5 minute read

Marie-Anne Van Sluys

Marie-Anne Sluys

A planta de cana, que conhecemos ao longo de nossas rodovias no Bra- sil afora, é produto do cruzamento e posterior seleção entre duas espécies vegetais. A espécie Saccharum offi- cinarum é aquela que contribui com a informação genética/genômica, que resulta na produção de grande quantidade de açúcar. Saccharum spontaneum, a outra espécie paren- tal, contribui com a informação ge- nética/genômica presente em genes que conferem tolerância a estresses diversos e resistência a doenças. A cana, juntamente com trigo, cevada, arroz e outros grãos, acompanhou os seres humanos quando, progressi- vamente, deixaram de ser nômades, nos primórdios da agricultura. Acre- dita-se que a cana tenha tido origem na ilha Papua, Nova Guiné, por volta de 7.000 a.C. Posteriormente, entre 2.000 e 3.000 a.C., foi levada e do- mesticada para a China e a Índia.

As variedades de cana cultivadas no mundo, que são usadas para a produção de açúcar, etanol e desti- lados, são produtos de cruzamentos obtidos há aproximadamente 100 anos. Uma particularidade do plan- tio é que se parte de toletes, caracte- rizando uma propagação vegetativa, e não de sementes, como no caso de milho e soja. A princípio, este mé- todo de propagação implica que boa parte das variedades recentes teriam certa semelhança genética entre si. No entanto, para aumentar a com- plexidade, além da planta de cana ser um híbrido resultante da mistura do genoma de duas espécies, a cana é também um organismo poliplóide. Isto significa que no caso da cana, cada gene apresenta em torno de 10 versões (alelos) diferentes. A título de exemplo, o ser humano apresen- ta duas versões de cada gene, uma que vem do pai e a outra que vem da mãe. 58

Marie-Anne Van Sluys Professora do Instituto de Biociências do Departamento de Botânica da USP Desafios da genômica em cana-de-açúcar

Como nós, seres humanos, o ge- noma híbrido das plantas de cana, co- mo de todas as plantas e seres vivos que habitam a Terra, é constituído da molécula universal da vida, o DNA. A molécula de DNA é constituída por 4 letras, que se alternam em uma seqüência linear, formando, no seu conjunto, o genoma. Se todos os or- ganismos compartilham da molécula de DNA, que armazena a informação genética de cada uma, como os seres humanos podem ser tão diferentes das plantas ou de uma bactéria?

A genômica é a área da ciência responsável por determinar o código genético de uma espécie, ou seja, a seqüência da molécula de DNA. Um projeto genoma pode determinar as partes que representam apenas os ge- nes expressos ou então o genoma por inteiro de um organismo. A diferen- ça entre uma e outra abordagem está em que o primeiro gera uma lista de genes presentes no organismo, e o se- gundo permite identificar as regiões do genoma que determinam quando e onde o gene identificado será expres- so. Com o desenvolvimento da ge- nômica, é possível estimar o número dos genes e predizer que funções es- tes determinam. Parte das diferenças entre os seres vivos reside no número de genes, tipo de função e o modo como essa informação é controlada, harmonizando o crescimento e o de- senvolvimento de um ser vivo.

Uma comparação interessante a ser feita refere-se ao tamanho dos genomas entre nós, seres humanos, plantas de milho, plantas de cana e bactérias, por exemplo, a Xylella fastidiosa, que causa o amarelinho nos pomares de laranja. As diferen- ças genéticas/genômicas entre estes organismos estão, entre outras, con- tidas no tamanho do genoma de ca- da espécie, em número de bases que constituem a molécula de DNA. Por exemplo, o genoma do ser humano é constituído por 3.000 milhões de pares bases (3.000 Mb), enquanto o milho apresenta 2.500 milhões de pa- res de base (2.500 Mb). O arroz tem 430 Mb, enquanto a cana apresenta 10.000 Mb. Existiria uma correlação entre tamanho do genoma e com- plexidade do organismo? A resposta imediata é não, quando somos colo- cados na comparação.

Nesse contexto, de que modo en- tão sequenciar partes do genoma de cana e como esta informação poderia contribuir com o melhoramento gené- tico e com a produção agrícola, assim como auxiliar no ganho de eficiência que possa indiretamente beneficiar o meio ambiente? O Brasil tem seu papel reconhecido como contribuidor para o incremento do conhecimento na área. Em particular, com relação à cana, o programa Sucest (ONSA-Fapesp) per- mitiu a identificação de 43.141 genes potenciais. Desse conjunto de genes, verificou-se que cerca de 80% são com- partilhados com arroz e outros 13,5% apresentam função desconhecida.

Agora, o desafio é entender como a cana, com tantos genes comparti- lhados com arroz, acumula açúcar no colmo, enquanto o arroz produz amido que acumula no grão. O pro- jeto do sequenciamento, que se ini- ciará no próximo semestre, pretende determinar a seqüência da molécula de DNA de 1.000 regiões escolhi- das a dedo, por conterem genes de interesse agronômico ou fundamen- tais para a biologia e adaptação da planta. Isto permitirá que seja esta- belecida uma plataforma de análise, para posterior sequenciamento quase completo de uma variedade modelo e de variedades de interesse nacional ou regional. Será possível, a partir do sequenciamento destas regiões, ampliar a base de conhecimento das regiões regulatórias dos genes que determinam que o açúcar acumulese no colmo ou que as folhas de cana apresentem quantidades variáveis de fibras. No genoma de cana há por- ções de DNA repetidas, sem função aparente. Diversas dessas regiões foram denominadas inicialmente de DNA lixo e atualmente algumas de- las estão sendo reconhecidas como os locais que determinam variações evolutivas importantes entre espé- cies, inclusive por determinarem padrões específicos de expressão, em redes regulatórias. Uma analogia bas- tante simplificada seria o controle do tráfico em um cruzamento, onde cada carro seria um gene, cuja expressão dependeria da abertura do semáforo, para permitir sua passagem. Cada cru- zamento terá um tempo, um fluxo e um conjunto de carros específicos. A combinatória de todos determinaria o perfil do trânsito a cada momento do dia, ao longo do ano. Nossa expecta- tiva é definir as redes regulatórias, o conjunto dos genes e os agentes repe- titivos que determinam o que nós co- nhecemos como cana-de-açúcar.

This article is from: