BIOGRAFIA~PREFÁCIO Paulo Alegria (Paulgi) nasceu em 1970, em Oliveira de Azeméis, mas vive e trabalha em Viana do Castelo, cidade que o adoptou há largos anos. Formou-se em Design Gráfico e passou por outras áreas do conhecimento, como a Arquitectura, a Educação Visual, a Gravura, a Serigrafia e a Fotografia. Foi membro de várias bandas de música e editou um álbum a solo, singles e vários trabalhos de âmbito promocional com o nome de NEON, tendo sido, também, o primeiro músico português a ser convidado, e a actuar, no palco oficial do Festival de Cannes. Manteve-se ligado à indústria fonográfica, durante vários anos, como designer especializado no mercado discográfico e multimédia, trabalhando, como director criativo, numa das maiores empresas do sector. Foi ainda o autor e mentor do programa de rádio Parallax, ouvido em dezenas de rádios locais, um pouco por todo o país. Nos últimos anos, tem aparecido em várias publicações internacionais e nacionais de fotografia. Participa, regularmente, em exposições colectivas e realizou algumas individuais, tanto em Portugal como no estrangeiro. É membro da agência Young Photographers United e da ALT, Associação de Criadores de Fotografia.
Não sou designer, apesar de ter estudado e crescido como tal. Não sou músico, apesar de ter produzido e publicado como tal. Nem fotógrafo, apesar de caminhar e ver como tal. Vou criando e construindo obra conforme o impulso ou as influências me dirigem. Hoje fotografo, sim, e a fotografia tornou-se o meu veículo de criação. Talvez isso faça de mim fotógrafo, não sei... não me parece importante. / Apesar de ter fotografado durante vários anos, como acessório ao meu trabalho de design, só em 2004, por influência de um grande fotógrafo e amigo, Alberto Monteiro, me dediquei à fotografia pela fotografia. Aos poucos, passei a sentir necessidade de transformar a minha linguagem num só click e não num processo onde o disparo era uma mera base do trabalho gráfico. Sem objectivos, deambulei por cenários indefinidos até que, inesperadamente, próximo de casa, encontrei o que daria origem a este trabalho, no Campo d'Agonia de Viana do Castelo. / Durante cerca de dois anos percorri várias festas e romarias, por todo o Alto Minho. Fui fotografando, mas, acima de tudo, observando. Lentamente, fui concentrando a minha atenção nas pessoas que mais se envolviam nas festividades, quer por motivos religiosos, por trabalho, ou mesmo por divertimento. Essas pessoas que, por algum motivo se deslocam, constantemente, às romarias, seja por que meio for, e que compreendi como uma espécie de «novos» romeiros, que fazem toda a tradição e cultura alto-minhota sobreviver. Até que, no final de 2007, tinha conseguido definir como iria abordar, nos anos seguintes, as romarias alto-minhotas. / Decidi escrever, em imagens, um romance sobre os romeiros.
APRESENTAÇÃO Romeiros~Pilgrims é o livro bilingue que resulta do trabalho intenso, de vários anos, percorrendo grande parte do Alto Minho com uma atenção muito particular, procurando saber mais sobre as pessoas que fazem da região um local de permanente festa. É intenção desta obra que o leitor se torne num viajante às romarias alto-minhotas. No fundo, que se torne também, enquanto folheia e lê, num romeiro. No processo, conseguirá aperceber-se de que forma a contemporaneidade dialoga com as tradições seculares e, no fim, talvez se surpreenda por descobrir que, longe de estarem em risco de se extinguirem, elas parecem sair reforçadas por esse diálogo. Transformou-se tudo numa visão viva e colorida, longe dos estereótipos de brandura e fado que nos habituamos a associar ao povo português. Para isso, foi necessário um contacto profundo com as pessoas, tornando-as parte duma história grandiosa. Este é, pois, um romance em imagens, retratando, em duzentas fotografias, um dia entre os romeiros numa romaria, mas levando o leitor, simultaneamente, a uma viagem por todas. Estes quadros são-nos apresentados com uma extrema sensibilidade e cuidado, transparecendo no imediato a ironia, que uma visão antropológica inata e rara foi capaz de perscrutar, mostrando o que está, normalmente, oculto detrás das aparências. Em tudo, no entanto, sobressai um profundo respeito e conhecimento do povo, das personagens que se dignificam pelo seu próprio carácter. Depois do livro, fica a estranha sensação de que, dificilmente, se poderá voltar a olhar o Alto Minho como dantes. No fundo, é-nos aqui ensinado a olhar novamente, a largar preconceitos e a regressar à terra de olhos lavados... O livro estrutura-se como um corpo único em que as fotografias levam o leitor a viver durante os períodos de manhã, tarde e noite num dia de romaria, pleno de tradição e festa. Termina com um texto do jovem escritor minhoto Raul Pereira, um complemento literário com uma abordagem assumidamente actual e conhecedora.
é como as crianças...
...que transbordam aquela Alegria que faz nascer os sonhos. A câmara na mão e a perspectiva de um cenário interessante faz com que a imaginação não lhe pare de corropiar à volta levando-o arrastado num entusiasmo implacável e quase pueril, mas no entanto lúcido, em direcção ao que o rodeia, compondo com um rigor quase espartano as imagens que me deixam muitas vezes pasmado pela oportunidade e certeza de composição. Foram várias as vezes que partilhámos cenários em romarias durante estes últimos anos. Cada um com a sua câmara na mão, chegávamos a um terreiro e nem precisávamos de nos despedir com um “até já”: era automático: cada um para seu lado à caça de imagens e de cenas curiosas. De quando em quando cruzávamo-nos no meio das multidões e sob o chinfrim dos altifalantes para trocar umas palavras breves do que vimos e do que prevíamos ver. “ora vai lá acima ver aquela cena dos ex-votos. pá!, aquilo está com um ambiente demais!” – “já lá vou. E tu, já viste lá em cima, na colina, onde está aquela gente junto à estátua do Santo António? ‘bora lá?”. Foram, também, várias as vezes que me telefonou – às vezes a desoras - para relatar fervorosamente as suas aventuras num quase in-loco jornalístico atropelado pelo prazer do estar lá: ora quando a “vaca” lhe deu a marrada em Ponte de Lima e só se deu conta do braço partido ao jantar, quando não conseguiu levar o garfo à boca; ora quando teve que calcorrear quilómetros pelas urzes e giestas até a uma festarola que quase nada tinha que a servisse para o ser, mas da qual não desistiu; ora quando apanhou boleia de um cura, à vinda da romaria, que quase o afogou em comezainas e bebezainas. Tudo contado na primeira pessoa e com um vibrante entusiasmo de quem vivia o momento ao limite do prazer puro e do estar presente e do fazer “parte de”. No início – lembro-me – ainda lhe sentia algum pouco à vontade. Era “matéria” nova para ele; uma nova maneira de ver; um novo modo de abordar. Mas foi breve, esta etapa. Pouco tempo depois, comecei a ver que ele já estava no seu meio. Quando? Lembro-me da Festa da Solha, ali para Lanhelas: naquela tarde, depois de termos andado à procura de festas e festarolas para fotografar, fomos parar à Festa da Solha. Porque lá chegámos a destempo, o ambiente estava frouxo: dois coretos a tocarem umas quase marchas-fúnebres tristes ao desafio; uns quantos romeiros a comerem pausadamente solha acompanhada de umas côdeas e a beberem cerveja nas mesas corridas ao ar livre, à sombra das árvores; e nós, meio desapontados, meio desorientados, ali, sem saber bem o que fazer perante a aparente apatia geral. Por ali fiquei sentado à espera de nada enquanto ele, feito puto, fervilhando de genica para fotografar, desapareceume da vista. E, continuando à espera do mesmo nada, por ali fiquei sentado até que me decidi procurá-lo pelas redondezas. Coretos... nada. Mesas... nada. Mais ao fundo... não. Fui, então, espreitar à porta da cozinha local, e esta estava atafulhada de gente em azáfama, grades de bebidas que se punham e tiravam, legumes que eram cortados, partidos e descascados, fogões acesos e movimento para cá e para lá, sem parar, no meio dos cheiros fortes das frituras, cozeduras e temperos. Sentia-se o calor da gente no ar. Olhei em redor e ainda por trás do balcão que dava para o salão a ver se o via e, quando dei pela surpresa, no meio daquele quase chavascal de gente e coisas, lá estava ele pedindo a este e àquele, com a sua alegria e entusiasmo inocente, para que ora a cozinheira posasse, ora o ajudante posasse, ora a moça posasse: tínhamos fotógrafo de romeiros! Repito: é como as crianças. Dá gosto sentir-lhe o entusiasmo e a inocência da abordagem fotográfica honesta, alegre e lúcida. É assim, o Paulo.
Alberto Monteiro Amigo e companheiro de fotografia
Os ROMEIROS de Paulo Alegria O Minho é o lugar das origens, onde se situam as primeiras "villae", os primeiros cenóbios, os primeiros mosteiros e santuários. Onde se assentaram as primeiras comunidades rurais com a "casa" a contribuir mais que a família para a unidade social do minhoto – a ela (casa), pertencem a terra, as pessoas, os animais, as "invejidades", os amores e os ódios, os "assombros" e os mortos. Se acrescentarmos a esta palavra chave – a "paróquia" – com os seus rituais, seus tempos e seus limites, que vive os seus filhos, chora os seus mortos, unindo passado e futuro num só presente, fácil será de concluir que o minhoto precisava de uma outra palavra chave – "romaria" – local de peregrinação exterior à casa e à paróquia, em honra de um Santo, ou de uma Santa, a mor das vezes até Senhoras, veneradas em lugares distantes e inacessíveis e que são o apogeu de toda uma tradição cultural ainda hoje no contexto etnográfico do Alto Minho, englobando, na mesma matriz a "feira" dia de mercado e de trocas, a "festa" como acto religioso e o "arraial" como sentimento lúdico (Ernesto Veiga de Oliveira). Faltam a esta trilogia os "cultos locais" que uma fé e uma mística de milénios obrigam à construção de capelas e igrejas dedicadas a imagens milagreiras (Senhora da Peneda), corpos Inincorruptos (Santo Aginha – Serra d' Arga), aparições sobrenaturais (Senhora do Livramento), cruzes, oratórios, alminhas, que semeados a esmo recreiam no imaginário de mortes e assassinos (para a justiça do Estado criminosos e bandidos), que o minhoto entronizou em altares e lhes deu a bênção da canonização popular. Mas vai mais longe: sacraliza os espaços e o território dos seus cultos. Em todos os santuários do Alto Minho nos caminhos e lugares mais calcorreados há rochas, grutas, lapas chamadas dos "casamentos", dos "namorados", dos "desertores", dos "fugitivos" e os adros e escadórios com as suas capelas e cruzeiros são lugares "santos" que de joelhos ou a pé, recebidos pela filarmónica e pela "Mesa" da Confraria, os romeiros veneram com seus gados, a sua parentela, os seus farnéis, os seus exvotos. Acusado de tradicionalista (maneira efeminada de lhe chamar inculto e analfabeto), o minhoto assiste ao quebrar da sua cultura e do seu "campus" sagrado, em nome de uma educação e de uma catequese, fruto de um clientelismo urbano que visa no seu racionalismo atroz e em falsas tecnologias acabar com a consciência e a responsabilidade de um colectivo, de um sentimento de grupo, de uma comunidade social básica, fomento e razão de uma identidade, do espírito de um povo.
Obrigado, pois, por esta edição de ROMEIROS. Parabéns.
Francisco Sampaio
O sentido da fé, sobre as fotografias de Paulo Alegria A grande fotografia nunca perderá o seu cariz de imagem lapidada como diamante do que se pode ver. Num tempo de aceleração e movimento, o vídeo nem por isso pode almejar a substituir-se à fotografia porque o que esta nos oferece é de natureza outra que permite o aparecimento diante dos olhos de uma certa essência da imagem, a fracção de segundos que se congela tantas vezes explicando toda uma cultura, toda uma história. O desafio da fotografia é-lhe único, só a ele pertence. A magia da fotografia está, em todo o seu esplendor, presente no trabalho de Paulo Alegria. Quando vi pela primeira vez a colecção de romeiros que fez ao longo de anos senti o privilégio que nos oferece de, também nós, andarmos como que entre os populares, entre os crentes a levar adiante uma celebração sentida da fé. As fotografias de Paulo Alegria abrem uma janela para um sentido humano que se capta apenas com a intuição, esse sentido de fé que nos tem levado a arriscar tanto, e quantas vezes a julgar que vencemos e outras inevitavelmente a perecer. O que me fascina nas suas fotografias passa pelo retrato da humildade, essa submissão à crença em algo que se herda culturalmente mas que não se vê senão na vontade de ver. Fascina-me que as pessoas possam acreditar e sejam levadas à recriação das vidas bíblicas ou demais santos, numa convocação respeitadora das figuras que fundam parte do pensamento contemporâneo. O mais que significam estas romarias são momentos de comunham social, uma exposição inevitável, que identifica as pessoas e as garante perante todos. Há um elemento de integração fundamental, que passa pela convição genérica de boa gente reunida por aquele sentimento de humildade para com um criador supremo que nos observará e nos guiará. Socialmente, os romeiros são essa boa gente, a gente de boa conduta, que tantas vezes se sacrifica perante o demasiado frio ou o demasiado calor, em vestes difíceis e quase sempre carregando objectos pesados, a caminhar longos percursos, e tudo por abnegada humildade quer ante a fé, quer ante a sociedade. A romaria, ainda que dure um dia inteiro, é uma brevidade, e o vídeo nunca nos daria a demorada, eternizada, ostentação da expressão que Paulo Alegria aqui expõe. Esta é efectivamente uma colecção de presenças fortes, vistas na fugacidade de um momento, que despem deste modo a máscara do acto e se vulnerabilizam na possibilidade da nossa contemplação. A brevidade da romaria é toda ultrapassada por cada uma e todas as imagens, num efeito precioso de preservação e respeito. Guardar este trabalho é guardar um povo inteiro, um sentimento de pertença e alteridade com milhares de anos e que se consubstancia em momentos especiais como estes. Guardar este trabalho é guardar gente, lembrar gente, com a sua tremenda vulnerabilidade mas também obstinada vontade de merecer algo maior, merecer um sonho, o paraíso, o que, ao menos momentaneamente, salva os romeiros das suas dores à força da enorme esperança. Guardar este trabalho é guardar sempre a esperança. A mim comove-me, considero que é algo que não se pode perder, quer este trabalho, quer a esperança.
valter hugo mãe
A paisagem do Alto Minho A paisagem do Alto Minho caracteriza-se pela suavidade das suas formas, pelos matizes do verde e pelo granito das capelas e torres sineiras. Não se percebe se a natureza surge como prolongamento dos locais de culto ou se estes imitam as abóbadas dos pinhais. Os romeiros do Alto Minho percorrem uns e outros e prostram-se com a mesma veneração perante um mar agitado, uma manhã de neblina salgada, um andor decorado de pétalas de flores, uma Santa ou Senhora. É neste universo místico e profundo que penetramos, quando observamos as imagens de Paulo Alegria: os rostos marcados dos idosos ou ingénuos e sonhadores das crianças, a veneração da procissão, a alegria da festa, o branco caiado e a pedra cinzenta. Numa primeira linha, destacam-se os contrastes que se perfilam, que parecem querer pelejar e percebemos, depois, que o verdadeiro sentido está nessa tensão que os une. Nestes Romeiros encontramos os caminhos, todos os caminhos, os de antanho, os de agora, os percorridos, os descobertos, os sonhados, os por achar. Nestas imagens, cada um de nós também percorre o “seu” caminho, de manhã à noite, da infância à velhice, do sonho ao desencanto. Que poderá ser um caminho “outro”, uma viagem de descoberta de novas formas de caminhar, de dialogar, de ser peregrino. Que cada um se sinta Romeiro, das suas devoções, das suas festas e da sua Humanidade!
Presidente da Câmara de Viana do Castelo.
José Maria Costa
AUTOR © 2005-2010 Paulo Alegria TEXTO © 2010 Raul Pereira EDIÇÃO Câmara Municipal de Viana do Castelo REVISÃO Maria Emília Viana, Catarina Pereira TRADUÇÃO Rui Cordeiro da Silva IMPRESSÂO CROJ Artes Gráficas
AGRADECIMENTOS Alberto Monteiro, Anabela Fernandes e Família, António Sequeira, Bernardete Pereira, Catarina Pereira, Francisco Sampaio, Inês Subtil, Isilda Graça, João Alpuim Botelho, João Figueiredo, Jorge Amaral, José Filgueiras, José Lopes, Leonel Franco, Manuel Galrinho, Maria José Guerreiro, Nuno Nozelos, Patricio Bríto, Paula Leite, Pedro Cachadinha e Família, Quim Caxadinha e Família, Torcato Lima Vieira, Valter Hugo Mãe, Viviana Beenen Lopes, Zé Miguel Gonçalves, Z.
www.romeiros.paulgi.com