[Des]enquadradas

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(des)ENQUADRADAS Transgress찾o da representac찾o feminina nas hist처rias em quadrinhos



Amanda Turano, Fabiana Barbante, Jéssica Sacaraficci, Pamella Pestana, Renata Sales, Wesley Mesquita

(des)ENQUADRADAS Transgressão da representacão feminina nas histórias em quadrinhos

Livro-reportagem apresentado em cumprimento parcial às exigências da disciplina Planejamento em Projetos (Plapro), do curso de Jornalismo, da Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciências da Educação, da Universidade São Judas Tadeu, para obtenção do título de Bacharel em em Jornalismo. Orientadora: Profa. Ms. Jaqueline Lemos

USJT – Universidade São Judas Tadeu LACCE - Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciências da Educação Curso de Jornalismo São Paulo, novembro/2014


Faculdade de Letras, Artes, Comunicação e Ciências da Educação (LACCE) Diretor: Prof. Ms. Rosário Antônio D’Agostino Coordenador dos Cursos de Comunicação Social Prof. Ms. Anderson Fazoli

O livro-reportagem “(Des)Enquadradas - Transgressão da representacão feminina nas histórias em quadrinhos” é um projeto experimental de alunos do curso de Jornalismo (4ACSNJO), sob orientação da profª Ms. Jaqueline Lemos, na disciplina Plapro – Planejamento em Projetos.

Amanda Turano, RA 201114320 Fabiana Barbante, RA 201113824 Jéssica Sacaraficci, RA 201004923 Pamella Pestana, RA 201114322 Renata Sales, RA 201105362 Wesley Mesquita, RA 201113774

Diagramação Vitória Rezende Bernardes Ilustrações Artur Lucchi e Vanessa Souza Gráfica Office House Digital




sumário

Quadrinistas, por Wesley Mesquita Nem toda quadrinista é bunda A trajetória ilustrada de uma mulher quadrinista

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Feminismo e Erotismo Feminino, por Jéssica Scaraficci Representação da mulher e de sua sexualidade Empoderada

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Heroínas, por Amanda Turano Como nascem as heroínas As Aventuras da Doce Cara Melo

48 58

Vilãs, por Pamella Pestana A vilã que pode salvar o dia As malvadas favoritas

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Meninas de Mauricio de Sousa, por Renata Sales Caros leitores, conheçam as meninas A Turma da Fernanda

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Inserções políticas e educacionais por Mafalda, por Fabiana Barbante Mafalda impacta, influencia e educa Basta!

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Lista de Figuras

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introducão

Cenário: Universidade São Judas Tadeu. Personagens: Amanda, Fabiana, Jéssica, Pamella, Renata e Wesley. Missão: Apresentar, de forma única e espontânea, o cenário feminino nas histórias em quadrinhos desde que este meio de comunicação em massa surgiu. Com a apuração do grupo durante o último ano da Faculdade de Jornalismo, houve total imersão no mundo da Nona Arte, que acompanha o ser humano e a sua história desde que os primeiros traços de ilustrações foram criados na pré-história. As histórias em quadrinhos como conhecemos hoje, feitas através de tirinhas, surgiram em 1895, no jornal New York World, e têm a característica de se moldarem ao contexto histórico no qual estão inseridas, com personagens que incorporam a realidade ou aquilo que o autor deseja que se transforme em real. Com o passar do tempo, as HQs foram aprimoradas, a fim de acompanhar o homem (não necessariamente do sexo masculino), se tornaram reconhecidas e ganharam notoriedade, o que, consequentemente, ativou a participação de protagonistas femininas, bem como quadrinistas femininas nos enredos. Não pense, caro leitor, que a participação da mulher em HQs se consolidou tão facilmente. Tão pouco têm as mulheres, ainda hoje, uma imagem que corresponde à força e presença que elas possuem de fato. O aprofundamento nesse contexto pode ampliar discussões e o conhecimento acerca de um assunto que é tratado de forma superficial ou incompleto pela mídia convencional. As mulheres precisam de espaço para representar e serem representadas como elas realmente são – POW! – A seguir, com vocês, leitores, importantes quadrinistas, feministas e eróticas, heroínas, vilãs, as meninas de Mauricio de Sousa e a pequena educadora de grande personalidade Mafalda: mulheres que, (Des)enquadradas, traçam os seus próprios destinos.



Quadrinistas

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Nem toda quadrinista é bunda “Por isso é que o filho é mais dela: Você traz a comida, mas a panela é dela!” O Filho Predileto de Rajneesh (Rubinho Troll)

A mulher contra ataca: objeto não As quadrinistas mulheres sempre existiram. E sempre teve mulher nas histórias em quadrinhos, mesmo que poucas. É covardia querer, ou pelo menos tentar comparar com os quadrinistas homens. Já faz parte da nossa cultura dizer que o mundo é dominado por homens – homens no poder, homens que sempre tiveram direitos, homens que sempre ganharam mais que mulheres... Não se sabe exatamente onde começou essa história de mulher quadrinista. Mas existem publicações e nomes importantes que ajudam a contar essa história, como a publicação It Ain’t Me Babe, que na década de 70, juntou roteiristas e desenhistas mulheres – como a americana Trina Robbins, uma das primeiras artistas a promover a mulher nos quadrinhos – e Willy Mendes, também destaque no cenário underground. Ainda nesta publicação, participaram Hurricane Nancy Kalish, Lisa Lyons, Carole, Michelle Brand e Meredith Kurtzman, que depois, participaram de uma publicação da própria Trina, a Wimmin’s Comix, que depois mudou de nome, e virou Wimmen’s Comix. A Wimmen’s se tornou uma das mais importantes publicações do underground, por ser uma antologia que só abordava questões femininas, sexualidade, sexo, política e até mesmo autobiografias em forma de quadrinhos. Ela ficou em circulação de 1972 a 1992. Foi uma espécie de escola: ali “nasceram” e saíram diversas quadrinistas. Era um ponto de partida na carreira de muitas mulheres, também como escritoras e cartunistas. No geral, era uma publicação muito polêmica. Pelos traços da própria Trina, foi na primeira edição da Wimmin’s que nasceu a primeira história em quadrinhos aonde uma garota se assume lésbica, era a Sandy Comes Out. As revistas que contam somente com mulheres fazendo esse tipo de arte nasceu daí. E sempre que se fala disso (quando se fala disso, na verdade), é importante citar a antologia Girl Comics, da Marvel. Ela foi totalmente feita por mulheres: desenhada, escrita, colorida e letrada por mulheres. Entre as artistas que participaram da Girl Comics, estão Kathryn Immonen, Marjorie Liu, Devin Grayson, Ann Nocenti, G. Willow Wilson, Stephanie Buscema, Amanda Conner,

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Jill Thompson, Louise Simonson, Valerie D’Orazio, Molly Crabapple, Nikki Cook e Carla Speed McNeil. Mas alto lá! Não se pode falar das pioneiras dos desenhos sem citar Kate Carew, que se auto intitulou “a única mulher cartunista”. Kate Carew é pseudônimo de Mary William, e é considerada um fenômeno da imprensa americana – conhecida por grande entrevistas com pessoas de renome, como o escritor americano Mark Twain – pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens – e o pintor e escultor espanhol Pablo Picasso no jornal New York World, entre 1890 e 1901. Mas como falar de tanta mulher quadrinista sem falar da primeira personagem? Ou melhor, a primeira protagonista? Pois bem, ela chegou aqui no capítulo: Em 1905, Narcisa, ou Felismina, surge nas páginas de La Semaine Bécassine, roteirizada por Jacqueline Rivière e desenhada por Joseph-Porphyere Pinchon. No Brasil, a protagonista chegou aqui através da revista Tico-Tico, a primeira revista dedicada às histórias em quadrinhos no Brasil. Foi um fenômeno: Felismina logo conquistou muitas leitoras, que sempre escreviam para a redação da revista, voltada para as moças conservadoras de Paris. A personagem, que no começo era uma criada burra do interior, hoje, é considerada uma das primeiras heroínas das histórias em quadrinhos, e sua personagem foi parar em filmes, bonecas, desenhos animados e tantos outros meios. Mas voltando, ou acelerando para, os anos 1970, eis que surge também um outro nome muito importante: Melinda Gebbie, americana que participou da terceira edição da Wimmin’s. Além dessa publicação, ela fez trabalhos notórios como Tits & Clits Comix, Wet Satin, e Anarchy Comics. A artista, que virou uma lenda nos anos 90, é casada com ninguém mais, ninguém menos que Alan Moore, que é considerado um dos “pais” das histórias em quadrinhos, e produziu junto ao marido o romance gráfico erótico Lost Girls. Escrita por Moore e ilustrada por Melinda, Lost Girls nada mais é que a uma história em que os protagonistas de Peter Pan e Wendy (J. M. Barrie), Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll) e O Mágico de Oz (L. Frank Baum) conhecem e compartilham diversas histórias e experiências sexuais.

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Caro leitor, é meu papel, como contador dessas histórias, alertar você de que as próximas linhas podem ser um tanto quanto perturbadoras. Mas não posso deixar de escrevê-las. Por isso, peço, e autorizo que você pare por aqui a sua leitura se não quiser traumatizar toda a sua infância (e eu escrevo isso por experiência própria). Ou, fique à vontade para pular os próximos dois parágrafos e manter toda a sua inocência preservada. A verdade é que não deixa de ser chocante ver uma ilustração da pequena Wendy voando de camisola, sem calcinha, sendo tocada na vagina por um Peter Pan nu, sendo masturbado por ela. Ou a Alice se tocando ao cair na toca do coelho... Não é trauma o suficiente? OK. Tem mais um parágrafo. Mas depois não diga que eu não avisei! ...Ou então, o Espantalho fazendo uma dupla penetração na bruxa má junto ao Homem de Lata, ocupada em seu sexo oral no Leão Covarde, enquanto a menina Dorothy, com seu clássico vestido azul e branco está sentada no colo de Oz, e língua a vagina da Glinda, a bruxa boa norte, que segura sua varinha de condão em formato de pênis. Tudo no campo das papoulas, com o fundo da Cidade das Esmeraldas, toda em formato de pênis. Eu avisei. Não? Oh! Oh! Oh! Se até eu tentei censurar a sua leitura aqui, não é por menos que a publicação é censurada em diversos países. Mas a mulher nos quadrinhos, principalmente no mundo mainstream, sempre foi considerada hipersexualizada. E com isso, acabou sendo objetificada e estereotipada. O que, infelizmente, afasta muitas leitoras (e também os leitores que não concordam com isso), porque ofende, e joga na roda diversos pontos para discussão: mulher não é objeto sexual, isso quer dizer, a mulher não é um simples instrumento de prazer como vemos em diversos meios de comunicação, ou ouvimos nas esquinas por aí. Entra em pauta também a força do feminismo, e a luta eterna, porque sempre existiu, da mulher contra o machismo. Trina Robbins sempre criticou a forma como a mulher era abordada nas histórias, e a falta de espaço para as mulheres nas publicações. E vemos que tanto tempo depois, as coisas ainda não mudaram tanto. No Japão e nos Estados Unidos existe uma grande produção de quadrinhos feitos por mulheres e já no Brasil, esse processo ainda está caminhando, e apesar de muitos eventos e feiras de quadrinhos ignorarem as mulheres quadrinistas, elas gritam sua arte por aí, e começaram a ganhar destaque no início dos anos 2000, quando surge uma “nova turma”. São

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mulheres empenhadas em dar uma revigorada nesse cenário. É a “geração Xerox”. Elas estão por todo canto: em diversos eventos sobre histórias em quadrinho, feiras, (muito) na internet – e em quantidades enormes de grupos online sobre o assunto, como no Facebook, e na briga difícil, como quadrinista, por um espaço na estante dos leitores de histórias em quadrinhos, e também, na briga pelo fim da representação unilateral da mulher nos quadrinhos. Além de tudo isso, existe um estigma: quadrinho de mulher é feito por mulher, então as pessoas acham que necessariamente vai falar de menstruação, TPM e coisas que os homens não se identificam. Mas não. “Toda mulher quer ser amada/ Toda mulher quer ser feliz/ Toda mulher se faz de coitada/ Toda mulher é meio Leila Diniz”, escreveu a cantora Rita Lee na música Todas As Mulheres do Mundo, em 1993. Estes versos podem definir bem a briga de uma quadrinista: ser amada e ser feliz. E ser um pouco Leila Diniz também: atriz brasileira que foi severamente criticada por quebrar diversos tabus entre 1960 e 1970, mas, que por isso, virou um ícone. E Rita Lee também é um ícone. Sempre esteve na luta pelas mulheres, e ao lado das mulheres. Outro exemplo é a letra da música Pagu, uma homenagem à jornalista comunista brasileira Patrícia Rehder Galvão, escrita por ela, Rita, e Zélia Duncan, que também não deixa de ser um tapa na cara do machismo: “Nem toda feiticeira é corcunda/ Nem toda brasileira é bunda/ Meu peito não é de silicone, sou mais macho que muito homem!”, ironizam. A ilustradora e fanzineira, Renata Rinaldi defende a ideia de que o cenário está mudando, e que já existe mais espaço para a mulher. “De alguns anos pra cá isso tem se modificado de uma forma positiva”, conta. “A inclusão, e a conquista desse espaço tem sido mais evidente, e as mulheres estão se posicionando, e estão fazendo esse movimento de publicar e correr atrás. Nós mulheres, sim, estamos conquistando esse espaço”. “A gente tem casos de todos os tipos, mas existe uma predominância de estereotipo sexualizado sim, mas isso já caiu muito por terra hoje, porque a gente tem a construção da personagem voltando pra aspectos emotivos, e uma coisa muito mais próxima para o ser humano mesmo”, explica a ilustradora.

as mulheres estão se posicionando, e estão fazendo esse movimento de publicar e correr atrás. Nós mulheres, sim, estamos conquistando esse espaço. 18


Renata, que sempre teve o quadrinho e as tirinhas agregados em seus trabalhos, faz parte do coletivo Foca no Rolê, e em Setembro de 2014, teve alguns materiais expostos em uma das maiores feiras de publicações independentes, a New York Art Book Fair (NYAB14), junto com outros 35 artistas de Brasília. “O quadrinho não é uma vertente tão formalizada no nosso mercado, e eu espero que as mulheres sejam reconhecidas como quadrinistas”, finaliza.

Documentário das ladies Hoje no Brasil, Lady’s Comics é um dos grupos que briga com mais força e garra para que a mulher quadrinista conquiste seu espaço. Formado pelas jornalistas Mariamma Fonseca e Samara Horta, e pela designer Samanta Coan, o Lady’s é um portal exclusivo sobre o tema. Ao entrar no site, o leitor dá de cara com a frase “HQ não é só pro seu namorado”. Recado dado! Em abril de 2014, o Lady’s Comics criou um minidocumentário para falar sobre este tema. O vídeo mostra visões de diversas entrevistadas, entre elas, Ana Luiza Koehler, Ana Recalde, Beatriz Lopes, Cris Peter, Marilia Bruno, Julia Bax, Laerte, Petra Leão, Érica Awano, Roberta Nunes e Mariá Raposa Branca, e mostra um pouco da briga pra quebrar a imagem de que mulheres são seres diferentes, até incompreensíveis. Com o título de “Representação das mulheres nas HQs”, o vídeo se resume em saber das quadrinistas, o que elas acham das representações das mulheres nos quadrinhos atualmente. “Peitão. Bundão. Pose sexy. Se a gente for ver, isso é uma fatia do mercado”, conta a roteirista Petra Leão no documentário, falando sobre o “exploitation” do mundo dos quadrinhos, termo aqui emprestado do cinema apelativo, que trata de efeitos especiais exagerados, como no sexo. Larter, cartunista que já participou de publicações como O Pasquim, e colaborou com revistas como IstoÉ, Veja, e jornais como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, também faz parte do documentário. “As representações feministas, vão ser necessariamente estereotipadas, enquanto existir a cultura de gênero, essa cultura que divide a humanidade em dois gêneros, o masculino e o feminino, qualquer representação masculina vai ser estereotipada”, conta. Ainda no vídeo, a roteirista Ana Recalde, que tem seus textos em publicações como “Patre Primordium” e “Quadrinhópole #8”, defende a importância da representação, e lembra uma

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fala da atriz americana Whoopi Goldberg, de quando viu Star Treck pela primeira vez, e contou pra sua mãe que viu uma personagem negra que não era empregada e nem escrava.

Vitrines e vitórias Em setembro de 2014, aconteceu no Centro Cultural São Paulo, Vergueiro, a quarta edição do UGRA Zine Fest, que juntou diversos coletivos e produções de fanzines e quadrinhos, todos da cultura independente. As mulheres, leitoras e quadrinistas, marcaram forte presença. Com direito até a uma banquinha dedicada exclusivamente pras mulheres: Femzines, de zines femininos, do grupo Zine XXX, também só de mulheres. A primeira banca da Femzines nasceu na Feira Plana, em março de 2014, na área externa do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, no, Jardim Europa, que funciona como a UGRA Zine Fest. O Zine XXX nasceu quando a artista carioca Beatriz Lopes, que já fazia parte de um coletivo de quadrinhos, sentiu essa deficiência: faltava mulher, não tinha quadrinho de mulher, e a mulher estava sendo apenas um acessório nos quadrinhos feito por homens, e isso não tinha relevância nenhuma, além de impedir que muita mulher chegasse perto dos quadrinho. Foi então que Beatriz resolveu juntar as mulheres, e chamá-las pra fazer parte de um coletivo feminino. Juntar todas as meninas que desenhassem. A partir disso, as meninas foram publicando mais e mais – surgiram mais páginas nas redes sociais, e algumas artistas até criaram suas próprias bancas. Em uma carta aberta publicada no site Catarse, um colaborativo financeiro virtual, Beatriz falou sobre essa história. “Eu consumo quadrinhos desde muito cedo e logo de cara percebi que era um mercado predominantemente masculino. As quadrinistas mulheres que eu tenho na minha estante eu posso contar nos dedos”, desabafou, e finalizou ressaltando que esse é “um desejo de tornar a área dos quadrinhos independentes mais igualitária e acolhedora para todas as identidades e corpos!”. Desde então, como uma irmandade, Beatriz procura sempre juntar e agregar os trabalhos das mulheres em sua banca.“A gente nem cobra comissão. É mais pelo espaço. A gente recebe material de vários estados, e o importante é as meninas mostrarem seu trabalho, e

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Você acha que só os garotos entendem de quadrinhos? Aqui você vai ver que não é bem assim. estarem aqui” conta Beatriz, com seu sotaque carregado do Rio de Janeiro. “E ainda dizem que menina não faz quadrinho. Fazem! E fazem um absurdo!”, conta sem deixar de esconder o brilho nos olhos. Prova de que a mulher já ganhou sua força nesses espaços, são justamente esses eventos. “Grande parte das organizadoras dessas feiras são mulheres. Por exemplo, a Feira Plana, aqui de São Paulo, a Feira Lasanha em Juiz de Fora, e na UGRA tem mulheres organizando. A mulher está presente – a gente só espera que se lembrem delas!”, aponta Beatriz. Laura Athayde, que não fazia quadrinhos, e ilustrava só por passatempo, tomou conhecimento dessa iniciativa do Zine XXX em meados de 2013, e logo quis fazer parte. Hoje, Laura, faz quadrinhos para várias páginas, e mantém desde 2013 a página Boobie Trap, em que publica suas ilustrações, ideias e trabalhos. Laura explica da dificuldade que ainda encontra “O problema é a atitude dos homens em relação a nós, chega a ser intimidador ir em certos eventos. “Muitas vezes, a gente fala: ‘olha esse fanzine, que massa!’ E um cara responde, ‘bonita é você!’ E já quer levar pra um outro lado”, explica. “A gente quer falar sobre quadrinhos, trocar trabalho, mostrar sua arte, e alguns caras, antes de te ver como uma colega, te vê simplesmente como uma mulher. Isso ainda precisa ser superado”, conta. E esse movimento não para de crescer. Outro fanzine que tem crescido bastante tem um nome um tanto quanto curioso: Xereca. Com mais de 10 mil curtidas no Facebook, elas postam freneticamente sobre a luta feminista. Na página, encontra-se de tudo um pouco: Desde os trabalhos delas, a imagens compartilhadas que incentivam as mulheres a votarem, e também, claro, imagens de mulheres quadrinistas segurando seus próprios “xerecões”, como elas costumam chamar seus zines. É importante destacar aqui, que as “xerecas” estiveram na Marcha das Vadias de 2014, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Marcha que protesta contra quem diz que mulheres são vítimas de violência, estupro e abusos sexuais diversos por causa do seu comportamento – como a roupa que vestem. E recentemente, mais especificamente em setembro de 2012, surgiu também no Facebook o Mulheres nos Quadrinhos, que procura divulgar o trabalho feminino nessa arte, com mais de 50 mil seguidores, entre Twitter e Tumblr.

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No texto de apresentação, a página desafia: “Você acha que só os garotos entendem de quadrinhos? Aqui você vai ver que não é bem assim”. Aquela mesma velha tecla que a gente discute aqui: menina não pode brincar de taco, e menino não pode pular amarelinha. Menina não pode brincar de carrinho, e menino, longe da Barbie! Ora, faça-me o favor! Chega a ser impressionante que ainda discutimos esse assunto no Brasil. O Mulheres nos Quadrinhos foi criado da vontade de falar sobre quadrinhos, e hoje, é mais um espaço que divulga e procura novas autoras, além de textos mais aprofundados e elaborados sobre a produção das mulheres, e discussões sobre diversos gêneros e quadrinhos. No geral, as mulheres querem saber, querem ver as temáticas que fazem sentido pra elas serem exploradas nos quadrinhos, e não tem menor problema em ser uma produção de mulher feita pra mulher. Outro grande e bom exemplo é o Selfless Portrair das Mina. Ou, Retrato Altruísta das Mina, se a gente traduzir ao pé da letra, Sim, das Mina mesmo... Grupo no Facebook, que começou com 100 membros aproximadamente, e hoje tem mais de 3 mil mulheres. O Selfless foi criado pela artista Suzana Maria, de Brasília, e é voltado exclusivamente para o clube da Luluzinha, perdão, só para mulheres... As participantes se dividem em duplas através de sorteios, e a missão ali, é uma desenhar a outra. Nas regras do grupo fechado, isso já fica bem claro: “Toda semana, na sexta feira, serão sorteadas 10 duplas de meninas (ou seja, 20 meninas). Essas duplas desenharão umas as outras. Exemplo: Fulana tira Sicrana. Fulana desenha Sicrana, Sicrana desenha Fulana”. Entendeu, fulano? Tema livre: O espaço também dá liberdade para que as “minas” (pá!) pensem e produzam artes diversas, como fotografia e escultura. E elas estão participando ativamente cada vez mais e mais, deixando as marcas de seus traços por aí, e preenchendo essas lacunas na história da vida real – só pela cidade de São Paulo, por exemplo, é possível encontrar diversas oficinas de ilustração/desenho, fanzines com mulheres interessadas, curiosas, e boas nos desenhos. No Centro Cultural São Paul (CCSP), na Vergueiro, também tem dessas oficinas, em que na média, de 10 anos, 4 são mulheres. Para pavor de alguns meninos, que ainda torcem o nariz para deixar as meninas se sentarem com eles para discutir sobre a arte das histórias em quadrinhos, esse número, o de mulheres como a mão na massa – ou com a mão nas lapiseiras, pra ser mais específico – não para de crescer. Artistas como Trina Robbins, Kate Carew e Melinda Gebbie, e até personagens como a Felismina, se orgulhariam de saber disso ao chegar no final deste capítulo.

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MaryCagnin A trajetória ilustrada de uma mulher quadrinista — Mary, me ensina a desenhar do jeito que você faz? Essa foi uma das frases que Mariana Cagnin, ou Mary Cagnin, como é conhecida por seus leitores hoje em dia, mais ouviu na escola. Assim como toda criança, Mariana, hoje, quadrinista e ilustradora formada em Artes Visuais pela UNESP, gostava de desenhar desde criança. Aos 10 anos, motivada pelos elogios, decidiu que iria aprender diversas técnicas, e procurar outros estilos de desenho – Turma da Mônica e o Menino Maluquinho foram substituídos por animes clássicos, como Sakura e Sailor Moon. Agora, o olhar da menina Mary ia direto aos famosos mangás nas bancas de jornais, e seus desenhos, já começavam a esboçar traços mais realistas. É a velha história: menino gosta de história de super-herói, e a menina já não gosta tanto, por isso, o fato: geralmente, a mulher que gosta de ler quadrinhos, começa lendo mangá, até porque tem muitos gêneros, e é mais fácil encontrar uma personagem feminina inserida nas histórias. Mas só reproduzir aquilo que ela via não era o suficiente. Não era autêntico. E a necessidade de contar suas histórias foi crescendo, ainda no uni-

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verso escolar. Porém, ela sempre guardou esses trabalhos pra si, e nunca chegou a publicar ou divulgar essas páginas. Mais uma história pra dentro do guarda-roupa. Páginas e páginas empilhadas de histórias que ninguém nunca leu. Também, não é pra menos: apesar de ser uma ariana determinada, seu ascendente em peixes prova parte de sua timidez.

O escape perfeito Em meio aos estudos para o vestibular, ainda fazendo cursinho, com uma ideia fervendo na sua cabeça e centenas de balões de histórias dialogando em sua própria mente, nasceu Juno da ponta de sua lapiseira, no papel branco sulfite comum de 70 gramas. Disciplinada, Mary começou a desenhar a história da personagem Juno, páginas e mais páginas. Ela foi colocando o trabalho na Internet, conforme ia produzindo, e esse foi o primeiro momento que ela divulgou algum trabalho seu, e o resultado foi mais que inesperado: as pessoas gostaram e pediram pra ela continuar a história. O desenho foi melhorando, e detalhes foram acrescentados. E o papel comum foi trocado por um bloco de papel canson de 120 gramas, não texturizado. Na mesa, muitas folhas rascunhadas, caneta gel branca, caneta corretivo, o bom e velho “branquinho”, dezenas de canetas descartáveis para finalizar o trabalho, bicos de pena, e um rádio tocando Muse ao fundo. E assim, Mary virou autora de mangás na internet – mangás sim, porque é o termo japonês para histórias em quadrinhos, suas maiores referências. Mary, que nasceu e foi criada em uma família com muita mulher, cercada pelo universo feminino, nunca precisou e nem dependeu de ninguém pra resolver alguma coisa, assim como Juno, a protagonista dos seus quadrinhos. E o nome dessa história? Mary criou uma lista enorme. Vários nomes. No fim das contas, três títulos chegaram à reta final. Vidas Imperfeitas ganhou de Adorável Mundo Imperfeito, porque era mais curto, e direto.

Mas só reproduzir aquilo que ela via não era o suficiente. Não era autêntico. E a necessidade de contar suas histórias foi crescendo 24


A história é um romance que nasceu naturalmente. Mary sempre leu muito mais livros do que quadrinhos – bebe água nas fontes do drama, romance e ficção épica até hoje. E a história foi bem aceita: até a ala masculina leitora comentou que não costumava ler romance, mas que gostaram muito da história de Juno. Mesmo que não integralmente, as experiências escolares de Mary foram utilizadas para narrar as histórias de Vidas Imperfeitas, e tem esse tom autobiográfico por causa disso. Todo leitor se lembra, e se identifica com as fases escolares nas páginas da autora, principalmente as vividas no ensino médio. Afinal, todo mundo passou por essa fase (ou está passando, ou vai passar), premiada por todos os conflitos, mudanças e emoções. É daí, talvez, o segredo do sucesso instantâneo da história: é algo real. E assim é a essência da história. Vidas Imperfeitas deu origem à uma personagem diferente das conhecidas no mundo dos quadrinhos; Juno é uma garota que tem controle sobre sua vida e sobre as situações que acontecem a seu redor. Dona de uma força física muito grande, esse “dom” é balanceado com as fragilidades interiores. Ela não deixa de ser uma pessoa como outra qualquer, com suas crises e fantasma internos. É uma metáfora: uma mulher com uma força surreal, que briga e enfrenta tudo, mas que tem esse contraponto, a parte interior. Seu calcanhar de Aquiles. E é também, de certa forma, uma resposta ao machismo. A partir daí, apaga, corrige, e refaz. Várias facetas da Juno foram criadas. E todo seu amadurecimento também. Vontades da autora foram externizadas (e eternizadas) na garota. Na vida de Mary, em muitos momentos ela para e pensa que devia ser mais como sua personagem: refletir menos e agir mais. Aos olhos da criadora, em muitas histórias a mulher tem o papel secundário, e só está ali porque precisa ter um papel feminino. É difícil ver uma personagem mulher que represente algo de importante pro mundo. E aí surge Juno.

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Ela surge também da necessidade que a autora sentia de ter uma mulher escrevendo personagens femininos no mundo dos quadrinhos. Nas histórias, sempre tem mulheres, claro, mas do ponto de vista masculino. E a mulher falando sobre mulher, permite um feeling feminino, uma diferença no olhar – porque elas vivem aquilo na pele, e à flor da pele, que é, inclusive, uma das características da personagem principal. Na faculdade, Mary conheceu o universo os fanzines. Abreviação de “fanatic magazine”, o fanzine é um importante meio de divulgação impresso, que é sucesso no mundo dos quadrinhos. Normalmente impressos em tamanho A5, é só dobrar um A4 ao meio e grampear – fácil e barato. Várias pessoas também faziam suas próprias histórias e a transformavam nesses zines. Imprimiam, e iam vender em eventos. Interessada na ideia, Mary pegou parte de sua história, que já tinha muita coisa pronta e a recomeçou. Mesmo já sendo fanzineira, mais uma vez, ela ingressou em um processo natural: nunca se imaginou quadrinista. Ela pensava no Vidas Imperfeitas, e pensava também que queria contar e terminar aquela história. E assim, os quadrinhos a escolheram. Anos mais tarde, os fanzines e Vidas Imperfeitas ganharam capítulos em sua monografia, “Artemídia Independente”. Teoricamente, o quadrinho faz parte de um universo masculino e fechado. A mulher precisa batalhar por seus espaços. Consciente disso foi o que Mariana Cagnin fez. O cenário que era só independente, tem ganhado cada vez mais espaço, e seus artistas reconhecidos. Ela lutou para ser vista, e se empenhava nisso, ia atrás, e sabia que os grupos de pessoas que produzem quadrinhos são assim mesmo, fechados. Ia aos grupos, e ficava cercada por uma dúzia de rapazes. Raramente, tinha mais uma ou outra mulher ali. — Olha, eu também faço quadrinhos! Nunca se sentiu coagida, e nem sofreu nenhum tipo de preconceito por ser menina. E se sofreu, não percebeu, pois estava focada única e exclusivamente em mostrar seu trabalho. Mostrar a qualidade de seus desenhos, e tudo que aprendera

Aos olhos da criadora, em muitas histórias a mulher tem o papel secundário (...) É difícil ver uma personagem mulher que represente algo de importante para o mundo. E aí surge Juno. 26


A rotina: ROTEIRO. RASCUNHO. INTUIÇÃO. E DISPOSIÇÃO. Nada de pressão, e nada que possa interferir na qualidade dos quadrinhos. a desenvolver naquele mundo. Sempre foi de viver independente do que as pessoas diziam ou achavam, fazendo aquilo que acredita. Sua arte. Mas o retorno não vinha só dos fanzines, afinal, ela também publicava de uma a quatro páginas por dia na internet, no deviantART – uma espécie rede social para divulgar trabalhos artísticos, que possibilitou um retorno muito maior – porque as pessoas comentam, divulgam, manda para as outras, e tudo, de forma gratuita e rápida, o que é um estímulo para as pessoas lerem. Diferentemente do papel impresso, que ela levava seus zines em eventos, e muitas vezes, as pessoas se interessavam, mas não levavam para casa. Ainda na faculdade, desenvolveu diversos trabalhos sobre o mundo dos quadrinhos, sempre presente na vida dela. Começou a ler e estudar livros sobre o assunto, e foi se aperfeiçoando mais no tema. Ainda sem saber muito bem que rumo tomar depois da faculdade, foi embalando vários projetos pessoais enquanto isso. E ao se formar, fez o Curso Abril de Jornalismo, sobre ilustração e infografia – o que abriu diversas portas para o seu trabalho, ainda mais para o lado de ilustração, onde ela se entende melhor. Bang! – Conseguiu um emprego como ilustradora em uma editora, e, profissionalmente, se vê hoje em dia mais nessa função do que quadrinista. Em uma feira do Anime Friends, o maior evento no Brasil sobre a cultura japonesa em geral, surge um convite: Publicar a história pela editora HQM em 6 edições, com cerca de 70 páginas. O fanzine original tem 6 edições, com 40 páginas, cada.

Quadrinista. Profissão camaleão Todo dia, Mary chegava em casa e tinha mais uma página para fazer. Essa rotina era quase que uma terapia. Um momento só dela, difícil de se desprender. E era uma troca; Apesar de fazer a história de Juno para ela mesma, sabia que fazia para os outros também – passou a ser da autora para o mundo, porque sempre voltavam mais e mais comentários sobre a história da briguenta Juno. Terminar

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o Vidas Imperfeitas foi muito cansativo. Quase doloroso. Foram mais de 3 anos, e uma hora era preciso colocar um ponto final e criar a última página. A maioria das pessoas que publicam, ainda estão fazendo seu material, e com Mary, foi diferente – é sempre diferente. Ela já tinha tudo fechado. E por isso mesmo, ela fez todo o processo – normalmente, um quadrinista trabalha em conjunto, tem toda uma equipe fazendo os trabalhos. E particularmente no caso de Mary não. Ela ficou encarregada de fazer todos os papéis. Existem dois momentos muito diferentes na produção de um quadrinho: o fazer, e vê-lo pronto. Além de fazer tudo no papel, Mary diagramou todas as páginas, com auxilio do Photoshop e o InDesign. Balonização e finalização também foram feitos no computador. Mas ela sabia que tudo aquilo seria motivo de bastante orgulho quando finalizado. A rotina: Roteiro. Rascunho. Intuição. E disposição. Nada de pressão, e nada que possa interferir na qualidade dos quadrinhos, como um namorado fã da história expulso do quarto, sempre que ela estava num processo criativo. — Doug, depois eu te mostro! Sai daqui. E fecha a porta. Dessa forma, foram feitas páginas e páginas antes de montar o Vidas Imperfeitas como é hoje. E as ideias, espalhadas e escorrendo pelas pontas das lapiseiras e canetas de finalização. Uma edição por semestre. O feedback sempre foi muito grande, e o bastante para deixar a autora tocada. Mesmo após o fim do romance, vira e mexe, tem alguém que comenta que passou por situações parecidas com as de algum personagem, e que através da história, puderam refletir melhor sobre seus próprios assuntos. Vidas Imperfeitas, de alguma forma, foi, e é, importante para muitas pessoas – e é isso que faz o trabalho da ilustradora valer a pena. Afinal, hoje em dia, é difícil sobreviver com o lucro dos quadrinhos – falar em questões mercadológicas é frustrante, existe mercado, existem autores (e autoras), mas faltam editoras investindo nisso. Nada é realmente perfeito. E se existir algum ponto da perfeição, qual a graça de viver? Pensar assim, fez a autora fugir do lugar comum que é o “felizes para sempre”, e encerra sua história. Existe sempre alguma coisa que te motiva, e que te leva à diante. Porque você precisa sempre amadurecer e melhorar. A vida continua. E é justamente sobre isso que fala Vidas Imperfeitas. Agora, aos 23 anos, a criadora, com missão cumprida, rascunha novas ideias, em novas páginas em branco do papel canson. É hora de destampar a caneta de desenho preta.

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Feminismo e erotismo feminino

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Representação da mulher e de sua sexualidade Histórias em quadrinhos, conservadorismo e, por que não, feminismo Qual é a primeira imagem que vem à sua mente quando você ouve a palavra feminismo? Provavelmente pense em mulheres bravas – Grrrrr –, que odeiam os homens, não se depilam e muito menos cuidam de sua aparência, não é mesmo? – Puffff – Esta palavrinha inocente que tem um poder enorme, infelizmente, é tratada de forma negativa, principalmente por quem não entende bem do assunto ou tenha escutado apenas algumas opiniões isoladas sobre o tema. Isso faz com que as mulheres (e até mesmo os homens) tenham medo de se intitularem feministas, o que, convenhamos, nos tempos atuais, é de um conservadorismo que incomoda! – Blééé!! Mas o que o feminismo, ligado ao conservadorismo, tem a ver com as histórias em quadrinhos? Caro leitor, falar sobre conservadores sempre remete a temas polêmicos, como o feminismo. Para explicar melhor, me acompanhe em uma (longa) viagem no tempo até a pré-história, época em que foram descobertos os primeiros indícios do surgimento da ilustração, já que o ser humano criava em paredes sequencias de imagens para registrar o seu dia-a-dia, o seu modo de vida e a sua cultura. Por mais que o tempo tenha passado – tic tac tic tac – e costumes tenham sido moldados, expressar sentimentos, experiências de vida, visões políticas e filosóficas continuaram sendo motivos inspiradores para artistas criarem histórias em quadrinhos. O movimento feminista é um deles. Carlos Antônio Rodrigues, professor de História e Sociologia, pós-graduado em História, Sociedade e Cultura pela PUC-SP e especialista em Gestão de Políticas Públicas, Diversidade e Inclusão Social pela Universidade São Francisco-SP, concorda que a nossa sociedade ainda está enraizada no conservadorismo religioso e na estrutura familiar burguesa iluminista, em que a liberdade e cidadania são vistas pelo viés econômico e não comportamental. Seus estudos comprovam que mensagens que são cantadas em versos de muitas músicas de vários estilos nas periferias e em outras localidades incentivam a liberdade dos corpos, mas de maneira instrumentalizada e não apenas erotizada. — Apesar dos avanços, ainda temos problemas sérios e muita inconsistência no que se diz à liberdade da mulher.

Traços tortuosos dos motivos que deram um empurrão ao movimento feminista Parece que ainda estamos na pré-história, caro leitor, mas, por incrível que pareça, avan-

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Mãos e olhos concentrados em uma folha em branco capaz de fazer a imaginação fluir, acompanhada de um ideal de igualdade a transpor

çamos até 1789 e paramos na Revolução Francesa para ilustrar que esta luta não conseguiu acabar com as enormes desigualdades entre homens e mulheres da época. Nascidas com seus perfis planejados pelo pai, as mulheres não tinham um destino promissor. A obrigação delas era a de satisfazer aos homens, serem ignorantes donas de casa, fiéis esposas, atentas mães, passivas ao patriarcalismo e, no máximo, bordadeiras de mão cheia. Quando casadas, eram consideradas incapazes juridicamente, não podendo agir como as cidadãs livres e adultas que deveriam ser... Vê se pode!! Com a expansão da industrialização, já no século XIX, a mão de obra feminina em massa passou a ser de suma importância nos maquinários das fábricas (só assim para verem que somos mais macho que muitos homens). Logo, a presença da mulher no mercado de trabalho se tornou indispensável, realidade quase nula em anos anteriores. Nesse momento, ideologias socialistas se consolidaram, facilitando a união do feminismo ao movimento operário. Antes tarde do que nunca – Clap clap clap. No dia 8 de março de 1857 (atualmente a data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher e dia em que você, garota, provavelmente vai receber a única e mísera rosa que poderia ter ganhado em qualquer um dos outros 364 dias do ano), um tumultuado movimento grevista foi realizado por mulheres russas exigindo melhores condições de trabalho e de vida, o que ocasionou um enorme incêndio que provocou a morte de 129 operárias. O direito ao voto também foi conquistado tardiamente, apenas em 1893, primeiramente na Nova Zelândia. Entre os anos de 1914 e 1939, outros 28 países liberaram o direito ao voto para as mulheres. Em 18 de dezembro de 1979, foi promulgada, no âmbito das Nações Unidas, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em formato de uma Carta Internacional dos Direitos da Mulher (belíssima carta que ficou só no papel). Por mais promissor que isso seja, ainda não comemore! Mesmo após toda a luta feminina em busca de liberdade, a violência e a desigualdade continuam presentes no dia a dia das mulheres. Estupros, agressões físicas por parte dos pais e maridos, inferioridades no mercado de

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trabalho, agressões verbais e morte são recorrentes na vida de mulheres. Além disso, opiniões contraditórias quanto ao feminismo são comuns por pessoas que confundem o movimento de igualdade com pregação de ódio e dominação das mulheres sobre os homens – Argh!

A verdade sobre o feminismo Você! Sim, você mesmo, que depois de ler tudo o que foi escrito acima ainda alega não ser feminista... Me responda uma coisa, mas com sinceridade: você acredita que todas as pessoas devem ser tratadas da mesma maneira em diferentes ambientes e situações e independentemente de seu sexo? Óbvio que sim, não é? Pois bem, não quero estragar o seu dia nem nada, mas preciso lhe contar que você acaba de assumir que é uma pessoa feminista. POW! – Espero não ter “explodido” o seu cérebro, leitor. Ok. Calma. Não precisa jogar fora a sua gilete. Vou explicar melhor. O feminismo não é uma causa contra o sexo masculino e muito menos contra a constituição de uma família feliz. Também não é um movimento que impede que as mulheres sejam femininas, usem batom vermelho – Smack –, saltos altos e lindos vestidos (curtos ou longos – quem escolhe são elas) floridos. O feminista não precisa deixar de se depilar e de se maquiar (juro para você). Existem feministas misândricas, mas essa não é uma regra e, principalmente, não deve ser uma. O feminismo ajuda a mulher a se empoderar de forma positiva, a ser quem ela gostaria, a agir como quer, a trabalhar como e onde escolher, a ganhar os mesmos salários que os homens ganham, a manter relações sexuais com quem e com quantas pessoas quiser, a poder andar nas ruas sem se sentir incomodada ou ser abordada, a ser dona de seu próprio corpo e, entre tantos outros direitos, a não ser julgada pelo seu sexo. Hummmm – Então é isso? – Pensa você – Sim! É isso. Simples como deveria ser a vida de toda mulher.

Mesmo após toda a luta feminina em busca de liberdade, a violência e a desigualdade continuam presentes no dia a dia das mulheres

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Antes de nossa viagem no tempo... As mulheres têm sido retratadas nas histórias em quadrinhos desde que a mídia de massa surgiu, quase sempre com um retrato controverso, já que as primeiras formas femininas a aparecerem em HQs assumiam papeis secundários, vítimas em casos de estupros e assassinatos – Pffffff. O número de personagens femininas, tanto as heroínas como as vilãs, cresceu na década de 1970, em resposta ao movimento feminista e na tentativa de diversificar os leitores. No entanto, essas personagens eram, muitas vezes, estereotipadas. Como exemplo, há a feminista Man-killer, que, como o seu nome sugere (Matadora de homens – Ha ha ha), odeia os homens. A personagem Ms. Marvel é um exemplo de luta da Marvel com as questões do feminismo. Teve sua estreia em 1977, com o honorífico “Ms.” como parte de seu codinome. O nome da heroína foi um forte símbolo de solidariedade feminista, assim como o seu cargo de editora da revista “Mulher”. Ainda assim, durante boa parte da Idade do Bronze (período de maior tendência de histórias em quadrinhos americanas, que compreende 1970 a 1985), as mulheres em quadrinhos não assumiram posições de liderança. Estávamos muito ocupadas servindo os nossos másculos homens. Na década de 1980, através da arte e escrita de John Byrne, Susan Richards, atualmente conhecida por Mulher Invisível, encontrou novas maneiras de usar os seus poderes, sendo mais agressiva. Dessa forma, o seu nome mudou de Garota Invisível para Mulher Invisível, o que, para seu criador, supostamente deu maior credibilidade à personagem, já que sua nova fase retrata o seu amadurecimento Como se garotas não pudessem combater o crime com perspicácia... O que será que John Byrne acha das Meninas Superpoderosas? Na década de 1990, uma garota popular de quadrinhos feminista foi a belíssima Tank Girl, criação de Jamie Hewlett e Alan Martin, com roupas de influências punk e cabeça raspada. Ela representa a mulher moderna como alguém que já não tem que viver sob as imagens tradicionais de beleza ou de boas maneiras impostas pela sociedade. Na proporção em que cresciam personagens mulheres fortes e com os seus próprios títulos, o sexo passou a ser usado para vender histórias em quadrinhos. No século 21, os papéis de muitas mulheres mudaram. A opção de serem mães solteiras, de se relacionarem amorosamente com mais de um homem ou até mesmo com outras mulheres e de conquistar posições de poder no trabalho define as características femininas da sociedade moderna.

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Essas mudanças, consequentemente, atingiram também a imagem feminina nas histórias em quadrinhos. O lesbianismo tornou-se cada vez mais comum em HQs modernas. Em 2006, a DC Comics chamou a atenção da mídia ao anunciar uma nova versão, lésbica, da personagem que já era conhecida, a Mulher Gato – Miaaaau –, apesar da existência de outras personagens menores que, na época, eram abertamente lésbicas, como a policial da cidade Gotham, Renee Montoya. Imagine só em que lugares fatídicos a versão gay da Mulher Gato deve enroscar as suas garras...

Uma notícia boa para acalmar o seu coraçãozinho – Tun tun tun –, caro leitor Caracterizações de mulheres como objetos sexuais têm sido menos abordadas nas últimas décadas, assim como as representações de mulheres como vítimas de brutalidades físicas, que diminuíram significativamente ao longo dos últimos 20 anos. E não é só isso. Histórias em quadrinhos recentes indicam uma possível reversão da tendência dos personagens serem retratados de acordo com os estereótipos de gênero. Quadrinhos feministas mostram as mulheres como pessoas, não enfatizando apenas os seus peitos e bunda com narrativas que apelam apenas para o lado sensual da mulher. Apesar de sermos muito sensuais, não é mesmo? O sociólogo Carlos Rodrigues observa que o corpo feminino é visto pelo prisma do outro, que define o uso, a forma, a estética, para então atender o mundo capitalista que transforma tudo em mercadoria. Atualmente, histórias em quadrinhos com narrativas políticas e sociais têm sido as mais elogiadas e populares entre os leitores. Com seu falso mandarim, Homem de Ferro 3, da Marvel Comics, possui um enredo explicitamente sobre orientalismo e preconceito. Outro exemplo é O Cavaleiro das Trevas Ressurge, baseado em Batman, da Dc Comics, que explora o movimento “Ocupe Wall Street”, sobre desigualdade econômica e social, além de corrupção por parte do governo dos Estados Unidos. Os quadrinhos originais da Mulher Maravilha, por exemplo, foram ainda mais politicamente engajados. O seu criador William Marston acredita que as mulheres eram mais adequadas do que os homens para governar, e seus quadrinhos foram dedicados à explícita moralização feminista. Um lindo esse William Marston!

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Caracterizações de mulheres como objetos sexuais têm sido menos abordadas nas últimas décadas

Levando em conta a cultura feminista atual, artistas utilizam as histórias em quadrinhos como meio de tentar erradicar todo o preconceito e desigualdade que o sexo feminino sofreu e ainda sofre. Com a expansão da internet, muitos quadrinistas aproveitam o meio, que é mais barato e possibilita maior divulgação de seus trabalhos voltados ao feminismo e erotismo feminino. Este último, PASME, considerado um tema tabu. Carolina Branco de Castro Ferreira é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da Unicamp, e acredita no potencial das histórias em quadrinhos e suas estéticas como um meio que oferece maior visibilidade ao feminismo, principalmente em termos geracionais. Seus estudos revelam que, de maneira geral, a atuação feminista tem se valido grandemente da arte como forma de retratar dores, traumas, preconceito, ironias e outros temas relacionados ao feminismo que necessitam de maior atenção por parte da sociedade. — A busca de quadrinistas pela nona arte como meio de retratar o feminismo é maravilhoso, criativo e bastante eficaz no que se diz respeito ao empenho de modificação da ordem simbólica e prática do mundo ao qual esse movimento luta. A quadrinista e estudante de Artes Plásticas na Universidade de Brasília, Gabriela Masson, retrata a imagem da mulher como personagem principal em suas histórias em quadrinhos e zines predominantemente feitos em tonalidades cor de rosa – Uaaau. Ela tem como objetivo aumentar e modificar o padrão da representação de mulheres nas mídias, na história do mundo e no imaginário da sociedade. A princípio, esse objetivo pode parecer abstrato e distante, mas uma de suas histórias em quadrinhos mais conhecidas, a erótica e atrevida Garota Siririca, por exemplo, já está ganhando visibilidade, mesmo sendo apenas uma produção independente de alcance limitado. Gabriela percebe que a ideia que a sociedade tem sobre as mulheres (e também o que as próprias mulheres pensam delas mesmas) tem mudado. — Um grande fator do sucesso da Garota Siririca foi a escassez absurda de personagens mulheres diversas e mais fiéis quanto aos anseios e experiências que nós, mulheres reais, vivenciamos.

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Levando em conta a cultura feminista atual, artistas utilizam as histórias em quadrinhos como meio de tentar erradicar todo o preconceito e desigualdade que o sexo feminino sofreu e ainda sofre

A artista, que, além da Garota Siririca, criou A Ética do Tesão na Pós-Modernidade e outras tirinhas e zines acredita que esse é o momento de produzir conteúdo feminista, uma vez que os movimentos sociais têm ganhado cada vez mais visibilidade e a presença de mulheres que produzam conteúdo feminista de naturezas diversas é essencial para endossar uma transformação real da sociedade. A sua experiência com histórias em quadrinhos vem de longa data, quando ainda não tinha autorização dos pais para pintar os cabelos e colocar piercings no corpo já que, como você está cansado de saber, leitor, isso é coisa de moleque. — Os quadrinhos sempre estiveram muito presentes em minha formação cultural. As histórias em quadrinhos e animações que a feminista consumiu durante a vida foram responsáveis por moldar sua subjetividade e por informa-la objetivamente sobre o sexo. Também, através desses produtos culturais, descobriu personagens que inspiravam a sua atitude na vida. — Acredito muito no potencial de comunicação, educação e experimentação plástica que as histórias em quadrinhos oferecem. Ela também percebeu que consegue comunicar as suas ideias e sentimentos bem melhor por meio das histórias em quadrinhos do que em textos em prosa. Isso porquê visualmente o desenho e outras formas plásticas sempre a deslumbraram. Outra garota famosa por seus inúmeros trabalhos com histórias em quadrinhos feministas e apimentadas é a Thais Gualberto, formada em 2012 em Arte e Mídia na Universidade Federal de Campina Grande e coordenadora de quadrinhos na Fundação Espaço Cultural da Paraíba. Ela foi se transformando em uma editora de quadrinhos ao longo do tempo, principalmente por conta de sua experiência com o Coletivo WC, grupo responsável pela criação da revista Sanitário, que deve ter sua terceira e última edição lançada ainda em 2014.

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Thais gostaria de trabalhar por conta própria para o seu próprio selo ou, pelo menos, procurar uma editora onde mora, em João Pessoa, mas o mercado de trabalho para a área artística com trabalhos voltados à mulher é escasso por lá. A sua história em quadrinhos mais famosa é a Olga, a sexóloga taradóloga, uma mulher que constantemente dá dicas sobre sexo voltadas tanto para o público feminino quanto masculino. Ela sempre se sentiu insegura para falar sobre comportamento sexual, apesar de esse ser um de seus temas favoritos. — Algumas pessoas confundem as coisas e acham que mulher que fala sobre isso está disponível para cantadas e afins. Como se não pudéssemos entender de sexo. Como se o entendimento da maioria dos homens não fosse baseado em filmes pornográficos e revistas extremamente apelativas e irreais. Ao produzir quadrinhos, Thais encontrou a maneira perfeita de tocar no assunto sem se expor demais, criando a Olga. — Claro que sempre tem quem misture personagem e autora, mas a partir dela passei a me sentir livre para falar de sexo. Porém, o tema costuma agradar. Aliás, a temática sexual em geral é voltada para os homens. Histórias em quadrinhos eróticas atendem aos parâmetros privilegiados pelo sexo masculino e heterossexual, com personagens femininas cheias de curvas e sempre muito atraentes. Levando em conta o fato de que as mulheres não se politizam a respeito da sua representatividade dentro da indústria, elas acabam se contentando com os produtos que estão acessíveis – Dããã. Com isso, ajustam os seus desejos ao modelo heteronormativo compulsório e violento do mercado erótico... – Ta dã – Aí que entra o feminismo e a necessidade do empoderamento feminino. Convenhamos, uma mulher que não se conhece e tão pouco se atreve a explorar o seu próprio corpo provavelmente não terá uma vida sexual satisfatória com outra pessoa. Dessa forma, a indústria pornográfica provavelmente submeterá a mulher a uma noção errônea sobre o sexo, que pouco tem a ver com o poder e dominação do homem sobre a mulher. Este conhecimento pode até evitar cenários de violência contra a mulher, que muitas vezes, desinformada, abaixa a cabeça para atos de crueldade durante o sexo.

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Sexo, leitor, pouco tem a ver com maus tratos. No fracasso ao tentar expressar sentimentos e credos através da escrita, as duas quadrinistas feministas, Gabriela e Thais, buscaram na nona arte um meio de escapar da brutalidade do machismo que sentem na pele diariamente. A experiência negativa de vida que vem a partir da consciência de que a inferioridade do sexo feminino é uma realidade, faz com que as mulheres cada vez mais se unam através da arte para retratar e discutir o tema. São incontáveis as páginas em redes sociais, sites, grupos de divulgação, eventos e oficinas que discutem sobre preconceitos contra a mulher – para você ter uma noção da quantidade, digamos que ultrapassa o número de páginas de revistas Playboy foleadas por machos alfa em busca de prazer em forma de photoshop. A conscientização sobre a importância do feminismo é essencial e, felizmente, explorada também em obras feitas por homens feministas. Como exemplo, temos Deus, essa gostosa, livro publicado pela Cia das letras em formato de história em quadrinhos e de autoria do ilustrador Rafael Campos Rocha. O livro é uma espécie de pequena novela, de viés erótico, voltado principalmente à masturbação feminina... O que? Você achava que não fazíamos isso também? Como personagem principal, Rafael retrata Deus, que costuma ser representado como um homem velho, casto, transcendental e ditador das normas da vida. No livro, Deus é uma mulher negra, jovem, sexual, mundana e que não dá a mínima para o que as pessoas fazem ou deixam de fazer. O seu aspecto físico vem das mulheres africanas que o autor conheceu em uma temporada de alguns anos na Europa.

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— Aquelas mulheres enormes, lindas e orgulhosas, mostrando indiferença ao desprezo misturado à inveja e ao desejo que os colonizadores despejavam sobre elas. Psicologicamente, a personagem é inspirada em mulheres que o autor conhece, como sua esposa e amigas. Ela tem muito de Rafael e de sua ojeriza à autoridade, seja da pátria, da escola ou da igreja. Que Deusa abençoe as mulheres.

Mas, e agora? O futuro dos quadrinhos é abrangente, intersetorial, com crescente número de leitores de histórias com personagens mulheres e crescente atuação de homens e mulheres contra o sexismo: parece que estamos caminhando, mesmo que em passos lentos, para a libertação da mulher. E a arte tem ajudado. A arte tem libertado, dado novas formas e aberto espaço para a discussão de um tema delicado, mas não delicado como as mulheres devem ser. Não. Elas são fortes! A nona arte ajuda homens e mulheres feministas a exporem um ideal que se sente na pele, que dá forças para encarar machistas e sexistas que lidam com nossas mulheres como se fossem pedaços de carne que desfilam para eles. Vamos dar valor às mulheres e retrata-las como as pessoas fortes e livres que são.

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talita

a .k. a .

evey

Empoderada — Não, porque você é menina. Essa foi a justificativa usada pelos pais de Evey (e, provavelmente, pelos pais de muitas garotas) para a maioria de seus inocentes desejos e pedidos na infância e adolescência. Evey, aliás, é o codinome de Talita Dourado, uma (quase) comum garota de 21 anos, moradora dos subúrbios de Guarulhos, em São Paulo. Digo quase, pois a loiríssima dispõe de um superpoder chamado – Tan dan – feminismo, o qual descobriu aos 12 anos de idade e que até hoje a ajuda a ser uma mulher decidida, ativa e revolucionária por onde passa.

Caro leitor, coloque a sua capa contra machismo e me dê a mão Este foi um período de grande submissão sofrida pela garota, que teve a sua criação bem diferente da que o seu irmão 5 anos mais velho recebeu – Pffff. Conforme cresceu, ficou claro que o seu papel foi previamente definido pelo fato de ter nascido mulher e que ela não poderia ir a todos os lugares que os meninos podem. Com a aprovação de seus pais, seu irmão sempre achou ter mais direitos do que ela e também sobre ela. Aliás, esse foi um dos motivos que fez os dois se afastarem

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e manterem uma relação um tanto quanto – Boom! – complicada. O irmão de Evey tinha videogames que ela não podia jogar e, além de tudo, ele dispunha do apoio dos seus pais para que ela não jogasse – Fuééén.

! A IN N E M É Ê C O V E U Q R O P - NÃO, Quando jogava bola com os meninos de sua rua, Evey e amigas eram tratadas de forma diferente pelos meninos. Ela teve vontade de tocar guitarra como o seu irmão e também quis andar de skate. Os pais, dona Sônia e seu Manoel, entraram em ação e – Nãããão!!! – rejeitaram lhe comprar o instrumento e o skate, alegando que as meninas não poderiam ter esses desejos, que eram “coisas de menino”. Mesmo ao questionar, ela nunca recebia uma resposta coerente até mesmo para uma menina de 11 anos. Empoderamento feminino Em contraponto, essas pequenas proibições foram modificando o pensamento da garota, sempre questionadora do mundo a seu redor. Conforme o tempo passou, ela já estava muito familiarizada à cruel realidade machista a qual estava inserida. Assim, aos 12 anos, reconheceu em músicas e bandas que repetiam incansavelmente em seu discman as problemáticas que sofria em casa, e a partir delas ouviu pela primeira vez a palavra mágica que a ajudou a entender melhor o caos que sofria na pele: feminismo – Pliiiim. — Interessei-me pelo conceito, mas não usava a palavra para falar de mim mesma até os 16 anos. Sem entender muito bem o superpoder que possuía, Evey começou a perceber que o simples fato de reconhecer e dizer que é feminista a ajudava a empoderar também as mulheres de seu convívio, o que passou a oferecer alternativas que fizeram as garotas pensarem positivo e irem à luta pela igualdade entre os sexos. Foi assim que, orgulhosa das ideias e traços que tinha rabiscado em papéis que teriam como destino a terceira gaveta da penteadeira, a mulher faladeira e de atitude, com aparência de quem tem menos do que a sua idade real, que passou a ser loira recentemente e não dispensa o batom vermelho, começou a produzir fanzines (contração da expressão em inglês fanatic magazine, ou seja, uma revista que é produzida por fãs de um determinado assunto em comum e que não sejam necessariamente profissionais. Podem conter histórias em quadrinhos, textos, colagens e outras experiências gráficas).

Uma artista descobre o corpo e o mundo Foram duas produções – Clap clap clap! – O primeiro foi o que durou mais tempo, de 2007 a 2009, e foi idealizado por Evey e uma amiga muito próxima a ela. Com o

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O simples fato de reconhecer e dizer que é feminista a ajudava a empoderar também as mulheres de seu convívio

reconhecimento que as duas tiveram, outras pessoas começaram a se agregar à produção, mas as duas garotas eram as responsáveis por encabeçar os temas. Escreviam a maioria dos textos publicados, além de serem as autoras das artes com colagem e das ilustrações. Elas usavam folhas de sulfite, revistas velhas, tesoura, cola e uma caneta. Xerocavam tudo para distribuir na rua em que moravam – Vup vup vup. O primeiro fanzine se chamava “Oiii...to pilhas” e teve fim por conta do afastamento de sua amiga, que decidiu fazer uma produção somente dela. Foi então que Evey começou uma nova revista, em 2009, que durou até o começo de 2010. Ela se chamava “Buraco Zine”, cujo nome foi baseado na música “Um buraco de realidade”, da banda feminista Infect. Na época, era capaz de influenciar e atrair várias meninas a fazerem os seus próprios fanzines e os entregar pela escola – Clap clap clap! — Na época em que comecei a fazer meus zines eu tinha de 12 para 13 anos. Com 14 atingi o “auge” e eu ainda não tinha uma vida sexual ativa. Evey descobriu que o patriarcado ensina a silenciar o corpo e, inclusive, deturpa o feminismo logo que há o primeiro contato com o termo. Nessa época, ela interpretava a frase “o corpo é um campo de batalha” erroneamente como algo silenciador de sua sexualidade e por isso não abordava o erotismo. Apenas após assumir o termo descobriu que a sua sexualidade existia e que deveria ser empoderada também. A artista e feminista precoce aborda até hoje em suas criações temas ligados ao seu próprio cotidiano, como mulheres sendo tratadas como produtos pela TV e propaganda, assédio nas ruas, meninas adolescentes sendo julgadas por engravidar enquanto os meninos parecem não ter responsabilidade alguma em relação a isso etc. — Sempre abordei também assuntos distantes da minha realidade, como o aborto, mesmo que na época em que criava zines eu não tivesse a noção de que esse tema, inclusive, é uma questão de saúde pública. Evey retratou em seus zines sobre como cenas ditas “libertárias” tratavam as mulheres.

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Ela frequentava shows de hardcore e percebia que havia uma diferença de tratamento, mesmo em um “lugar seguro”. A questão do machismo enrustido em grupos ditos libertários é, até hoje, uma das questões que mais problematiza em sua vivência como feminista. A estudante de design acredita que abordar o feminismo e o erotismo feminino através das histórias em quadrinhos ou por qualquer outro meio é muito importante para desconstruir a ideia arcaica de que apenas homens fazem coisas legais e de conteúdo interessante. Ela lamenta que o mercado dos quadrinhos ainda seja muito masculino, principalmente o mainstream de heróis que hipersexualiza as mulheres (visto o caso da Mulher Aranha, de Milo Manara). — É importante desconstruir o machismo e ter paciência para explicar as nossas problemáticas, mesmo que nos chamem de inseguras, mal-amadas, putas, extremistas, encanadas e inserir nossas vivências, inclusive as sexuais, como naturais.

Planos e Contraplanos Quando Evey começou a pensar em seu futuro com maior afinco, resolveu que, entre as possibilidades, o que mais a agradaria seria trabalhar com Comunicação Visual, principalmente porque fazia grafite e produzia um fanzine. Muito interessada em artes, a leonina (signo dos criativos e ativos) queria trabalhar com algo que a desse prazer, acima do que qualquer dinheiro pudesse pagar. Escolheu a graduação em Design ao perceber que o curso não abrangeria apenas a área das artes e que, dessa forma, poderia fazer muito mais do que imaginava com o conhecimento que viria a adquirir (mesmo que autodidaticamente). Atualmente, ela trabalha com Design Têxtil em uma empresa que desenvolve tecidos para interiores automotivos. — É uma satisfação profissional mais estética, digamos. Gosto de fazer isso, mas tenho questionamentos existenciais quanto a essa profissão – Ha ha ha! Evey está um pouco afastada das produções gráficas pela falta de tempo, que é gasto em seu trabalho, na graduação e também no namoro de quase 8 anos com o estudante de Design, Jefferson Teixeira, também feminista.

FEMINISMO: s.m. Doutrina cujos preceitos indicam e defendem a igualdade de direitos entre mulheres e homens

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O patriarcado ensina a silenciar o corpo e, inclusive, deturpa o feminismo logo que há o primeiro contato com o termo

No futuro, ela quer voltar a produzir um fanzine, a fazer grafite, trabalhos autorais e também freelas em áreas diferentes da do Design Têxtil. Também é sua vontade estudar Comunicação Social, mesmo que de maneira autônoma, o que a ajudaria a preencher outra lacuna que tem nos desejos pessoais, que é o de comunicar também com palavras – Blá blá blá – e de maneira mais direta e eficaz do que os meios que conhece e utiliza.

Inspirações e otimismo Fã de histórias em quadrinhos porque gosta da ideia de ler com um suporte imagético. — As imagens representadas nos quadrinhos estabelecem uma relação bem mais interessante do leitor com a obra. Além disso, produzir histórias em quadrinhos permite que Evey tenha a oportunidade de conseguir retratar exatamente o que ela pensou sobre seus personagens e situações que gostaria de abordar. Como leitora, ela sente que, assim, a sua relação com a obra é mais direta e rápida, em comparação com a relação que podemos ter com o livro comum. O seu codinome, Evey, começou a ser usado em todas as suas assinaturas ao produzir grafites e é uma homenagem à protagonista do livro “V de Vingança”, personagem pela qual ela se identificou bastante ao ler a história em quadrinhos pela primeira vez, em 2007. — Até hoje, ao fazer um trabalho autoral de ilustração, assino com esse nome, mesmo que fique na gaveta. Evey é extremamente envolvida com o feminismo, principalmente quando nos aprofundamos nos trabalhos que produz desde a sua adolescência – momento em que descobriu o seu superpoder – e tem aplicado este ideal em sua vida desde que – Bumba! – percebeu a importância

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do tema individualmente e para com a sociedade em geral. O movimento feminista passou a ser tema principal em muitas de suas discussões e em muito do que ela é e vive. Evey sabe que em histórias em quadrinhos que falam da perspectiva da mulher sobre a própria imagem feminina em diversos aspectos, tanto real quanto fictício, estão representadas ideias que dizem muito mais sobre ela mesma do que a noção comum do que é mulher ou feminino. Ela enxerga as histórias em quadrinhos como ferramentas geralmente divertidas de abordagem desse tema que, alguns, – Grrr – ainda veem como algo triste, chato ou até mesmo um fardo que nós, mulheres, carregamos. — Feminismo não é isso. Feminismo me torna muito mais feliz, apesar do que o senso comum teima em dizer por aí. Atualmente, a estudante se interessa mais na leitura de zines, como o “Zine XXX”, que tem autoria de várias quadrinistas mulheres com abordagem feminina e erótica. Evey gosta também da conhecidíssima entre os artistas, Lovelove6, autora do Garota Siririca e A Ética do Tesão na Pós-Modernidade, que foi apresentada a ela pelo seu namorado. Também a encanta as produções da Marjane Satrapi, romancista gráfica, ilustradora e escritora infanto-juvenil franco-iraniana que fez Persépolis, um dos seus primeiros contatos com quadrinistas mulheres não necessariamente feministas.

Abordar o feminismo e o erotismo feminino através das histórias em quadrinhos ou por qualquer outro meio é muito importante para desconstruir a ideia arcaica de que apenas homens fazem coisas legais e de conteúdo interessante

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HeroĂ­nas

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Como nascem as heroínas Era mais uma noite fatídica em uma grande metrópole. A insônia – minha velha amiga – havia aparecido para me acompanhar madrugada adentro. O barulho dos carros era ensurdecedor, até que vi a luz de um apartamento se acender, e com ela uma nova ideia. Coloquei minha jaqueta de couro, as velhas botas azuis e tomei uma xícara de café junto com a minha decisão: acharia a identidade secreta das minhas heroínas prediletas. Qualquer criança que tenha se dado ao luxo de desfrutar dos prazeres da infância e das grandes datas comemorativas do calendário, em algum momento de sua vida retomou um cartão que escreveu para sua mãe e viu a sequência das quatro palavrinhas mágicas “você é minha heroína”, seguida de desenhos tortos, característicos de uma coordenação motora em processo de maturação. Bom, a não ser que você tenha sido uma criança com tendências poéticas para exaltar o poder do vício ao amor da sua querida mamãe, em uma menção à droga que deriva da papoula, o queríamos dizer o que com isso afinal? – Hum. Perambulei pela sala, me acheguei até a estante, levei a mão direita ao queixo e olhei os livros a minha frente atentamente – Eureca! – achei o que procurava, meu velho dicionário. E eis que abro na definição de uma super-heroína – Cof cof –, pigarro. “Personagem de origem fictícia ou caráter ficcional, presente em histórias em quadrinhos, filmes, teledramaturgia, etc. Geralmente com superpoderes ou poderes sobre-humanos, cuja capacidade é combater o mal”. Minhas ideias oscilavam entre um pensamento e outro, como se seguissem o embalo de minhas ligeiras bebericadas na xícara de café. Ia dizer que tais personagens não existem na vida real – Ai! – queimei a língua. Retomei a linha de raciocínio e levei em consideração a luta artística que tais mulheres fictícias tiveram até então. E mais do que isso, do momento de sua concepção até que finalmente ganhassem espaço em um mercado industrial comandado tão somente por homens há algumas poucas décadas atrás. Hoje, nós mulheres, não precisamos mais de uma saia e um par de sapatos em bom estado para afirmar quem somos e porque viemos e podemos sim – We can do it – discordar com as nossas colegas de gênero quanto à submissão ao machismo alheio. E grandes ícones das histórias em quadrinhos, como a bela deusa africana Tempestade, dos X-Men, a incrível Mulher Gavião, da Liga da Justiça e a versão feminina do Tarzan –

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só que de tanguinha e bustiê – Savana, ajudaram a mudar a perspectiva social que se tinha das mulheres. Como já dizia a ilustradora francesa Johanna Thomé, “o quadrinho é muito mais do que figuras ou historinhas, ele revela um processo de identificação com personagens e com as causas que carregam consigo” – Bang! – Estava aí o elemento que tornara essas mulheres e esta forma de representação midiática tão únicas. A partir da inclusão dos quadrinhos em jornais americanos, como o Yellow Kid de Richard Outcault, vários personagens foram surgindo em sequência. Mas somente em 1905 que a estética foi revolucionada por Little Nemo in the Slumberland de Winsor McCay, que usava pela primeira vez a perspectiva nos desenhos em histórias em quadrinhos. Com um crescimento enorme, os quadrinhos de aventura começaram a ganhar destaque e a cair no gosto do público. A década de 1930 foi marcada por grandes ícones deste seguimento, como Flash Gordon, criado por Alex Raymond, Jim das Selvas e o agente secreto X-9. Chester Gould, que criou “Dick Tracy”, e também Lee Falk que concebeu o Fantasma e o Mandrake. Foram as histórias de aventura que, de fato, deram espaço para as revistas de histórias em quadrinhos. O ano era 1933 quando surgiu a primeira revista americana de quadrinhos, a Funnies on Parade, logo depois – Boom – surgiram a Comics, Action Comics, em que Jerry Siegel e Joe Shuster criaram o Super-Homem, e Detective Comics, onde Bob Kane criou o Batman em 1939. Desde 1938, quando Jerry Siegel e Joe Shuster criaram o Super-Homem – considerado o primeiro super-herói dos quadrinhos – as mulheres vinham aparecendo com mais frequência nas páginas das HQs. De uma forma muito diferente do que vemos hoje? Sim! Mas elas já estavam dando as caras pelas revistas da década de 1940, quer fossem como recepcionistas, secretárias, ou as frágeis e meigas namoradinhas. Até então, parecia não ser possível que ninguém visse a inserção feminina na indústria dos quadrinhos de forma diferente. Tirando Lois Lane – Ufa – a intrépida repórter que trabalha

Diana de Themyscera nasce em um momento que viria a se tornar crucial para as revistas em quadrinhos. Foi a primeira personagem feminina a surgir com todos os elementos que a tornam uma super-heroína de fato

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com afinco e se dedica integralmente ao jornalismo investigativo. Afinal, ver uma mulher que saísse dos padrões convencionais de segundo plano era algo muito difícil. Algumas personagens como Savana, Betty Boop, entre outras, já haviam aparecido, mas nenhuma trazia consigo uma história heroica consistente, e outras nem mesmo a possuíam, para se ter uma noção. Quando não mais que de repente – Pow – a criação de William Moulton Marston surgiu em 1941. Não sabe de quem eu estou falando? Ok. Pense na palavra “heroína”, em seguida na primeira figura feminina que vem a sua mente. Provavelmente você pensou na Mulher Maravilha, e é justamente a moça de cabelos negros e olhos azuis safira, a quem me refiro. Diana de Themyscera nasce em um momento que viria a se tornar crucial para as revistas em quadrinhos. Foi a primeira personagem feminina a surgir com todos os elementos que a tornam uma super-heroína de fato. A princesa reunia um background incrível, poderes nunca vistos antes – como seu laço mágico – e o fator mais importante: ela era durona, sem meios termos, chegava e quebrava quem quer que fosse sem nhenhenhém. Com os Estados Unidos em plena Segunda Guerra Mundial, e o movimento feminista surfando entre a sua primeira e a sua segunda onda, era realmente necessário criar ícones que motivassem a população feminina a tomar as rédeas da situação. Não que Diana tenha sido criada neste propósito, mas se tornou um símbolo de força, inteligência e independência do gênero. William Moulton Marston, seu criador, nada mais era do que um psicólogo e teórico feminista, além de – Pasmem – ter tido tempo para inventar o polígrafo, o famoso detector de mentiras que se tornou o salvador (ou não) dos testes de fidelidade em programas assistidos por donas de casa ao redor do mundo. Marston realmente acreditava que a mulher merecia mais do que papéis secundários em historinhas de super-heróis – e não era balela da boca pra fora, fato foi comprovado pelo polígrafo, hum –. Ele queria revelar o potencial de uma mulher destemida que topasse toda e qualquer parada, e questionasse o estereótipo de “sexo frágil”.

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Enquanto seus maridos, filhos e avôs, se apropriavam de tanques de guerra, elas deixavam o tanque de lavar roupa de lado, se tornando uma importante forca de trabalho da época

Ora, rotuladas ou não, era certo que agora elas estavam entrando no mercado de trabalho. Enquanto seus maridos, filhos e avôs, se apropriavam de tanques de guerra, elas deixavam o tanque de lavar roupa de lado, se tornando uma importante força de trabalho da época. Sua primeira aparição foi em 1941, na revista All Star Comics, número 8. Ostentando seu famoso maiô colorido, a Mulher Maravilha surgia no meio de vários homens fortes e musculosos do exército americano e pregava que o mundo teria de ser governado por mulheres, pois assim seria governado pelo amor, e somente o amor seria a solução. Desde então sofreu alguns ajustes na sua história. Havia elementos que se encontravam bem vagos de inicio, mas que quando revelados trouxeram a tona a força e as causas que Diana defendia. Mostrando a que veio, não só as mulheres da época, como os já fanáticos por HQs foram envolvidos pelo laço mágico da queridinha da América. Mas, venhamos e convenhamos, o que uma princesa bonita de maiô tem de tão fantástico assim, para perpetuar o legado de uma revista há mais de 70 anos? A história, que é baseada na mitologia grega nos revela. Diana Prince é uma princesa que vive na Ilha Paraíso, também conhecida como Temíscira ou Themyscira, lugar que é habitado somente pelas guerreiras amazonas. Prince é filha da rainha Hipólita, e foi criada a partir de uma imagem de barro, processo no qual recebeu seus super poderes, se tornando embaixadora da Ilha. No passado, as amazonas foram violentadas por Hércules – é obvio que este não é um de seus incríveis 12 trabalhos, para que possamos nos orgulhar dele, cof cof –, e declararam então, guerra e morte aos homens. Reuniram-se e se realocaram em Temíscira, e desde então, utilizam seus braceletes para se lembrar de que um dia elas sofreram abuso do machismo e desrespeito de Hércules, e de forma alguma passariam por situação semelhante novamente. Uma marca que mudou a trajetória destas mulheres e as transformaram nas guerreiras mais temidas da história Grega. Contrariando a vontade da rainha – sua mãe, Hipólita – Diana Prince veio ao “mundo dos humanos” para ser a defensora da verdade e da vida entre toda a humanidade e o firmamento, sendo eles deuses, ou meros mortais. Sua missão é equilibrar estes extremos e propagar

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a paz no universo. Com este fardo pesadíssimo que carrega como se fosse uma pluma, a Mulher Maravilha entrou para a trindade suprema da DC Comics, se tornando uma integrante da Liga da Justiça, e tomando a fronte do grupo de super heróis ao lado de Batman e o Super Homem. Por toda a força de sua história, é que estudiosos como “O Poderoso Porco”, Lucas Ed, consideram a Mulher Maravilha um ícone de referência dentre todas as heroínas ao redor do mundo. O psicólogo, investigador de polícia, que possui sua tese de mestrado “A relevância da imagem visual para a construção de situações sociais” confirma. — Por mais que houvesse o apelo sexual – Argh – nas páginas de seus quadrinhos, e a sua submissão ao gênero oposto sempre que é amarrada por um homem. Há um por que. Diana Prince perde seus poderes apenas, e tão somente, para lembrar que existe sim um passado de superação das amazonas pelo trauma que envolveu o abuso sexual de Hércules. Sendo assim, é primordial que não se abaixe a guarda, e muito menos se renda a homem algum novamente, pois se o fizer, perderá seus poderes e sua glória. Posteriormente, já era de se esperar que novas figuras femininas (que fossem, por obséquio, eximias chutadoras de bundas sem “frufus”) aparecessem no universo dos quadrinhos, o que viria a acontecer adiante neste incrível relógio do tempo.

Naquela mesma época... Justamente na década de 1940, a Segunda Guerra Mundial inspirou a criação de super-heróis que entraram para o hall dos queridinhos do público, como o Capitão América, de Stan Lee, e seu fiel escudeiro Jack Kirby. Dizem que “a arte imita a vida” e neste caso não foi uma falácia. A partir deste momento, as edições que se seguiam e os novos personagens que surgiam enveredavam pelo caminho das histórias de guerra, e incitavam em seu público o espírito patriótico ideal para lutar com todo o mal que havia no mundo. Este foi um período de experimentação, pois o “boom” desse estilo de história era algo totalmente novo, e logicamente inexplorado. Por tanto, as editoras poderiam fazer aquilo que bem entendiam em suas próprias revistas, e não precisavam de aval nenhum de grandes jornais, onde eram vinculados antes, por exemplo. O que culminou na transformação das páginas de revistinhas que eram – teoricamente para crianças – em um ringue de luta e carnificina. Eram tempos negros que viriam a seguir. A justiça puniu legalmente e tirou fora de circulação muitos periódicos dos quadrinhos, a guerra que era somente esboços e desenhos, agora era real. O governo teria de avaliar as novas edições, antes que as revistas pudessem chegar às bancas e livrarias. Chefes de estado alegavam que os conteúdos estavam influenciando a

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nova geração a seguir um estilo de vida violento e deplorável. Chegando ao ponto de alegar que a relação entre Batman e Robin era uma clara apologia ao homossexualismo. Enquanto a nona arte tentava sair deste buraco negro que estava puxando tudo que via pela frente para o abismo, os jornais voltaram a se apropriar de tirinhas e personagens marcantes foram criados nesta época, como Asterix – O Gaulês, de Alberto Uderzo e as fofas criaturinhas azuis de Peyo, Os Smurfs. Após longas batalhas – não nos quadrinhos, e sim, por eles – nos tribunais, em 1960 foram estabelecidas regras e normas a serem seguidas nas publicações, e finalmente parecia surgir uma luz no fim do túnel, o que já não era sem tempo – Ufa.

Girl Power! Finalmente era chegada a fase em que veríamos as mulheres assumindo o poder nos quadrinhos. Em 1992, Jean Claude-Forest criara Barbarella, na França. Uma heroína espacial extremamente sexy – feita para adultos, se é que o caro leitor me compreende – que viria a perpetuar a luta da libertação sexual que esta nova década trazia estampada na testa. Barbarella se apropriava de seus atributos físicos para derrotar seus oponentes por meio da sedução, e gritava aos quatro ventos sua condição como ninfomaníaca. Em contrapartida, a opinião feminina sobre a publicação viria a afirmar o pensamento que se segue hoje pelas feministas que desenvolvem trabalhos autorais. Personagens como esta, transformaram a hipersexualização – antes sugestiva – em algo real. A mulher, que sempre foi vista como um objeto sexual, estava ali, diante dos olhos de quem quisesse ou pudesse ver, levantando a bandeira por uma causa de forma extremamente pejorativa. Suas publicações escandalizaram a França e toda Europa, e chegaram a ser proibidas. Mas a heroína com alto teor de luxúria, não era a única que fervilhava em feromônios – Hum – seguindo esta mesma linha editorial estavam suas amigas Jodelle (1966) e Prayda (1968), de Guy Peelaert, além de Valentina (1965), dentre outras, Vampirella, que surgira no ano de 1969 – Hum, sugestivo, não? E, sinceramente, me pergunto como tais personagens não estrelaram uma espécie de publicação somo Super Amigas que poderia ser facilmente intitulada como Sex and the HQ. Por outro lado – Pigarros – sem malícias, por favor! As mega editoras, Marvel e DC Comics revelavam novas heroínas incrivelmente comerciais, que logo cairiam no gosto do público. E não há como não destacar o clã de mulheres extremamente fortes e poderosas que sur-

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A mulher, que sempre foi vista como um objeto sexual, estava ali, diante dos olhos de quem quisesse ou pudesse ver, levantando a bandeira por uma causa de forma extremamente pejorativa

giram com 1963 com a primeira edição de X-Men. Novamente, Stan Lee e Jack Kirby traziam para a Marvel uma história épica. A luta entre mutantes do bem e mutantes do mal, além do sofrimento pelo preconceito e a rejeição da raça humana, evidenciou heroínas que marcaram a infância de qualquer criança. Dentre elas encontramos Vampira, que pode sugar os poderes de qualquer mutante e utiliza-los em seu favor. Lince Negra, que atravessa paredes e possui o dom da telecinese, assim como a memorável Jean Grey – a única mutante de nível cinco, extremamente poderosa e letal. Sobretudo, quem merece destaque é a segunda em comando do grupo, Tempestade! O Professor Xavier descobriu a existência de Ororo, e sua primeira aparição foi em 1975. A deusa é descendente de uma longa linhagem de sacerdotisas africanas que possuem cabelos totalmente brancos, olhos azuis e aptidão para a utilização de magia. Sua mãe, N’Dare era princesa de uma tribo no Quênia, mas quando a filha tinha 5 anos se mudou para o Cairo, Egito. Sua família sofreu um grave, e fatal ataque aéreo. A pequena Ororo Munroe ficou presa entre os escombros, o que lhe causou claustrofobia, um trauma que carrega consigo por toda sua vida. Tempestade é a personificação da força do nome que carrega. Mulher, negra, africana e traumatizada, porém, nunca foi vista sendo submissa a qualquer pessoa ou situação, a não ser que seja por sua própria vontade. A heroína iniciou um processo de revolução no meio dos quadrinhos – que alguns chamariam de tardia, e outros de gradativa – deixo a classificação para você, meu caro leitor. E porque foi tão revolucionário? Simplesmente porque iniciou de fato, o autoconhecimento de leitoras em todo o mundo. Sejam essas leitoras negras, mulheres independentes, fortes e/ou destemidas, há um senso de admiração e identificação com a personagem que sempre procura superar seus próprios medos e os fantasmas de seu passado. Não é uma mera coincidência que as publicações das histórias em quadrinhos envolvendo a trajetória das minorias batalhando por espaço na sociedade caminhem juntas. Os estágios do estilo de história, de perspectiva e de elementos que elas trazem intrínsecos

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a suas personagens, denotam momentos extremamente importantes para a democracia e sobre tudo, para o debate aberto dos direitos que as mulheres possuem. Obviamente vivemos em novos tempos, nos quais podemos usufruir de suas conquistas – Bang! –, mas é indispensável que se dê o mérito a nona arte por proporcionar um novo olhar social e psicológico. Apesar dos pesares, como a hipersexualização, a falta de minorias étnicas, ou de grupos e classes sendo retratados, “assim caminha a humanidade com passos de formiga e sem vontade”, mas segue em um rumo que explora e visa novos horizontes. As heroínas, desde que surgiram, com a inigualável Mulher Maravilha, nos remetem a um ideal de perfeição que vai além da beleza. Seria o ideal da moral, da ética e dos bons costumes para que possamos viver e evoluir a partir de um pensamento ou uma linha de raciocínio retrograda. Isso se faz e se refaz nas aplicações cotidianas da vida real, como Pagu, heroína de carne e osso duro de roer, que criou tiras icônicas como Malakabeça, Fanika e Kbelluda, Carol Rossetti com suas ilustrações que desafiam e satirizam o pensamento dentro da caixinha dos padrões que se seguem na sociedade, e nos gritam que questionar é preciso sim! — É importante fazer as pessoas enxergarem que há sim alternativas nos quadrinhos, as novas super-heroínas aparecem também no meio dos zines e da internet, por exemplo. Fato é que uma nova onda de super-heroínas vem surgindo com o – Boom! – das tecnologias. Heroínas (da vida real) que se espelharam nos quadrinhos que liam quando eram apenas crianças e tiveram muita coragem, além de criatividade para começar algo novo, seguir neste ramo super difícil e escrever suas linhas autorais. Como todo processo em massa, essas marcas na nova forma de se fazer HQs, tem deixado a indústria preocupada. Modificações não somente nas roupas incrivelmente sensuais, mas

Não é uma mera coincidência que as publicacões das histórias em quadrinhos envolvendo a trajetória das minorias batalhando por espaco na sociedade caminhem juntas

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também nas atitudes das personagens já vem sendo modificadas, como o novo uniforme da Mulher Gato, lançado com um novo design pela DC Comics. Depois de uma longa e exaustiva pesquisa falando com agentes secretos como o psicólogo e detetive da divisão de homicídios, Lucas Eduardo – que tem como identidade secreta o “Poderoso Porco” – e da intrépida redatora do site Lady’s Comics, Mariamma Fonseca, chegamos à conclusão em nosso QG que os avanços eram realmente satisfatórios e as heroínas verdadeiramente existem, sejam elas criaturas ou criações. “Busquem quadrinistas que tem um viés político, quadrinho não é só entretenimento. Nós nos consideramos feministas, é um meio para ponderar as mulheres. Preocupamo-nos em trazer autoras que não estão começando e quadrinhos que estão fora dos padrões do mercado para o Lady’s Comics. É passar a ideia de que é possível pensar de outra forma, de outro jeito. Promover um debate maior e este novo olhar, fazendo com que estas quadrinistas vejam que é possível sim fazer isso como uma forma de trabalho. Espero que as leitoras estejam gostando do que fazemos, parar com o preconceito contra nós mesmas”. Voltei para o meu apartamento para terminar meu relatório e as demais anotações, certa de que o futuro da nona arte estava em boas mãos em punho de um lápis. A próxima geração de pequenas garotinhas seria sim influenciada e se identificaria de forma positiva, e o que viria adiante, somente um vidente conseguiria prever. Cancelei a xícara de café. Poderia dormir tranquila agora, apenas com o gosto do sabor do meu vício em heroína, e doces sonhos delirantes para o futuro no “Reino do Amanhã”.

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a n a i r ad melo

As aventuras da Doce Cara Melo Enquadramento um: o cenário é um estúdio de desenho – Hum. Elementos principais: lápis 2B, folhas A3, e é claro, – Bang! – minha personagem munida de grande criatividade e um dom especial. Esses são os instrumentos mágicos que dão vida a histórias que já se tornaram intrínsecas a infância de toda criança, e muitas delas surgiram pelas habilidosas mãos de – tan dan – Adriana Melo. Desde que se entende por gente, minha intrépida personagem, Adriana Melo, já fazia esboços do destino que traçaria mais tarde. Ainda menina, a futura ilustradora que viria a trabalhar em editoras como a Top Cow, DC Comics, e a Marvel, rolava pelo sofá para se atirar em um mundo de imaginação, cores e desenhos. Cercada de Histórias em Quadrinhos por todos os cômodos da sua casa, logo que começou a ler, – Uhul – a pequena desenhista já passava suas tardes envolta em pilhas de revistinhas do Tio Patinhas, Garfield, e a divertida Turma da Mônica. Encantada com o universo de imagens que absorvia, e dotada de uma imaginação sem limites, Adriana começou a rabiscar nos papéis que encontrava pela frente, de folhas comuns em seu caderno de desenhos, papéis de pão que não estivessem cobertos por manteiga – Eca – e até mesmo folhas de impressoras matriciais que seus irmãos mais velhos lhe traziam do trabalho. Qualquer pedaço de papel chato e sem graça, se tornava um pedaço da realidade fantasiosa que morava em seus pensamentos.

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Logo, a criatividade da pequena ganharia força com suas imperdíveis “edições limitadas”, criadas em parceria com a sua irmã. Adriana dividia a difícil tarefa de dirigir uma editora em seu quarto, ser ilustradora de personagens como Os Escoteiros, e Suzie (e seu incrível cabelo de suspiros), personagens completamente inspirados nos escoteiros da Disney e nas aventuras da Turma da Mônica. E ainda havia tempo para grampear todas as páginas, e distribuir as revistinhas para sua família – Ufa – não que seja tarefa fácil, para qualquer garotinha de 9 anos, mas essas páginas se tornariam mais tarde o começo da jornada de uma artista apaixonada pelo que faz, e poderiam ser uma história em quadrinhos com um título que lembrasse algo como “As Incríveis Aventuras da Doce Cara Melo”, ou “A Missão de Adriana no Império feito à Lápis”. Caro leitor, é importante salientar que a curiosidade sobre a história do querido Superman, não foi lá bem vista por olhos atentos – que agora já possuíam uma dona de 10 anos – situada em sua sala de aula. A primeira impressão da “Incrível Dri”, não foi lá muito boa, ao ver a épica edição de Superman Unchained, em que o herói segura a Supergirl chorando, na capa – Argh. Esse reencontro com os heróis da DC Comics, voltaria em um futuro não tão distante, em um outro capítulo. Continua... Bom, em uma súbita recuperação de suas memórias de infância, nos teletransportamos para um período em que a coleção “Pateta Faz História” da Disney, enchia o coração da pequena prodígio, fosse de emoção e fascínio pela diagramação excêntrica, painéis circulares, e sua tipografia especial, ou de certeza pela área na qual gostaria realmente de seguir, pelo resto de sua vida.

Encantada com o universo de imagens que absorvia, e dotada

Folhas caiam pelo chão, novas folhas chegavam às suas mãos. Com o passar do tempo, sem contato com videogames, e a internet – Snif – a garota que ganhava poderes ao entrar em contato com seu lápis mágico, foi colocada em um colégio técnico de desenhos de São Paulo, aos 14 anos. Apoiada pela família, Adriana Melo seguia em sua jornada buscando referências e aprimorando suas técnicas. Ouvindo o bom e velho conselho de sua tutora (vulgo sua mãe): “mantenha a cabeça criativa, mas os pés bem firmes no chão”, a jovem não vislumbrava um terço do futuro que sua dedicação e talento lhe reservavam.

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de uma imaginacão sem limites, Adriana comecou a rabiscar nos papéis que encontrava pela frente, de folhas comuns em seu caderno de desenhos, papéis de pão que não estivessem cobertos por manteiga


Tudo que queria até o momento, era trabalhar no estúdio Maurício de Souza Produções, e realizar seu sonho de menina. E em um trabalho de artes, a jovem se deparou com seu tema de trabalho “A Morte do Superman”, foi aí que Adriana descobriu que o mundo de fantasia que tanto amava nos filmes era também possível no universo das ilustrações. “A Incrível Dri” descobriu o desenhista Roger Cruz, que ensinava técnicas para o aprimoramento desta arte, e assim, começou a desenvolver o seu traçado copiando cenários e personagens de seu querido Alan Davis, e todos os quadrinhos que encontrava na Gibiteca Henfil, sempre com o foco voltado para a anatomia, proporções e a observação estudada de fotografias e revistas.

Um certo tempo depois... Em meio a uma aguardada palestra com os ilustradores (especialistas em heróis) Roger Cruz, e Marcelo Campos, Adriana levou o seu portfólio para avaliação. Após um minucioso olhar técnico sobre os desenhos do vilão Gambit e os da heroína Vampira – personagens marcantes de X-Men. A desenhista foi aconselhada a entrar em contato com o agente dos ilustradores na época. A partir de então, começou a esquadrinhar o percurso de sua implacável carreira profissional. Pa ra na nan, pa ran – Com seus desenhos avaliados como “um achado”, a jovem iniciou um período de aprimoramento intensivo de seu trabalho, durante 6 meses a jovem realizou um rigoroso treinamento diário, com direito a comparações com o Simulador X, do respeitável professor Charles Xavier. Adriana vivia então uma das melhores fases de sua profissão, convivendo com o seu ídolo, Roger Cruz, e ainda Luke Ross e Fábio Laguna. Entre outros especialistas da área, a ilustradora agora tinha uma nova tarefa: manter o foco na evolução e qualidade do trabalho que apresentava diante das maiores editoras desta Terra. Depois de concluir o estágio em agência de publicidade, e em uma produtora de desenhos animados, surgiu a oportunidade de participar de um processo seletivo para ilustrar as páginas de nada mais, nada menos do que o Homem de Ferro

Ouvindo o bom e velho conselho de sua tutora (vulgo sua mãe): “mantenha a cabeca criativa, mas os pés bem firmes no chão”, a jovem não vislumbrava um terco do futuro que sua dedicacão e talento lhe reservavam

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na editora Marvel – POW – A “Incrível Dri”, ganhou destaque em seu primeiro trabalho de grande visibilidade na área, e conquistou espaço depois de enviar páginas nas quais trabalhara por horas a riscos e rabiscos, para avaliação da editora.

Atingindo seu objetivo pessoal com maestria, a “Incrível Dri”

Em uma nova jornada na editoria Top Cow, Adriana foi designada para uma missão honrosa, nunca antes exercida por uma mulher: a de desenhar a policial de Nova York, Sara Pezenni. Em Witchblade, a personagem ganha super poderes ao se apoderar de um estranho artefato, enredo parecido com a história da jovem desenhista, que com um lápis em seu poder, passava a elevar seu traçado a cada dia, com dedicação e disciplina que faziam desta mulher um destaque e sinônimo de referência na indústria dos desenhos. Após anos de trabalho construídos em cima de uma mesa de desenhos, o prestígio e reconhecimento dos fãs batia a porta – Toc, toc – a medida em que revistas, blogs e sites solicitavam a ilustradora para contar um pouco do seu super cotidiano recheado de heróis, vilões, ação e fantasia, a “incrível Dri” chamava a responsabilidade de dar sequência a aclamadas séries de histórias em quadrinhos, e procurava melhorar o seu dinamismo, ângulos de câmera, e assim incluir mais elementos em seus trabalhos. Para produzir bons desenhos e se inspirar, a desenhista inclui em sua rotina algumas horas dedicadas a pesquisas de concept art (processo que mostra a evolução de um personagem), e procura novas referências no trabalho de seus ídolos, Adam Hughes, Takehiko Inoue, Alex Ross. A paixão por traços realistas levou a nossa personagem ao exercício extremo da observação, agora, seus olhos atentos funcionavam como o da Mulher Gavião. A intenção da pequena menina de transformar seu trabalho no melhor possível, como se fosse um frame de filme em uma folha de papel, permanecia na jovem mulher. E com o destino em seu próprio traçado, novas aventuras e possibilidades surgiriam para ela. Em seu ritual fantástico, a “Incrível Dri” ativava um de seus super poderes. Incluía músicas para desenhar seus personagens. Mas não era uma sequência qualquer de canções, não! A playlist tocava de acordo com as emoções que as criações da senhorita “Cara Mello” deveriam passar. Elevando o potencial de sua extrema sensibilidade artística a um novo e maravilhoso nível! Atingindo seu objetivo pessoal com maestria, a “Incrível Dri” agora viveria a saga mais feliz de sua vida, desenhar a série “Star Wars” pela editora Dark Horse.

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agora viveria a saga mais feliz de sua vida, desenhar a série “Star Wars” pela editora Dark Horse


A cada roteiro que chegava em suas mãos, o coração de Adriana quase saltava pela boca – Tun dun, tun dun, tun dun. Atacando as páginas das futuras edições com a ferocidade em que uma super heroína ataca seu oponente em um de seus pôsteres espalhados por sua parede, a ilustradora tinha a árdua tarefa de executar os desenhos de Millenium Falcon, Han Solo, Luke. E um dos personagens mais épicos de todos os tempos, o emblemático “pai” de todos os vilões, Darth – Glup – Vader! Alguns garotos bobos ainda ousavam dizer coisas como “Ah, até que você não desenha como uma mulher!”, mas Adriana seguia comprometida com a qualidade de seu trabalho. E ao longo de sua história foi adquirindo notoriedade no meio profissional, afinal, cada edição possui uma carga horária de mais ou menos 12 horas por página, sendo que, neste processo, após receber o roteiro, os esboços são mandados para a editora e depois que o artista recebe o “greenlight” pode começar a trabalhar – ufa, cansa só de falar, ou melhor, escrever! “Algum tempo depois”, neste caso, seria utilizado para fazer referência a 4 ou 5 semanas, período que geralmente se leva para produzir um história em quadrinhos com 24 páginas. Adriana Melo também chegou a desenhar personagens que são verdadeiros ícones para qualquer fã de histórias em quadrinhos, como o Lanterna Verde, Batman, e seu velho amigo Superman – agora, sem ressentimentos – pela editora DC Comics, dona de ícones com mais de 70 anos de história – Pow – haja responsabilidade!

A “Incrível Dri” tem tracado planos secretos! Mas acredito que eu posso revelar uma pequena parte deles... A “Doce Cara Melo” quer realizar seus

A super ilustradora divide entre outras paixões, o excêntrico gosto pela música pop coreana e japonesa... – Atchim – desculpe, caro leitor! Sei que pode parecer, mas não é uma palavra em nenhuma dessas línguas, foi um espirro mesmo. Suas referências artísticas vem de antigos mestre como Alphonse Mucha, pintor e designer gráfico do movimento Art Nouveau, e o gênio criativo Norman Rockwell, artista americano que ficou famoso por suas capas para a revista mensal Evening Post. Além dos profissionais ninjas, mentores do detalhamento da concept art da Ásia, como Ruan Jia e Kim Hyung Tae.

próximos trabalhos no mercado europeu!

Nos dias atuais... Nossa jovem heroína tem feito uma série de sketchcards (um estilo de card com enquadramento de um personagem), para a empresa

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(não tão secreta) Upper Decks, além das capas para a Sonja, personagem de Roy Thomas da editora Marvel Comics. No entanto, meus caros amigos, a jornada da intrépida Adriana Melo está muito longe de acabar. A “Incrível Dri” tem traçado planos secretos! Mas acredito que eu posso revelar uma pequena parte deles... – Pigarro – A “Doce Cara Melo” – Sussurro – quer realizar seus próximos trabalhos no mercado europeu, e.. Espere! Deixe-me olhar para os lados e conferir de que nenhum super vilão me ronda. Ok. Vamos lá! Ela aguarda uma resposta da Marvel para dar vida a uma história que, para nós, meros mortais, ainda é um mistério. Adriana Melo, nossa pequenina que cresceu e continuou fazendo o que move seu coração, hoje é sinônimo de referência para meninas, jovens e mulheres, que querem seguir o seu caminho no mercado da ilustração. Mas que fique claro, que o sucesso só vem com treino, dedicação, e uma disciplina de outro mundo! A desenhista representa seu grande talento e sua força por meio de seus traçados, e a cada nova linha que rascunha durante intermináveis noites de trabalho, vai colocando cada detalhe de seus sonhos na ponta do lápis. Pouco a pouco, a “Doce Cara Melo” dá vida ao seu próprio futuro. Enquanto houver esse eterno amor pela profissão que escolheu na infância, e a missão de encher os olhos de seus fã e discípulos, a “Incrível Dri” desenhará novas aventuras, que esbocem a tamanha felicidade que é viver daquilo que se sonhou – Iuuuuuuupi. E assim, nossa heroína vai se personificando em um misto de realidade e fantasia, transformando o propósito de seu belo dom na história de uma grande artista, personagem ilustre no universo dos quadrinhos e das artes, sem qualquer aplicação de sombreado para gerar dúvida!

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Vil達s

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A vilã que pode salvar o dia! Era uma vez uma pessoa que morava em uma pequena vila, perto de um lindo castelo – Pliiin. Muito querida pelo dono da propriedade, essa pessoa tinha muitos privilégios e era conhecida como vilão. Isso mesmo. Você não leu errado. Os heróis da nossa história dessa vez são os vilões. Que ironia, não é mesmo? Como em qualquer história, para entender o final, é necessário ler o começo. Nesse texto, nós vamos acompanhar a jornada de um quase protagonista. Um personagem odiado, mas que acaba salvando o herói do esquecimento naquela prateleira da banca de jornal. Afinal, o que seria do herói se ele não tivesse um bom vilão para enfrentar? Para entender a origem desses personagens, nós – eu e você, querido leitor – vamos fazer uma viagem há alguns séculos atrás e passar pelos vários quadrinhos preenchidos com a história da humanidade. Você deve estar pensando: “Mas precisa voltar tanto assim?”. Me acompanhe e você verá!

Genesis Quando surgiu, a palavra “vilão” não era usada para distinguir pessoas que praticavam a maldade, – Ué – mas que moravam em vilas próximas às terras dos senhores feudais. Por conta dessa proximidade, esses homens tinham mais privilégios que os demais, mas não eram nobres. Especialista em história da arte, o professor Warde Marx explica que alguns vilões não tinham boas condições de vida e, por conta disso, cometiam crimes em troca de favores ou pagamentos, se transformando em assassinos e ladrões de aluguel. Com o passar dos anos, a palavra assimilou as atitudes desses mercenários, se transformou e passou a designar alguém que pratica atos não nobres. Em Portugal, os vilões que tinham uma condição mais elevada podiam conquistar o título de cavaleiro-vilão, sendo obrigados a possuírem armas e cavalos para combater a favor de um rei. Aqui já fica bem mais fácil imaginar por que eles eram tão odiados. O ator Tony Voice, que representa o vilão Oliveira no musical Anchieta, conta que a criação do personagem deve ser embalada em pesquisa. É necessário entender o período em que ele nasceu e vive, qual a sua história, o que houve com ele e quais são seus motivos para prática do mal.

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Quando surgiu, a palavra “vilão” não era usada para distinguir pessoas que praticavam a maldade.

— Essa deve ser a parte principal, pois traz verdade ao personagem. De qualquer forma, não acredito que o vilão possa ser inteiramente mau. Em algumas situações, podemos enxergá-lo do outro lado. É interessante lembrar que a concepção de vilão depende do ponto de vista do observador. O vilão só é mau por que temos uma visão de mundo diferente da dele. Chegamos ao ponto em que nosso mocinho às avessas já tem título, personalidade e uma história – Uhul. Que tal darmos a ele algo pelo que lutar?

É hora da briga! Para explicar o contexto do combate entre herói e vilão, o professor Warde comenta a Arte Poética, escrita por Aristóteles. Composta por anotações do filósofo grego sobre arte e poesia, a obra destrincha a tragédia grega. A ideia de entrar em cena na língua grega é representada pela palavra “ágon”, que significa combate. Dessa expressão derivou-se a palavra “agonia”. O conceito de protagonista veio da junção da palavra “protos”, que em grego significa primeiro, com “agonístes”, derivação de “ágon”. Protagonista, então, é o primeiro a falar ou o primeiro a entrar em cena. Quem entrava em seguida no palco costumava fazer oposição ao personagem anterior, daí então, cresceu a ideia de ligar a oposição ao personagem principal ao conceito de vilão – Bang! Warde conta que na “literatura em geral, quando um personagem é criado, junto com ele é elaborado um conflito. Só o que nos interessa é o ágon, ou a luta de personagens. De maneira simples, eu quero algo que você possui. Eu quero que você me dê isso de alguma forma. Você, no entanto, quer manter as suas posses. Isso tanto pode ser uma moeda quanto um reino. Isso é o conflito, e se ele for bem trabalhado, pode ser a história mais simples do mundo, ela chamará atenção”. Com todas essas informações em mãos, chegou a hora de filosofar mais um pouco sobre o nosso herói distópico. Aqui, eu e você chegamos a um ponto crucial para o desenvolvimento do nosso protagonista.

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O plano infalível para conquistar o mundo! Os novos personagens inseridos nas histórias devem lançá-las para frente. Deve-se introduzir um elemento novo ou resolver uma questão em aberto. As histórias que tem muita ação devem apresentar um conflito entre elementos, e os vilões, como parte desses elementos, não podem ser simplesmente jogados dentro dos quadrinhos. Eles devem ser concebidos para que tenham algum grau de humanidade e se equiparem aos seus rivais superpoderosos. Para falar sobre isso, devemos retornar para o período em que o teatro se popularizou. Na Idade Média, para explicação dos dogmas católicos aos crentes, a igreja utilizava as representações teatrais. Já que os pobres não sabiam ler, escrever e também não falavam latim, as montagens se tornaram instrumentos importantes para divulgação da fé. Warde comenta que depois de algum tempo, as peças passaram a não ter efeitos sobre a população, já que o grande vilão das histórias religiosas, o diabo, não podia entrar na igreja. — Deus operava milagres, mas nada podia se opor a ele. As peças acabavam se tornando chatas. Surgiu aí a ideia de mover o teatro para as praças públicas. A partir desse momento, as montagens passaram a apresentar um conjunto completo de personagens, sendo mais fácil retratar o bem e o mal.

As Bad Girls entram em cena! Após essa pequena explicação, caro leitor, nós vamos voltar para a nossa história. Até agora nós falamos sobre vilões, no masculino. Mas e quando o assunto são as vilãs? Normalmente, os contos são compostos por uma donzela indefesa, um herói íntegro e... Uma bruxa má – Muahaha. Personagem, que a meu ver, coloca todo o tempero no romance entre os protagonistas. Cá entre nós, a donzela só encontra o herói por causa da bruxa. Sem ela, não há o beijo de amor verdadeiro no final. Mais do que importante na história, o vilão ou vilã mobilizam o herói em busca de um objetivo, fazem com que os mocinhos supram diferenças e construam alianças fortes. Em

a donzela só encontra o herói por causa da bruxa. Sem ela, não há o beijo de amor verdadeiro no final.

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alguns casos, quando se trata de histórias em quadrinhos, essas alianças podem ser amplamente aproveitadas em inúmeras edições. O herói, responsável por suprir as necessidades sociais de seu time ou de quem o acompanha, deve ter um vilão para criar essas mesmas necessidades. Esse conceito dicotômico que acompanha nossa sociedade exige a presença de alguém que expresse o mal no mesmo plano em que o herói atua. Originalmente, o termo vilã também servia para designar uma moradora vila. Nesse momento, é importante lembrar que quem passava adiante as lendas e fábulas na Idade Média eram as mulheres. Responsáveis pelos serviços domésticos e pelas crianças, as mães e avós usavam tudo o que tinham ao seu alcance para proteger sua prole e transmitir os valores da sociedade em que viviam. — Nos contos de fada em geral, o mal é representado pelas mulheres. São histórias criadas dentro de casa com elementos que o contador tem em mãos, tanto material quanto intelectual, explica Warde. E as histórias se transformaram desde que surgiram. Geralmente no texto original não havia final feliz. Nenhum bom caçador iria aparecer para salvar a Chapeuzinho Vermelho e sua avó no fim da lenda. Ela era devorada pelo lobo mau por ter se desviado do caminho e não ter obedecido a ordem de sua mãe. Era importante que as crianças se lembrassem de obedecer às ordens dos pais, não falarem com estranhos e nem aceitar nada que fosse oferecido a eles nas ruas. Buscando métodos que deixassem claros os perigos de algumas situações, as mulheres desenvolveram personagens que assustavam os pequenos para que estes limitassem suas ações. Assim surgiu o ideal da bruxa má. Aquela moradora da vila que vivia na beira da floresta e conhecia muitas ervas foi o modelo usado pelas mães para manterem as crianças dentro do quintal de casa. Tudo o que uma bruxa utiliza nos contos clássicos são utensílios que podem ser facilmente encontrados na casa de qualquer mulher daquela época. Para transporte, uma vassoura. Para poções, um caldeirão. Para feitiços, ervas. Pela teoria de Carl Jung, as vilãs representam um arquétipo. Segundo ele, existe um inconsciente coletivo da humanidade. Os contos de fadas e os mitos seriam os frutos desse inconsciente. Os mesmos tipos de personagem parecem ocorrer, tanto na

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escala pessoal como na coletiva. Essa imagem universal parte da repetição de uma mesma experiência vivida diversas vezes. O arquétipo da bruxa foi reforçado durante a Idade Média, no período da Inquisição. Os tribunais da Igreja Católica, que durante anos a fio caçaram mulheres sob a acusação de feitiçaria, foram os responsáveis por endossar a ideia de que a mulher com mais conhecimento tinha dons malignos. “Por isso se diz ‘caça as bruxas’. Afinal, era a mulher que sabia quais ervas podiam acabar com uma dor de barriga ou de dente, por exemplo. Isso era uma atitude ligada à magia”, conta o professor Warde. Desde então, a imagem da mulher segurando uma vassoura ou cozinhando diante de um grande caldeirão é imediatamente ligada à maldade. Assim como os contos se transformaram, também houve uma transformação do ideal da vilã. As bad girls das histórias não são criações modernas nem meramente surgiram na Idade Média. Elas sempre existiram, mas acabavam esquecidas por conta da estrutura social em vigor na época de sua gênese. A Ilíada, um dos mais importantes poemas épicos da humanidade conta que Éris, deusa grega da discórdia, não se conformou em não ser convidada junto com os outros deuses do Olimpo para banquete de casamento entre Peleu, rei de Fítia e a nereida Tétis, que viriam a ser os pais de Aquiles. Por vingança, ela lançou sobre a mesa um pomo de ouro que deveria ser entregue a deusa mais bela. Hera, Afrodite e Atena logo entraram em uma briga para saber quem deveria ficar com o objeto. Zeus, receoso dos efeitos da disputa, nomeou Páris, príncipe de Tróia, para resolver a contenda. As três deusas ofereceram muitos presente ao mortal. O jovem, porém, disse que o pomo deveria ficar com Afrodite, que havia lhe oferecido o amor da mulher mais bela do mundo. Dessa maneira, o príncipe acabou a atraindo a fúria das duas outras deusas para si e para sua cidade. Éris pode ser considerada uma versão grega das vilãs modernas. De qualquer forma, na época em que começaram a surgir, as personagens femininas não tinham grandes participações nas histórias. Essa função era delegada somente aos homens, que eram considerados mais fortes e inteligentes. Essa situação manteve muitas personagens presas sob a figura de donzela indefesa ou bruxa maldosa. Com o passar dos anos, o papel da vilã foi se transformando. A figura ardilosa que nem sempre é muito inteligente, e no fim acaba vencida pelos atos heróicos do protagonista já estava

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ultrapassada. Na Idade Média, elas passaram de velhas feiticeiras que moravam em casebres a lindas rainhas maldosas que viviam em palácios. Durante a Revolução Industrial passaram a ser as grandes senhoras burguesas. Com os movimentos feministas elas se transformaram em mulheres independentes que trabalham durante o dia e roubam joalherias a noite. De qualquer forma, não podemos nos esquecer de que, quando surgiram, os contos existiam com a simples função de se comunicar com mulheres e crianças. Com a mudança da sociedade, é extremamente importante que as histórias se adequem ao contexto histórico e ao publico que querem atingir. Se a sociedade muda, as histórias mudam com ela.

As moderninhas No início de 1940 até a década de 1950, mais meninas que meninos liam quadrinhos. Esse período foi de grande importância não só para o desenvolvimento das vilãs, mas para qualquer personagem feminina. Segundo a pesquisadora e professora de historia Natania Nogueira, na década de 1940 surgiram as principais heroínas dos quadrinhos, como a Mulher-Maravilha, Sheena e Brenda Starr. Uma das primeiras revistas voltadas para o público feminino foi concebida pela Archie Comics, em que os personagens principais eram adolescentes. Durante o período conhecido como Idade do Ouro das historias em quadrinhos, que vai da década de 1930 a 1940, as personagens femininas que não eram representadas como super-heroínas surgiam como mulheres que seguiam carreiras profissionais bem sucedidas, como interesse amoroso de algum super-herói ou como simples adolescentes alegres. As profissões exercidas pelas personagens nos quadrinhos eram tipicamente designadas como femininas: elas eram datilógrafas, enfermeiras e modelos. A pesquisadora afirma que, com a evolução da mulher dentro da sociedade, alguns desenhistas passaram a desenvolver o papel feminino dentro das historias. Os momentos de crise que marcaram a primeira metade do século XX foram fundamentais tanto para o surgimento de personagens femininas fortes, quanto para uma maior participação da mulher na indústria dos quadrinhos.

Os momentos de crise que marcaram a primeira metade do século XX foram fundamentais tanto para o surgimento de personagens femininas fortes, quanto para uma maior participacão da mulher na indústria dos quadrinhos.

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Natania afirma que não há como negar a influência do contexto histórico sobre o comportamento de homens e mulheres, ora mais liberal, ora mais conservador. Ela arrisca dizer que existe uma estreita relação entre a conquista do mercado de trabalho pelas mulheres nos tempos de guerra, impulsionada pela necessidade de substituir o homem em atividades onde a mulher era excluída, e a popularidade e multiplicação de personagens femininas mais complexas. — Acredito que os quadrinhos refletem bem esse momento de mudança. As personagens responsáveis pelo pontapé inicial para o crescimento das vilãs foram Vampirella, que surgiu em 1969, e Elektra Natchios, com sua primeira aparição em 1981 nos quadrinhos do Demolidor. A primeira contava com poderes especiais, podia se transformar em morcego e ficar invisível, além de ter uma força considerável. A segunda era uma mercenária com habilidades ninjas. Ao contrario de Vampirella, que já era assustadora por sua essência sombria, Elektra se transformou em assassina para vingar a morte do pai – Uou. A partir daí, muitas personagens ganharam destaque e podem ser colocadas no hall da fama dos vilões. Podemos citar a Mística e a Fênix, famosas entre os fãs dos X-Men, e as sereias de Gotham, Arlequina, Hera-Venenosa e Mulher-Gato, que fazem parte das histórias do Batman. Essas vilãs são exemplos que se consolidaram nos quadrinhos. A personagem da Mística, por exemplo, tem uma aparência muito característica. Com a pele azul, ela tem medo de ser discriminada, por isso, aprendeu a manipular seus poderes com maestria para viver entre os humanos. Icônica, ela foi responsável pela segunda formação da Irmandade dos Mutantes, grupo que, nos quadrinhos, tentou assassinar o ativista anti-mutante e senador Robert Kelly. Nessa sequencia da historia foi baseado o primeiro filme da franquia dos X-Men. Mística defende seus ideais a qualquer custo. A Fênix, que reaparece com freqüência na saga dos alunos do Instituto Xavier, é a aluna Jean Grey no auge de seu poder. Após retornar de uma missão no espaço, Jean conta que sofreu os efeitos de uma tempestade solar. A radiação acabou elevando ao máximo o grau de seus poderes telepáticos e telecinéticos, que já eram praticamente ilimitados. Depois desse episódio, ela se tornou um ser de pensamento puro

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Todas elas são representacões de mulheres extremamente fortes psicologicamente, prontas para lutar por seus objetivos!

com poder cósmico infinito. Chegando a terra, Jean criou algumas barreiras em sua mente com o objetivo de controlar seus super poderes, reformou seu uniforme e passou a se auto denominar Fênix. Apesar de ser uma mutante de nível ômega, seus dons tornaram a mente de Grey um alvo fácil para Emma Frost, outra vilã telepata. Emma criou um dispositivo para projetar imagens na mente de Jean e subverte-la, fazendo com a Fênix se juntasse ao seu grupo de vilões e se voltasse contra os X-Men. A personagem acabou destruindo um planeta inteiro com seus poderes e foi considerada um perigo para o universo inteiro. Ao final dessa versão, Jean acaba cometendo suicídio por saber ser incapaz de controlar totalmente seus poderes e para salvar seus companheiros de equipe e a humanidade. Em alguns universos, a Fênix é uma entidade que possui o corpo de Jean ou até mesmo outro lado de sua personalidade. A Mulher-Gato surgiu nas HQs no ano de 1940. Como qualquer outro personagem famoso, a Gata já passou por várias repaginadas, mas ainda marca presença nos contos do morcego. Exemplo que se destaca, ela já ganhou série de TV e um filme aonde o homem morcego nem mesmo chega a aparecer. Prova de sua força dentro de um universo dominado por heróis do sexo masculino. Tendo sua primeira aparição no ano de 1999, Arlequina também é um personagem complexo. Psiquiatra, a Doutora Harleen Quinzel se apaixona pelo Coringa enquanto trabalha no asilo Arkham. A partir daí, sua participação nos quadrinhos cresceu e ela chegou a formar uma dupla com Hera-Venenosa. Comparando essas personagens, é possível criar uma linha que as distingue e que as une ao mesmo tempo. Todas elas são representações de mulheres extremamente fortes psicologicamente, prontas para lutar por seus objetivos! Apesar de seus atos nada heróicos, Mística luta contra o preconceito presente em seu universo. Jean Gey, mesmo com sua personalidade dúbia que constantemente toma o controle de seu corpo, comete suicídio em busca de um bem maior. Como é dito em seu próprio

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Eles têm medo que elas dominem o mundo. E colocá-las em uma posicão onde elas almejam exatamente isso deve fazer tremer os joelhos de qualquer super-herói.

quadrinho, ela “poderia ter vivido para se tornar uma deusa, mas era importante que ela morresse como ser humano”. No caso da Mulher-Gato, podemos ver uma mulher independente que sai de uma vida de sofrimento para se tornar uma criminosa profissional. Já Arlequina tem atitudes passionais. Suas ações estão diretamente ligadas as peripécias do Coringa, que muitas vezes abusa dela física e verbalmente. Vários lados da mesma moeda, essas criações mostram diferentes maneiras de retratar as mulheres nos quadrinhos. Porém, em uma coisa é provável que você vá concordar comigo. Apesar de seus contrapontos, tanto a Mulher-Gato quanto a Arlequina são retratadas da mesma maneira hipersexualizada – Pffff. Jean e Mística também. Os corpos esculturais e as barrigas malhadas podem ser frutos de muito treinamento físico nas historias, mas essa imagem distorcida acaba criando um ideal de beleza feminino que não pode ser alcançado por uma mulher comum. Apesar do crescimento do movimento feminista e do papel da mulher na sociedade, os quadrinhos se resumem a retratar uma versão sensualizada das vilãs. Por contarem com um sex appel maior, elas acabam sendo retratadas de maneira até desproporcional. Sobre esse conceito, Natania completa dizendo que isso é um estigma. — As mulheres dos quadrinhos estão fadadas a representar o ideal de beleza de sua época e satisfazer o fetiche masculino. O ramo das histórias em quadrinhos é uma indústria e não somente uma forma de arte. É importante lutar contra essa imagem, por isso, a pesquisadora ainda informa que de certa forma, as vilãs foram demonizadas, mas elas conseguem transcender do paradigma de serem simples representações do mal. Natania acredita que a ideia de vilã está mais ligada à de ‘anti-herói’. Nem completamente boas, nem completamente más. Algumas personagens chegam a confundir os leitores, que não conseguem decidir se elas são realmente vilãs ou heroínas.

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— Acredito que elas estão mais humanizadas, mas levando em conta a amplitude do universo dos quadrinhos, é complicado fazer generalizações. De qualquer forma, o lugar de destaque para quem pratica o mal nas HQs ainda fica para os homens – Fué fué fué fuééé. Mesmo com grande nível de importância em algumas histórias, as vilãs ainda aparecem pouco e os heróis sempre tem um inimigo representado por uma figura masculina. Um exemplo disso são os tradicionais quadrinhos do Superman, onde o principal vilão é Lex Luthor ou Batman, onde o vilão é o Coringa. Uma pena que seja assim. Porque bem lá no fundo, qualquer homem sabe que as mulheres não representam o sexo frágil. Eles têm medo que elas dominem o mundo. E colocá-las em uma posição onde elas almejam exatamente isso deve fazer tremer os joelhos de qualquer super-herói.

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leandro valente

As malvadas favoritas! Em uma cafeteria no centro, eu o vejo. Um rapaz alto, de cabelos e barba escuros usando chapéu. Sentado em um canto reservado próximo a parede, ele tinha um tablet aberto sobre mesa. O rosto sério e a testa franzida. Ás vezes, ele batia os dedos freneticamente contra a tela – TAM TAM TAM! – Eu, com a minha imaginação voando alto, só pensava em uma coisa: Talvez ele estivesse elaborando um plano infalível para conquistar o mundo! Ele não tinha lá todo esse ar de vilão... O visual simples, composto por jeans, camiseta e tênis tinha mais a cara de um garoto que acabou de sair de uma aula na faculdade. Mas quem sou para dizer o que ele é ou não? Afinal, Harry Osborn era o melhor amigo de Peter Parker e o pior inimigo do Homem-Aranha. Vai saber, não é mesmo? Saindo do meu devaneio, eu volto para o rapaz sentado na mesa. O nome dele é Leandro Valente e nós nos correspondemos há algumas semanas. Tudo em caráter confidencial, como em qualquer plano ultra-secreto. Ok, ok. Vou tentar ficar no mundo real!

Amor à primeira leitura Na verdade, o que o mantém tão concentrado à pequena tela não é nenhum esquema de dominação global. O que aparece na tela são... quadrinhos. PAN PAN PAAAN!!! Eu fui

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em direção à mesa e toquei seu ombro. Ele levantou a cabeça e sorriu. Um sorriso enorme de menino que parecia ter visto um super-herói! Guardou na bolsa o aparelho que até agora tinha bem preso nas mãos e já me avisou que estava lendo. — Fullmetal Alchemist é um dos meus mangás favoritos! Mas não é só por quadrinhos japoneses que bate o coração do nosso Valente herói. Leandro é fã de HQs desde que aprendeu a ler. Sua paixão pelas revistinhas começou com a Turma da Mônica, de Maurício de Souza. Sua mãe, sempre que voltava do trabalho no centro da cidade, trazia um novo gibi para os filhos. — Lembro de ficar com meus irmãos na sala esperando que ela chegasse logo em casa com as revistas novas. Nós ficávamos jogando vídeo games, mas assim que ela entrava, nós três largávamos os controles e cada um ia ler o seu gibi. Pode parecer meio óbvio, mas Leandro gostava mais das histórias que envolviam os meninos da turminha. Mesmo assim, ele não pode deixar de notar a importância das personagens femininas. No caso dos quadrinhos de Mauricio de Souza, a Monica acabou se tornando um ícone destoante no universo das HQs. — Era óbvio que, como menino, eu gostava muito mais das histórias do Cebolinha ou do Cascão, mas as histórias deles giravam em torno da Mônica. Leandro lembra que os dois personagens estavam sempre em busca do plano infalível para derrotar a dona da rua, mas toda vez que eles colocavam o plano em prática: BAM! A dentuça aparecia e se defendia usando o Sansão, o famoso coelho azul. Ela era sempre mais forte e já trazia a ideia de liderança no título do quadrinho.

Uma nova geração Crescendo com essa percepção de quebra estereótipos, Leandro notou que, em algumas histórias, as mulheres eram colocadas em segundo plano, nunca assumindo um papel importante no desenvolvimento dos personagens principais. Como em muitos quadrinhos, as personagens femininas eram assistentes, objetos de desejo, vítimas ou pares românticos dos heróis. Ele

Leandro percebeu um tipo de personagem feminina que cresceu nos quadrinhos: as vilãs.

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As mulheres que lêem quadrinhos agora são um número expressivo e com essa demanda, o trabalho mudou. Surgiram mais protagonistas e mais vilãs.

sabia que o preconceito começava aí. Por que nenhuma dessas personagens podia liderar uma grande empresa ou ser chefe de uma grande quadrilha? Se era difícil encontrar mulheres ocupando cargos humanos importantes, quanto mais encontrar uma que fosse líder de um grupo de seres super-poderosos. — O elenco dos quadrinhos do Homem-Aranha, Batman ou Superman mostram mulheres que são, no geral, fracas e indefesas, sempre precisando serem salvas. Louis Lane, a jornalista por quem Clark Kent é apaixonado, é um exemplo disso. Mary Jane, namorada de Peter Parker também passa pelas mesmas situações. Elas sempre se metem em problemas. Ele tem em sua casa uma coleção de quadrinhos que só aumenta. Composta de edições especiais e comemorativas, a estante exibe as histórias de Sandman, escrito por Neil Gaiman até Sin City, de Frank Miller. As mulheres fortes marcam presença na coletânea em vários números, como na edição de capa dura dos X-Men lançada pela Salvat, que é uma continuação da história da Fênix Negra e tem a participação de Emma Frost. Ele também conta com um pequeno espaço dedicado aos mangás. Fã das histórias da Marvel, sua última aquisição foi uma edição especial de capa dura da sequência da Guerra Civil, onde Homem-de-Ferro e Capitão America se enfrentam em uma batalha épica pela liberdade. Só não vou contar mais sobre a história por que isso é spoiler e eu não quero estragar a sua surpresa. O importante é que, em grande parte de sua coleção, as mulheres fortes marcam presença. Algumas das revistas que se somam em sua prateleira fazem parte da coleção Antes de Watchmen. Prequela da série de mesmo nome criada por Alan Moore, as revistas apresentam uma visão sobre o passado dos heróis que integram o grupo que dá nome ao quadrinho. Consideradas uma das HQs mais importantes do mundo, a série também não foge a regra e a apresenta uma personagem icônica: Spectral. Para surpresa de muitos, a jovem não possui super-poderes, mas é extremamente importante para o desenvolvimento da história. — É bem fácil perceber que as mulheres estão ganhando mais destaque não só nas histórias, mas como quadrinistas e ilustradoras também.

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Leandro afirma que hoje você consegue encontrar com mais facilidade uma autora de um fanzine, por exemplo. – Ta dá – De qualquer forma, a maneira como as mulheres são retratadas ainda está longe da ideal. – Fuééé... – Isso acontece pela quase unanimidade de roteiristas e desenhistas do sexo masculino nas grandes editoras dos quadrinhos. Por mais que se bata na tecla de igualdade de direitos, as personagens ainda aparecem com roupas mínimas, sempre explorando um lado sexualizado da mulher. Isso não acontece com os homens, sempre mais protegidos e com roupas que se adequam ao estilo de vida de um super herói – o de lutar, correr e voar.

A revolução Apesar de tudo isso, foi através desse contexto que Leandro percebeu um tipo de personagem feminina que cresceu nos quadrinhos: as vilãs. – TCHAM!!! – Ele percebeu que as antagonistas dos heróis são personagens independentes e demonstram muito mais poder do que algumas super-mulheres das histórias. Para Leandro, vilãs são personagens sensacionais, sempre com aquele toque especial e com uma vontade incontrolável de quebrar as regras que são impostas a elas como mulheres. A Mulher-Gato, por exemplo, passou por uma situação difícil no começo de sua história. Em algumas versões, ela sofre um acidente de avião e perde a memória. A única coisa que se lembra é dos gatos que tinha enquanto vivia na casa do pai. Em 1986, Frank Miller criou uma origem mais sombria para o personagem e a desenhou como uma prostituta que foi abusada pelo pai. Em todas as situações, ela se recupera e se transforma em uma personagem livre de algumas amarras, ganha habilidades especiais e acaba ficando mais desinibida. — Ela não é mais a garota frágil e indefesa que precisa ser salva pelo mocinho. Leandro se lembra de brincar com os irmãos na época de lançamento de Batman Returns, clássico de 1992 dirigido por Tim Burton. O irmão mais velho sempre ficava como Batman enquanto ele tinha que ficar como o vilão Pingüim. Os meninos convidaram a irmã para participar da brincadeira e... – BOOM! – Ela só aceitou brincar se pudesse ser a Mulher-Gato. Nada mais de ser a mocinha indefesa que ficava amarrada a uma cadeira durante a correria dos meninos. Isso refletiu a mudança do próprio público. As mulheres que lêem quadrinhos agora são um número expressivo e com essa demanda, o trabalho mudou. Surgiram mais protagonistas e mais vilãs. — Esse processo de evolução feminina ocorreu em todos as áreas que abrangem a cultura pop, não só HQs.

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Super - poderosas Frequentador de eventos que envolvem o universo Geek, Leandro já percebeu que a presença feminina em campos que eram dominados por meninos é grande e tende a aumentar. Mesmo na área de convenções de quadrinhos é fácil encontrar garotas trabalhando na organização ou fazendo cosplays. — Tenho uma amiga que costuma participar desses eventos. Ela já fez cosplay de vários personagens, inclusive da Princesa Peach, a princesinha do jogo Super Mario. Mas ele não nos deixa esquecer que as vilãs também passaram por transformações dentro das histórias. Em alguns momentos, elas roubavam dos heróis e depois se arrependiam ou arranjavam um problema tão grande que acabavam sendo salvas pelos rivais. Independente do seu papel dentro da série, isso acabava mostrando uma mulher submissa e fraca, que dependia sempre de um personagem masculino. Até mesmo a Mulher-Gato, em uma de suas histórias, acaba se arrependendo e casando com Bruce Wayne. Isso mudou, e hoje em dia, as personagens tem mais autonomia. Não é necessário salvá-las. Além disso, essa evolução trouxe mulheres mais humanas para os quadrinhos. — Elas têm problemas e preocupações reais. Isso é uma forma de se aproximar do público crescente. Mesmo depois de ter falado de todo seu carinho pelas vilãs, ele não nega que uma de suas personagens femininas favoritas ainda é uma heroína. – Fiééé – Susan Richards, a mulher invisível do Quarteto Fantástico. Inicialmente, ela é mostrada como o membro mais fraco do grupo. Ainda assim, cresce em importância com o tempo e se torna, inclusive, a primeira heroína a ser mãe nos quadrinhos. Ela tem opinião forte e é tão líder quanto o Sr. Fantástico. Na saga da Guerra Civil, ela se opõe ao marido e divide o Quarteto Fantástico, fazendo com que grupo fique em lados opostos. Para quem não conhece a

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história, isso é algo ruim, mas na verdade foi inovador. Em quadrinhos mais antigos era impensável que isso acontecesse. — As mulheres apenas seguiam seus parceiros. Essa situação foi importante e mostrou que a opinião feminina faz diferença.

As meninas vão à luta! Ele reconhece que ainda há um longo caminho a ser percorrido pelas mulheres, tanto nas histórias em quadrinhos quanto na vida real, mas mesmo assim, não deixa de pensar que a situação das personagens hoje já é melhor do que nas sequências antigas das histórias. — O preconceito é algo real. Hoje ele é mais fácil de ser combatido, mas não deixa de existir. É importante mostrar que as mulheres não são objetos nem enfeites. Existem muitos meios pra isso, é claro, mas os quadrinhos se transformaram em uma arma muito interessante, além de mostrar de uma forma quase subjetiva a evolução feminina. Mais do que as super heroínas, as vilãs são um exemplo concreto da importância da mulher na sociedade. E apesar de ter uma heroína como personagem feminino favorito, uma vilã em especial tem um lugar cativo no coração do moço. — Adoro a história da Jean Grey! A Fênix Negra é um dos personagens mais marcantes dos quadrinhos dos X-Men. Ela tem a capacidade de interferir na história de diferentes maneiras e em diferentes universos. Leandro se entusiasma com o fato de que Jean Grey não é uma vilã que some de uma edição para outra. Até mesmo depois de morrer ela cria em eco na história, interferindo na realidade dos outros personagens. Além disso, ela tem um poder ilimitado e sua luta contra si mesma e pelo controle desse poder é um dos melhores plot twist que eu já li nos quadrinhos! Ele lembra que, independente do motivo, as vilãs lutam por um objetivo que muitas vezes vai além do clichê de salvar a humanidade. São batalhas contra preconceitos, a favor de direitos e pelo direito de controlar o próprio corpo. — Elas representam uma parcela das mulheres que finalmente demonstra amor próprio.

hoje em dia, as personagens tem mais autonomia. Não é necessário salvá-las.

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Ele acha interessante acompanhar a libertação do estereótipo que acompanhou essas personagens durante muito tempo, mas saber que isso é um reflexo do crescimento de um movimento social é incrível. E como qualquer super-herói que se preze, Leandro convoca todas as mulheres a se unirem pela busca de igualdade. Mais que o destino do universo, são os direitos de muitas jovens do mundo que estão em jogo nessa batalha da vida real. Então vista seu uniforme e mostre seus super-poderes nessa luta. E espera aí! Eu disse que ele era um super-herói? Acho que eu mudei de ideia... Dessa vez, vou deixar o meu herói ser o vilão. Afinal, ser mau nunca foi tão bom!

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Meninas de Mauricio de Sousa

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Caros leitores, conheçam as meninas! Cuidado, Cebolinha – POF –, a Mônica chegou Foi assim, sem aviso prévio, dando coelhadas e fazendo o menino que fala “elado” ver estrelas de dor, que a primeira menininha do Maurício de Sousa apareceu nas suas tirinhas, desbancou o Cebolinha e, de quebra, conquistou o coração não só dos brasileiros, mas do mundo inteiro, e há anos é o maior sucesso entre a meninada. Porém, alguns anos antes da famosa gorducha aparecer pela primeira vez nas historinhas, existia um “mundo” criado por Sousa que era habitado apenas por meninos. O “dono do pedaço” era Cebolácio Júnior Menezes da Silva, ou, se você preferir, também pode o chamar de Cebolinha, e seus fiéis escudeiros: Cascão, Bidu, Franjinha e alguns outros personagens secundários, todos do sexo masculino. Mas e ai, Maurício? Cadê as meninas dessas histórias, heim? Foi na época em que o quadrinista trabalhava na Folha de S. Paulo que alguém na redação percebeu o que estava acontecendo e o questionou sobre a ausência de personagens femininas em suas tirinhas. Você é misógino, Maurício? Foi a pergunta feita a ele por seu colega de trabalho, é claro que na hora o quadrinista, que ficou indignado com tamanha ofensa, o xingou de volta – *#@*&!*. Espere aí um momento, tamanha ofensa? Pois é, na época ele não sabia o significado de tal palavra, e foi só depois da conversa terminar que ele correu para um dicionário para descobrir que o que o homem queria saber é se ele tinha alguma aversão, ou desprezo, às mulheres. Esta pergunta ficou “martelando” – Poc poc poc – durante um tempo na cabeça de Maurício. É claro que ele não era um misógino, onde já se viu tamanho absurdo? – Huum – O real motivo para a ausência das meninas em seus quadrinhos era o fato de ele não saber como elas “funcionavam”. Ué, mas como assim? Simples, ele escrevia sobre situações e emoções que ele entendia e conhecia, as que os homens sentem. O fato dele nunca ter sido uma mulher – Ufa – o impedia de saber como elas agiam. Afinal, do que será que as meninas gostam? Do que elas brincam? Quais são seus medos? Suas emoções? Como o menino Maurício iria saber, se ele nunca viveu nenhuma dessas situações? Pensa, Maurício, pensa... – Bang – Mas é claro, a resposta estava bem ali na sua frente, foi enquanto observava suas filhas da vida real, Mônica e Mariangela, brincando, que ele aprendeu o que precisava para criar de dar vida as suas personagens femininas, as filhas do mundo dos quadrinhos – Uhul.

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Pronto, foi ai que em 1963, três anos depois do lançamento da primeira revista em quadrinhos de Maurício de Sousa, Bidu, que a primeira menina apareceu em uma de suas historinhas – Aleluia. Senhoras e senhores, meninos e meninas e, é claro, queridos leitores, conheçam a Mônica – Clap clap clap. A baixinha, gorducha, dentuça, sabichona e teimosa, mas querida do Brasil e que faz um tremendo sucesso em vários outros cantos do mundo. E, além disso, é um verdadeiro motivo de orgulho nacional. — O Brasil é o único país cuja principal personagem de quadrinhos é uma mulher. A Mafalda, da Argentina, também tem essa relevância, mas lá divide espaço com O Eternauta, conta a especialista em quadrinhos e atual responsável pelo planejamento editorial da Maurício de Sousa Produções, Sidney Gusman. A mais nova estrela de Maurício foi inspirada em sua filha de mesmo nome. A garota, que na época tinha apenas dois anos de idade, mas já tinha uma personalidade forte e que chamava atenção de todos. E é claro, vivia para cima e para baixo passeando com o seu grande amigo, o coelho Sansão (que na época não tinha nome). Sim, ele também existiu na vida real e serviu de inspiração para o quadrinista, com apenas uma diferença: ele era amarelo, não azul como ficou mundialmente conhecido. Em sua primeira aparição, ela era apenas a irmã mais nova de Zé Luis, um personagem que costumava aparecer bastante nas tirinhas de Maurício, mas com o passar dos anos e com a “passagem da coroa” do Cebolinha para a Mônica, tal parentesco foi abolido das historinhas.

O Brasil é o único país cuja principal personagem de quadrinhos é uma mulher.

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Provavelmente Maurício não sabia disso naquele momento, mas a personagem se tornaria um marco e uma grande referencia na cultura brasileira. Sua importância e influência no país é tão grande que Mônica foi a primeira personagem em quadrinhos no mundo inteiro – Wow – a ser nomeada embaixadora do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância). O motivo da escolha da gorducha para este cargo de tamanha importância e honra se deve a influência que ela exerce sobre as muitas crianças, professores e famílias há anos, sempre transmitindo importantes valores como amizade, importância da educação e da família. — Mônica ajudará o UNICEF a defender os direitos das crianças, usando uma linguagem que permitirá que as crianças entendam melhor seus direitos a educação, saúde, proteção e carinho, afirmou a representante do UNICEF no Brasil, Marie-Pierre Poirie.

As outras menininhas de Maurício Mariangela, a irmã mais velha da Mônica da vida real, e primogênita do quadrinista, também foi eternizada pelo pai ao servir de inspiração para outra de suas personagens: Maria Cebolinha, a bebezinha que é a irmã caçula do Cebolinha. A personagem não ganhou tanta notoriedade quanto à dentuça, mas também é extremamente conhecido pelos fãs das historinhas. Na Turma da Mônica Jovem, a menina ganhou destaque por estar sempre “atazanando” o irmão mais velho. As duas meninas foram apenas o começo, não demorou muito para chegar mais e mais personagens do sexo feminino nas histórias. Com o nascimento da terceira filha de Maurício, estava a caminho mais uma das principais personagens da Turma. Magali – a dos gibis e a real – nasceu pouco tempo depois e foi a terceira presença feminina nos gibis. A menina que está sempre com seu vestidinho amarelo, e que não consegue dizer não para uma deliciosa melancia – Nhac – (nem para nenhuma outra comida, por sinal), é a melhor amiga da Mônica (e uma dos poucos que nunca tomou uma coelhada – só algumas por acidente) e também ganhou destaques nos quadrinhos. Apesar de comilona, Magali é a personagem mais magra. Será que ela vai nos contar o segredo para comer tanto e continuar em forma? Outra curiosidade sobre a personagem é que ela é a única canhota da Turma. Também não demorou muito para que os fãs começassem a clamar por uma revistinha da Magali, já que estavam inconformados que todos os seus coleguinhas de páginas tivessem uma e ela não e, é claro, Maurício, sempre extremamente atencioso com seus leitores, aten-

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deu aos pedidos e a menina ganhou um espaço só dela onde suas aventuras, e as de seu fiel escudeiro, o gatinho Mingau, são contadas. Depois deste ponta-pé inicial, o quadrinista venceu a barreira que o impedia de criar personagens do gênero feminino e hoje possui uma numerosa lista de “filhinhas”. Entre elas estão as lindas e carismáticas Aninha, Marina, Cascuda, Dorinha, Vanda, Valéria, Denise, Xabéu Lorota, Tia Nena, Tina e tantas outras, que apesar de não terem tantos destaques, estão sempre ali. A maioria das personagens criadas por ele foi inspirada em suas filhas e conhecidas (o mesmo aconteceu com os meninos). Além das três primeiras criações de Maurício, Marina, Vanda e Valéria também foram inspiradas em suas filhas (todas têm os mesmos nomes na vida real). E por falar na Tina, a moça, que muito tempo depois do seu nascimento ganhou sua própria revistinha com a sua turma, para a alegria de seus fãs, atualmente está no auge de seus 21 anos e é uma estudante de jornalismo destemida, simpática e estilosa, também teve um “início de carreira” nos quadrinhos bem interessante. Ela nasceu no mesmo ano que a Magali, 1964. A pré-adolescente de visual hippie passou os “primeiros anos de vida” sendo publicada apenas em jornais. Foi só em outubro de 1970 que ela passou a aparecer nos gibis – Uhul –, para a felicidade de seus fãs. Ao ser criada, ela era um pouco mais velha que a Mônica, a pré-adolescente vivia por ai com os seus dois irmãos, o Toim e o Toneco, que, como todo bom irmão, eram encarregados de perturbar a menina.

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A Tina é uma “nerd” descolada, quando era crianca e lia as historinhas, ela era como eu queria ser quando crescesse.

Não demorou muito para a garota que usava grandes óculos e um colar com o símbolo hippie de paz e amor, ganhar a simpatia dos fãs, e logo virou boneca da Estrela (uma das primeiras licenças do estúdio) e Maurício logo percebeu que a menina iria fazer muito sucesso. Mas ai, mais uma vez o quadrinista se deparou com um problema técnico. Suas primeiras personagens eram inspiradas em suas filhas, adoráveis crianças. Nem uma delas era uma pré-adolescente ainda, então quem serviria de inspiração para ele? Como ele aprenderia a “língua” de quem estava nessa idade? Como saber como age um jovem? Foi então que ele resolveu esperar que suas filhas crescessem um pouco e entrassem na idade da Tina, assim ele teria como entender melhor essa fase e alimentar sua personagem, mais uma vez inspirados por elas. Coitado do Maurício, ele se esqueceu de que, nessa idade, os jovens não querem saber de conversas com os seus “velhos”. O importante é sair para curtir com os seus amigos e ir às festas. Depois de alguns anos essa fase passou, mas durante esse tempo, ele ficou sem meios para alimentar Tina da forma que ele gostaria de ter feito. Com roteiristas jovens entrando em sua equipe no estúdio, foi ficando mais fácil de criar as histórias para a personagem, pois, apesar de serem um pouco mais velho que a menina dos quadrinhos, eles estavam vivendo uma realidade mais próxima a da personagem e usavam suas lembranças para criar suas tirinhas. Depois de um tempo, Maurício ainda não se sentia seguro para lançar uma revistinha exclusiva da Tina, mas com os passar dos anos (e com as cobranças dos fãs, é claro), finalmente, chegou à hora de a mocinha brilhar – Uhul. Em maio de 2009 chegou às bancas a primeira revistinha da adolescente e de sua turma de amigos.

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“Depois da Mônica, quem mais me encanta é a Tina, por ela ser mais velha e descolada, eu sempre achei ela o máximo. Além disso, sempre gostei das mensagens dos gibis, da arte, das histórias. A Tina é uma “nerd” descolada, quando era criança e lia as historinhas, ela era como eu queria ser quando crescesse, afirma a fã dos quadrinhos de Maurício, Fernanda Carolina, que acompanha a turma desde quando ela era criança”. Em 1989, foi a vez de Denise brilhar. No inicio ela era apenas mais uma coadjuvante nas revistinhas da Magali, foi criada para ser a amiga, ou a inimiga, conforme a necessidade das histórias. Hoje em dia seu papel nos quadrinhos é bem mais definido, ela é a menininha que se mete na vida de todo mundo, sempre deixando claro suas opiniões, e também é sincera, ambiciosa e superantenada no que está na moda. E é claro que com uma personalidade como essa, a menina não demorou muito para conquistar centenas de fãs. “Ela é de longe minha personagem preferida da Turma. Gosto muito dela por ser moderna, muito bem-humorada e sincera. Ela sempre sabe o que diz e nunca, ou pelo menos quase nunca, se preocupa com o que os outros vão dizer ou pensar sobre ela, diz o fã das historinhas Luiz Felipe, que desde criança acompanha a Turma e que até criou um blog em homenagem a seus personagens preferidos”. Agora, se eu fosse a Mônica, eu tomava muito cuidado. Tem uma menininha ai, que também mora no bairro do Limoeiro, que não só está ganhando cada dia mais fãs, mas também está bem perto de “roubar” a coroa dela. Estou falando da Marina. Com seus cabelos longos e ondulados, ela foi uma das últimas a entrar para a Turma. Nasceu em 1994 e foi inspirada na Marina, outra filha do Maurício (que por sinal, tem dez filhos entre homens e mulheres sendo que nove deles inspiraram personagem de suas historinhas). Tanto a da vida real, quanto a do gibi, são verdadeiras artistas (O próprio Maurício diz para quem quiser ouvir, que sua cadeira na Maurício de Sousa Produções está reservada para ela). Está sempre por ai com o seu lápis mágico, que faz com que tudo que ela desenhe se torne real, e é assim que ela se mete nas mais diversas, e divertidas, confusões. Mas calma, Mônica, não há com o que se preocupar. A coroa continua sendo sua, e por mais que seus fãs amem os outros personagens, eles ainda são seus, mais do que fiéis, escudeiros. “Eu não ia querer outro personagem não. Não gostaria da substituição da Mônica. Se for para criar algo novo, até pode ser, mas colocar ela em segundo plano, ai não dá. Vocês não estão aliados ao Cebolinha né? Isso parece até ser um plano infalível”, brinca Fernanda, que está sempre disposta a defender sua personagem preferida com unhas e dentes.

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Riscos e Rabiscos – conheça mais sobre a evolução dos desenhos Nem sempre a primeira personagem de Maurício teve esses traços bonitinhos e arredondados – calma, calminha, Mônica, espera um segundo, não existem motivos para coelhadas, de forma alguma eu estou te chamando de gorducha – que são tão familiares hoje em dia. Devido à grande demanda no começo de sua carreira, o quadrinista tinha que fazer todo o trabalho de criar as histórias e desenhá-las sozinho, naquela época, ele ainda não tinha uma equipe para ajudá-lo, por isso alguns traços mudaram após sua primeira aparição. Primeiro ela “perdeu” os sapatos, depois foi a vez de dar adeus aos bolsos de seu vestidinho, e aos poucos, seu cabelo foi sendo remodelado até ficar do jeitinho que conhecemos hoje. E você sabe por que o cabelo da Mônica é do jeito que é? Tudo culpa da Maria Cebolinha, – Opa – quer dizer, Mariangela. Quando eram crianças a irmã mais velha, resolveu usar a mais nova como cobaia na sua tentativa de ser uma cabeleireira. E, escondida da sua mãe e de seu pai, Mariangela foi lá e – Clac clac – passou a tesoura no cabelo da Mônica. Não preciso nem dizer que não deu certo, não é mesmo? A menina ficou cheia de “caminhos de ratos” na cabeça, e acabou inspirando seu pai a criar a personagem com os cabelos em gomos, lembrando o formato de bananas. Foi só nos anos 80, quando a Maurício de Sousa Produções finalmente se estabeleceu como um grande estúdio, que uma equipe de quadrinistas conseguiu dar a atenção que os personagens mereciam. Não só a Mônica, mas todos os personagens ficaram mais bonitinhos e redondinhos. Mas e os sapatos e os bolsos, Maurício? Infelizmente, já era muito tarde para eles. O quadrinista preferiu deixar eles de fora porque, afinal, os personagens já eram conhecidos daquele jeito, sem todos esses acessórios. Uma personagem que possui traços bem diferentes de seus colegas, e que também passou por grandes mudanças ao longo dos anos, foi a Tina. Quando foi criada, tinha um visual hippie e era cheia de gírias modernas (para aquela época, é claro). Já no final dos anos 70, ela perdeu a imagem de hippie e aos poucos foi se tornando uma adolescente linda – Fiu

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fiu – e vaidosa. Ela deixou os cabelos crescerem, e a estudante de jornalismo mudou tanto que está quase irreconhecível hoje em dia. Mas é preciso dizer que as mudanças foram para muito melhor. Ela está linda.

Elas cresceram E foi de uma hora para outras que as belas criançinhas de Maurício de Sousa, que viviam aprontando no Bairro do Limoeiro, cresceram. Bem, não foi bem assim de uma hora pra outra. “O Mauricio tinha a ideia de criar esse projeto fazia tempo, mas foi preciso estudar e pesquisar muito para unir o estilo mangá com o do estúdio, até chegar à Turma da Mônica Jovem. Ele queria isso porque sentiu que estava perdendo leitores mais cedo. Antes, era aos 14 ou 15 anos. E da segunda metade dos anos 1990 em diante, passou a ser entre 10 e 11 anos. Com a Turma Jovem, ele resgatou esse público”, completa Sidney. Ele sabia que esse dia chegaria mais cedo ou mais tarde, mas será que como todos os pais, ele não queria ver seus bebes crescerem? Será que ele tinha medo do que poderia acontecer? Não é o que parece. E qual foi o resultado de tamanha coragem? – boom- Mais uma vez, um sucesso. “Na verdade, o Mauricio nunca demonstrou qualquer receio. O risco é que, no mundo inteiro, houve várias tentativas similares, de personagens crescerem ou se infantilizarem (quando o original era adulto). E uma das versões acabava sucumbindo à outra. O Mauricio se mostrou, de novo, um ponto fora da curva, pois ambas continuam coexistindo de maneira tranquila e com vendas excelentes”, conta Sidney. Mônica continuou com seu jeitinho único. Ainda é charmosa e dentuça, mas não mais baixinha e muito menos gorducha. E o Sansão? Sim, a paixão pelo coelho continua, mas ele não é mais o único amor na vida da pessoa. Agora tem o Cebola em sua vida. Já estava na hora dos dois se acertarem, não é mesmo? (Apesar de terem namorado em algumas edições da Turma da Mônica Jovem, eles ainda não conseguiram se acertar de vez, mas continuam bons amigos. Em uma edição especial eles chegaram até a se casar, mas essa é outra história, caro leitor). E a Magali? Aaah essa ai não tem jeito, continua magrinha – para matar as inimigas de inveja – e, é claro, comilona como sempre. Apesar de continuar gulosa, se preocupa bem mais com sua alimentação, por isso busca sempre comer comidas saudáveis.

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A supertalentosa artista, Marina, continua com seus longos cabelos encaracolados e sua grande paixão ainda é a arte. — De forma geral, todas mantiveram suas características básicas, com um “molho” a mais por causa da idade, explica Sidney.

O que acontece quando Maurício empresta seus brinquedos? Depois de 50 anos de carreira, chegou a hora de o quadrinista emprestar seus “brinquedos”, os personagens, para que outros talentosos artistas pudessem “brincar” com eles também. Esta também foi uma forma encontrada pelo estúdio para que quadrinistas com talento, porém desconhecidos, tivessem a chance de divulgar seus trabalhos. Sidney Gusman apresentou a Maurício o projeto MSP 50, uma edição especial que seria lançada em comemoração aos 50 anos de carreira do quadrinista. Foram escolhidos 50 artistas para fazerem releituras de seus personagens, cada um seguindo seu próprio estilo de desenho, e, mais uma vez, o resultado foi um tremendo sucesso. Desde então foram lançados mais diversos títulos que ficaram conhecidos como Graphic MSP. “Os fãs reagiram as Graphics da melhor forma possível. Todas elas foram um baita sucesso de público e crítica. O sentimento é de dever cumprido. Não só por abrir mais uma porta pros personagens do Maurício, mas também por ajudar o grande público a conhecer autores brasileiros competentíssimos”, orgulha-se Sidney.

Esperamos muito mais pela frente Mônica, Magali e Maria Cebolinha já são “cinquentonas” – Uow –, e esperamos ver todas as outras meninas criadas por Maurício de Sousa, que a maioria de nós aprendeu a amar quando era criança e que, apesar de não acompanhar mais com tanta frequência, continuam fazendo parte da vida de muita gente, completar 50 anos também.

Acho que o ‘segredo’ é os personagens falarem sempre a língua do dia e da hora.

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Engana-se quem pensa que é fácil manter os personagens vivos e dinâmicos e atuantes por tanto tempo, mas para a sorte dos fãs, Maurício é muito bom no que faz. “O Maurício fala disso constantemente. Acho que o ‘segredo’ é os personagens falarem sempre a língua do dia e da hora, ou seja, os quadrinhos do Maurício têm um quê ‘jornalístico’ desde sempre. Os ídolos da Turminha, por exemplo, vão sendo atualizados com o passar dos anos. Nos anos 70, os galãs eram Roberto Carlos, Francisco Cuoco; hoje são os cantores e atores recentes”, finaliza Sidney. E ai, o que será que nos aguarda? Será que Maurício tem mais meninas a caminho para nos presentear? É, caro leitor, agora o que nos resta é esperar – Aaah – e ver o que vem por aí nas próximas edições e aventuras da Turma.

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a a d d n a n r e FFe a n a i em o l r a C C

A Turma da Fernanda Ei, caro leitor, você conhece a Fernanda? Hoje eu vim aqui contar para vocês a história dela. Uma menina que há muito tempo faz parte da Turma. Ela, que acompanhou a turminha por tantos e tantos anos, também tem uma história muito legal. Vamos ler? Que rufem os tambores!! Um presente, uma roda de amigos, uma brincadeira de criança, foi assim que uma paixão começou a nascer e que até hoje não parou de crescer. O cartunista Maurício de Sousa, que marcou a infância de muitas pessoas desde que começou a fazer seus primeiros quadrinhos em 1959, teve uma participação fundamental, e mais do que especial, na vida de Fernanda Carolina Santos de Lima. Aos sete anos de idade, ganhou seus primeiros gibis. – Uhul – Eles foram presentes da sua mãe, que queria incentivar a filha a ler para que dessa forma, ela tomasse gosto pela leitura. E vamos combinar uma coisa? Não existe um jeito mais divertido de começar a ler, não é mesmo? Naquele dia, nossa amiguinha, Fernanda, ganhou duas revistinhas de histórias em quadrinhos: uma do tio Patinhas e outra da Turma da Mônica, mas enquanto os “filhos” de Walt Disney – um quadrinista norte americano que, assim como Maurício, faz um grande sucesso com a criançada- não conseguiram chamar tanta atenção da menina, o outro se tornou uma parte essencial no seu dia a dia, e é claro, na vida de toda sua turma. Naquela época estavam surgindo as primeiras historinhas com a Mônica e sua turma indo para

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a escolinha, antes, só os personagens mais velhos que frequentavam as aulas. Foi isso que chamou a atenção de Fernanda no primeiro momento, que logo se identificou com a turma de amigos criada por Maurício de Sousa. A menina sempre se encantou com o fato dos personagens serem todos amigos, para ela, isto era simplesmente genial. Aos poucos a leitura dos quadrinhos foi ganhando o coração da nossa amiga, Fernanda, e também de toda sua Turma e se tornou uma atividade de grupo. Ela, junto com seus colegas de classe, costumava ler as histórias em voz alta, em grupo. Esta foi a forma que eles encontraram para ajudar um ao outro, principalmente aqueles que tinham vergonha, e ao mesmo tempo de se divertir com os amigos. Afinal, nada melhor do que aprender brincando. Na opinião da nossa heroína, Fernanda, as histórias de nosso herói, Maurício de Sousa, são adaptadas conforme a vida real. E é isso que faz elas serem tão especiais para ela. Ele adapta coisas do cotidiano para a vida da turminha, como por exemplo, a história do Brasil. De passatempo, os gibis passaram a ser uma ajuda preciosa na hora de fazer as provas da escola. Mesmo que indiretamente, ela sempre sabia as coisas a cerca de certos temas e assuntos graças as histórias que lia nos quadrinhos. O tempo passou, Fernanda cresceu, entrou na faculdade Zumbi dos Palmares, onde estuda administração, mas, mesmo hoje, com 21 anos, a sua paixão pela Turminha que “cresceu” junto com ela continua a mesma, bom, talvez não a mesma, o amor que ela tem pelos personagens cresceu junto com ela e, pelo jeito, não vai parar de crescer tão cedo. Fernanda acha difícil definir um único motivo para amar tanto eles. Eu diria que o fator principal é por eles serem comuns. Os “filhos” do Maurício são de vários lugares, cores, crenças, raças, deficientes, super inteligentes, menos inteligentes, com dificuldades, deficiências, entre outras características, que tão um toque único em cada um deles. Isso é a realidade de uma criança de 7 ou 8 anos de idade. — O sucesso da Turma da Mônica, no meu ponto de vista, se da justamente pelo fato de buscar adaptar as coisas da nossa cultura, ao cotidiano dos brasileiros, e mostrar para a criança a cultura nacional.

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Sou muito grata a minha mãe por ter me dado meu primeiro gibi.

E por falar em características que tornam cada personagem único, acho que também podemos dizer que a Fernanda é uma personagem única. Você já até deve saber disso, caro leitor, mas uma mania que muitos dos amantes das histórias em quadrinhos possuem é guardar todas – pois é, todas - as edições que já passaram por suas mãos e, assim, fazer uma coleção imensa – é sério, tem gente por aí que guarda centenas, ou até mesmo milhares, de revistinhas. Mas ela não quis seguir o mesmo caminho. Sim, ela possui uma ou outra, mas sua coleção é pequena, apenas cerca de trinta e cinco exemplares foram guardados por ela – com muito carinho, é claro. Entre eles estão alguns exemplares da Turma da Mônica Jovem, algumas em inglês e outras em espanhol, mas esse desapego tem uma explicação. — Sou muito grata a minha mãe por ter me dado meu primeiro gibi, e como forma de agradecimento, quero ter a chance de “devolver” o aprendizado que obtive através das revistinhas. Geralmente eu faço doações, assim, outras crianças podem aprender a ler e se divertir também. As que eu tenho guardada eu até empresto para leitura, mas faço questão de telas de volta. E se você quer pegar uma revistinha emprestada com ela, fique sabendo que é bom devolver ela em perfeito estado, se não acabou a amizade, heim?! E cuidado que ela e a Mônica são muito amigas, viu? Você não vai querer levar uma coelhada, né? Além de guardar alguns de seus gibis preferidos, ela também possui alguns bonecos de pelúcia da turma: duas Mônicas e dois Cebolinhas, uma Magali e um Cascão. Seguindo o exemplo do que costuma fazer com os gibis, ela deu uma de suas Magali’s para uma menininha que não tinha bonecas para brincar. Afinal, é sempre bom lembrar-se de praticar a “lei do desapego” com quem precisa, certo? Coisa que a Fernanda também aprendeu lendo as historinhas: sempre dividir com os amiguinhos e com quem precisa. E é claro que ela empresta os seus “companheiros” para as crianças, mas elas devem sempre tomar bastante cuidado. Olha lá heim, se não tomar cuidado pode ser que a Fernanda mostre o que aprendeu com a Mônica e saia dando coelhadas por ai – boom. E não para por ai: lápis de cor, canetas, cadernos, e materiais escolares da Turma da Mônica em geral também são comuns de vê-la andando por ai com eles. Desde 2009, Fernanda faz questão de sempre ter o kit completo para usar durante suas aulas.

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E é claro que, depois de anos acompanhando a turma, ela acabou escolhendo aquele personagem que chama mais sua atenção e com quem ela mais se identifica. E ai, desconfia qual é o favorito dela? Ok, ok, eu conto: o escolhido por Fernanda foi a própria Mônica. A personagem de Maurício é baixinha, gordinha e dentuça, mas ao mesmo tempo é amiga, companheira, defensora dos “pobres e oprimidos”, inteligente, comprometida e determinada, de acordo com a definição dada pela própria Fernanda. Características que são extremamente apreciadas por ela. Quando era mais nova, Fernanda usava óculos – Ai ai ai – e, por causa disso, as outras crianças costumam rir e debochar da cara dela – Huuuum. Nessa fase, ter o “apoio” por parte de sua personagem favorita foi essencial e ajudou ela as passar por esses “tempos ruins”. Ela sonhava em ser como sua personagem preferida e poder ajudar as pessoas, assim elas olhariam mais as suas qualidades do que os óculos. E caso você esteja se perguntando, sim, ela conseguiu mostrar para todo mundo suas qualidades. Além disso, o espírito de liderança da baixinha criada por Maurício de Sousa também chamou sua atenção. — Aprendi muito sobre isso sem nem saber exatamente do que se tratava. Ela sempre soube dividir as coisas e queria mudar o mundo para melhor, para que isto acontecesse, prezou sempre a amizade verdadeira, isto foi que sempre me estimulou e me inspirou muito. Mas se engana quem acha que a Mônica é a preferida apenas por sua personalidade. Elas têm muitas outras coisas em comum, entre elas, a paixão pelo time do coração: o São Paulo. A historinha da Turma mais marcante para ela foi a em que descobriu o time dos personagens. — Confesso que sou uma fanática por futebol, e minha personagem preferida torcer para o mesmo time que eu (São Paulo), é tudo de bom, amei ela ainda mais quando fiquei sabendo deste detalhe. Agora, você sabia que os quadrinhos da Turma podem ser lidos em outros idiomas? Este foi o jeito encontrado por Maurício de Sousa para que suas histórias ultrapassassem as fronteiras do Brasil e chegasse aos outros países. Nem todos sabem sobre isto, mas quando ficou sabendo da novidade, Fernanda simplesmente amou a ideia. A Turma da Mônica me ajudou a aprender a ler e a escrever. Isso são coisas que ninguém pode

tirar

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Fernanda sabe que aqui no Brasil, ter os gibis em outro idioma estimula as crianças a ler e aprender novas línguas e também ajuda aquelas que já conhecem o idioma a desenvolverem e melhorar seu aprendizado. — Além disso, dá uma chance para as que têm uma baixa condição financeira, a também conhecer algo novo sem precisar gastar muito. Fernanda cresceu, e seus personagens preferidos cresceram junto. Quando estava com cerca de quinze anos, surgiram as primeiras edições da Turma da Mônica Jovem, que no começo não agradou nada ela e a deixou até um pouco brava com a ideia de Mauricio de deixar seus bebês crescerem. Mas, com o tempo, sua opinião foi mudando, ela conheceu melhor as histórias e entendeu seu contexto. Entendeu que as mudanças foram necessárias, pois a turma estava ausente em uma fase da vida das pessoas. Mas é claro que a turma criança não foi esquecida por ela – e se depender dela, isso nunca vai acontecer. Hoje ela lê as histórias originais para seus sobrinhos e as histórias da turma jovem para sua própria diversão. Para Fernanda, as histórias criadas por Maurício de Sousa foram muito mais do que apenas um passatempo durante sua infância. Foi através de seus gibis que ela aprendeu a ter confiança, preservar os amigos, querer estudar, amar o planeta, ter vontade de mudar o mundo, ver o lado bom e ruim de cada coisa e sempre buscar vencer seus medos. As histórias da turma foram uma parte muito importante na construção de seu caráter. — Maurício conseguiu abordar os mais diferentes temas, diversas fases de uma vida, falar sobre o passado e o presente. Aprendi a votar, eu já quis vencer o mal e estar com os meus amigos. Ela quis ser empreendedora (montando uma barraca de limonada quando era criança), ser competitiva, mas sempre lembrando dos outros. A Turma da Mônica a ajudou a aprender a ler e a escrever. Isso são coisas que ninguém pode tirar de Fernanda, são seus bens mais preciosos, pois o conhecimento a ajudou em tudo. Por enquanto a história da Fernanda e da Turma fica por aqui, mas se ela vai continuar acompanhando eles? Com certeza! Se depender dela, os seus personagens preferidos continuaram parte de sua vida por muitos e muitos anos, e é claro, parte da vida dos seus filhos, netos, e por ai vai. Afinal, a Turma ainda tem muita coisa bacana para ensinar a todos.

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Inserções políticas e educacionais por Mafalda

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Mafalda impacta, influencia e educa Na educação, como funciona? Há 50 anos nascia uma personagem que aparentemente, parecia ser só mais uma história em quadrinhos, mas que, no entanto, mudou paradigmas e a forma de ver o mundo e muitas coisas em nosso cotidiano, como por exemplo, a maneira de se ensinar em sala de aula e as relações humanas dentro desse contexto. Trata-se de uma menininha com um jeito muito peculiar, a querida e famosa Mafalda, criada por Joaquim Salvador Lavado, mais conhecido popularmente por Quino. Aliás, reflita: o que ela mudou em sua vida? Na minha, muito, viu? Meu voto vai ser bem diferente na próxima eleição. Ideias modernas levadas para dentro das salas de aula na modernidade. Uma concepção de aprendizado diferente e inovadora, que poderá ser analisada no decorrer do nosso capítulo, ao falarmos de autores arrojados, que se dispuseram a tratar de Mafalda como parte importante da educação. Porém, esta não é bem uma novidade, pois Umberto Eco, no livro Toda Mafalda, de Quino, já dizia: “Já que nossos filhos vão se tornar – por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito que merece um personagem real”. Aliás, a ideia de Quino não era criar somente um quadrinho para garotinhas, muito pelo contrário, ele queria aplicar ideias revolucionárias e sair dos padrões, mudar o estilo das histórias em quadrinhos! Mas... Você deve estar se perguntando “o que a Mafalda exatamente tem a ver com tudo isso?” Tudo, meu caro leitor! Ela é politizada, inconformada e... Ácida! – Ha ha ha. Sim, essa é uma característica bem forte da personagem, que é apresentada aqui de um jeito leve e descontraído, além de provar por a + b como a menininha que não gostava de sopa pode influenciar pessoas e o mais importante: formar opiniões dentro da sala de aula. Como a menina Mafalda, eu também sou curiosa e gosto de perambular por aí e nessas andanças, conheci um professor que parece também ser fã da nossa protagonista. Carlos Eduardo Rebuá de Oliveira utiliza as tiras da Mafalda em sala de aula e também escreveu uma dissertação que fala sobre a sua importância na aula de história, Mafalda na aula de história: a crítica aos elementos característicos da sociedade burguesa e a construção de sentidos contra-hegemônicos. Ué, por que na aula de história? Ele fala um pouco sobre isso. Carlos acredita que mesmo 50 anos após o seu surgimento, a perspectiva do olhar indignado, que não aceita o mundo como ele é, assim como a concretude desse olhar – típico

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das crianças – parecem dois “princípios” importantes de Mafalda. Em poucas palavras, não aceitar o mundo como ele é e pensar o real a partir de sua concretude. — Duas contribuições importantes da personagem de Quino no campo da Educação, mas também da História, da Filosofia etc. Peço, caro leitor, que, por gentileza, me acompanhe e assim como eu, pense em como isso pode ser relevante, afinal, como refletiu o sociólogo Florestan Fernandes (in memoriam), “na sala de aula, o professor precisa ser um cidadão e um ser humano rebelde”, e dessa forma, conversei com muitos professores rebeldes, que sugerem a importância das histórias em quadrinhos de Mafalda na educação. Carlos acredita que as histórias em quadrinhos representam uma poderosa tecnologia da informação e da comunicação na sala de aula, que hoje entram neste espaço pela porta da frente, ao contrário do que ocorria há algumas poucas décadas e ele pensa que a sala de aula não é apenas um espaço de comunicação, mas de construção coletiva do conhecimento e, sobretudo, de outros sentidos, interpretações sobre o mundo. “Desta forma, nem todas as HQs são “poderosas” como Mafalda, no esforço de romper com o senso comum, apontando para rupturas, outros olhares, novas questões. A profusão de histórias em quadrinhos no espaço escolar também atende a uma demanda do mercado editorial e devemos (professores, alunos, pesquisadores) estarmos atentos a isso”. Mas de que forma será que as tiras de Mafalda podem influenciar a juventude? É possível promover um debate em sala de aula levando em consideração que vivemos em um mundo em que a publicidade domina o jovem através das propagandas excessivas, além da internet, que hoje faz parte ativamente da vida destes, que podemos dizer que será o futuro do país? É Carlos quem nos responde: “Apesar da recente profusão de trabalhos acerca das HQs e sua relação com a educação, estudar os quadrinhos na sala de aula ainda representa tarefa difícil não apenas pela bibliografia acadêmica ainda incipiente, mas, sobretudo pela dificuldade em se discutir tal linguagem sem incorrer no mecanicismo ou no utilitarismo. Ou, em outras palavras, estudar as histórias em quadrinhos sem enjaulá-las na categoria de ‘ferramenta’, de ‘carta na manga’ do professor”. Desculpe-me, caro leitor, mas as ideias progressistas e as reflexões de Mafalda sobre a guerra, a pobreza e a repressão política permanecem ainda tão válidas como quando ela era primeira leitura pelo público argentino no semanário Primera Plana, em 1964. A história em quadrinhos, que foi traduzida para 36 idiomas, levava os leitores para o ao vivo nos pensamentos da garota, de seis anos de idade, de Buenos Aires, que fala contra a ordem estabelecida.

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“Corroborando a dificuldade acima apresentada encontra-se também o fato de muitas abordagens acerca das HQs estarem descoladas do ‘mundo real’, circunscritas apenas ao nível teórico, sem sintonizar-se com o ambiente da sala de aula, como trabalho docente”, afirma Carlos. Você já parou para pensar como seria se a geração dos anos 80 tivesse no meio da aula uma “pausa” para refletir sobre os pensamentos de Mafalda? É... Adultos politizados e de opinião própria. O que vocês acham? Seria mais fácil escolher, por exemplo, em quem votar, não seria? Reflexões... Proporemos reflexões. E por que não começar agora? – Tan dan. Vejam: as memórias da personagem ainda permanecem depois de 50 anos, como é possível? As tiras não foram publicadas por um longo período, mas mesmo assim ainda são discutidas e, utilizadas no dia a dia de algumas pessoas. “A utilização de Mafalda, bem como de outras histórias em quadrinhos é variada: depende do contexto histórico, das opções do professor, da disponibilidade na/da escola. Na educação existem alguns esforços teóricos para se pensar Mafalda. Minha dissertação representa uma trincheira neste campo, trazendo a personagem para o ensino de História”, vibra Carlos.

Mas e na política, como é? Mas, meu caro leitor, que tal falarmos um pouco da Mafalda e a política? – Uhul – Você achou que em quadrinhos não se debatia temas como política? Ah, mas é claro que sim. É importante entendermos bem sobre o assunto, afinal, em todo ano eleitoral (e durante todos os anos), nos deparamos com muitas propostas e o blá, blá, blá de sempre, corrupção... Bom, não vamos entrar nesse tema, – Toin – não hoje. Mas a que ponto as histórias em quadrinhos de Mafalda chamam a atenção para essa vertente? Será que realmente as críticas ácidas influenciam as gerações de hoje? Como essas

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tiras agem dentro da sala de aula, se tratando da política? O professor Carlos nos dá uma “luz” sobre o tema. A nona arte, como são chamadas as histórias em quadrinhos nos remetem não só à infância, mas também a reflexões propostas por elas, escondidas nas entrelinhas. Heroínas, vilãs, feministas e nossa querida Mônica também têm papel importante dentro desse contexto, mas nossa menininha Mafalda ainda é unânime na hora de se tratar da educação e da política. E olha que quando o Quino a criou, ela não fez muito sucesso não, viu? Pois é! Ele não desistiu, e nos deixou um presente em suas reflexões e críticas. Vejamos o que Carlos tem a dizer sobre as HQs na sala de aula: “Hoje as histórias em quadrinhos são muito aceitas nas escolas, fazem parte do cotidiano escolar, mesmo que não tenham a centralidade que merecem. Todavia, o mercado editorial de HQs está bem aquecido e o cinema tem grande influência nisso, sobretudo as histórias de super-heróis. Seus usos são variados, como apontei. Não há ‘receitas de bolo’, a despeito de muitos autores insistirem em produzir manuais sobre como usá-las em sala de aula. Sou muito crítico a isso”, afirma. Eu descobri andando por aí, que não é uma coisa tão atual assim usar as tirinhas da Mafalda nas salas de aula. O administrador Milko Fernandez é paraguaio e está aqui no Brasil há 10 anos. Ele me contou que tinha aulas sobre a personagem de Quino na escola e que isso era muito comum e praticamente “obrigatório” naquela época (ah, ele está com 35 anos, então você imagina que já faz algum tempo). “Ah, era muito comum termos aulas de história sobre a Mafalda e o porquê de toda aquela crítica em cima das tirinhas. Nós precisávamos entender e tínhamos que despertar nosso senso crítico e político na época. Na década de 80 começou a democracia. Está certo que a Mafalda já existia há algum tempo, mas suas ideias são muito atuais até hoje. E além de ser uma personagem revolucionária, é a minha preferida, viu? Eu sou muito fã da Mafalda, pois há uma característica muito forte dela parecida comigo: ela não gosta de sopa!” – Ha ha ha. Este foi um tempo beeeeem complicado para a política e totalmente plausível se ter aulas sobre a politizada Mafalda. Muitas ideias e um senso comum: a menininha crítica pode e é muito útil na hora de educar e formar opinião.

Mafalda coloca a política no centro, pois interpela, questiona as relacões de poder, se falarmos de homem-mulher, rico-pobre, norte-sul, legitimadas no mundo contemporâneo, apontando também para outros equilíbrios.

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Concordo com a Mafalda. Como alguém pode gostar de sopa?

Bruno Vicente Lomba Marques é professor universitário e também leva, em algumas ocasiões, propostas para dentro da sala de aula, como discussões e debates acerca de histórias em quadrinhos. Ele conta um pouco sobre a sua percepção com a nona arte: “As histórias em quadrinhos estimulam a expressão e o professor deve tocar nos interesses de seus alunos. No entanto, leva algum tempo para encontrar algumas HQs que eles possam gostar. A personagem Mafalda é mágica e, sem dúvida, é um dos meus quadrinhos favoritos para o ensino e aprendizagem”, afirma. A Mafalda, sem dúvida, é uma personagem extremamente crítica, o que auxilia os alunos a enxergarem o mundo de forma mais sensata e com um tom bem mais aguçado do que normalmente seria. As questões educacionais, bem como as políticas são despertadas através de seus diálogos e comentários, que são muitas vezes de natureza política, criticando o estado do mundo, incomum para uma criança de sua idade. Por exemplo, o lado cômico da personagem mostra o irmão mais novo constantemente perguntando: “Por quê?”, Como as crianças tendem a fazer, mas a piada não é algo sobre irmãozinhos irritantes (Mafalda é muito politizada para perder tempo discutindo isso), mas um alerta que ele é tão curioso que com certeza vai ficar em apuros com quem está no poder (nada mais do que uma crítica social e política, da época, que pode ser transmitida para os dias atuais). Mafalda desafia a sociedade em todos os aspectos da vida: sobre os direitos humanos fundamentais, sobre a paz mundial, sobre a razão pela qual as crianças devem ter para comer sopa. Ela podia ser uma garotinha como tantas outras, não fossem suas ideias revolucionárias e inconformadas.

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Meu querido leitor, é por isso que eu me senti particularmente inclinada a falar de Mafalda. A garotinha representa muito bem não só os meus questionamentos, mas os de muita gente e talvez o seu também! Suas reflexões são bem mais do que inspirações, elas são fundamentais para a formação de opinião de muita gente. Não é a toa que alguns mestres a escolheram para tratar em sala de aula. Veja, só até aqui temos dois professores e um deles, escreveu sua dissertação sobre ela e sua importância na sala de aula. São 50 anos de história com muito aprendizado e questões políticas humanitárias. Ah! E não posso esquecer, ela ainda não chegou em nossa história, mas temos também uma historiadora, que é bastante fã da Mafalda também, que nos traz um reflexão sobre a importância da Mafalda através dos tempos. Bruno conta que as histórias em quadrinhos na Argentina, diferentemente de outros países da América Latina, tem um diferencial: a Argentina através do governo de Perón, por medidas nacionalistas, vetou a importação de qualquer tipo de HQ , fazendo com que os desenhistas se organizassem de tal forma que os efeitos dessas medidas são observados em longo prazo. O professor ressalta que, segundo Sônia Byben-Luyten, esta época em que Quino cria a Mafalda, está inserida na era dos “quadrinhos pensantes”, onde o peso maior da mensagem não está somente nas formas ou desenhos bem elaborados, mas sim, na mensagem que este quadrinho quer passar ao seu leitor. — Devido esta prerrogativa dos traços simples e peso maior ao conteúdo de seus balões, é que Mafalda ainda é tão presente, e cada vez mais inserida em estudos acadêmicos, pois sua produção está representada de fatos de extrema importância para o cenário histórico mundial. Mas, afinal, por que você acha que até hoje essa personagem tão peculiar, que não gosta de sopa, ah é, ela não gosta! Você já deve saber disso, é claro, mas, afinal, por que chegamos a esse contexto? Ah, é, estamos falando das peculiaridades da Mafalda. Por que suas ideias políticas até hoje são tão atuais depois de 50 anos?

Mafalda ainda é tão presente, e cada vez mais inserida em estudos acadêmicos, pois sua producão está representada de fatos de extrema importância para o cenário histórico mundial.

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Por falar nisso, lembrei que recentemente Quino, o pai da Mafalda (acho que podemos chamá-lo assim, não?) deu uma declaração dizendo que a menininha está cada dia mais atual e o quanto isso o deprime. Espera, ele falou “deprime”? É... Acho que foi isso mesmo. Mas sabe o porquê? Quino falou da sua tristeza, pois já que a Mafalda, crítica como é, continua atual até hoje é sinal de que o mundo nada mudou. E não mudou mesmo, não é? Entendemos sua chateação... Mas Quino, a Mafalda é um sucesso, não fique triste. Para Bruno, atingir satisfatoriamente a qualidade do sistema educacional é essencial contar com materiais didáticos, que garantem uma educação adequada e resultam em sucesso acadêmico dos alunos e formação integral. E claro que as opiniões dos alunos são indispensáveis para avaliar a qualidade do material e utilidade, na medida em que o ajuste dos materiais didáticos oferecidos pela equipe de ensino para a realização dos concursos e exigiu requisitos acadêmicos. Tendo em vista essas características específicas, durante os últimos cursos acadêmicos diferentes estratégias didáticas foram aplicadas e envolve ativamente os alunos no seu processo de aprendizagem. — Uma dessas estratégias foi o uso dos quadrinhos da famosa Mafalda com a intenção de sintetizar alguns aspectos dos conteúdos. Para a historiadora Renata dos Santos Andrade, que escreveu um texto super bacana sobre a personagem, Entre o humor e a política: debate sobre imperialismo e subdesenvolvimento nas tirinhas de Mafalda, a fala de Quino já se reproduz como indignação, pois, mesmo 50 anos depois, como Mafalda ainda pode ser colocada como atual? Quais os resquícios do século 20 que ainda são perceptíveis no século 21? A lógica seria de a Mafalda não ter mais essa atualidade tão latente. Renata acredita que Quino espera mudanças, de não saber que a Mafalda ainda carrega essa “contemporaneidade” de sua época. O cotidiano mudou, vivemos novas politicas, novas economias, uma nova sociedade em alguns aspectos. Mafalda ainda traz alguns elementos após 50 anos de sua geração, mas sem cometer anacronismo de que são as mesmas situações. São âmbitos gerais, é preciso ter certo cuidado ao relacionar esta influência atualmente desta personagem. — Quino criou uma personagem envolta de um estereótipo de criança, contudo com uma criticidade, indignação e percepção de mundo tão grande, que são elementos que farão parte sempre do legado de Mafalda pelo mundo através do quadrinhos. Renata ainda fala sobre a influência da menininha na política atual. Aliás, vou te contar, ela é tão fã de Mafalda, que até o jeito de falar é parecido com a personagem! — O grande diferencial da HQ que a difere de outros meios de comunicação de massa está

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em utilizar elementos do cotidiano associados à imagem e diálogos que, de forma rápida em quadros, representam o meio da qual estão inseridas. Renata sabe que Mafalda nasce não com o intuito de ser uma menina que questiona todo esse cotidiano que a cerca. A proposta inicial era de que a personagem fosse protagonista de uma propaganda publicitária de uma marca de eletrodomésticos. Após o retrocesso dessa ideia, Quino coloca Mafalda e a família na página de alguns semanários da Argentina. O seu nascimento na década de 1960 é uma época em que a sociedade como um todo está muito fragilizada. No âmbito mundial, a Guerra Fria traz um mundo bipolar; a América Latina e Argentina sofrem com a sangrenta Ditadura Militar. Ela acredita que essa “atualidade” que cerca não só as tirinhas de Mafalda, quanto outros trabalhos brilhantes do Quino, não tinha esse proposital de ser tão influente ainda hoje em questões políticas. O que acontece é que muita coisa do cenário político local e mundial ainda abarca alguns fragmentos que fazem com que ocasionalmente se relacione as tirinhas de Quino desenhadas entre a década de 1960 e alguns anos de 1970. Mas não que essa longevidade seja proposital mesmo 50 anos depois, mas circunstancial. Ao analisar as reflexões da Renata, cheguei à conclusão que a Mafalda vai além do que imaginei que fosse, e acredito que você também tenha chegado a essa conclusão, leitor. Você não parou para pensar: “Nossa, como eu nunca analisei dessa forma antes?”. É claro que as ideias de Mafalda são as de seu criador, o Quino, mas, retratadas na figura dessa menininha se transformam em nossas mentes. Seria diferente se os quadrinhos fossem com personagens adultos, não seria? Você já parou para imaginar isso? É, eu não consigo “enxergar” nem na minha mais profunda imaginação – que é beeem fértil, viu?! ha ha ha. “Quando se relaciona quadrinhos e questões politicas e/ou humanitárias os personagens de alguma forma estarão imersos de características ao longo da sua trajetória. Quino utiliza isto perfeitamente não só com a Mafalda, mas cada personagem como: Manolito, Susanita, Felipe, Liberdade, dentre outros, que levam consigo as reproduções e inquietude a cerca do mundo do qual vivem”, comenta a historiadora. Renata observa que Mafalda questiona as mortes no Vietnã e Coréia, as divisões entre capitalismo versus socialismo, ocasionadas pela Guerra Fria. Então, este cenário que propicia suas inquietações para entender toda esta dominação imperialista que cerca esse período, faz com que ela seja relacionada ainda hoje com questões politicas e humanitárias. — Isto foi acarretado pela sua ótima mania de querer entender o mundo e questioná-lo a sua forma ingênua, de ser uma criança à frente de seu tempo.

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A forma como a Mafalda vê o mundo e como isso é exposto é muito interessante. Você já parou para reparar na roupa dela? Interessante, não? Ao mesmo tempo em que ela é simplista, é também uma figura muito peculiar, única, com vestes bem marcantes, e o cabelo então? Não da para não reconhecer a personagem onde quer que seja se virmos o seu penteado, não é mesmo? Essas, claro, são umas das características, mas não foi por isso que a menininha de Quino ficou conhecida. Suas indagações, além das suas reflexões também são bem marcantes. É bem interessante o jeito que ela conversa com sua amiga Susanita, não acham? Ela sempre faz questão de repreender por suas ideias sempre “medíocres”, como ela gosta de enfatizar. É interessante a relação das duas e como isso se e externado nas relações humanas. Vimos muito dessa cena nos dias atuais, principalmente nas escolas. Mas, como eu, o professor Bruno Vicente também reflete abaixo sobre a relação da Mafalda, não só com a Susanita, mas com sua mãe, a qual ela não quer de jeito nenhum ser igual. “A relação da Mafalda com a sua mãe é muito parecida com a relação de pais e filhos na atualidade. Não que a personagem não respeite a sua mãe, mas ela deixa claro o quanto à vida dela é medíocre e que ela não quer uma vida assim. Uma crítica social, muito comum não só naquela época, como atualmente, em que continuamos ver essa realidade. Parece que a Mafalda é antiga, mas disse Quino recentemente, ‘ela está cada dia mais atual’, despeja Renata. Afinal, será que somos mesmo politizados? Já se fez essa pergunta? Aliás, em quem você votou na última eleição? Ah! Não sabe responder, é? – Poin – O que você acha de começar a refletir mais sobre algumas questões propostas há tanto tempo, mas que ainda hoje são comuns em nosso País, por exemplo? Reflita, meu amigo. Suas escolhas influenciam não apenas na sua vida, mas na vida de todos. Ah, você deve estar pensando: “meu voto não mudará nada”... Você acha? Imagina se um milhão de pessoas pensarem assim? Então, é bom parar para repensar em algumas escolhas ou corrermos o risco de acabar como a Susanita ou como Filipe.

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MILKO!

Basta! Peraí! Antes de começar a contar essa história para vocês, vou falar um pouco sobre um personagem peculiar. Eu cheguei à livraria Cultura, em São Paulo, e o avistei. Gente, realmente é impossível não vê-lo em meio à multidão. Com um jeito muito próprio de ser: alto, nem magro, nem gordo, bonito... – Hum... – Não sei, não. Diria que ele tem um jeito meio de super-herói – Ha ha ha. Por que, super-herói? Ele estava ali atento a tudo à sua volta e com um jeitão muito “eu” de ser, que vamos concordar, muito comum em super-heróis, não é? Eles são uma espécie de “semideuses” do Olimpo. – Viajei longe agora. Bom, ele não é bem um semideus, ou um super-herói, ele é um homem cheio de ideias e desejos incontroláveis de mudar o mundo. E por isso o escolhi para falar da politizada Mafalda. — Milko, você quer conversar aqui na Livraria Cultura ou ir para algum outro lugar? — Ah, vamos ao BH Lanches, é aqui pertinho. Adoro a coxinha desse lugar, sempre que posso, venho para cá e passo as tardes de domingo, muito boas por sinal, nessa região. Chegamos ao famoso BH Lanches e... — Apesar de não ser adepta de nenhuma dieta, estou evitando a fritura. No entanto, hoje abrirei uma exceção – Ha ha ha. Duas coxinhas, por favor!

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Ah, não posso deixar de comentar. As coxinhas são maravilhosas mesmo! Vale a pena experimentar. Milko está aqui no Brasil há 10 anos e diz que não pretende voltar para o Paraguai, País onde sua família ainda vive. — Minha mãe, meu pai e meu irmão ainda vivem em Assunção, lá estão minhas origens, minha educação e formação, mas eu amo o Brasil, me sinto mesmo um verdadeiro brasileiro, conta Milko, que já é naturalizado há cinco anos.

Uma boa educação é o princípio de tudo — Meus pais sempre foram muito amorosos comigo e com o meu irmão, mas desde a infância eu sempre fui meio inconformado com o sistema, sabe? Milko se preocupava com os problemas políticos e sociais do País e não entendia muito bem, e quando fui procurar saber e entender, me deparei com as tirinhas de Quino. Ele se encantou por Mafalda, com suas ideias impressionantes e críticas políticas fortes que existiam nas tirinhas. Não resistiu, foi estudar e tentar entender melhor como funcionava todo aquele sistema. Lançaram um novo ponto de vista dos problemas sociais que vivenciamos a cada dia, com uma pitada de humor. — Sou estrangeiro, vivo em São Paulo há dez anos. Vim para cá em busca de novas oportunidades e talvez as tirinhas tenham influenciado mais no meu dia a dia do que nas minhas escolhas. Assim como a Mafalda, ele detesta gente fútil, e sempre que pode tenta colocar algum “conteúdo” na cabeça dessas pessoas. Se não der certo, faz que nem ela. Foge. Bom, estávamos na rua Augusta, em São Paulo, – isso eu já falei – mas, caro leitor, você já deve ter ouvido falar desse lugar muito agradável e cheio de pessoas “alternativas”.

Meus pais sempre foram muito amorosos comigo e com o meu irmão, mas desde a infância eu sempre fui meio inconformado com o sistema, sabe?

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Ah! Voltando ao que eu ia dizer, Milko sugeriu que trocássemos o local de nossa conversa, pois ele queria muito tomar um café no americano, Starbucks. No caminho, falamos um pouco da sua vida aqui no Brasil. Ele me contou como foi difícil no começo e de como ele acha que os paulistanos são individualistas. Milko tem apenas dois amigos aqui na cidade, de 10 anos que está aqui. No entanto, diria que esses dois grandes amigos valem por mil. Não estamos sempre juntos, mas ele sabe que eles estão “ali”. Entramos no Starbucks e ele começou a contar como se interessou pela personagem Mafalda. Quando criança, as tirinhas eram publicadas semanalmente no jornal de sua cidade. Ele tinha entre 6 e 7 anos e estava aprendendo a ler, foi quando um dia reparou nelas e se interessou. — Com o tempo fui me identificando com Mafalda e não parei mais. Uma das coisas que tínhamos em comum é que ambos detestávamos sopa e pessoas inconvenientes – Ha ha ha. Mas, que coisa, né? É tão difícil ouvirmos a história de um imigrante que se deu bem aqui no Brasil. Bom, pelo menos das histórias que eu conheço, essa é a única que deu certo, e fico feliz por isso. Ah, tá vendo... Por isso disse que ele era um super-herói lá no começo, afinal, vencer por aqui não é para qualquer um, não é mesmo, caro leitor? Bom, vamos continuar. Nós chegamos ao café e Milko contou um pouco mais de sua saga, mais especificamente, sobre sua carreira, sobre sua formação.

o Brasil é realmente um País muito acolhedor e eu encontrei, digamos, huum... Algumas “facilidades” por aqui, se assim posso dizer.

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Ele se formou em administração lá no Paraguai e mesmo o curso dele não tendo validade aqui no Brasil, ele conseguiu um emprego como administrador de um salão de cabelereiros, na região da Av. Paulista, que seu amigo o ajudou a conseguir. — Foi difícil o ingresso ao mercado de trabalho aqui em São Paulo, mas eu consegui me posicionar logo. Atualmente, Milko trabalha no atendimento de uma emissora de TV, mas conta que sonha em ser Jornalista. — Eu gosto do que faço hoje e ralei bastante para estar aqui. Mas eu gosto mesmo é do jornalismo, um dia eu ainda trabalharei como repórter – Ha ha ha. Milko sabe que a Mafalda se preocupa com várias questões sociais. Algumas das principais são guerras e educação, portanto surtem efeito nas pessoas que compartilham com ela essas preocupações, levando-as a encarar com um ponto de vista mais otimista e também influencia opiniões de diversas culturas. — Essa influência é forte em minha vida, pois eu não consigo me conformar com as coisas que acontecem. Gostaria de mudar o mundo, de fazer alguma coisa de útil pelo meu País e pelo Brasil também. Conversamos sobre essa vontade de “mudar o mundo” e Milko não se conforma com os acontecimentos aqui no Brasil. Ele sente que as manifestações se fazem necessárias, mas não crê que o brasileiro esteja fazendo isso da maneira mais correta. Por exemplo, manifestar contra a Copa do Mundo tem todo o sentido, mas do que adianta se o povo assiste aos jogos? Entende? É contraditório.

Vejo a escolha do autor por uma menina já como um prenúncio de luta pelos direitos das mulheres (as tiras foram criadas há pelo menos 50 anos), e a opinião de uma crianca tem um poder de convencimento maior.

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Sou estrangeiro, vivo em São Paulo há dez anos. Vim para cá em busca de novas oportunidades e talvez as tirinhas tenham influenciado mais no meu dia a dia do que nas minhas escolhas.

As pessoas lutam, mas não sabem muito bem pelo quê e por quê. É preciso ter luta, sim, mas com engajamento, com sabedoria e vontade de vencer, de mudar. — Gente inerte e conformada é uma das coisas que mais me incomoda, assim que gente fútil, muito bem representado pelas tirinhas da Mafalda. O nosso bate-papo foi loooooonge, amigo leitor, e chegamos até a algumas reflexões sobre a escolha de Quino por uma criança. Afinal, por que uma criança, não é mesmo? Você nunca se pegou perguntando isso? Milko falou um pouco sobre o seu ponto de vista. — Vejo a escolha do autor por uma menina já como um prenuncio de luta pelos direitos das mulheres. As tiras foram criadas há pelo menos 40 anos atrás e a opinião de uma criança tem um poder de convencimento maior. Então a combinação ficou perfeita! Para Milko, a personagem é uma criança, mas por suas ideias tão impressionantes, remetia a uma adulta à frente de seu tempo e de como a sua influência é muito maior hoje do que há tempos. — A Mafalda tinha preocupações e dúvidas de uma pessoa adulta, por isso acredito que as críticas das tiras influenciem mais a minha vida agora do que 27 anos atrás. Nosso café já estava chegando ao fim, mas não resistimos, Milko me sugeriu que experimentasse o cappuccino (já que era um dia bem frio, típico da terra da garoa). É claro que eu aceitei e pedimos mais um café. Nossa conversa também estava chegando ao fim, mas resolvemos estender um pouco mais, afinal, tem muuuita coisa para se falar de Mafalda e suas “indagações”, não é mesmo? Resolvi entrar no campo da política, afinal, esse é um assunto sempre bem polêmico e não podíamos deixar de falar dele. Para Milko, o Brasil é um País acolhedor e ele encontrou algumas “facilidades” por aqui, se assim posso dizer. Ele fez amizades, consegui me colocar bem no início, mas depois senti que as coisas não eram tão simples assim por aqui e que também teria de batalhar bastante.É claro, para conquistar seu espaço em um País bem diferente, não só nas questões políticas, mas também no dia a dia das pessoas que vivem em especial aqui em São Paulo.

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— Quanto à questão das tiras da Mafalda em relação ao Brasil, eu acho que aqui são poucas as pessoas que buscam saber mais sobre política. Mas, espera! Super-herói tem suas facilidades, não?! – Ha ha ha. — Você se considera um herói por ter conseguido transpor barreiras aqui no Brasil? — Herói?! – Ha ha há – Mas é claro que não! Aliás, estou longe de ser um herói. Se formos pensar nas pessoas como “semideuses”, muitos aqui são, pois afinal, é uma batalha todos os dias, não é? Uma batalha política, uma batalha pela sobrevivência e muitas outras que não só os brasileiros, mas muitos, em outros lugares do mundo transpõem todos os dias. A Mafalda retrata bem isso em suas tiras, de como as pessoas precisam se entregar e lutar para conseguir suas conquistas. Bom, acho que agora estamos realmente chegando ao fim da nossa conversa, da nossa tarde agradável de coxinhas, cafés, cappuccinos... – Epa! – Acho que devo ter engordado uns bons quilos nessa conversa, mas quer saber? Não me importo, não, pois foi realmente proveitoso estar aqui com tantas ideias e indagações e, principalmente, ao lado de uma figura muito peculiar e muito agradável. Milko comentou da satisfação daquela tarde de debates, como assim classificou. Esse assunto o encanta. Ele gosta de política, de jornalismo e das histórias nas quais vocês transformam uma notícia. O assunto nos tomou por horas e nós chegamos a conclusões expressivas sobre passado e atualidade. — Vejo muito daquelas tirinhas hoje nas ideias das crianças. Parece que elas estão mais sagazes, mais atentas, sabe? Espero que essa nova geração nos tragam coisas boas e boas ideias de um futuro melhor.

113 | insercões políticas e educacionais por mafalda


lista de figuras

1. Mulheres nos Quadrinhos (http://facebook.com/mulheresnosquadrinhos) 2. Garota Siririca (http://ladyscomics.com.br/uma-conversa-sobre-mulheres-e-quadrinhos) 3. Deus, essa gostosa (http://lounge.obviousmag.org/arxvis/2012/04/rafael-campos-rocha-criador-de-deus-essa-gostosa.html) 4. Imagem concedida pela entrevistada, Talita Dourado 5. Símbolo do feminismo (http://umesobretudo.blogspot.com.br/2014/04/o-feminismo-e-organizacao-social-atual.html) 6. Poster do filme V de Vingança (http://pixgood.com/v-for-vendetta-poster-comic.html) 7. Zine XXX (http://ideafixa.com/zine-xxx/) 8. Mulher Maravilha (http://blogcaveiramaquiada.com/2013/07/mulher-maravilha.html) 9. Tempestade (http://mutunas.blogspot.com.br/2008/07/tempestade-ororo-munroe.html) 10. Mulher Maravilha (http://blogcaveiramaquiada.com/2013/07/mulher-maravilha.html) 11. Arlequina (http://filfelix.com.br/2011/07/personagem-do-dia-arlequina.html) 12. Comic Book Catwoman (http://newkadia.com/?Catwoman_Comic-Book-Covers=1111132568) 13. Mística (http://villains.wikia.com/wiki/Mystique) 14. Mulher-Gato (http://dcmundoestranho.blogspot.com.br/2011_12_01_archive.html) 15, 16 e 17. Turma da Mônica (http://turmadamonica.uol.com.br) 18. Tira da Turma da Mônica (http://turmadamonica.uol.com.br) 19. Mônica Jovem (http://turmadamonica.uol.com.br) 20. Evolução da Mônica (http://guiadasemana.com.br/artes-e-teatro/noticia/mauricio-de-sousafala-sobre-os-50-anos-da-monica) 21 e 22. Turma da Mônica (http://turmadamonica.uol.com.br) 23. Tira da Mafalda (http://clubedamafalda.blogspot.com.br) 24. Desenho feito pelo ilustrador Artur Lucchi, assim como todas as caricaturas do perfis 25, 26, 27 e 28. Mafalda (http://clubedamafalda.blogspot.com.br)

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