado para a preservação da capoeira e a valorização da sua herança africana. Em 1982, Mestre Moraes v o l t o u p a r a S a l v a d o r, estabelecendo a sede do grupo no Forte de Santo Antônio, no Pelourinho. A partir deste momento, o GCAP começa um importante trabalho no resgate da Capoeira Angola, tr a z e n d o M e s tr e J o ã o Grande de volta ao ensino. Uma das coisas que o GCAP têm destacado é a possibilidade de se d e s e n v o l v e r a conscientização social, política e cultural através da capoeira. Segundo Moraes, “ao invés de enfatizar o enfrentamento físicocorporal, estamos preocupados em educar para a consciência e luta por direitos”. Fonte bibliográfica: Revista Praticando Capoeira, Especial - Grandes Mestres / Grandes Grupos. Edição no 1
A ESTÉTICA NO JOGO DA CAPOEIRA ANGOLA
Falar de estética no jogo de Capoeira Angola é trazer à baila uma discussão sobre o que é belo e o que é feio. Etimologicamente, a palavra estética vem do grego aisthesis que dentre outros significados quer dizer também "percepção totalizante", daí o erro daqueles que querem ver a beleza analisando só o exterior do objeto sabendo-se que a beleza é subjetiva. O cognocentismo cartesiano é de pouca valia na questão do que é belo ou feio, mas a sensibilidade artística não deixará sem resposta o curioso. O verdadeiro "angoleiro" não tem, em nenhum momento, o interesse de tornar "fácil", para os observadores do "jogo", a interpretação dos seus movimentos, mas exigir atenção especial para o universo cênico da Capoeira Angola. O "bailarino" traduz sua emoção sem se preocupar com uma estética pré-estabelecida, mas com movimentos instintivos, através dos quais vai mostrando para a platéia sensível o que tem a exprimir. A expressão da força criadora do capoeirista angoleiro atinge sua plenitude quando acontece a íntima fusão entre a expressão e a forma associadas ao feeling. A forma da Capoeira Angola é própria, o que eu chamaria de forma deformada para uma comparação com a forma objetiva racional. Daí, a Capoeira Angola não ter forma definida dentro do juízo objetivo, mas sim, subjetivo. Só observará estética na Capoeira Angola, aquele que entendê-la como arte de homem, que um dia foi livre e naquele momento seu referencial primeiro foi a natureza, representada por todos os seus elementos, os quais já são estéticos na sua essência. "Ninguém joga do meu jeito", dizia Mestre Pastinha em sua singular sabedoria enquanto angoleiro que foi, o que significa dizer que na Capoeira Angola o belo e o feio se confundem com o objetivo de criar arte sem fragmentação.
Mestre Moraes Presidente do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAP
Acorde, levante! (Bob Marley) Acorde, levante: defenda seus direitos! Acorde, levante: defenda seus direitos! Acorde, levante: não abandone a luta! Pregador, não me diga, Que o céu fica em baixo da terra. Eu sei que você não sabe O que a vida realmente vale. Nem tudo que brilha é ouro; E metade da história nem foi contada: Então agora que você vê a luz, eh! Defenda seus direitos. Vamos! A maioria das pessoas pensa, Que o grande Deus virá dos céus, Mudar tudo E fazer com que todos se sintam bem. Mas se você sabe o valor da vida, Vá Procurá-lo na terra: E agora que você vê a luz, Defenda os seus direitos. Jah! Estamos doentes e cansados do jogo da vida Morrendo e indo ao céu em nome de Jesus, Deus. Sabemos quando entendemos Que Deus todo-poderoso é um homem vivo. Às vezes você pode enganar algumas pessoas, Mas não pode enganar todas as pessoas o tempo todo. Então agora que vemos a luz (o que faremos?), Vamos defender os nossos direitos! (sim, sim, sim!) Acorde, levante! (De manhã! Defenda-se!) Defenda seus direitos! (Defenda os nossos direitos!) Acorde, levante! Não abandone a luta! (Não a abandone, não a abandone!) Acorde, levante! (A vida é um direito seu!) Defenda os seus direitos! Acorde, levante! Não podemos desistir da luta! Defenda seus direitos! Deus, Deus! Acorde, levante! Continue batalhando! Defenda seus direitos! Jah, Jah! Acorde, levante! Não abandone a luta! Get up, Stand up Tradução: Bacco Andrade
A
CabaçA Por Felipe Pimentel
A Cabaça (Lagenaria vulgaris)
Foto: Lucia Duncan
Poucas plantas são tão úteis e versáteis ao homem quanto a cabaça, essa prima do melão, da melancia e do pepino. Essa espécie da família botânica das Cucurbitáceas possui hoje uma distribuição pan-tropical, ou seja, ocorre em toda a faixa tropical do globo terrestre. É difícil saber com certeza se essa área de ocorrência é anterior ou posterior ao aparecimento do homem no planeta. Essa dúvida procede, pois a cabaça é um fruto muito estranho, seu formato e constituição são no mínimo curiosos. Se o caro leitor fosse um homem vivendo a cerca de 400 mil anos atrás na África (berço da humanidade), um lugar seco, com pouca água disponível para o consumo, como procederia para transportar e armazenar água nas suas peregrinações em busca de alimento e terras agricultáveis junto com sua tribo? A cabaça, possivelmente, seria a mais provável solução para os seus problemas.
Na carta que relata a chegada dos portugueses ao Brasil, Pero Vaz de Caminha reporta a existência de “cabaços de água” no nosso continente. Restos de cabaça no formato de utensílios foram encontrados em túmulos egípcios de cerca de 2400 anos de idade. Daí procede a hipótese nada absurda, de que essa planta acompanhou o homem na sua empreitada pré-histórica pelos continentes. Portanto, o homem de origem africana que chegou ao Brasil como escravo para trabalhar nas lavouras de cana provavelmente já conhecia a cabaça. Uma narrativa africana de uma tribo de Abomei compara o universo a uma cabaça: a terra seria plana e flutuaria dentro de uma cabaça cheia de água (daí por que, se furarmos o solo encontraremos água), o horizonte ficaria na união das duas metades do fruto e o sol e as estrelas se moveriam na metade superior da cabaça, a fixação dos limites entre água e céu se daria justamente pela união das duas metades da cabaça. Tamanha convivência do homem com esse fruto, explica o fato de suas utilidades se estenderem desde o armazenamento de água e comida até a confecção de instrumentos musicais (vide o maravilhoso berimbau). O negro africano no Brasil, que vivia literalmente à margem da sociedade colonial canavieira cultivava suas roças na fronteira entre o canavial e a mata, em pequenas clareiras abertas a ferro e fogo na floresta, o aspecto da roça, entre árvores derrubadas e queimadas, recebeu o nome tupi de caapoeira que significa “mata rala” ou “mata fina” e que ainda hoje é usado por biólogos e populações tradicionais para designar uma área de floresta que sofreu corte. Essas caapoeiras eram repletas de mandioca, feijão e cabaças e era lá que os negros, longe dos olhos dos senhores de engenho, realizavam suas festas, danças e representações teatrais, lá também, o negro cortou uma imbiriba da mata, amarrou uma corda fina de fibra de alguma casca de árvore (possivelmente da própria imbiriba), serrou uma cabaça e fabricou o primeiro berimbau que embalava as suas festas panacéicas.
Felipe Pimentel é capoeirista e biólogo.
Bibliografia. Gilberto Freyre. Nordeste. Ed. Massangana. José Mendes Ferrão. A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. Ed. Instituto de Investigação Científica Tropical. Internet: escreva cabaça em algum programa de busca.
Inocência Quando eu era criança Imaginava que o sol mergulhava no mar... Hoje crio meu filho Para o mesmo imaginar!
Zé Carlos Zé Carlos é instrutor do CICA no núcleo de Nova Descoberta.
Esta dedicatória é de autoria de França, angoleiro do Grupo Capoeira Angola Mãe de Olinda e Sil, artista plástica. Juntos são a “Mão-de-Veludo” uma editora de livros artesanais e poesias.
Foto: Lucia Duncan
entrevista
Fred Abreu Pesquisador de Capoeira
Fred Abreu, membro fundador da Academia de João Pequeno e da Fundação Mestre Bimba, é conhecido em Salvador por seu acervo multimídia de mais de mil títulos sobre a capoeira. É autor do livro Bimba é Bamba: A Capoeira no Ringue, publicado em 2000. “Sou o maior papo-furador e conversa fiada sobre a capoeira”, brinca o genial Abreu que trabalha no Instituto Mauá, no Pelourinho, onde recebe visitas de capoeiristas do mundo todo.
Biriba: Fale um pouco sobre o desafio de fazer pesquisa sobre a capoeira no Nordeste do Brasil. Fred: O que tem faltado mais é esforço de pesquisa. Esforço físico. Eu chamo físico porque este demanda tempo, disposição, paciência. Tem fontes para conseguir este material. O Rio de Janeiro está bem organizado nisso. Os historiadores, três deles, o Luiz Sérgio Vieira, o Antônio Liberato e o Carlos Eugênio, também o Jair Moura, descobriram muito material. Estes caras já podem falar em teorias sobre pesquisa de capoeira. A gente aqui não. A gente está dando os primeiros passos, com um grau de dificuldade muito grande. Mas, até antes de falar das dificuldades, a gente precisa pesquisar. A gente precisa desenvolver um esforço físico. Precisa ir atrás e descobrir. Biriba: Quais são as figuras mais importantes na história da Capoeira? Fred: Pastinha e Bimba são as figuras centrais da capoeira, as grandes matrizes. Hoje quando se fala na capoeira se fala da capoeira baiana. Dentro desse padrão, Bimba é autoral. Capoeira Regional é uma coisa autoral dele. E o padrão de Angola que está se universalizando, é o padrão de Pastinha. Mas, independente destes dois, principalmente na capoeira Angola, se tinha outros grandes nomes: Cobrinha Verde, Valdemar, Noronha, Maré, que na verdade, também tiveram uma importância muito grande, embora não tenham tido o mesmo reconhecimento de esses outros dois. Biriba: O quê se pode considerar singular na capoeira de Pernambuco? Fred: Quando eu li sobre a história de Pernambuco, me passou muito a idéia da coisa dos valentões, dos bravos, dos valentes de Recife. É uma coisa que tem uma ligação com os conflitos da capoeira carioca e os conflitos dos valentões baianos, dos desordeiros. Assim como na Bahia se reporta como uma singularidade Baiana, a capoeira ligada ao berimbau, no Recife, o que dá originalidade é essa sincronia da capoeira com o frevo. Pernambuco tem que começar a extrair essa história da capoeira que é uma tradição muito rica. É muito interessante, no ponto de vista da estética, da história. O próprio capoeirista de Pernambuco não precisa ficar só com a referência de capoeira da Bahia.
Biriba: Historicamente, qual foi o papel da mulher na capoeira? Fred: Quando você repara as figuras, as capoeiras da Bahia, geralmente, elas têm um nome masculinizado: Maria Homem, Rosa da Palmerão, Chicão, Maria Mato. Vamos dizer, de uma forma meio vulgar, a mulher que joga é homem, têm disposição de homem. Essa mulher convive no meio deles. Eu não sei se essas mulheres eram capoeiristas, no sentido de jogar. Mas elas absorviam coisas da cultura da capoeira. Elas davam uma rasteira, uma pernada, uma cabeçada e tal. Eu acho que o importante é que elas apontam para uma outra coisa: a mulher sempre teve dentro do ambiente da capoeira. Você quando pega as gravuras antigas, destas manifestações culturais, a mulher está ali dentro, batendo palma, ou geralmente a roda tem como referência uma vendedora de acarajé ou uma vendedora de comida. E a crônica policial baiana está farta de ocorrências onde a mulher está brigando, usando navalha, faca. Então ela tem uma presença. Naquele momento, a roda pode estar sendo definida como um universo masculino, mas em torno dela, desde antigamente, a mulher estava presente. Quando é que começa a mulher na capoeira? Eu acho que é uma coisa mais ampla. Temos mulheres guerreiras, mulheres que estão dentro do mundo de trabalho, em torno desse mundo da desordem. E é nesse mundo que a capoeira está inserida. A partir da década de vinte, trinta, quarenta, cinqüenta, nas fotografias de capoeira, você já não vê a mulher próxima. Nas academias, quando começaram a aparecer, tinham poucas mulheres. A partir da década de setenta, oitenta, a mulher penetrou nesse universo. A capoeira começou a dizer que é para homem, criança e mulher, só não joga quem não quer. Então, ali dentro, ela tem que mostrar isso. Hoje, tem mulher que se sente bem na roda de capoeira. Biriba: A capoeira é uma coisa profana ou sagrada? Fred: A capoeira é uma coisa profana. A própria história dela, as próprias figuras que estão se movimentando na formação desse modelo eram figuras do mundo profano, do mundo da desordem, com muita honra e muita glória. A capoeira está próxima do carnaval, do samba, do frevo, da festa, deste tipo de transação. Evidentemente que em todos esses ambientes a penetração do elemento religioso é forte. Ele também tem uma penetração dentro da capoeira. Mas não é uma coisa que tenha uma capacidade de transformar a capoeira numa coisa sagrada. Eu entendo Pastinha quando ele fala, “ o mestre de capoeira é um zelador, é um sacerdote”. É como se a capoeira, na verdade, no seu processo de preservação, precisa de cuidado deste tipo.
Mas as coisas profanas também precisam de cuidados nestes sentidos. A capoeira passou por um processo moral muito forte e de uma certa higienização. Ela tem uma história dentro do mal, dentro do mundo da maldade, dentro do mundo da malícia, dentro do mundo da falsidade. A gente está vivendo com uma atividade que foi de marginais. Hoje em dia, a capoeira tem um aspecto domesticável. Estou colocando este lado de marginalidade como uma coisa de reflexão. Acho que a capoeira hoje deveria abrir a cabeça da gente para essas outras coisas que os marginais estão produzindo. O funk, o punk, coisas de mendigos, sei lá, de ladrão. É marginal, então não tem cultura. A capoeira desmente isso. Biriba: Você fala que a inteligência corporal predomina sobre a inteligência racional e reflexiva. Explique-nos o que você quer dizer com isso. Fred: O que eu quero dizer no fundo é que o conhecimento vivenciado é maior do que o especulativo. Tem um movimento que tem saído dentro da capoeira que quer puxá-la para uma coisa muito cerebral, muito de compreender determinadas coisas dentro da capoeira. Às vezes, para mim, isso tem empobrecido a interpretação. Eu fico achando, “ meu Deus, é isso o que ele quer dizer com aquilo. Eu achava que fosse uma coisa maior, que não fosse tão fácil de compreender”. Às vezes, por ser segredo, as coisas se comunicam e se fala.
Entrevista feita por Lucia Duncan, capoeirista do CICA e socióloga.
Retrato de um Angoleiro
Com o objetivo de conhecer melhor as histórias e experiências particulares de capoeiristas, o BIRIBA traz o caderno “Retrato de um angoleiro”. Acreditamos que estes retratos, por mostrarem o impacto da capoeira na vida das pessoas, enriquecem nossa reflexão sobre as diversas possibilidades dentro do ensino da capoeira. Há oito meses o artesão Cícero José Araújo, 45 anos, apareceu com um grupo de crianças e adolescentes ao primeiro dia de uma oficina de Capoeira Angola do CICA na ONG Mulher Maravilha em Casa Amarela. “Um amigo me informou que ia ter uma aula de confecção de instrumentos e eu achava que a oficina era só de artesanato. Quando cheguei e vi que era movimento, pensei, como que eu vou enfrentar isso?” Segundo o instrutor da oficina, Zé Carlos, “não é comum uma pessoa mais velha querer entrar na capoeira, porque é difícil”. Mas apesar da dificuldade no início, Cícero se superou e vem treinando até hoje. Além de dizer que a capoeira vem mudando a sua personalidade, ele diz que através dela, está conseguindo um novo espaço no seu trabalho como artesão. Aos vinte e cinco anos, desempregado por seis meses e com a mulher grávida, Cícero começou a luta como autônomo. Com o tempo, ele começou a viajar pelo nordeste vendendo a sua produção. Nas suas viagens, ele conta que via muita capoeira e, apesar de nunca participar, sempre dizia que um dia ia aprender. Há dez anos, Cícero se fixou e passou a vender o seu artesanato no Mercado Público de Nova Descoberta.
Foto: Lucia Duncan
Hoje, ele se dedica mais à produção de instrumentos de capoeira - berimbau, caxixi, baqueta, e reco-reco, fruto do aprendizado da oficina de capoeira em dezembro de 2001. “Caxixi foi o mais difícil de aprender. Exige muita paciência”, diz. “Cícero é uma pessoa muito curiosa”, diz o instrutor Zé Carlos. Prova disso é que depois de ler uma matéria sobre um berimbau de encaixe numa revista de capoeira, ele resolveu fazer um igual. O instrumento é feito de uma biriba cortada em três partes conectadas por um cano de enceradeira que é forte para aguentar a pressão. Como artesão, Cícero passou a ser um difusor dos conhecimentos e da história da capoeira. Muita gente passa perguntando, “o que é isso, para que serve, como é que se faz?”. Ele continua treinando no núcleo do CICA na ONG Grupo Mulher Maravilha em Nova Descoberta. Quando perguntamos como é ser o aluno mais velho da turma, ele responde: “me sinto um paizão para a rapaziada, brinco muito com eles”. Cícero Araújo Artesão Mercado Público de Casa Amarela Rua Vereador Otacílio de Azevedo 22-25 Telefone (81) 3449 9928
MuNdo ao
NOTÍCIAS DO CICA Aniversário do núcleo CICA de Ouro Preto Na primeira semana de agosto, o CICA celebrou o primeiro ano de trabalho em Ouro Preto com uma oficina de três dias com o professor Rogério do Grupo São Bento Pequeno. No Domingo, houve uma grande roda de encerramento que contou com a participação de diversos angoleiros. “Saia do mar, saia do mar marinheiro”... Em Agosto, Leandro, professor do CICA, chegou de viagem após quatro meses de trabalho num navio petroleiro que navegou por todo o litoral brasileiro e que chegou até a Nigéria, na África. Leandro conheceu e fez intercâmbio com capoeiristas no Brasil, tanto da Angola quanto da Regional, e até deu aula para alguns marinheiros no navio. Em Salvador encontrou mestres como Jogo de Dentro e contra-mestres como Valmir e Boca do Rio; em São Luís, contra-mestres Abelha e Marcos Aurélio e em São Paulo, Mestre São Sebastião. Ele agradece a hospitalidade que recebeu e avisa que as portas do CICA estão abertas a todos que passarem por Pernambuco.
VoLTa
“Novas descobertas” O núcleo do CICA em Nova Descoberta continua desenvolvendo ativamente as atividades em torno da Capoeira Angola. A parceria com a ONG Grupo Mulher Maravilha tem proporcionado ao CICA participação em diversos eventos, tais como o ato de lançamento da campanha “Prevenção ao Abuso Sexual e a Violência Doméstica Contra a Criança” e o “Festival da Juventude do Nordeste”. “Meu Berimbau Instrumento Genial” O CICA dispõe de alguns exemplares do livro “Meu Berimbau Instrumento Genial”, obra do angoleiro Déo Lembá, radicado em Salvador. O livro, acompanhado por um CD, pode ser adquirido por R$ 15,00.
O CICA com seu BIRIBA vem propiciando melhores condições para se fazer uma análise crítica viabilizando melhor inferir na construção da humanidade. Eu só tenho a parabenizar a iniciativa deste grupo, iniciativa importante, destas capazes de promover mudanças sociais, capazes de reorientar filosoficamente o pensamento humano, valorizando o saber popular. Valeu galera BIRIBA, sejam muito bem-vindos periodicamente, nos ajudando a construir alternativas para o futuro. Ângelo Bueno* * Ângelo Bueno trabalha no CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e foi o 2o convidado do CICA no Grupo de Estudo Culturais realizado em outubro de 2001 com o tema: “A Questão Indígena em Pernambuco”.
Aqui em Salvador existem muitos grupos, mas não existe uma plataforma de comunicação da Capoeira Angola. O BIRIBA é uma iniciativa abrangente ligando a capoeira a outras áreas do conhecimento, abrindo espaços para reflexão, discussão e crítica dentro e fora do mundo da capoeira. Janina Budi Capoeirista e estudante de etnomusicologia em Salvador, Bahia.
Sabe-se pouco sobre Capoeira, muito menos sobre Capoeira Angola, muito menos ainda sobre Angola. O Biriba é mais uma roda, mais um espaço que se forma, onde podemos tentar aprender uns com os outros sobre nós mesmos para compartilhamos deste aprendizado e participarmos deste jogo de letras, de pernas, de braços, de tórax e cabeça. E se for permitido pelo Gunga que está nas mãos das pessoas que fazem a edição deste jornal cultural do CICA, eu já gostaria de fazer algumas “mandingas” antes de levar a primeira rasteira do jogo. É o seguinte: para o esportista Capoeira pode até ser esporte, para o dançarino Capoeira pode até ser dança, para o músico pode até ser música, para o malandro, malandragem, para o trabalhador, trabalho, e olha: para o vale-tudo pode ser “tudo vale”, e olha mais: para o estudioso é tudo isso e muito mais, mas para mim, capoeira, Capoeira é Capoeira. Um abraço em todos vocês do CICA, parabéns pelo jornal, parabéns pelo Biriba. Joab Jó, do Capoeira Pernambucambo Angola
CaRtaS CaRTaS CaRtaS
Comentando o Biriba
AgENda DATAS IMPORTANTES: - 27 de outubro a 01 de Novembro: Jornada de Resistência Continental contra a ALCA em Quito, Equador. Informações: jubileubrasil@caritasbrasileira.org - 12 de novembro, exibição do filme “Pastinha, uma vida pela Capoeira” seguida de debate no Cineclube Barravento, auditório do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, às 17:30. - 13 de novembro, homenagem internacional ao Mestre Pastinha, falecido em 1981. - 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data em que Zumbi, traido, luta até a morte em Palmares em 1695; Movimentos de todo o país questionam a abolição da escravatura no Brasil e sua data oficial, 13 de maio. - Em dezembro, VIII Semana de Cultura no Nascedouro de Peixinhos, promovida pelo Movimento Boca do Lixo e parceiros. - 10 de dezembro, dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos; aniversário da coquista pernambucana, Dona Selma do Côco (10/12/29); - 26 de dezembro, aniversário de 160 anos do nascimento de Nascimento Grande. Homenagem do CICA ao capoeirista pernambucano, falecido em 1923.
BAZAR do CICA
Camiseta Artesanal R$ 12,00
Berimbau Completo R$ 25,00
Camiseta Artesanal R$ 12,00
Camiseta Artesanal R$ 12,00
Camiseta Artesanal R$ 12,00
Caxixi R$ 8,00
Camiseta Artesanal R$ 12,00
Contatos: Tel. (81) 3421 8393 . O Norte - Oficina de Criação cica-pe@ig.com.br
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