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CAPA – Vírus da Fome

MEDO E RESISTÊNCIA

Trabalhadores se expõem à ameaça do novo Coronavírus nas ruas de Manaus para garantir sustento de famílias

Luciana Bezerra - Da Revista Cenarium

MANAUS - “Medo da Covid-19, nós temos. Quem não tem? Mas ficar em casa esperando o tempo passar, sem saber o que vai acontecer e as contas chegando no fim do mês, é muito pior”. O relato do vendedor ambulante, Arilson Cavalcante, 46, que trabalha no Centro de Manaus há 28 anos, resume o sentimento de milhões de brasileiros que não têm o privilégio de cumprir o “fique em casa” sem temer a fome. Para esses trabalhadores, resta batalhar nas ruas o pão de cada dia, mesmo estando mais expostos ao novo Coronavírus, causador da pandemia de Covid-19.

O vírus letal com altíssimo poder de contágio modificou a rotina dos trabalhadores e desafiou os sistemas econômico e político mundial. No Brasil, a situação emergencial serviu ainda para agravar o histórico problema da fome. Aliada à falta de apoio do governo Jair Bolsonaro aos mais vulneráveis, a ameaça da doença está acelerando o crescimento da pobreza no Brasil e já coloca o País como “epicentro emergente” da fome extrema, de acordo com relatório divulgado no início de julho pela Organização Não Governamental (ONG) Oxfam.

A Oxfam é uma confederação de 19 organizações e mais de 3 mil parceiros, que atua em mais de 90 países na busca de soluções para o problema da pobreza. A ONG coloca o Brasil na mesma classificação de Índia e África do Sul em seu relatório. Em um informe lançado no dia 08 de julho sob o título de “O Vírus da Fome: Como o Coronavírus está aumentando a fome num mundo faminto”, a ONG analisa os impactos da doença em países onde a situação alimentar e nutricional já era extrema antes da pandemia.

De acordo com a Oxfam, até 2018, o número de pessoas em situação de fome no Brasil aumentou em 100 mil, chegando a 5,2 milhões, devido ao crescimento nas taxas de pobreza e desemprego e a cortes radicais nos orçamentos para agricultura e proteção social. Além disso, diz a ONG, fatores como cortes no programa Bolsa Família e, desde 2019, um “desmantelamento gradual” de políticas e instituições destinadas a combater a pobreza, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), intensificaram a situação da fome no Brasil.

A pandemia de Covid-19, diz a ONG, somou-se a essa combinação já tóxica de fatores, aumentando rapidamente as taxas de pobreza e a fome no País. Com isso, de acordo com o relatório da Oxfam, milhões de trabalhadores mais pobres, que têm poucas economias e acesso limitado a benefícios, perderam empregos ou rendimentos devido à pandemia, sem que tenham sido beneficiados por apoios governamentais.

É o caso do vendedor ambulante Arilson Abreu Cavalcante, que há quase três décadas comanda uma

fOTOS: Ricardo Oliveira

A feirante Rosa Pinheiro retomou o trabalho em sua banca há poucas semanas

barraca de óculos e bonés no Centro de Manaus. Os protocolos de segurança exigidos por conta da pandemia obrigaram o comércio não essencial a fechar as portas. Foram quase quatro meses sem trabalhar, afirma Arilson. Antes da pandemia, o vendedor tinha cinco funcionários e faturava cerca de R$ 10 mil por mês. Ele viu sua renda despencar para R$ 600 no primeiro mês após o fechamento do comércio.

Arilson diz que precisou se reinventar “para não deixar na mão” as pessoas que dependem dele, como família e funcionários. “Criei uma conta da barraca nas redes sociais e passei a vender os produtos on-line. O faturamento não foi o mesmo do ponto físico, mas deu para segurar as pontas e ajudar meus funcionários com cestas básicas, já que todos têm famílias”, enfatiza.

Assim como Arilson, a feirante Rosa Pinheiro, 65 anos, retomou há poucas semanas o trabalho na banca da família no mercado Dorval Porto, no bairro Nossa Sra. Das Graças, Zona Sul de Manaus. Sem a renda da feira, as economias guardadas no banco e a aposentadoria do marido salvaram a família da fome. “Quando na vida pensávamos que o mundo ia parar? Voltei a trabalhar há duas semanas. Como eu e meu marido somos do grupo de risco, passamos quatro meses sem trabalhar. A pandemia só não nos afetou profundamente porque tínhamos uma reserva no banco e o salário da aposentadoria do meu marido”, afirma Rosa.

TRABALHO PESADO

“Não escolhi ser estivador porque gosto. A escolha veio da necessidade de alimentar minha família e de sobreviver neste Brasil de desigualdades. Você acha que é fácil carregar 180 quilos na cabeça e nas costas todos os dias?”. O dramático depoimento é de Marcley Nunes da Silva, de 30 anos, estivador no Porto da Manaus Moderna, zona Centro-Sul de Manaus, há dez anos.

Marcley é mais um dos trabalhadores informais que se arrisca nas ruas, mesmo em tempos de pandemia, para não ficar sem o que comer. Sem máscara ou qualquer equipamento de proteção contra o novo Coronavírus, ele conta que é estivador porque não teve oportunidade de estudar e que deseja um futuro diferente para os filhos.

“Não tive muitas oportunidades na vida. Trabalho desde que me entendo por gente. Já fiz de tudo que você possa imaginar. Mas nenhum trabalho paga melhor do que este como estivador, minha renda diária varia de R$ 100 a R$ 500, de acordo com a carga, a quantidade de barcos que atraca na plataforma e com a época do ano. Falo todos os dias para os meus filhos estudarem para que eles não tenham o mesmo trabalho braçal que eu tenho. Chego em casa todos os dias ‘moído’, mas quando olho em volta e vejo meus filhos tendo o que comer, onde morar, por mais humilde que seja, e onde estudar, esqueço a dor, durmo e no dia seguinte estou aqui novamente”, afirma o estivador.

AUXÍLIO EMERGENCIAL

O relatório da Oxfam aponta também que apenas 47,9% dos fundos destinados à ajuda de emergência a pessoas vulneráveis haviam sido distribuídos até o início de julho. Por isso, a ONG entende que “o governo federal está falhando em apoiar os brasileiros com mais vulnerabilidade no enfrentamento da pandemia”.

Outra falha, segundo a Oxfam, está na implementação do programa de

Renda Básica Emergencial, que registra longos atrasos na resposta aos pedidos de ajuda, recusas injustificadas, além da dificuldade imposta pela necessidade de ter um telefone celular, conexão à internet e endereço de e-mail para se qualificar à assistência.

É nesse quadro de desassistência que a diarista Terezinha Assis da Silva, 48 anos, sem marido e com três crianças pequenas para sustentar, se viu diante de um dilema com a chegada da pandemia: parar de trabalhar e ficar sem dinheiro ou se expor ao vírus para garantir o sustento da família. Segundo Terezinha, apenas três de seus patrões conseguiram manter o pagamento das diárias nos dois primeiros meses de isolamento social, sem que ela trabalhasse. Depois, precisou se reinventar para não passar fome com os filhos, já que um problema de documentação impediu que recebesse o auxílio emergencial do governo federal. Por ser mãe solteira, a diarista tem direito a duas cotas do auxílio de R$ 600, num total de R$ 1.200.

“Nos quatro [primeiros] meses da pandemia, perdi todos os meus clientes. Uns três me pagaram o valor das diárias como forma de ajuda, pois conhecem a minha realidade. Mas depois eles pararam de pagar e comecei a fazer bolo e vender no bairro onde moro. Não era muito, mas dava para comer com meus filhos”, disse Terezinha.

A diarista conta que conseguiu resolver o problema do auxílio emergencial e agora aguarda a liberação do dinheiro. Voltei a trabalhar há duas semanas, somente para as três famílias que me ajudaram no início. As demais me dispensaram. Difícil, viu”, assinala.

NAS RUAS

Sem trabalho desde que chegaram ao Brasil, em 2018, o casal de indígenas venezuelanos da etnia Warao, Carmen Perez, 40, e José Moreno, 39, estava totalmente vulnerável nas ruas de Manaus quando foi abordado pela reportagem. Ao lado do filho Alfredo Jose Perez, 7, e da filha Rosane Perez, 6 meses, estava sentado no chão da calçada da Praça da Matriz, Centro da cidade, sobre um pequeno pedaço de pano e pedia trocados a quem passava. A família inteira desprotegida, sem máscaras ou qualquer tipo de equipamento e produto de prevenção ao novo Coronavírus.

“Consegui comprar as passagens, graças a Deus. Só tinha vaga para o dia cinco de agosto. Vamos para Belém e de lá para o Maranhão, a família toda. Cansamos daqui. Foram dois anos tentando conseguir um emprego para o sustento da minha família. Tenho oito filhos que ficaram na Venezuela e gostaria de mandar dinheiro para eles”, disse José.

O lavador de carros Raimundo Nonato se expõe nas ruas de Manaus para garantir seu sustento

Desemprego

A pandemia deixou um rastro de desemprego em todo o mundo e tem sido particularmente feroz na América Latina. No Brasil, 7,8 milhões de empregos foram perdidos e 12,7 milhões de trabalhadores estão desempregados. O Chile registrou sua maior taxa de desemprego em 10 anos. Na Bolívia, o desemprego aumentou quase dois pontos, de 5,7% para 7,3% somente em abril. Em maio, a taxa de desemprego urbano na Colômbia registrou seu maior nível mensal desde 2001.

O guardador e lavador de carros, Raimundo Nonato da Cruz de Lima, 38 anos, é outro que se expõe à doença nas ruas do Centro de Manaus para sobreviver. O dinheiro que consegue lavando carros é insuficiente para que Raimundo pague aluguel ou compre um local para morar. Assim, ele vive com a mulher nas ruas ou em abrigos.

Durante os primeiros meses da pandemia, o casal conseguiu vaga para dormir no Abrigo Áurea Pinheiro Braga, Compensa, Zona Oeste de Manaus, mas não deixou de ir para as ruas em busca de sustento. “O pior horário de morar na rua é à noite, onde ficamos mais vulneráveis. Posso estar dormindo e ser agredido ou morto por alguém. No abrigo estamos seguros, temos refeição e um espaço para tomar banho e fazer higiene pessoal”, destaca Raimundo, também sem usar máscara ou algum equipamento que o proteja do novo Coronavírus.

FORÇA DE TRABALHO

Para o sociólogo e professor de Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Luiz Antônio Nascimento, os trabalhadores que não puderam parar durante a pandemia são uma expressão máxima da força de trabalho e deveriam ser tratados de uma forma mais digna pelo Estado. Segundo o sociólogo, a economia e a sociedade precisam dessa força de trabalho.

“A sociedade precisa enxergar com outros olhos os trabalhadores que precisaram se expor ao risco do vírus para fazer a economia funcionar, enquanto a maioria das pessoas estava isolada em casa. Isso inclui os profissionais de saúde, dos supermercados, dos transportes, feirantes, produtores rurais e até mesmo os trabalhadores informais que, neste último caso, têm como única renda a que vem do trabalho diário”, afirma o professor.

Em relação ao dilema entre parar de trabalhar e responder à demanda da fome, o sociólogo lembra que a solução encontrada em países como França, Inglaterra, Japão, Estados Unidos e até Brasil foi o auxílio emergencial. “Todos esses países criaram um modelo econômico de fazer o dinheiro circular de alguma forma e ajudar a população em geral que estava isolada por causa da pandemia”, disse Luiz Antônio.

No Brasil, foi criado o auxílio de R$ 600 para trabalhadores em geral e de R$ 1.200 para mães solteiras que sustentam sozinhas suas famílias. Para Luiz Antônio, esse dinheiro movimenta a economia e volta aos cofres públicos por meio dos impostos.

A COVID-19 NO BRASIL

O Brasil ultrapassou a marca de 106 mil mortos pela Covid-19 no dia 14 de agosto, segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde. O número de infectados era de mais de 3,2 milhões em todo o País, até esta data.

No Amazonas, até 14 de agosto, a doença matou mais de 3,4 mil pessoas. O número de infectados era de mais de 109,8 mil até esta data, conforme o boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM).

Trabalho informal do Amazonas

A quantidade de trabalhadores informais no Estado do Amazonas é a maior do País. Enquanto a taxa do País é de 40,9%, na cidade de Manaus, 58,35% dos ocupados trabalham em regime informal. Os dados referem-se ao último trimestre de 2019, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em fevereiro deste ano.

Segundo dados apresentados pelo IBGE, o Estado possui 1,6 milhão de pessoas na força de trabalho. Destes, 967 mil estão na informalidade. No Brasil, são 94.552 milhões na força de trabalho e 38.735 milhões sem carteira assinada ou CNPJ. Os números referem-se aos trabalhadores que estão ocupados nos grupos de setor privado, por conta própria, empregadores, trabalhadores domésticos e trabalhador familiar auxiliar.

O vendedor Arilson Cavalcante sentiu o impacto econômico da pandemia com a perda de renda e diz que teme o novo Coronavírus, mas precisa trabalhar nas ruas

O casal Carmen Perez e José Moreno, indígenas venezuelanos, não conseguiu trabalho em Manaus e teve que pedir esmolas no Centro

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