Livro William Morris Estética

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William Morris Universidade Federal de Minas Gerais Trabalho dos Alunos de EstĂŠtica - 1o PerĂ­odo Design 2010_2 - Prof. Rodrigo Bastos

Illustration: William Morris Wey 1883-4


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O homem que enfrentou as mรกquinas 3


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Universidade Federal de Minas Gerais Trabalho de EstĂŠtica Prof. Rodrigo Bastos

William Morris

Deivid Oliveira JoĂŁo Paulo Pablo T. Quezada Pedro Veloso Pedro Nicola

Belo Horizonte, 29 de setembro de 2010. 5


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Apresentação

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uando nos foi presenteado, através de sorteio, a elaboração do projeto de pesquisa acerca do filósofo, designer e artista William Morris, na disciplina de Estética nos parecia um elemento muito distante e intrigante, pois quem era este autor? Aos poucos, fomos descobrindo que a sua obra, os seus ideais, a sua filosofia e sua vontade de compartilhar toda forma de arte com todos, nos fez, em um singelo momento, perceber o quão importante foi o trabalho desta distinta personalidade. Tínhamos então um grande homem a conhecer e que viria a ser um ícone para o grupo como exemplo a seguir, mas não tanto por sua visão radical contra o que as máquinas representaram no seu tempo, mas sim pelo valor que é atribuído ao design como arte. A força subjetiva que ele aplica à relação da energia espiritual que o artista possui e que transmite às suas criações, e que aí sim, ganham uma nova alma, tendo cada objeto criado para ser compartilhado com o semelhante, digno de uma leitura sem medida de valor tangível. E é essa condição estética que devemos imprimir em nossos processos criativos e em efeito dominó, aos que destas criações lhe ofereçam novos frutos e novos contextos de cultivo ao design. Por estas razões, irão ver como tentamos trazer o espírito de William Morris a esta turma, para que possam absorver quais frutos que este homem plantou no século XIX para servirem de exemplo, como filosofia até os dias atuais. 7


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Quem é Morris?

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artista plástico e literato William Morris notabilizou-se, sobretudo, pela duradoura influência que exerceu no domínio do desenho industrial. Seu empenho em recuperar o espírito artesanal da arte medieval inspirou o movimento Arts and Crafts, que modificou profundamente a estética vitoriana. Morris foi uma figura importante no surgimento do socialismo na Grã-Bretanha, a fundação da Liga Socialista (uma das primeiras organizações socialistas revolucionárias do Reino Unido) em 1884. William Morris nasceu em Walthamstow, Essex, Inglaterra, em 24 de março de 1834. Aos 19 anos ingressou no Exeter College de Oxford, onde se familiarizou com os poetas medievais e as sagas nórdicas. Em 1874 criou a Morris & Company, para a qual executou projetos de móveis, azulejos, tapetes e vitrais. Como medievalista, Morris opunha o artesanato decorativo à técnica das máquinas e tomava como modelo o estilo gótico, rejeitando no entanto a imitação e valorizando a funcionalidade. Foi um dos incuráveis neo-românticos da sua época, liderou um revivalismo na Inglaterra vitoriana e capitalista, baseado nas artes e ofícios da idade medieval. Foi o inspirador-mestre do Arts and Crafts Movement. 9


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Morris e o Socialismo

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passagem do século XVIII para o XIX, encheu o pensamento social de contribuições bastante profícuas, sob a forma de representações literárias e mesmo teóricas. O socialismo utópico, nome este, forjado a partir de uma crítica posterior ao mesmo, derramou pela Europa uma densa camada que longe de cristalizar-se concebeu variações que, com maior ou menor vigor, animaram as manifestações revolucionárias no início do século XIX. Segundo Miguel Abensour, ao período da “aurora socialista” segue-se o neo-utopismo, que trata de confrontar o primeiro pensamento utópico de Owen, Fourier e Saint-Simon; submetendo-o a “conciliação” com o seu tempo. Esta contraposição promove a adequação da utopia a linguagem de seu tempo. É o redimensionamento da vontade utópica ao novo momento histórico, possibilitando a permanência do vigor e potência utópica às novas condições, ou mesmo, formas de organização do socialismo. O novo espírito utópico não é romântico, embora possamos encontrar suas raízes neste movimento. Ele é a leitura do movimento social de forma mais ampla à feita pelos seus predecessores. O novo espírito utópico nasce da necessidade de entendimento dos processos sociais, atrelados a uma perspectiva onde “a ruptura com a crença na autarquia e na supremacia de uma só consciência (...)” evite a cristalização do movimento em ciência única. A inserção do conceito de emancipação do proletariado por ele mesmo e do fim dos modelos produzidos 11


e impostos de cima para baixo, são também características do novo espírito que surge a partir de 1848.. Para Abensour a utopia naquele momento, não serve apenas de exemplo ou demonstração; “(...) tem como tarefa pôr em marcha o desejo das massas, fazer ver; melhor: fazer desejar. A utopia se torna uma maiêutica passional.” A utopia, naquele momento, aponta para a crítica de uma sociedade que é incompetente em vivê-la. A utopia não representa modelo, ela é sinergia, que provoca a reflexão e estimula a “vontade de poder” e os projetos dos homens. O novo espírito utópico não é episteme, é trajetória crítica; ele percebe e trabalha com os desvios e não com o retilíneo. Utilizar o retilíneo, seria negar a seu próprio caráter desviante e reivindicador de uma sociedade radicalmente diferente. O novo espírito utópico representa, também, a resistência à um mundo linear, e ser puramente “racional” seria tornar-se o que de fato se combate. O “Manifesto do Partido Comunista” publicado por Karl Marx e Freidrich Engels pode ser apontado como sintoma de um movimento anti-utópico que, a partir de 1848, passa a definir cada vez mais claramente seus pressupostos teóricos. Condenando e classificando as utopias em suas diversas manifestações a uma etapa separada, e por conseqüência a caracterização desta como anacronismo reacionário. Assim Marx e Engels referem-se aos primeiros utopistas: “A literatura revolucionária, que acompanhou estes primeiros movimentos proletários é, pelo conteúdo, necessariamente reacionária.” Embora, Marx e Engels, atribuíssem, em um primeiro momento, às utopias um caráter revolucionário, logo em seguida, justificam que, estas o foram em um momento pré-maturo ao desenvolvimento das contradições entre as classes, “(...) surgem no primeiro período, ainda não desenvolvido, da luta en12


tre o proletariado e a burguesia (...)” O entendimento do conceito: utopia, para os pais do “socialismo científico”, era por demais datado historicamente e cristalizado em um passado de tênue consciência social da classe operária. Era impossível diante dos cânones do materialismo, esboçados no “Manifesto Comunista”, a percepção da utopia como desdobramento independente da teia científica apriorística, montada pelo pensamento marxista. Mas o novo espírito utópico, que teve em William Morris um de seus mais destacados representantes, nutriu-se também desta racionalidade canônica oitocentista. Na busca de uma atualização, a utopia assimilou, obviamente, o espírito de seu tempo e deste pensamento eclético, longe de empobrecer, encontrou suas virtudes. Como nos assevera Abensour, uma das “figuras” ou representação deste novo espírito utópico é parte integrante do marxismo, “(...) mais precisamente, nas correntes oposicionistas ou marginais do marxismo.” E continua: “Para os partidários do novo espírito utópico, a crítica de Marx, em si mesma problemática, não significa o fim da utopia mas outro tipo de relação que resta definir e elaborar.” E é nesta definição em elaboração, que encontramos a obra de Morris. Não podendo identifica-la totalmente ou mesmo taxonomiza-la para não agirmos como redutores de uma contribuição, em si, complexa para o pensamento do novo espírito utópico. As críticas que chegavam, através dos marxistas, até às fileiras dos utópicos do novo espírito, eram interpretadas como uma estratégia social-democrata, no claro intuito de desqualificar a ação revolucionária do grupo ao qual pertencia Morris. A Liga Socialista, que promovia constantes diálogos entre Morris e os anarquistas, era concretamente um proble13


ma para a direção marxista mais tradicional do movimento operário inglês. E os debates encaminhados após 1883, com a morte de Marx, eram, não raro, protagonizados por elementos ligados a Engels ou signatários, nem sempre rigorosamente féis, às propostas do mesmo. O pensamento utópico sofria sistemáticas críticas e depreciações por parte dos socialistas científicos, principalmente quando estes insistiam em ampliar a lógica mecânica de seus pressupostos revolucionários. A idéia de um movimento não ajustado a princípios rígidos de conduta histórica, remetia a conduta utópica ao campo da inconseqüência ou mesmo da inocência típica dos espíritos pueris. Engels ia mais longe, e chegava mesmo a associar as práticas divergentes às de seus correligionários, como pertencendo à infância das atitudes políticas. “(...) Engels forjou a associação esquerdismo = infantilismo, destinada a fazer sucesso sob a pena de Lenin.” Em cartas datadas de 1886, Engels escreveu a Paul Lafargue e W. Liebknecht, utilizando termos como: “doenças infantis”, ao referir-se a Morris e ao grupo de anarquistas da Liga Socialista. Estas associações são claras e surgiram, com maior incidência, no período posterior a morte de Marx. Mas a idéia de utopia como ingenuidade já existia, em essência, nos escritos da brochura de 1848 e continua no livro de Engels sobre o socialismo científico e o utópico de 1880, que pretendia, em parte, ser uma homenagem a seu companheiro Karl Marx. O livro de Engels reforça a perspectiva do socialismo científico como “expressão teórica do movimento operário”, desqualificando as demais propostas de caráter revolucionário. Nos debates dos anos 80 do século XIX, apareceram muitas variações do pensamento socialista e muitas destas 14


apresentam aspectos, onde a reflexão de David Hume ao afirmar que: “a razão é escrava das paixões”, pode ser verificada. Devemos questionar até que ponto as críticas dos marxistas a Morris, e a Liga Socialista, eram fruto de uma disputa emocional de vaidades. E em que medida as associações são feitas a partir de exercícios teóricos ou mesmo contorcionismos da razão, em nome das necessidades de ocupar espaços no movimento operário europeu. Abensour nos diz: “O novo espírito utópico de William Morris é compreendido assim como uma luta travada em duas frentes ao mesmo tempo. O ponto nodal é a posição escolhida em face dessa situação histórica particular que pode se chamar ‘o após-Marx’.” Morris foi marxista pelo que esta teoria representava de fundamental em proposta teórica. Resgatou também, em seu pensamento, a matriz romântica do iluminismo, mas buscando no cientificismo oitocentista a consistência para sua perspectiva utópica de mundo. Foi, em muitas passagens de sua obra, a negação do marxismo em vigor no seu tempo. Viu no anarquismo, em alguns momentos, a prática democrática necessária e solidarizou-se com ele. Tentou resgatar nas linhas de Marx, algo que o próprio Marx, tentou purgar: “o seu espírito utópico”. Em outras palavras: amou Marx, por seus “defeitos” e não pelas suas qualidades materialistas (ciência). Foi criticados pelos marxistas por ser um ingênuo e infantil socialista, ou seja, foi diminuído pela lógica da cientificidade, justamente pelas suas qualidades. Morris teve que somar forças com os anarquistas, por perceber, provavelmente, nestes o vigor utópico tomado dos marxistas por uma práxis materialista aprisionadora das liberdades do homem. 15


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A filosofia estética do artista

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illiam Morris é a figura crucial que expõem a discussão sobre a natureza e a importância do design e da arquitetura no meio social, ao procurar estabelecer relações interdisciplinares entre a arte e os mais diversos campos de experiência humana. Foi Morris que levou a cabo os ideais de Ruskin, pois este defende a ligação entre a vida, a arte e o trabalho. Compartilhando de algumas idéias de John Ruskin (1819 – 1900), recorria à organização do trabalho medieval como solução para o dilema de sua época, acreditando que a retomada de valores antigos seria ideal para que os novos métodos de produção fossem revistos. Desse modo, ao contrário da descentralização da cadeia que encontramos nos padrões industriais (sendo as competências de projeto e produção dissociadas), Morris enfatizava a participação do artesão durante o processo, valorizando o trabalho manual como essência da qualidade não só dos produtos, como também da própria pessoa que os produz. Segundo Nikolas Deusner, Morris“tomou como ponto de partida a situação social da arte que via à sua volta. Morris proclama: ‘Não quero arte só para alguns’, e formula aquela pergunta fundamental que havia de decidir o destino da arte do nosso século: ‘Que interesse pode ter a arte se não puder ser acessível a todos?’ Segundo o próprio William Morris, o conceito das criações valiosas faz parte da imaginação do artista. 17


Com uma profunda influência nas artes visuais e no desenho industrial dos fins do século XIX. e sobre o desenho tipográfico, Morris propagava: “Letters should be designed by artists, not by engineers”.( as cartas devem ser dadas por artistas e não por engenheiros). Em seu paradigma saudosista da Idade Média, Morris quis reafirmar a primazia da qualidade do trabalho manual sobre a máquina industrial da era do Imperialismo. Associou a produção mecânica ao sistema capitalista e, por conseguinte, pensava que a revolução socialista deteria a mecanização do trabalho e substituiria os grandes aglomerados urbanos por pequenas comunidades, onde os objetos de utilidade seriam produzidos por processos artesanais. Condenou o sistema econômico de seu tempo e refugiou-se na contemplação da Idade Média, quando “cada homem que fabricava um objeto fazia ao mesmo tempo uma obra de arte e um instrumento útil.” Liderou o movimento das pequenas imprensas privadas no Reino Unido, que integrou famosas oficinas como Vale, Eragny, Essex House e Dove. A sua produção librária-tipográfica centrou-se na famosa Kelmscott Press, fundada em 1891. “Devo pedir-lhe para estender a palavra arte para além das matérias que são conscientemente obras de arte, para ter não só na pintura e na escultura e arquitetura, mas as formas e cores de todos os bens de uso doméstico, ou melhor, até mesmo o arranjo dos campos para lavoura e pastagem, a gestão das cidades e das nossas estradas de todos os tipos, numa palavra, para extendé-la para o aspecto de todas as aparências da nossa vida.” (Morris, “Arte de plutocracia” 165) 18


A arte nas máquinas, por William Morris

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Quero falar daquele lado da arte que deveria ser sentido e executado pelo simples operário em seu trabalho cotidiano, e que com razão se chama arte popular. Esta arte não existe mais, destruída pelo comercialismo. Mas ela viveu e floreceu desde o início da luta entre o homem e a natureza até o surgimento do sistema capitalista. Enquanto durou, tudo que o homem fazia era ornamentado pelo homem, assim como tudo o que o faz a natureza é ornamentada pela natureza.

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A importância da Morris & Co., e a Kelmscott Press

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orris começou a trabalhar em 1856 no estúdio de arquitectura de G.E. Street; nos anos seguintes trabalhou como pintor profissional (1857-62). Com a experiência adquirida em arte e arquitectura, fundou em 1861 a empresa Morris, Marshall, Faulkner & Co., vocacionada à arquitectura e ao desenho industrial (hoje: product design). Em 1875, a companhia passou a chamar-se Morris & Co., sendo Morris o único propietário William Morris começa a desenvolver uma prolífica atividade como artista-artesão, desenhador, impressor, poeta, escritor, ativista político, sempre tentando preservar as artes e ofícios medievais, permanecendo em guerra com a produção em massa, típica do modo de produção industrial e capitalista. Na sua famosa Kelmscott Press, fundada em 1891, produziu trabalhos como, por exemplo, The Story of Sigurd the Volsung, The fall of the Nibelungs. Foram editados autores clássicos, sendo mais conhecida a obra-prima The Works of Geoffrey Chaucer, um in-folio de 556 páginas que foi ilustrado com xilogravuras segundo desenhos do artista Burne-Jones e impressa na Kelmscott Press em 1896, ano da morte de W.M. Para desenhar e imprimir estas obras, Morris estudou em detalhe, entre outros, as iniciais e os bordes de Peter Löslein e Bernhard Maler, artistas que trabalharam para o prototipógrafo alemão Erhard Ratdolt (1474-84).

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Traduziu clássicos como a Eneida (1857) e a Odisséia (1887) e produziu versões livres de antigas lendas medievais. Sua obra principal é The Earthly Paradise (1868-1870; O paraíso terrestre), coletânea de poemas narrativos ao estilo de Chaucer. Em 1891, o artista fundou a editora de livros ilustrados artesanais Kelmscott Press, em que renovou as artes da paginação, encadernação, ilustração e desenho de tipos. Morris morreu em Hammersmith, perto de Londres, em 3 de outubro de 1896.

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Nota de William Morris sobre seus objetivos ao fundar a Kelmscott Press Tradução de Dorothée de Bruchard

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OMECEI A IMPRIMIR livros com a esperança de produzir alguns com clara pretensão à beleza, ao mesmo tempo que fáceis de ler, sem ofuscar a vista nem perturbar a mente do leitor pela excentricidade da forma das letras. Sempre fui um grande admirador da caligrafia da Idade Média, e das primeiras impressões. Quanto aos livros do século XV, observei que sempre eram belos pela força da simples tipografia, mesmo sem o acréscimo dos ornamentos que abundam em muitos deles. E constituía a essência do meu empreendimento produzir livros para os quais fosse um prazer olhar — enquanto peças de impressão e de organização dos tipos. Olhando para a minha aventura por este ângulo, tinha então de considerar os seguintes elementos: papel, o tipo, o espaço entre letras, palavras e linhas; e, finalmente, a posição da matéria impressa na página. Era natural que eu considerasse necessário o papel ser artesanal, tanto em razão da durabilidade como da aparência. Seria uma economia falsa limitar a qualidade do papel segundo o seu preço: só me restava, portanto, considerar que tipo de papel artesanal. Cheguei a duas conclusões: a primeira era que o papel deveria ser de puro linho (muitos papéis artesanais são de algodão hoje em dia), e bem “duro”, ou seja, bem encorpado; a segunda era que, embora devesse ser “áspero” e não “liso” (...), as linhas resultantes dos fios da forma não deveriam ser muito marcadas, de modo a oferecer uma aparência riscada. 23

(última publicação da Kelmscott Press, 1898)


Descobri que eu me afinava com a prática dos fabricantes de papel do século XV; tomei então como modelo um papel bolonhês de cerca de 1473. (...) Mais por instinto que por reflexão consciente, adquiri tipos romanos. Queria uma letra pura na forma; sóbria, sem excrescências supérfluas; sólida, sem o alargamento e afinamento da linha que é a falha principal do tipo moderno comum e o torna difícil de ler; e não condensada lateralmente, como todo tipo recente vem se transformando devido a exigências comerciais. Havia apenas uma fonte de onde tirar exemplos deste perfeito tipo romano, a saber, as obras dos grandes impressores venezianos do século XV, dos quais Nicholas Jenson produziu os mais completos e romanos caracteres entre 1470 e 1476. Estudei este tipo com muito cuidado, mandando fotografá-lo em ampliação, e desenhando-o muitas e muitas vezes antes de começar a desenhar minhas próprias letras; assim, embora creia ter dominado sua essência, não o copiei servilmente. Em verdade, o meu tipo romano, sobretudo a caixa-baixa, tende mais para o gótico do que o de Jenson. Passado certo tempo, senti que precisava de um gótico, além do romano; e a 24


tarefa que aí me impus foi a de redimir o caractere gótico da ilegibilidade de que é geralmente acusado. E senti que tal acusação não se aplicava aos tipos das duas primeiras décadas da imprensa: Schoeffer, em Mainz; Mentelin, em Estrasburgo, e Günter Zainer em Augsburg, evitaram os remates espigados e a compressão indevida que deixavam os tipos mais recentes vulneráveis à mencionada acusação. Mas os protipógrafos (seguindo a prática de seus predecessores, os calígrafos), eram pródigos em abreviações e faziam uso excessivo das ligaduras que são, por sinal, bastante úteis ao compositor. De modo que evitei completamente as abreviações, com exceção do &, e conservei muito poucas ligaduras, em verdade nenhuma além das absolutamente necessárias. Mantendo firmemente em vista o meu objectivo, desenhei uma letra gótica que, creio, pode ser tão legível como um romano e, para ser sincero, prefiro-a ao romano. Este tipo é do tamanho chamado Great Primer (o tipo romano está em “English size”); mais tarde, porém, fui levado pelas exigências do Chaucer (um livro composta a duas colunas) a criar um gótico menor, de corpo Paica. Os punções para todos estes tipos, devo mencioná-lo, foram gravados para mim com grande inteligência e habilidade por Edward P. Prince, e reproduzem bem fielmente meus desenhos. Quanto ao espacejamento: primeiro, a letra deveria ser tão adjacente quanto possível, de modo a evitar brancos indesejáveis entre as letras. Por outro lado, os espaços laterais entre as palavras não deveriam • ser maiores que o necessário para se distinguirem claramente as divisões em palavras, • deveriam ser o mais parelhos possível. 25


Os tipógrafos modernos, mesmo os melhores, atentam muito pouco para esses dois aspectos essenciais da impressão correta, e os piores dão rédea solta ao espacejamento desregrado, produzindo assim aqueles “rios” medonhos de linhas brancas escorrendo pela página, que tanto prejudicam a impressão decente. Terceiro, os brancos entre as linhas não deveriam ser excessivos; a moderna prática do entrelinhado deveria ser usada o mínimo possível, e jamais sem uma razão precisa como, por exemplo, distinguir uma peça especial de impressão. O único entrelinhado que me tenho permitido é, em alguns casos, uma “fina” entrelinha entre as linhas do meu tipo gótico paica (2): no The Chaucer e nos livros de duas colunas, usei uma entrelinha mínima, e nem isso nos livros in-octavo. Por último, mas essencial, vem a posição da matéria impressa na página. Esta deveria sempre deixar a margem interna mais estreita, a superior um tanto mais larga, a externa ainda mais larga, e a inferior mais larga que todas. Esta regra nunca é desdenhada nos livros medievais, manuscritos ou impressos. Impressores modernos transgridem-na sistematicamente, contradizendo assim o facto de que a unidade visual de um livro não é uma página, mas um par de páginas (a página dupla). Um amigo meu, bibliotecário de uma das mais importantes bibliotecas privadas, contou-me que depois de um exame cuidadoso chegou à conclusão que a regra medieval resultava numa diferença de 20% de margem para margem. Ora, essas questões de espaço e disposição são da maior importância na produção de belos livros; se corretamente observadas, farão com que um livro impresso em tipo bastante comum seja no mínimo decente e agradável à vista. Desconsiderá-las estragará o efeito do tipo mais bem desenhado. 26


Era natural que eu, sendo decorador por profissão, procurasse ornamentar adequadamente meus livros: sobre esta questão, direi apenas que sempre tentei manter em mente a necessidade de fazer de minha decoração parte da página de tipos. Acrescentaria que, ao desenhar as magníficas e inimitáveis gravuras que ornaram vários dos meus livros, e sobretudo vão adornar o Chaucer já em fase de finalização, meu amigo Sir Edward Burne-Jones nunca perdeu de vista este ponto importante, de modo que seu trabalho não só apresenta uma série de belíssimas e criativas gravuras, como constitui a mais harmoniosa decoração possível para o livro impresso. Kelmscott House, Upper Mall, Hammersmith. 11 de Novembro de 1895

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A influência de Ruskin

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ohn Ruskin(1819-1900) é um literato, cujo interesse estende-se teoricamente à realidade inteira. Dedicou-se a Economia, Política, Arte, Geografia, Botânica e outros assuntos. Para Ruskin, a arte é um fenômeno muito mais complexo do que parece a seus contemporâneos. Segundo Ruskin, “a obra de arte é uma entidade abstrata isolada de um processo contínuo, o qual inclui as circunstâncias econômicas e sociais. O crítico de arte diz, que a obra de arte assemelha-se a um iceberg, onde a parte flutuante, a única visível, move-se segundo leis que são incompreensíveis se não se levar em conta a parte imersa, não visível.” Ruskin é um teorico revolucionário de sua época, uma vez que, ao observar a desintegração da cultura artística de sua época nota que as causas devem ser procuradas nas condições econômicas e sociais em que a arte é exercida, não no campo da arte como os outros pensadores diziam. William Morris segue fielmente as teorias de Ruskin e o que é singular em Morris é que ele avança sobre a teoria e chega até a prática. Segundo Benevolo, Morris “traz para essa linha de pensamento, uma série de determinações concretas, extraídas de sua experiência no trabalho, e entrega o movimento moderno não apenas uma bagagem de idéias, mas uma experiência ativa de importância infinitamente maior.”. Em 1856, Morris entra para o estúdio gótico do arquiteto Street, e no ano seguinte têm contado com os pré-Rafaelistas, o que o instiga a pintar e a escrever poesias. Influenciado por 29


este grupo artístico fundado na Inglaterra , Morris identifica-se com seus ideais tendo por base uma postura medieval, com intuito de devolver a arte a sua pureza e honestidade que consideravam existir na arte medieval gótica. Em 1857, Morris questiona sobre a compatibilidade do lugar em que o artista habita com a sua personalidade, segundo Nikolar Deusner, Morris “foi assaltado pela convicção de que para alguém se dedicar a pintar quadros sublimes precisa esse alguém de habitar num ambiente compatível com o seu temperamento, de viver numa casa decente, com cadeiras e mesas decentes, e não tinha meios para comprar as coisas que o poderiam satisfazer. Foi esta situação que despertou subitamente o seu gênio pessoal; se não podemos comprar uma sólida e honesta mobília, façamos-la nós próprios.”

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Arts & Crafts

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partir de 1880, surgiram na Grã-Bretanha diversas organizações e oficinas dedicadas a produzir artefactos em escala artesanal ou semi-artesanal, dentro do que se entende por movimento das Artes e Ofícios. O movimento Arts and Crafts defendia o artesanato como alternativa à mecanização e à produção em massa industrial. Queria acabar com a distinção entre artesão e artista. O movimento de reforma Arts and Crafts — uma busca pelo «autêntico» e significativo — deve-se em grande parte à ação do artista, poeta, tipógrafo e agitador social William Morris. Quando a produção industrial se tornava já um fato consumado, ele ficou aflito pelo mau gosto, a desumanização progressiva das condições de trabalho e a poluição ambiental. Este repúdio levou-o a defender a promoção qualitativa da produção artesanal contra a produção industrial. Morris e o movimento Arts and Crafts - não se distraía com meras ornamentações e chamava a atenção para os problemas estruturais. Tentou fazer frente aos avanços da indústria e pretendia imprimir em mobiliários, texteis e objectos o traço do artesão-artista, que mais tarde seria conhecido como designer. Arts and Crafts foi influenciado pelas idéias do romântico John Ruskin e liderado pelo pseudo-socialista e medievalista William Morris. Durou relativamente pouco tempo, mas influenciou o movimento francês da Art Nouveau e é considerado por di31


versos historiadores como uma das raízes do modernismo no design gráfico, desenho industrial e arquitetura. De acordo com Tomás Maldonado, o Arts & Crafts foi uma importante influência para o surgimento posterior da Bauhaus, que assim como os ingleses do século XIX, também acreditavam que o ensino e a produção do design deveria ser estruturado em pequenas comunidades de artesãos-artistas, sob a orientação de um ou mais mestres. Guildas e associações Diversas sociedades e associações são criadas com base na intervenção direta de Morris. Entre as mais famosas estão • a Century Guild, • a Art Worker’s Guild, Guilda dos Trabalhadores de Arte (1884) • a Guild and School of Handicraft e • a Arts and Crafts Exhibition Society, exposição quadrienal de móveis, tapeçaria, estofados e mobiliário, realizada em Londres. Todas estas sociedades e associações foram inspiradas pelo exemplo de William Morris e dirigidas por designers como A.H. Mackmurdo (1851 - 1942), W.R. Lethaby, C.R. Ashbee e Walter Crane (1845 - 1915). Em 1861, é fundada a Morris, Marshall, Faulkner & Co., especializada em mobiliário e decoração em geral: papel de parede, vidros, pratas, tapeçarias etc. O sucesso da empresa pode ser aferido pela sua ampla produção. Dissolvida precocemente, em 1874, deixa sua marca, seja nos padrões de Morris para papéis de parede (Pimpernel, 1876) e naqueles idealizados por A.H. Mackmurdo - The Cromer Bird, 1884; seja nos trabalhos gráficos de Walter Crane, 32


pioneiro da edição popular. Crane e Burne-Jones ilustram diversos livros para a Kelmscott Press, editora fundada em 1890 por Morris. Em 1871, a Guilda de S. Jorge, planeada por Morris, representa outra tentativa de conjugar o ensino de arte e uma nova forma de organização do trabalho. Tal experiência frutifica outras, como a Art Worker’s Guild e a Guild and School of Handicraft (1888).

Arts & Crafts - Illustração: William Morris Windrush 1883-4

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O que Morris deixa para o mundo

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personalidade e o percurso fértil de William Morris proporcionaram a publicação de diversos estudos críticos e biográficos, como o da autoria de J. W. Mackail (1889), que Morris ainda tivera a oportunidade de ler, o de E. P. Thompson (1955), o de Fiona MacCarthy (1994) e, o mais recente, de Stephan Coote (1995). Todos têm em comum o fato de realçarem o alcance da atividade de Morris como designer e artífice criativo e empreendedor. Contudo, ondeiam de forma diferente o peso dessa atividade: enquanto que Mackail, inda no século XIX, minimizou o impacto do desempenho político de Morris – um pormenor referido por Northrop Frye (322) –, os trabalhos mais recentes destacam as convicções políticas de Morris, referindo-as mesmo como indissociáveis da sua produção quer como designer – faceta aprofundada por Linda Parry em William Morris Textiles (1983) –, quer como ensaísta e romancista. William Morris é assim visto por vários críticos como o pioneiro não só do design moderno, sugerido por Pevsner no subtítulo de Pioneers of Modern Design, mas também da denominada arquitetura moderna. Leonardo Benévolo aponta a abertura da firma Morris, Faulkner, Marshall & Co., em 1862, como um dos marcos definidores da emergência da arquitetura moderna no prefácio à Historia de la Arquitetura Moderna (Benévolo, Advertência 8-9).De modo semelhante, o título da obra que Manieri Elia editou originalmente em 1976, e reeditada pela Editorial Gus35


tavo Gili em 2001, associa inequivocamente o nome de Morris a esse momento, ideia que é aliás reforçada pelo autor quando se refere à definição de arquitetura apresentada por Morris, em 1881, como “uma espécie de manifesto do Movimento Moderno” (Elia 81). Ainda nesta perspectiva, Solà-Morales aponta-o também como o “pensador e político” que está na base do desenvolvimento da arquitetura do século XX (Solà-Morales 18). Mas se Morris é visto como um dos propulsores do que viria a ser o Movimento Moderno. A abrangência semântica que Morris atribuiu à palavra “arquitetura” ao englobar no seu âmbito não só a paisagem quando resultante da intervenção humana, as cidades e os seus edifícios, mas também tudo o que os edifícios e a cidade pudessem conter (mobiliário, máquinas, ferramentas, informação), mantém-se atual quer a nível teórico, quer a nível prático, respeitando a própria origem etimológica do vocábulo. A palavra “arquitetura” resulta da conjugação de dois termos gregos: arjé, que significa o começo, o princípio, o primeiro, e tekton que significa construir, edificar. Neste sentido, a arquitetura será a génese da construção e aquele que a exerce, o arquiteto, será o principal responsável pelo desenvolvimento dessa construção, sendo por um lado quem define as bases da tarefa e, por outro, aquele que lidera essa atividade. Morris acreditava que a arte não dizia somente respeito ao artífice ou a qualquer outro elemento envolvido na sua criação, mas a todos aqueles que usufruíssem do produto final, tal como Gropius (Bauhaus) viria a defender. A arte não seria, portanto, produtora de luxo ou de futilidade, mas um bem essencial na vida de qualquer indivíduo e, por isso, teria de ser parte integrante de qualquer ação humana. A partir desta visão, William Morris alargou coerente36


mente a ideia de arte a todas as vertentes da vida e a todos os meios, uma atitude que no Movimento Moderno se manifestaria na defesa funcionalista do protagonismo do homem e na insistência no valor social da arquitetura e do urbanismo, influenciando os diversos sectores da produção, desde o objeto utilitário à planificação urbana . Esse foi também o enfoque da Bauhaus – construir uma sociedade nova, formada pelo homem e para o homem, marcar uma diferença pela transformação das relações e concepções estabelecidas.

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Principais obras literárias

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screveu e publicou livros de poesia, ficção e traduções de textos antigos e medievais, ao longo de sua vida. É considerado um dos precursores da Literatura Fantasiosa Moderna, pois muitas de suas obras apresentam características deste estilo literário, Um exemplo disso é o livro The House of the Wolfings, de 1889, onde o autor une um mundo imaginário com elementos sobrenaturais. Influenciado pela literatura medieval, Morris escreveu vários outros contos que se passavam na época, como o A Dream of John Ball, que descreve sobre a revolta dos camponeses de 1381, na Inglaterra. Morris descreve a Idade Média com uma visão positiva onde os camponeses eram felizes e prósperos, distantes da exploração trabalhista. Alguns anos antes, em 1888, publica a novela “O sonho de John Ball” onde mistura utopia, sonho e uma viagem na história, e por onde segue um certo pessimismo sobre a liberdade, a igualdade dos trabalhadores e a justiça social . O narrador da novela é transportada para uma pequena aldeia em plena Idade Média inglesa, que luta pelos seus direitos e liberdade contra os seus senhores. A revolta, popular, é liderada por um clérigo sábio e atrevido, John Ball, e com quem o narrador estabelece uma conversa noturna, sob o teto de uma igreja medieval, acerca da liberdade humana, a igualdade dos trabalhadores e a justiça social. 39


Aquela revolta fracassa, mas da conversa se deduz que outras surgirão face a um sistema social injusto ( o capitalismo ) que não deixará de manter e perpetuar a exploração do homem pelo homem, do humilde pelo poderoso, dos que nada têm pelos ancestrais. Uma visão pessimista do futuro mas que não deixa aos homens outra solução que não seja irem à luta no decorrer dos séculos em que reinar a injustiça. Agora e sempre o homem deve procurar uma solução. John Ball deve assim marchar sobre Londres, não obstante existindo a probabilidade de acabar na forca por desobediência ao rei. A novela acaba com uma lenda de rei húngaro Mattias Corvinas que deixa pairar uma vaga desesperança, servindo também para Morris retratar os usos e costumes, o ambiente social da época medível, de que o autor se sente próximo, em contraste com a pérfida evolução a que assiste por efeito da industrialização das cidades e do campo da sua região. Outra importante obra do autor é o livro News from Nowhere, que traz um paradigma de uma sociedade futurista no ano de 2102, onde o mundo anda em perfeita sintonia e harmonia com os seres humanos e estes entre si. Na sociedade o que importa não é mais o dinheiro e sim a arte e a felicidade, a natureza está preservada e a utopia virou realidade. A obra foi escrita sob um ponto de vista comunista. Trata-se de uma crítica em forma de romance utópico contra a obra de Edward Bellamy (1850-1898) , Looking Backward 2000-1887(Revendo o futuro) de 1888, considerada por Morris como uma utopia cockney (“utopia londrina” - com esta expressão pretende o autor designar tudo o que é prejudicial e negativo para Londres). Na sua utopia Bellamy leva ao extremo as tendências então emergentes de centralização e de mecanização, num pano de fundo igualitário, onde os cidadãos mais se assemelham a 40


soldados de um quartel dirigido para a produção industrial ( o exército de trabalho é literalmente constituído graças ao princípio do recrutamento obrigatório), ou então a peças de uma enorme engrenagem social segundo o modelo da modernidade burocrática, desenvolver toda uma rígida estrutura social fechada que para se manter precisa de valorizar o desporto que se constitui assim como uma forma de evasão do ambiente totalitário em que estão encerrados os indivíduos. Em contraste, Morris esboça uma utopia claramente descentralizadora que logo ganha a simpatia dos seus amigos anarquistas. Em News from Nowhere história começa com um despertar estranho do narrador, numa Casa de Hóspedes, que se surpreende a viver dois séculos depois do tempo a que estava habituado, um futuro socialista que se lhe oferece radioso face à brutal realidade inglesa do século XIX industrial. Nesse futuro tudo seria embelezado e purificado, desde os rios ( que inclui o convite de um barqueiro para um mergulho matinal do Tamisa), as pessoas , os locais ( com uma toponímia renovada) até ao sistema político e social, para surpresa e satisfação do personagem-narrador ao longo de um passeio a que ele se entrega através de Londres e do vale do rio Tamisa a montante da cidade. As roupas, por exemplo, seriam feitas em casa à imagem e inspiradas na época medieval. As mulheres, por seu turno, eram não só iguais aos homens, como livres de fazer aquilo que mais gostassem de fazer, para além de exibirem um vigor atlético e uma saúde física dignos de registro. A dimensão de Londres era mais reduzida, cheia de bosques e prados, ao passo que as aldeias ao seu redor teriam adquirido uma dimensão que as tornavam auto-sustentáveis. Já a arquitetura feita de materiais tradicionais tinha superado a lúgubre arquitetura industrial caracterizada pelo vasto uso do aço e a construção de 41


monumentos já passar para o tempo passado pois eram símbolos imóveis de um inócuo e pretensioso de morte (as Casas do Parlamento inglês estavam agora convertidas em armazém de estrume). Nesta utopia “morrisiana” não há compras nem vendas no sentido comercial, mas antes mercados regulados por acordos locais, de controles regulares, cuja regulação é desprovida de sanções punitivas. Os crimes desapareceriam com a abolição da propriedade privada, e os criminosos seriam vistos não como delinqüentes, mas como amigos tresmalhados. Os usos e costumes prevalecem face à lei. A tolerância e o respeito pela diferença e pela individualidade de cada um primava nas relações sociais, pelo que a opinião minoritária não deixaria de ser respeitada e não seria esmagada pela maioria. A criatividade estava onipresente em tudo o que dissesse respeito ao trabalho num espantosa harmonia entre beleza artística e o trabalho. Enquanto na outra época se falava da necessidade de trabalho, da dignidade e do heroísmo do trabalhador, os trabalhadores imaginados de Notícias de lugar nenhum descobrem a beleza do trabalho tranquilo, realizado com habilidade e perícia manual próprio dos artesãos criadores. Curiosamente não deixam de existir indivíduos insatisfeitos: um, é um velho que se dedica à história e confessa a sua nostalgia pela era de concorrência, e outro, é alguém que compara a literatura utópica com aquela que estava repleta de enredos, paixões e desgraças e conclui que a primeira é mais dócil. Mas, no fundo, a única contrariedade que encontramos nos habitantes da Londres imaginada pelo autor são os desgostos de amor, em relação aos quais nada nem ninguém é imune. O regresso à natureza preconizado por William Morris significa uma recuperação da simplicidade, da ação direta e da 42


beleza natural, uma reinvenção da harmonia e do equilíbrio entre homem e natureza, longe de qualquer forma de ascetismo e de maniqueísmo, e até muito mais próximo da vida prática ideal. Algumas de suas obras serviram de inspiração para outros autores famosos do século XX, tais como J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, ambos renomados autores de, também, literatura fantasiosa.

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Morris por Pevsner

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ikolaus Pevsner (1903-1983) nasceu na Alemanha, mas foi forçado a se mudar para a Inglaterra após a ascensão de Hitler. É um dos historiadores da arte mais importantes do século XX, e publicou estudos como: An outline of European architecture (1943). Mudou-se para a Grã-Bretanha e publicou, em 1936, seu primeiro ensaio: Pioneers of Modern Movement from William Morris to Walter Gropius, primeira tentativa coerente de isolar a linha de pensamento desencadeadora da arquitetura moderna. Com esta obra, Pevsner recusou a ideia, até este momento aceitada, que considerava como precursores de Movimento Moderno às obras engenharia do século XX ou os ensaios figurativos dos pintores, demonstrando uma origem a partir de uma concepção moral e intelectual proposta por vez primeira pelo arquiteto novecentista W. Morris, à que se uniram sucessivamente as obras dos engenheiros, as experiências figurativas dos pintores e as contribuições dos arquitetos de vanguarda entre 1890 e 1914. Esta publicação assentou as bases necessárias para dar um marco histórico sério às conclusões a respeito do Movimento Moderno. Em 1937, com a publicação de outro ensaio: An Inquiry into Industrial Art in England, aprofundou-se no conhecimento do movimento para a reforma das artes aplicadas, encontrando de novo como precursor William Morris. Esta obra teve uma influência direta na formação 45


da nova arquitetura inglesa, na qual introduziu um amplo conhecimento do movimento europeu. Veja uma comparação de Pevsner, entre uma obra exposta no Palácio de Cristal, a exposição de 1851, com a estética de William Morris:

“O contraste que há entre ambos não é apenas entre a imitação e a inspiração; entre a imitação válida, inspirada na delicadeza do século XV, e a má imitação, propagadora do mau gosto do século XVIII; é mais. O desenho de Morris é claro e sóbrio, e a manta de 1851 é um entrelaçamento desordenado de motivos. A mistura irrefetida de estiliza-ção e realismo que nele encontramos contrasta com a unidade lógica da composição e com o estudo atento do crescimento da natureza feito por Morris. O desenhista da manta despreza a lei decorativa da coerência das superfícies, ao passo que Morris consegue um padrão liso sem que haja a mínima perda da vitalidade.”

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Gropius e Morris

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asQuando Nikolaus Pevsner incluiu em Pioneers of Modern Design (1949) o subtítulo From William Morris to Walter Gropius estabeleceu-se uma linha ideológica que uniria para sempre o percurso de Morris ao de Gropius. A continuidade da obra de ambos, implícita nesta ligação traçada por Pevsner (cf. 38-39), é objeto de reflexão por parte de vários autores, dos quais se destacam Chris Miele, Gillian Naylor e Mario Manieri Elia. Apesar da controvérsia que se instalou em torno das possíveis aproximações entre o trabalho de Morris (1834- 1896) e o de Gropius (1883-1969), ressaltam os interesses que tinham em comum pela arquitetura e pelo design, bem como o modo como perceberam estas realidades no contexto social. Os seus pensamentos são ainda hoje referências incontornáveis no campo da arquitetura e do design pela sua responsabilidade na valorização destas disciplinas no âmbito da arte. Por seu lado, Walter Gropius é recordado acima de tudo como um arquiteto ativo, com obras espalhadas por todo o mundo, um pedagogo astuto, um teórico e um reformista inovador pelas perspectivas artísticas que pôs em prática e desenvolveu na escola Bauhaus. Sigfried Giedion (1954) realçou o gosto de Gropius pelo trabalho em conjunto, James M. Fitch (1960) eternizou-o como o inventor de uma nova estética, perpetuada nos edifícios que concebeu ao longo da sua carreira, realçando também o seu desempenho como educador, designer e crítico, enquanto Paolo Berdini (1986) registrou na sua 47


obra todo o trabalho de arquitetura que Gropius desenvolveu em parceria com diversos arquitetos, tendo sempre por base motivações sociais e correspondendo ao que acreditava ser a sua função como arquiteto. Gillian Naylor (1985) e Winfried Nerdinger (1988), sem esquecerem a importância de Gropius como educador, refletiram também sobre o seu vasto legado arquitetônico. Neste ponto será relevante destacar que Giulio Carlo Argan, no seu livro de 1990 sobre Walter Gropius e a Bauhaus, aponta Morris como um dos antecedentes diretos da filosofia adotada por Gropius em Weimar, um aspecto que Gillian Naylor também sublinha num dos seus primeiros estudos (Naylor, The Bauhaus). Morris é ainda mencionado em diversas obras sobre arquitetura e design, como é o caso das de Leonardo Benévolo (1991; 1996), António Pizza (1999) e Ignasi de Solà-Morales (2000), como uma das vozes mais potentes que, no século XIX, ousou apelar para uma reforma social profunda através da arte, marcando dessa forma o início de uma nova era no âmbito da arquitetura e do design (Pevsner 2226). O arquiteto e a arquitetura têm vindo, nos últimos cem anos, a expandir o seu campo de ação, assumindo o “desenho” de uma multiplicidade de espaços e de objetos (Solà-Morales 18), uma tendência já iniciada pelo percurso morrisiano e assumidamente concretizada na Bauhaus de Gropius. William Morris é a figura crucial que anula a discussão sobre a natureza e a importância do design e da arquitetura no meio social, ao procurar estabelecer relações interdisciplinares entre a arte e os mais diversos campos de experiência humana. Walter Gropius, por seu lado, terá sido o responsável pela redefinição dos conceitos até então debatidos. 48


Os ideais que estiveram na base da formação do movimento artístico Bauhaus em Weimar poderiam ter sido formulados por Morris, pois apelam a ma complementaridade e interdependência das diferentes artes que Morris havia defendido como condição fundamental para a concretização da verdadeira obra de arte. Além disso, a ênfase na fusão do artista com o artesão, do trabalho intelectual com o manual e o apelo ao regresso a um tipo de trabalho artesanal, realizado em oficinas, conferem ao Manifesto de Gropius um cariz morrisiano. No entanto, apesar de parecer apelar a esses valores medievais, Gropius não pretendia um retorno ao trabalho artesanal característico do século XIV, como Morris, mas apenas uma apropriação dos seus valores, incentivando à cooperação e realçando ao mesmo tempo a importância do trabalho criativo e individual, buscando simultaneamente a síntese da tradição medieval, centrada no artesanato, com a perspectiva moderna, onde o papel da indústria não podia ser ignorado. A existência de “uma continuidade ideológica” e de “uma descontinuidade estilística” entre Morris e Gropius é de facto indiscutível, como afirma Isabel Donas Botto Ribeiro (465).

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William Morris hoje

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a sociedade contemporânea, cada vez mais individualista e intransigente, onde os valores comunitários se diluem num mundo virtual, os ideais de William Morris e de Walter Gropius, independentemente deles se destacarem por suas diferenças ou por suas semelhanças, adquirem a amplitude da permanência. Eles apelam ao questionamento das relações e dos comportamentos humanos que essas relações ocasionam, estimulando por isso a reflexão crítica sobre a forma como interagimos com todo o ambiente que nos rodeia. Para contextualizar melhor esse conceito, podemos estabelecer paralelos com duas personalidades atuais. Sendo que, na área da estética gráfica, podemos comparar William Morris ao designer americano David Carson, que quebrou tabus sobre a função da tipografia e disposição dos elementos gráficos relacionados à área do design gráfico proporcionando maior liberdade de criação. Podemos compará-lo também ao grafiteiro belo-horizontino auto intitulado “Hyper”, destacando as seguintes condutas: o grafitti por sí só, sem compromisso comercial e conteúdo geralmente subversivo, pode ser aceitavelmente contextualizado na ideologia estética de Morris, este que valorizava a arte pela arte. O conteúdo de Hyper sempre apresenta elementos biomecânicos (cyberpunks) e espirituais (em sua maioria orientais), estabelecendo um conflito entre o homem como um ser vivo natural e a dominação da máquina sobre ele, questionando até onde pode chegar essa relação, assim como 51


Morris, que através de seus grafismos estabelecia uma dura crítica à mecanização, à industrialização e à relação homem versus máquina.

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Obras do Morris (portfolio):

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esta parte colocamos vårias obras feitas por ele, como tapeçarias, projeto arquitetônicos e etc.

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Obras do Morris (portfolio):

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Obras do Morris (portfolio):

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Obras do Morris (portfolio):

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Obras do Morris (portfolio):

Ao olhar para o trabalho deste projeto percebemos percebido uma linha sinuosa em especial, é a mais grossa de muitas linhas errantes. Existem muitas linhas menores que serpenteiam ao longo do desenho. Estas pequenas linhas na realidade representam os riachos que desaguam nos afluentes, e transformam-se no Tamisa. Estes pequenos córregos e afluentes parecem ser representado por um emaranhado e complexo volume de folhagens, que de fato são, pois representam o leito do rio sinuoso, lento e lânguido dos afluentes que transmitem a paz e a tranquilidade do rio, mas ao mesmo tempo, representam a rica folhagem que cresce ao longo das margens desta riqueza fluivial.

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Obras do Morris (portfolio):

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Estas três peças, que apresentamos neste trabalho da página 53 à 55, de um total de sete, se destinam a mostrar o aspecto geral do rio Tamisa, a partir de seus inúmeros afluentes pequenos e largos para a sua rica flora às margens do rio. Este foi um conjunto de trabalhos produzidos por alguém que estava apaixonado por seu assunto. O Thames significava muito a Morris pois eram parecidos, ou seja a sua vida agitada sempre era uma constante, tal como o rio esteve presente nos primeiros anos de vida, em seu tempo em Oxford, e mais tarde foi o local escolhido para o seu sucesso na parte têxtil e na criação de papéis de parede, essas sete peças (três mostradas aqui) foram, de fato, concebidas e impressas às margens do rio Thames. Veja mais em William Morris e o rio Thames com seus afluentes: http://thetextileblog.blogspot.com/2009/12/william-morris-and-thames-tributaries.html


Obras do Morris (portfolio):

Percebe-se, nesta peça de arte, em comparação com a peça mostrada na página 53, muitos pontos semelhantes como o estilo, cor e composição. No entanto, existe algo fundamental que faz ligação a uma série de artes criadas com folhagens, que tamanho o amor é este que Morris tem para o Thames e sua paixão natureza, que lhe servem de inspiração para criar sempre um tema belo de se ver. Para entender Morris é preciso entender mais do que a fantasia medieval de seus primeiros anos, ou o sonho socialista de sua vida. Ele era um apaixonado pela beleza transmitida pela natureza, aquela que o observador percebe imediatamente. Ambos foram uma essência vital à sua vida pessoal e profissional, e talvez seja isso que contribuiu para elevar o trabalho de concepção de Morris a grande parte das suas obras nas artes decorativas da época vitoriana.

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Obras do Morris (portfolio):

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Conclusão

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orris buscou transformar a estética de sua época ao quebrar os modelos da exposição, resgatando valores medievais e referências que iam além da cultura ocidental. Ao invés de apenas juntar esses elementos, procurava fazer uma releitura de todos para que o produto fosse esteticamente agradável e respeitasse a honestidade dos materiais proposta por Ruskin. O que faltava nessa época era um indivíduo que compreendesse algumas das transformações causadas pela Revolução Industrial, interpretando suas consequências tanto em relação aos trabalhadores (social) quanto à questão produtiva (econômica e estética). As fábricas da época, apesar de investirem em uma ornamentação elitista e em materiais que simulassem um ar de sofisticação, empobreciam o valor agregado ao objeto confeccionado com a fragmentação da cadeia produtiva. Ao tentar solucionar o problema criado, Morris não apenas pensou em como resolver o resultado estético, mas também o que o causava, indo às raízes do problema, questionando a situação em que o trabalhador se encontrava, tanto em relação ao ambiente, quanto à sua própria ignorância em relação àquilo que está produzindo. A mostra do Palácio de Cristal foi apenas uma reação às transições pelas quais o sistema ocidental passava. Ao invés de apostar em um caráter inventivo, utilizou-se apenas de um Historicismo exacerbado, fugindo inclusive da proposta de 67


inovação intrínseca à Revolução Industrial. Apesar de possuir um teor utópico, Morris conseguiu reavivar a importância do artesão na produção – a exemplo de movimentos como o Arts and Crafts que suas ideias inspiraram -, como um agente transformador da estética e da vida social. Morris foi o primeiro a tentar mudar não apenas os produtos ao resgatar seus valores da Idade Média - época que ele pensava ter sido a de maior honestidade e alegria na produção, sendo essa característica um forte traço Romântico, a fuga temporal -, mas também a forma como eram produzidos. Sua forma de pensar ia além do esperado para sua época, tornando-o uma das principais referências durante os séculos XIX e XX, não só no Romantismo mas também considerado por muitos historiadores, e como disse Pevsner, o precursor, ou então diz o nosso grupo, a ignição para o movimento Modernista.

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Bibliografia Ribeiro, Maria Isabel Donas Botto. Em Defesa da Arte do Quotidiano: A Estética Socialista e Humanista de William Morris. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1998. Pevsner, Nikolaus. Pioneers of Modern Design: From William Morris to Walter Gropius. 1949. London: Penguin Books, 1960. www.morrissociety.org/ Site dedicado ao escritor e artista William Morris, com exemplos de seus livros iluminados e versões digitais das suas obras. http://thetextileblog.blogspot.com/2009/12/william-morris-and-thames-tributaries.html http://morrisedition.lib.uiowa.edu/images/loveisenough/pageflip.html History of Graphic Design - Philip B. Meggs Ronah is a great fã of William Morris Morris, William. Notícias de Lugar Nenhum: ou uma época de tranquilidade. Editora Fundação Perseu Abranco, 2002. MORRIS, William. William Morris: selected writings and designs. Nova Ior¬que: Penguim Books, 1962. PEVSNER, Nikolaus. Os Pioneiros do Desenho Moderno – De William Mor¬ris a Walter Gropius. 3ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2002. RUSKIN, John. As Pedras de Veneza. Tradução de Luis Eduardo de Lima Brandao. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CARDOSO, Rafael. Introdução à História do Design. 3ª edição, São Paulo: Blücher, 2008.

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Ficha técnica

David Oliveira Redação e revisão João Paulo Pesquisa e Planejamento Pablo T. Quezada Design Gráfico Pedro Veloso Script e cenário Pedro Nicola Traduçao e direção Belo Horizonte, outubro, 2010 Desktop Publish: inDesign, Photoshop CS5 Impresso: miolo papel reciclato 90g, Capa em papel adesivo 120g com acabamento em laminaçao fosca. Encadernação em Papel Paraná 400g com Wire-o.

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Illustration: William Morris Kennet 1883-4

Deivid Oliveira Jo達o Paulo 74 Pablo T. Quezada Pedro Veloso Pedro Nicola

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