26 ~ VEDUTA REVISTA DE ESTUDOS EM PATRIMÓNIO CULTURAL
Uma vista sobre...
A Serra d’Arga fotografia Paulo Alegria texto Raul Pereira
A Serra d’Arga escolhe quem lá sobe, ninguém a trepa só porque quer. No seu seio, foi desenhando vales de milhões de anos geológicos, trilhados pelo vento e pelas intempéries, com uma vontade ávida de preparar um lugar último de recolhimento para o Homo Sapiens, que haveria de vir. Depois, um grupo chegou e assentou arraiais, fazendo a sua História de recusa e, por entre os montes, sofreu o isolamento dos seus semelhantes, tal como a montanha previra. Mas os do sopé lá vão, naqueles dias únicos do ano, sendo-lhes permitido visitar a origem. Quando eles lá chegam, retiram da terra, do ar puro, das águas cristalinas, das fogueiras da noite, das pedras e do horizonte recortado de verde o sentimento que une toda a humanidade: aquele que até leva as gerações a assinar pactos e tréguas.
VEDUTA ~ 27 REVISTA DE ESTUDOS EM PATRIMÓNIO CULTURAL
A imagem ao lado não foi incluída no livro Romeiros˜Pilgrims, do fotógrafo Paulo Alegria, mas podia muito bem ter sido. Já o texto que a acompanha foge completamente ao que lá escrevi e nunca poderia pertencer às suas páginas, pois a história tornou-se maior do que as minhas capacidades e acabou por se criar sozinha, quase sem a minha intervenção. Quando o Paulo me convidou a anexar ao trabalho dele algumas linhas, eu disse-lhe logo que não. Achei que não estava à altura da encomenda, dada a qualidade do seu trabalho, e inventei certamente mais uma série de desculpas, apavorado. Lembro-me que ele me disse para não me preocupar muito com isso, que precisava era de alguém que estivesse disposto a acompanhá-lo; que depois escreveria se quisesse e, lentamente, foi-me arrastando de volta às romarias alto-minhotas... Confesso que, ao início, não senti muito entusiasmo em revisitar as festas das pequenas aldeias da terra que me viu crescer. Na infância, era a elas levado com cara de grande enfado e, na adolescência, os meus interesses quanto a formas de entretenimento não passaram muito pelas festividades religiosas das povoações vizinhas. Não vou, obviamente, dizer aqui quais foram as minhas actividades lúdicas, mas a ideia deve ficar clara. Ora, anos depois, rota fortunæ girada, e sou novamente levado para o meio das pessoas que me criaram, da terra que me alimentou e da cultura que me foi incutida. Todos os valores que eu tinha esquecido e dos quais me tinha tentado libertar até ali – ignaramente nalguns casos, corajosamente noutros –, desfilaram diante de mim. A diferença é que, desta vez, eu vi tudo pela objectiva de um fotógrafo ímpar de Oliveira de Azeméis. Um fotógrafo que passou cinco anos inteiramente dedicados ao povo que o acolheu, como
um filho, há décadas; que açambarcou o território alto-minhoto em passadas muitas vezes de sacrifício, que se tornou parente de todos e que passou a ser conhecido não apenas como mais um fotógrafo, mas como «o fotógrafo». Durante dois anos, eu próprio tive a felicidade de ser «o escritor que anda aí com o fotógrafo». Amigos não fiz muitos, fiz todos. Ao chegar ao fim de tudo, ao cheirar as folhas novas do livro impresso, reflecti que, tal como o Paulo, que gosta de afirmar que foi «adoptado por Viana», também o eu mais maduro via agora a origem e os locais onde vivemos como marcas que permanecem indeléveis na construção pessoal de cada um, é certo. Todavia, no meu âmago, ao sentir profundamente que era dali, percebi também que isso estava num plano interior, individual, e que a minha grande descoberta tinha sido aperceber-me que o que verdadeiramente interessa é que os homens se criam na terra, sim, mas que se unem principalmente por tudo o resto. Quando querem...
Para saber mais sobre o livro Romeiros˜Pilgrims, visite http://paulgi.com/ Uma selecção de fotografias que não foram publicadas pode ser vista aqui: http://romeiros.paulgi.com