Igreja, Estado e Poder

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An438 Angelozzi, Gilberto Aparecido Igreja, Estado e Poder: as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil/Gilberto Aparecido Angelozzi. Jundiaí, Paco Editorial: 2017. 236 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0721-3 1. Relação Estado/Igreja 2. Ciências Sociais 3. Igreja Católica. I. Angelozzi, Gilberto Aparecido CDD: 300 Índices para catálogo sistemático: Ciências Sociais

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Aos meus pais Francisco Angelozzi e Tereza Aguera Angelozzi, trabalhadores incansáveis deste nosso país. Ao amigo e guardião Saulius, companheiro de lutas na seara do mundo. A Dom Paulo Evaristo Arns. No exemplo deste servo de Deus e do evangelho eu aprendi o significado da luta por um novo céu e uma nova terra.


“Pode-se acrescentar que, num determinado sentido, o conflito entre ‘Estado e Igreja’ simboliza o conflito entre qualquer sistema de ideias cristalizadas, que representam uma fase ultrapassada da História, e as necessidades práticas atuais. Luta entre conservação e revolução [...] entre o que foi pensado e o novo pensamento, entre o velho que não quer morrer e o novo que quer viver [...]” Antonio Gramsci


Sumário Introdução

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Capítulo 1. A igreja e Estado no Brasil: uma trajetória histórica 25 1. As relações entre a Igreja e o Estado no Império do Brasil 25 1.1 As relações entre a Igreja e o Estado na Constituição Imperial de 1824 25 1.2 O padroado e a submissão da Igreja ao Estado no Império do Brasil 29 2. A questão da liberdade e da separação entre a Igreja e o Estado no período de transição para a República 34 2.1 O Romantismo da Igreja Católica e o Positivismo Republicano 35 2.2 A separação entre a Igreja e o Estado no início da República 39 3. Novorum modus operandi Ecclesiae 50 3.1 A nova pastoral: a Igreja Católica no modelo republicano 50 3.2 Missionários, amparo, serviço e peregrinação 52 4. Da era Vargas ao populismo 57 4.1 A Igreja e o Estado na era Vargas 57 4.2 A Igreja Católica no Brasil e as mudanças do Concílio Vaticano II 64 4.3 A Igreja Católica, o Estado brasileiro e política no início dos anos 1960 66 5. Transformações nas relações entre a Igreja e o Estado 71 5.1 A Constituição Dogmática Dei Verbum e a questão da libertação do homem e da mulher 71 5.2 O Episcopado Latino-Americano e as primeiras reações à ditadura 73

Capítulo 2. O Estado, a Igreja e o socialismo no Brasil nos anos 1960 e 1970 1. O público e o privado 81 2. Igreja Católica, Estado e socialismo no Brasil 3. A Guerra Fria e as relações entre Brasil e EUA

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Capítulo 3. Igreja católica, teologia da libertação, pastorais e política

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1. A Teologia da Libertação e a práxis marxista 131 1.1 A obra de Gustavo Gutierrez 132 1.2 A Teologia da Libertação e o marxismo 135 1.3 As quatro vertentes da Teologia da Libertação 137 1.4 A Celam de Puebla e o avanço da Teologia da Libertação 1.5 A leitura popular e engajada da Bíblia 142 2. A Pastoral Operária 146 2.1 Pressupostos teológicos-pastorais 146 2.2 Origens e organização teológica-pastoral 148 2.3 Um novo sindicalismo 174 2.4 Fé e política 183

Considerações finais. De volta às tradições Referências Anexos

213 229

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Introdução Este livro analisa as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil tomando por marcos divisores as transformações advindas do Concílio Vaticano II, das Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979), da Teologia da Libertação, da ação das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e da Pastoral Operária. As relações entre a Igreja e o Estado, bem como as estruturas de poder por elas criadas, interferem na vida de homens e mulheres, modificando-a e gerando movimentos de ideias que estabelecem padrões culturais e de comportamento; inventam tradições por serem “essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição”.1 As estruturas do mundo social são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais e discursivas)2, por isso práticas, regras e padrões definidos pela religião e pelo Estado visam estabelecer uma identidade social, um sentimento de pertencimento a um grupo ou sociedade, uma maneira de estar no mundo. Simbolicamente são um estatuto, formas institucionalizadas e objetivadas, graças às quais as instâncias coletivas marcam a existência no grupo, na classe ou na comunidade.3 Na medida em que tais regras, normas e padrões de comportamento são estabelecidos, definem-se também os mecanismos para punir ou excluir aqueles que não se enquadram neles e, por isso, esses mecanismos coercitivos cooperam com a assimilação e a educação dos homens. 1. Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 12. 2. Cf. Chartier, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002, p. 20. 3. Ibidem, p. 23. 7


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A religião é um poder simbólico,4 exercido com a cumplicidade dos que a ele estão sujeitos, ainda que ignorem essa sujeição. Através das relações estabelecidas entre esses indivíduos e o poder simbólico exercido pela religião, nascem representações sociais e crenças que se manifestam nos processos de transcendência e nas relações de poder presentes na sociedade e também no aparato jurídico e no Estado. Em um regime político representativo, como o do Brasil, a norma jurídica é elaborada, discutida e votada pelos que foram eleitos para representar a nação. Ao tornar-se pública ela é legitimada pelos que compõem a nação e, assim, modifica comportamentos através da coerção por ela gerada, até que, educado, o cidadão a cumpra. No Brasil, desde os primórdios, a religião esteve presente na elaboração das normas jurídicas e essa associação padronizou comportamentos e crenças, gerou padrões arquitetônicos e sociais. Na História brasileira, desde o século XVI até o momento mais recente, a religião e o Estado se fizeram parceiros. Fossem os homens bons do período colonial, ou a aristocracia do período imperial, ou mesmo a elite dominante do café no início da República, ou aqueles que a substituíram parcialmente, estamos nos referindo a homens e mulheres criados e educados dentro de uma crença, de uma doutrina, de uma ideologia que estabeleceu mentalidades reproduzidas nas normas jurídicas que estruturaram a nação e a sua política. Trata-se de um poder simbólico, de um conjunto de representações nem sempre visíveis, que geram estruturas de poder e garantem a manutenção do Estado e da sociedade. A religião e o Estado são duas formas de poder intrinsicamente vinculados e ambos constituem a sociedade civil. Por isso, quando a religião reflete a norma jurídica ou interfere na sua 4. Pierre Bourdieu apresenta o poder simbólico como uma forma transformada, irreconhecível, transfigurada e legitimada. Para ele, “o trabalho de dissimulação e de transfiguração garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar/reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia”. Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 15. 8


Igreja, Estado e Poder: as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil

elaboração, legitima o Estado e estabelece a confusão entre o não cumprimento da norma jurídica e o pecado. Tal procedimento é reforçado nas práticas pastorais, na ação social e nos textos (encíclicas, cartas pastorais, bulas) que as orientam, tornando-os (religião e Estado) mais que criadores de estruturas de poder, pois passam a cooperar mutuamente na sua manutenção. Como sociedade civil5, a religião institucionalizada deixa de ser somente uma crença e torna-se Igreja, sociedade civil. Por isso, os processos de legitimação ocorrem na medida em que a ação do homem se faz pela crença de que tudo está no lugar adequado e a ordem estabelecida deve ser mantida. Quando essa hegemonia é rompida, a sociedade fraturada critica as estruturas estabelecidas, revê as antigas relações e a ideologia que as sustentou. O rompimento da hegemonia possibilita também uma mudança da norma jurídica como consequência do questionamento da política, da sociedade e das estruturas de poder. As novas estruturas de poder serão ainda fruto do questionamento da fé, da política e das novas relações estabelecidas entre a religião e o Estado. No Brasil, o início da globalização e as transformações mundiais se associaram ao fim do regime militar. O questionamento deste regime e das formas de poder que ele estabeleceu modificou também as relações de poder entre a religião e o Estado. Ao analisar as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil objetivamos demonstrar – fazendo uso da legislação, de documentos da Igreja Católica e da imprensa – que: 1) a real separação entre a Igreja Católica e o Estado no Brasil ocorreu 80 anos após a promulgação do Decreto 119-A, de 1890, no período compreendido entre o final do século XIX e os anos 70 do século XX; 2) nesse período, houve mudança nos costumes, porém se manteve a tradição, com a Igreja caminhando com o Estado e ambos se legitimando 5. Para o conceito de sociedade civil, ver Gramsci, Antonio. Cadernos do Cárcere. 6 v. Edição de Carlos Nelson Coutinho; et al. (eds.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, §24, p. 225 e; Liguori, Guido; Voza, Pasquale. Dizionario gramsciano 1926-1937. Roma: Carocci Editore, 2009. 9


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e se justificando através das suas ações e ideologias; 3) a mudança na relação entre a Igreja e o Estado no Brasil está associada a uma revolução passiva6 vivida pela sociedade brasileira, seguida de uma transformação nas estruturas hegemônicas dessa mesma sociedade e teve como fundamento teórico a Teologia da Libertação. No que tange às relações entre a Igreja e o Estado, a associação entre ambos permite legitimar as estruturas de poder e estabelecer mecanismos de controle social. Trata-se de uma relação de força e poder que se manifestou em diversos momentos históricos, e através dos séculos foi assumindo representações diferenciadas, conforme a combinação dos elementos ideológicos de cada momento histórico. Tendo como marco temporal a história recente do Brasil, analisamos como se deu a transformação nas relações entre a Igreja Católica e o Estado e como essa mudança possibilitou outra forma de engajamento político fundamentado nas bases populares e na organização de um corpo teórico para fundamentar e justificar essa mudança. Para melhor compreender as relações de força entre a Igreja Católica e o Estado no presente, suas rupturas e reconstruções, faz-se necessário observá-las e analisá-las na longa duração. Por isso, recorremos a estruturas nascidas no passado que muitas vezes remontam ao século XIX, para compreender as mudanças no século XX, objeto de estudo deste livro. Fazendo uma retrospectiva ao ano de 1890, início da República, evidenciamos que o Decreto 119-A, que separou a Igreja e o Estado, representou apenas o fim do padroado e possibilitou maior liberdade de ação pastoral para a Igreja Católica. 6. Para melhor compreensão, ver: Buci-Glucksmann, Christine. Sobre problemas políticos da transição: classe operária e revolução passiva. In: Ferri, Franco (org.). Política e História em Gramsci, v. 1. Atas do Encontro Internacional de Estudos Gramscianos (Florença, 9-11 de dezembro de 1977). Tradução Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 117-148. 10


Igreja, Estado e Poder: as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil

Entre 1890 e 1960 a Igreja Católica e o Estado no Brasil continuaram unidos e diversas ações do Estado eram legitimadas pela Igreja e vice-versa. Na década de 1960, em função da Guerra Fria, o combate ao socialismo e às esquerdas foi uma plataforma comum a ambas as instituições. As grandes mudanças na Igreja Católica latino-americana começaram com o Concílio Vaticano II (1965) que anunciou: “Deus se encarnou na história humana para constituir com os homens uma sociedade fraterna. Fez-se pobre e enriqueceu os homens com a sua pobreza”.7 Esse anúncio implicou em uma revisão na ação pastoral da Igreja. Deus não estava mais distante dos homens, Ele fazia parte da história humana e se identificava com os pobres. No continente latino-americano, marcado por fome, desnutrição e miséria, a proposição do Concílio Vaticano II ecoou e encontrou ressonância nas práticas pastorais, especialmente através das CEBs. A situação de penúria econômica da América Latina, a situação política deste continente e o Concílio Vaticano II foram interpretados pela II Conferência Episcopal Latino-americana de Medellín, em 1968, estabelecendo uma mudança fundamental na prática pastoral e na teologia da Igreja Católica: a opção preferencial pelos pobres. As definições de Medellín não foram aceitas pela totalidade do clero católico latino-americano. Para muitos clérigos estava acontecendo uma esquerdização da Igreja Católica e de sua teologia. Isso gerou uma divisão no clero católico, que passou a ser identificado pelos clérigos, pela imprensa, pelos governos e pelos leigos em geral em dois grupos: os progressistas (aqueles que adotaram as propostas de Medellín) e os conservadores (aqueles que se opunham às propostas de Medellín). 7. Concílio Vaticano II. Decreto Ad gentes. Sobre a atividade missionária da Igreja. I, 1092-1093, In: Vaticano II: Mensagens, discursos e documentos. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 402. 11


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Os anos 70 do século XX marcaram uma ruptura nas relações entre a Igreja e o Estado no Brasil devido a conflitos em relação à defesa dos direitos humanos e o combate à tortura e à repressão que marcaram o regime militar, mas também pela nova ótica pastoral da Igreja expressa na opção pelos pobres. Diante das ações repressivas adotadas pela ditadura militar, o Papa Paulo VI reagiu às notícias de prisões, torturas e mortes de padres e leigos no Brasil. Casos de mortes brutais, como a do padre Antonio Henrique, assessor de Dom Hélder Câmara, ou dos frades dominicanos Tito, Ivo, Fernando e Betto, ganharam domínio público através de órgãos de imprensa como a Folha de São Paulo e o Jornal do Brasil. No campo, sacerdotes e bispos, como Dom Pedro Casaldáliga, denunciavam as mortes de camponeses e sem-terra, a mando de fazendeiros. A partir de 1974 os estudos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) passaram a servir de base para os trabalhos da Pastoral Operária, das CEBs e também das Campanhas da Fraternidade, como forma de denunciar a pobreza, o desemprego, as péssimas condições de vida, saúde, habitação e educação da população brasileira. Em 1975 a Conferência Nacional do Bispos do Brasil criou a CPT – Comissão Pastoral da Terra – para atender peões, posseiros, índios, migrantes, mulheres e homens que lutavam por liberdade e dignidade numa terra livre da dominação da propriedade capitalista. O Estado Militar perdia a sua hegemonia; a Igreja Católica, mesmo diante da resistência de alguns sacerdotes e bispos, os chamados conservadores, rompeu com o Estado. No processo de reorganização pastoral a Igreja se aproximou das bases – os pobres, representados por camponeses, operários e massas urbanas marginalizadas. A Igreja Católica do Brasil assumiu a missão profética de anunciar a boa nova e denunciar as injustiças. A base desse anúncio e dessa denúncia foi a Teologia da Libertação, produzida por um grupo de intelectuais da Igreja Católica com o objetivo de fundamentar as novas práticas pastorais e explicitar o contexto de um Deus Libertador que se encarnou na história hu12


Igreja, Estado e Poder: as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil

mana e que caminhava ao lado de seu povo, onde o novo deserto a ser enfrentado era o campo e a cidade, e os novos faraós eram os opressores que se impunham pelo poder do Estado Militar dos anos de chumbo (1970-1979) e do capital. A situação do Brasil, em uma visão gramsciana, era de uma revolução passiva, na qual o crescimento econômico, o chamado “milagre brasileiro”, favorecia o enriquecimento de poucos, especialmente dos favorecidos pelo capital estrangeiro e ao mesmo tempo gerava o empobrecimento dos trabalhadores através do arrocho salarial. Em outras palavras, o regime tecnocrático militar8 que se apoderou do aparelho estatal no Brasil controlou e limitou a ação do capital privado, na medida em que submeteu os interesses dos múltiplos capitais ao capital em seu conjunto. Na sua posição de controle, reforçou o princípio do lucro privado para conservar o poder das classes dominantes tradicionais, quer da burguesia industrial e financeira (nacional e internacional), quer do setor latifundiário, que foi se tornando cada vez mais capitalista. Esse mesmo regime militar tecnocrático conseguiu conquistar em alguns momentos um significativo grau de consenso entre amplos setores das camadas médias, ao se fazer protagonista dessa obra de modernização, embora essa modernização conservasse e reproduzisse muitos elementos de atraso. A crise econômica e política dos anos 70 do século XX afetou toda a América Latina, e nesse cenário a Igreja Católica era uma importante instituição porque no continente latino-americano se concentravam 47,3% dos católicos do mundo, sendo que desse total 27,1% na América do Sul e quase a metade, 13,2%, no Bra-

8. A Tecnocracia durante o regime militar do Brasil caracterizava-se primariamente por um crescimento econômico baseado em sistemas repressivos de exclusão da classe trabalhadora das decisões políticas. O endurecimento do regime militar punha em ação o plano tecnocrata de modernização da indústria nacional, baseada na racionalidade técnica. A tecnocracia no Brasil foi marcada por intervenções técnico-calculistas do Estado na política economica. 13


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sil.9 A América Latina era, pois, o maior continente católico do mundo, e o Brasil, o maior país católico. Por isso, para restabelecer a hegemonia a Igreja Católica precisou reforçar o seu aparato ideológico a fim de garantir o apoio dos mais pobres e da classe média. Para garantir a expansão da Teologia da Libertação e dar-lhe consistência junto aos fiéis leigos, organizou congressos e simpósios por toda a América Latina. Por se tratar de um movimento intelectual de reflexão sobre a pobreza do continente latino-americano, sobre a condição dos pobres, sobre perseguições e sistemas injustos que faziam mártires entre os movimentos camponeses e operários em toda a América Latina, a Teologia da Libertação também enfrentou a perseguição das ditaduras, e mesmo assim as suas bases teológicas atingiram as pastorais da Igreja Católica no campo e na cidade e favoreceram uma reflexão engajada sobre a realidade social e política fundamentada na práxis marxista. As conclusões das Conferências do Episcopado Latino-Americano de Medellín (1968) e de Puebla (1979) foram fundamentais para a definição dos caminhos da Teologia da Libertação e para a ação pastoral da Igreja Católica na América Latina. A Igreja passou a utilizar os meios de comunicação social, especialmente rádio e televisão, para divulgar as propostas do Celam e de seus planos pastorais, reforçando assim a ação comunicativa que continuava também através das igrejas, capelas e paróquias espalhadas pelo continente. No Brasil, a Igreja Católica recorreu à mídia para expandir a Campanha da Fraternidade que, durante a Quaresma, passou a refletir sobre temas como desemprego, migrações internas, fome, saúde, lugar da mulher na sociedade, entre outros. Formou-se um exército católico que aos poucos favoreceu o desgaste do regime tecnocrático militar e ao mesmo tempo abriu espaço para a gestação de novas estruturas políticas. 9. Fonte: Santa Sé. Secretaria de Estado do Vaticano. Anuário Eclesiástico da Igreja, 1973-1981. 14


Igreja, Estado e Poder: as relações entre a Igreja e o Estado no Brasil

O final dos anos 70 foi mais do que um período de transição ou abertura política. Através das pastorais, das CEBs e de outros movimentos, a Igreja fomentou a igualdade na diversidade, com ênfase especial no princípio evangélico: “Que todos sejam um, como eu e o Pai somos um”.10 Isso favoreceu a formação das bases políticas que fortaleceriam a Igreja para enfrentar as estruturas do Estado. O sujeito coletivo ganhou as ruas através das pastorais, das CEBs e dos movimentos. A ênfase do novo corpo teórico, a Teologia da Libertação, deslocou-se da questão místico-doutrinal para a importância do momento de ação e da práxis. Assim se estabeleceu a Teologia da Libertação e os intelectuais da Igreja11 elaboraram os fundamentos que serviram à orientação de grupos e pastorais. Em grupos de base, sindicatos, escolas e igrejas as pastorais da Igreja Católica encontraram na Teologia da Libertação a fundamentação para as suas lutas e a sua organização. A politização desses grupos fez com que refletissem sobre o seu lugar no mundo e identificassem o céu não como um lugar distante, mas sim que ele existe quando há liberdade de expressão, direitos civis e cidadania. Organizaram-se movimentos operários em Osasco-SP, no ABCD-SP, Volta Redonda-RJ, Nova Iguaçu-RJ e Du10. Evangelho de São João 17,21. 11. Segundo Gramsci, “todo grupo social, ao mesmo tempo em que se constitui sobre a base original da função essencial que ele assume no campo da produção econômica, cria organicamente uma ou mais camadas intelectuais que lhe asseguram homogeneidade e consciência de sua própria função, não somente no setor econômico, mas também nos setores social e político [...]”. Essas camadas intelectuais não surgem de forma abstrata, democrática, liberal etc., mas sim de relações concretas dentro do processo histórico de produção social. E será, na sua forma de se articular com a classe revolucionária (ou não), que poderá cumprir a sua “função de agentes da hegemonia”. O “valor intrínseco” da atividade intelectual, se é que existe, só tem razão de ser quando cumprida esta função, logo o intelectual pode estar se tornando o agente “orgânico” da reação, e, nesse caso, será necessário que os intelectuais orgânicos do proletariado sejam capazes de assimilá-lo, de conquistá-lo ideologicamente, ou que as “alianças se tornem possíveis”, mas que acima de tudo, a luta seja pela hegemonia do proletariado. 15


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