Onde a Humanidade Vence a Barbárie

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F291 Fecher, Viviane Onde a Humanidade Vence a Barbárie: Histórias de Vida e Direitos Humanos no Memorial da Resistência/Viviane Fecher. Jundiaí, Paco Editorial: 2016. 260 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0641-4 1. Direitos Humanos 2. Memória 3. Cidadania 4. História. I. Fecher, Viviane.

CDD: 300 Índices para catálogo sistemático: História Direitos humanos

372.89 323 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal

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Para minha avó Alzira, e em sua memória, por cuidar de mim e me mostrar a beleza das flores da laranjeira, do sabor da ameixa no pé e do banho do sabiá. Ao meu pequeno Théo, por me lembrar todos os dias que ainda posso e devo ser criança. À vida e à memória da amiga Cléria, razão primeira para que estas ideias ganhassem asas. A todas e todos que, diante das injustiças, levantam e resistem.



Agradecimentos Fruto de minha dissertação de mestrado, escolha de vida que requer tempo, dedicação, paciência, superações e abnegações, esta obra somente foi possível com o carinho, compreensão, apoio, torcida e exemplo de muitas pessoas. Já confesso: nominá-las é tarefa ingrata e injusta. Agradeço à vida por ter unido meu caminho ao de minha querida amiga e orientadora professora Dra. Cléria Botelho da Costa. Em sua memória, agradeço imensamente por ter abraçado minha pesquisa com tanto carinho, paciência e dedicação, por me apresentar tantos caminhos novos, por respeitar e incentivar minha voz ainda tão juvenil na pesquisa interdisciplinar. Agradeço pela confiança e pela persistência nesse projeto e por ter estado comigo na pesquisa e na vida, e nos vários sentidos do que possa ser uma orientação. Tudo a que me refiro aqui, e toda a obra, felizmente, foi compartilhado com ela. À Claudia, minha mãe amada, eterna gratidão por todos os sacrifícios, por ter me dado asas e por sempre acreditar nos meus sonhos, incondicionalmente, inclusive este. Aos meus amores, Fábio e Théo – difícil, impossível agradecer tamanha abnegação, as renúncias dos momentos em família, a saudade nas minhas ausências, a paciência calada enquanto eu cumpria este desafio... Enfim, obrigada por terem permanecido aqui, meu porto seguro. À minha família querida, pelo apoio e torcida. Aos petropolitanos, por sempre vibrarem com minhas conquistas. Aos Minghetti Joaquim, em especial, Regina e Joaquim, pelo suporte, carinho e respeito, acima de tudo. Gu e Tê, tão amigos e companheiros meus. Aos queridos Marluci e Lécio, pela acolhida em Brasília e na vida. Lica, Lara, Lua e Bel, minhas irmãs, por embarcarem nas minhas viagens, ouvirem meus lamentos e loucuras, e por nunca desistirem de mim.


Aos companheiros de jornada, nas dores e delícias da Comissão de Anistia e da vida, exemplos que sempre me fortalecem: Marleide, Lu Ramos, Muller, Raquel, Andreia Valentim e Tati. À Lis, Paty, Fabí, Emília e demais colegas da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, pela torcida sempre cheia de entusiasmos e pelos exemplos de compromisso na vasta agenda de defesa dos direitos humanos. À professora doutora Eneá de Stutz e Almeida pelos ricos aportes trazidos na banca examinadora do mestrado e por ter sido tão generosa neste prefácio. Às considerações valiosas da professora doutora Lucilia de Almeida Neves Delgado. Ao Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Junior, pelas valiosas contribuições na banca de qualificação. Às professoras dras. Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Vanessa Maria de Castro, pela energia que depositaram na construção do PPGDH e na dedicação em meio a tantas intempéries na coordenação do Programa, sem nunca se deixarem desanimar e, acima de tudo, nos incentivando e torcendo por nós. Aos professores e professoras do PPGDH, minha gratidão por ter encontrado na academia um espaço de acolhida dos meus ideais na crença em uma ciência construída a partir do afeto e do diálogo. Julia, obrigada, de tudo e tanto, por me devolver o amor pelo meu trabalho e por enxergá-lo com tanta beleza. Aos demais amigos e amigas que a vivência do mestrado me presenteou, Dig, Fábio , Fred, Laris e Pris, pelos risos e afetos, tão essenciais quanto nossos saberes compartilhados. À toda minha querida turma, gratidão infinita por partilharem comigo as angústias, crescimentos e prazeres do compromisso que assumimos. Em vocês renovo a certeza de que vale a pena crer e lutar por um mundo onde justiça e poesia caminhem de mãos dadas. Aos amigos que me inspiram diariamente com seu brilhantismo na busca incessante por justiça social, dos tempos de ontem e nas lutas de hoje: Paulo Abrão, Inês Virgínia Prado Soares, Marlon Alberto Weichert, Sueli Aparecida Bellato e Marcelo To-


relly, agradeço a honra dos trabalhos conjuntos, os ensinamentos e confiança tão generosos. Aos conselheiros e conselheiras da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, minha escola, e aos procuradores e procuradoras da República, que me foram e são exemplos e inspirações. Todos que, juntos, vem transformando o próprio sentido da justiça transicional no nosso país. À Katia Felipini, entusiasta de primeira hora do Memorial da Resistência e Ana Brito, pesquisadora apaixonada, pelas contribuições à minha pesquisa. Aos narradores e narradoras, que generosamente compartilharam comigo suas histórias de vida e deram ânimo à minha pesquisa – Rose Nogueira, Elza Lobo, Ivan Seixas e Maurice Politi, toda minha gratidão. Por fim, a tantos outros nomes que poderiam igualmente emprestar suas vozes nesta tarefa de nos aproximar de nosso passado comum e que certamente o fizeram preenchendo meus pensamentos com seus exemplos de resistência – Iara, Gilney, Alípio, Martinelli, Paiva, Betto, Suzana, Victoria, Criméia, Denise, Clara, Laura, Rita, Amélia, Marias e Clarices. Muitos que nem sabem, mas que também estiveram comigo durante a construção dessas linhas.



“Uma história de vida não foi feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu.” Ecléa Bosi



Sumário Prefácio Introdução Capítulo 1 “Olha, existiu uma resistência brasileira”: o sentido e o processo de formação do Memorial da Resistência 1. “Conhecer o passado para entender o presente e construir o futuro”: a caminhada dos movimentos sociais na reconstituição da memória no Brasil 2. “Nós fincamos a bandeira da democracia”: reivindicação e retomada do Deops/SP para a construção do Memorial da Resistência 3. “A história é de todos nós”: concepção e construção do Memorial da Resistência

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Capítulo 2 “A humanidade venceu a barbárie”: Memorial da Resistência como espaço vivo de exercício da cidadania 115 1. “Você não pode deixar o barco parado, tem que tocar”: participação social nas atividades do Memorial da Resistência 116 2. “E vocês, resistem a quê?”: no encontro de gerações, o compromisso com a juventude 149 3. “Aqui não é uma questão de violência”: espaço expositivo marcado por homenagem e solidariedade 163 4. “Um grãozinho de areia”: a percepção dos ex-presos políticos sobre os resultados do Memorial da Resistência 182


Capítulo 3 “Nem heróis, nem vítimas”: a escolha pelos caminhos de luta na ditadura e na democracia 1. “Porque a ditadura é que está errada”: quando resistir é preciso 2. “Um caminho de sempre pensar nos outros”: entre perdas, incertezas e dores, venceu a solidariedade 3. “Sou militante dos direitos humanos desde o dia que saí da cadeia”: a vida depois, agora e adiante Considerações finais Referências

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Prefácio Vou me permitir redigir estas linhas de maneira bastante informal e pessoal. O tema me inspira esta postura. Neste sentido, tratarei a autora pelo seu prenome, de maneira carinhosa, e espero cativar os leitores e leitoras a se envolverem com as reflexões presentes neste livro. O momento delicado pelo qual passa a sociedade brasileira, com diversas possibilidades, tanto de avanços quanto de retrocessos, requer a ponderação de muitos dos elementos que a obra contempla. “Recordar é viver”, diz o dito popular. Os lugares, cheiros e sons costumam nos transportar para outros tempos e às vezes outros lugares. É o que acontece com a memória. Por isso o acerto do ditado popular e a sabedoria do senso comum. Lembrar é, antes de qualquer coisa, recapitular, viver novamente aquele instante. Entretanto, como o tempo é fugidio por natureza, e cada momento é irrepetível, como é possível viver novamente os acontecimentos dos quais nos recordamos? E a resposta é simples: não é possível. Será sempre uma nova vivência, que pode ter um significado simbólico semelhante ao anterior, positivo ou negativo, ou pode alterar o sentido da vivência. E aí residem a mágica e a beleza da memória! Se isso pode ser constatado no que se refere à memória individual, mais importante ainda é este processo quanto à memória coletiva. A memória coletiva é uma construção social, tecida, alterada, feita, desfeita e refeita, moldando valores e significados de uma determinada sociedade. Costuma-se dizer que “o brasileiro não tem memória”. Isso simplesmente não é verdade. Temos, sim, toda a memória coletiva da nossa história autoritária, marcada nos corpos e mentes das gerações de brasileiros que nunca tiveram voz, que sempre foram massacrados, sem qualquer registro até mesmo da existência das suas histórias de vida. E essa memória coletiva vem sendo 13


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construída há mais de 500 anos. Assim é, por exemplo, com as populações indígenas, as quais continuam sendo dizimadas até os nossos dias. Bem como com os estudantes, cujo exemplo recente de reivindicações por melhorias nas condições de estudo, com ocupações das escolas e consequentes reações, tanto pelas autoridades competentes quanto por grupos de pais e outros alunos, mostram a lição aprendida com a memória ancestral da repressão muito presente no legado autoritário brasileiro. Mas se a memória coletiva é construída nesses processos sociais, se a memória brasileira é recheada dos signos autoritários e repressivos, e se “recordar é viver”, por que razão valeria a pena relembrar momentos tão duros quanto os vivenciados pelas pessoas entrevistadas por Viviane nesta pesquisa? Para que se lembrar da tortura sofrida, para que visitar os lugares da dor e do sofrimento, em alguns casos quase indizíveis de tão bárbaros e desumanos? Justamente para ressignificá-los e adicioná-los às demais memórias, “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Para viabilizar a mágica da transformação da barbárie em humanidade. Como isso é possível? A resposta a essa pergunta é o próprio estudo desenvolvido por Viviane neste seu livro, e que pode ser desdobrada em outras indagações que ela busca responder, tais como: qual a relevância de se construir um Memorial da Resistência? Quem esteve envolvido nesse processo e como? Qual a história dessas pessoas, e por que as experiências vividas por elas podem auxiliar a construção de uma memória coletiva que rompa com o legado autoritário? Quando um Estado se torna algoz dos seus cidadãos, quando um Estado deixa de lado os valores das liberdades, da vida humana, do direito estabelecido como parâmetro, bem como da democracia, quando um Estado se torna o maior pesadelo da sua própria população, é possível resistir? É possível sobreviver? E que lições podem ser extraídas dessas experiências, de modo a se retomar o sonho de construir um projeto de sociedade brasileira democrática, plural e igualitária? 14


Onde a Humanidade Vence a Barbárie

Se considerarmos que o mais próximo que se chegou do início da construção deste projeto foi justamente o início dos anos de 1960, e o quão violenta foi a reação dos que se colocaram a serviço do aprofundamento das desigualdades e do autoritarismo, veremos o quanto ainda precisamos caminhar. A barbárie foi tamanha que às vezes parece impossível que reste alguma reserva de humanidade. Descobrir que não só restou humanidade, mas como a barbárie foi vencida, torna obrigatória a leitura da obra de Viviane. Sem querer antecipar as reflexões tão bem desenvolvidas, ou mesmo os conceitos manejados por ela nos capítulos que se seguem, queremos ressaltar a ideia da mágica da transformação operada pela construção da memória coletiva: o futuro pode alterar o passado, quando ressignifica os acontecimentos e traz à tona vivências que traduzem um contexto intenso, adverso e muito rico. Os elementos forjados nesse sentido são capazes de alimentar o desejo de se construir uma identidade efetivamente democrática, plural e igualitária na sociedade. Como afirma François Ost1, no que se refere à memória, existem quatro paradoxos: 1) a memória é social, e não individual; 2) longe de proceder do passado, a memória opera a partir do presente; 3) opera a partir do presente justamente porque é voluntária, é ativa e não passiva; 4) a memória pressupõe o esquecimento. Todos estes elementos estão presentes nos fundamentos da reflexão trazida por este livro. As entrevistas realizadas com as pessoas não traduzem apenas suas respectivas histórias individuais. Longe disso, elas compõem a memória coletiva tanto do período repressivo, quanto da ressignificação que será produzida com a construção do Memorial da Resistência, sendo que a construção do Memorial é uma demonstração perfeita tanto do tempo presente da memória e a militância que inspira.

1. Ost, O tempo do Direito, 2005, p. 45-130.

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Por fim, vale sublinhar, a memória pressupõe o esquecimento justamente porque o tempo passado sempre demanda a sua instituição e reinstituição, e nesses processos haverá necessidade de incluir o perdão. Perdão que será capaz de viabilizar a superação, sendo que a superação pressupõe a memória, fechando-se assim o círculo virtuoso enriquecido com sua dialética interna. Por tudo isso, o trabalho realizado por Viviane chega num momento fundamental para dois questionamentos recorrentes: que futuro desejamos propor? E, sobretudo, que passado desejamos elaborar? Desejo uma boa leitura a todos e todas. Brasília, julho de 2016 Eneá de Stutz e Almeida

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