UMA CONTROVÉRSIA ANTROPOLÓGICA DE 1881

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UMA CONTROVÉRSIA ANTROPOLÓGICA~'~' DE 1881 (OLIVEIRA MARTINS E EDUARDO BURNAY) por

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Departamento de Zoologia e Antropologia e Centro de Biologia Ambiental, Faculdade de Ciências,

Edifício C2, Campo Grande, 1700 Lisboa, Portugal

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UMA CONTROVÉRSIA ANTROPOLÓGICA

DE 1881

(OLIVEIRA MARTINS E EDUARDO BURNAY)

por CARLOS ALMAÇA Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural) - Rua da Escola Politécnica, 60, 1200 Lisboa, PortugaL

Departamento de ZoologJa e Antropologia e Centro de Biologia Ambiental, Faculdade de Ciências,

Edificio C2, Campo Grande, 1700 Lisboa, Portugal

INTRODUÇÃO Durante o ano de 1881 poude seguir-se no jornal «Comércio de Portugal» uma interessante série de artigos assinados por Eduardo Burnay e publicados, de 27 de Agosto a 4 de Dezembro, sob o título global de «Uma controvérsia antropológica». Tratou-se da resposta ao comentário crítico de Oliveira Martins a uma dissertação de Burnay, comentário publicado no mesmo ano em apêndice à segunda edição de «Elementos de Anthropologia (Historia natural do homem)>>. A elevação do debate e o seu interesse histórico-científico, tanto maior quanto é certo que a Antropologia apenas despontava em Portugal, merecem uma referência particular. Esta é a razão do presente trabalho. Antes, porém, há que precisar o que se entendia por Antropologia, ciência frequentes


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Uma controvérsia antropológica de 1881

vezes redefinida e cuja delimitação tem sido vaga e variável, por força do desenvolvimento científico e da natural importância que se atribue a tudo quanto respeita ao homem. A palavra «Antropologia» foi utilizada desde o Renascimento no sentido de estudo geral - físico e psíquico do homem, cingindo­ -se depois ao do espírito por se reservar à Medicina o estudo do corpo. Apenas no século XVIII viria a englobar novamente o estudo físico do homem, então com problemática e metodologias da Zoologia. Tal redefinição dos limites da Antropologia foi protagonizada por Buffon, Lineu e Blumenbach. Buffon consagrou os primeiros volumes da sua obra capital, Ristoire naturelle générale et appliquée, à história natural do homem, dedicando mesmo o terceiro volume (1749) à exaustiva descrição do conteúdo do Gabinete do Rei mais tarde Muséum d'Hístoire naturelle de Paris, relativo a essa matéria. Lineu, em Systema naturae (l.a ed., 1735, 10. ed., 1758) considerou a taxonomia do homem ao tratar dos Mamíferos, caracterizando a espécie actual e as suas principais raças. Blumenbach introduziu, em fins do século XVIII, o método comparativo no estudo do homem e restantes mamíferos, em particular primatas, assim como no próprio estudo das populações humanas. Iniciando o estudo da craniologia e aprofundando a sistemática racial, Blumenbach foi o verdadeiro fundador da Antropologia fisica. Mais do que isso, a sua obra teve repercussões na taxonomia dos mamíferos, pois chamou a atenção para as afinidades entre o homem e os restantes primatas, criando duas categorias taxonómÍcas ~, Bimanos e Quadrumanos - , que passaram a figurar na classificação dos Mamíferos (eg clasS"ificação de Cuvier, 1830). Anteriormente, o homem, objecto de «criação especial», fora excluído de algumas classifi­ cações zoológicas, por exemplo, das de Cuvier, 1789, e Blainville, 1816 (cf Almaça, 1991). Esta revalidação da Antropologia como estudo histórico-natural do homem foi possível graças à perceptividade da natureza viva existente antes da especialização metodológica que se instalou progressivamente a partir do século XIX. O estudo dos seres vivos realizou-se, desde a Antiguidade ao século XVIII, através de duas linhas relativamente independentes nas suas problemáticas e metodologias: uma, que procurava investigar as causas

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do funcionamento orgânico, assente no conhecimento das estruturas, suas relações, experimentação e quantificação dos resultados; a outra, procurando saber por que são os seres vivos como são, a sua história e classificação. Enquanto a primeira linha, das causas ditas próximas, que cedo incorporou a medida e técnicas da física e da química, se relacionava com o domínio da Fisiologia/Medicina, a segunda, das causas últimas, ou evolutivas, sobretudo descritiva e comparativa, correspondia à História natural (Mayr, 1982). O conhecimento completo de qualquer estrutura ou processo biológico exige o seu estudo através das duas causalidades. Até muito tarde, por carência de formação específica para os naturalistas, foram médicos que se interessaram por ambas as aproximações dos fenómenos biológicos, tanto mais que, apenas dispondo de fármacos de origem vegetal e animal, a sua prática clínica exigia também conhecimentos histórico-naturais aprofundados. É, pois, no eontexto histórico-natural, no contexto das causas últimas, ou evolutivas, usando a descrição e comparação como metodologias essenciais, que a Antropologia se emancipou da Medicina. Nem por isso deixou de ser, no início, praticada por médicos. Mas, definiu o seu âmbito e interesses de modo a minimizar sobreposições, muito embora usufruindo do manancial de técnicas que a Medicina acumulara durante séculos. Os encontros entre as duas ciências foram, no entanto, frequentes e nem sempre pacíficos, obrigando a redefinições sucessivas. Assim, no A1uséum de Paris, a cadeira de Anatomia humana deu lugar, a partir de 1832, à de Anatomia e História natural do homem, professada por Serres e, de 1855 em diante, por Quatrefages (Frassetto, 1918). Estava, desta forma, consagrado oficialmente o estudo hitórico-natural do homem, acompanhando, de resto, iniciativas anteriores nesse sentido como, por exemplo, a fundação de sociedades científicas, sobretudo em França e Inglaterra (Société des Observateurs de I 'Homme. 1800, Société ethnologique de Paris. 1839, Ethnological Society, 1842). Porém, o estudo histórico­ -natural inclue, nos animais, o do comportamento e seus resultados materiais, quer dizer, no caso do homem, as suas culturas. Em breve, por isso, se associariam à Antropologia, disciplinas como a Etnologia e a Prehistória. Tornava-se, de facto, artificial comparar apenas fisicamente populações humanas, alheando-se o antropologista das diferenças culturais,


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por vezes profundas e, sempre, também reflexo de condicionalismos biológicos. A progressiva especialização das ciências biológicas que se verificou a partir da segunda metade do século XIX, fez perder, a pouco e pouco, a pereeptividade da Antropologia. Esta ciência tendeu, como as outras ciências biológicas, a abranger as causalidades próximas e evolutivas dos fenómenos (antropológicos), ao mesmo tempo que se diferenciou em especializações do estudo do homem. Assim, já em 1866, Broca considerava a Antropologia subdividida em zoológica, descritiva, ou etnológica, e geral. A primeira, estudando a Anatomia humana e comparada, procuraria esclarecer a posição do grupo humano na «série» dos seres vivos. A Antropologia descritiva, ou etnológica, abordaria a caracterização e distinção das raças através do estudo de caracteres morfológieos, fisiológicos, ecológicos e culturais (morais, intelectuais e sociais). A Antropologia geral, ocupando-se do grupo humano no seu conjunto, consideraria a antiguidade do homem e o grau de inteligência, condições de higiene, psicologia, eeologia e distribuição geográfica das diferentes raças (Frassetto, 1918). Na sua obra fundamental, Instructions anthropologiques, o mesmo autor (Broca, 1879) indica a forma prática de realizar as observações (morfológicas, fisiológicas, culturais, etc.) que eonsubstanciariam a investigação antropológica. O aumento do número de disciplinas da Escola de Antropologia, Paris, fundada por Broca em 1876, é revelador da amplidão e progressiva especia­ lização da Antropologia. Incluindo apenas cinco disciplinas no início, passou para onze em 1891 e chegou a atingir dezanove em fins do século. Topinard, discípulo de Broca, definiu a Antropologia como o estudo do homem físico e moral, estudo que se consumaria através da consideração dos caracteres físicos, fisiológicos e sociológicos e de conhecimentos históricos, arqueológicos, linguísticos, etc., relativos ao grupo humano em referência. Preocupando-se com a integridade desta antropologia de tão amplos limites, Topinard (1877) procurou isolar a sua problemática relativamente à Medicina, por um lado, e à da Etnologia propriamente dita, por outro. Para Topinard, à Medicina interessa o indivíduo, a máquina humana, enquanto à Antropologia cabe o grupo humano e as suas variedades. Tudo o que investiga a Medicina tendendo ao conhecimento

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biológico da espécie humana e suas aplicações médico-cirúrgicas, interessa igualmente à Antropologia numa perspectiva antropotáxica, ou seja, diagnosticante das raças humanas. Assim, a Anatomia, a Fisiologia, a Patologia, a Farmacologia, a Higiene, etc., teriam todas a sua contrapartida antropológica sem a necessidade de invasões de domínios científicos independentes (Topinard, 1877, p. 7). Um pouco mais delicada foi a sua diferenciação entre a Antropologia e a Etnologia. Reservando à primeira uma diagnose mais biológica das raças, Topinard (1877, p. 9) atribuiu à Etnologia o estudo dos povos e tribos através da sua história e geografia. Tratava-se já, afinal, de conceder os aspectos biológicos à Antropologia física e os culturais à Etnologia, sem anular as interacções existentes entre uns e outros. Em Portugal, a Antropologia progredia no caminho que conduziria à sua oficialização no ensino e investigação (Universidade de Coimbra, 1885/1886, cadeira de Antropologia, Paleontologia humana e Arqueologia prehistórica). Trabalhos dispersos, provenientes, uns, da Comissão de Tra­ balhos Geológicos, Lisboa (fundada em 1857) e relativos à Paleontologia humana e Arqueologia prehistórica, outros, por exemplo, da Escola Médico­ -Cirúrgica do Porto, relacionados com a Antropologia criminal, anunciavam já o interesse que viria a conceder-se, entre nós, ao estudo histórico-natural do homem (Barbosa Sueiro, 1954; Mendes Correia, 1941' Xavier da Cunha, 1982) . Era este, nas suas linhas gerais, o panorama antropológico na época em que Eduardo Bumay empreendeu uma monografia sobre craniologia. Os resultados e conclusões serão apresentados seguidamente.

CRANIOLOGIA E CLASSIFICAÇÃO DAS RAÇAS A dissertação elaborada por Eduardo Burnai intinda-se «Da craneo­ logia como base de classificação antropológica» e foi aprescntada, em 1880, à Escola Politécnica de Lisboa para concurso a um lugar de professor substituto da cadeira de Zoologia_ Como já tive ocasião de referir noutra publicação (Almaça, 1993), Burnay foi um dos primeiros autores portugueses a manifestar-se como


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evolucionista. E nesta dissertação, que abre a sua produção científica, a convicção evolucionista é patente e modeladora do critério taxonómico que defende. Adepto do darwinismo inicial, na versão abrangente do lamarquismo que Haeckel (1874) lhe conferiu, Burnay visualiza a evolução como um processo seriado, hierarquizado, tendendo para a perfeição, que o homem representaria. Nas suas palavras, o fundamento da teoria genealógica de Lamarck exprime-se pelo paralelismo morfológico das séries zoológica, paleontológica e ontogenética e também cronológico das duas últimas. Sendo o homem o elo último da série zoológica, a sua perfeição é extrema. Então, é em termos de petjectibilidade que deve ensaiar-se a taxo­ nomia da espécie humana2 • Ver-se-á adiante de que forma procurou consegui-la. A Taxonomia depende de princípios e consuma-se através de categorias taxonómicas. Por isso, Burnay discute uns e outros ao iniciar a sua monografia, restringindo-se, todavia, no que toca às últimas, àquelas de interesse pertinente para o problema em causa, ou seja, à espécie e categorias infraespecíficas3 • A seriação domina toda a concepção taxonómica seguida por Burnay, de resto estampada da de Haeckel (1874), autor que, como j á se assinalou, influenciou profundamente Burnay e outros evolucionistas da primeira hora. Tendendo as séries para o máximo da perfeição o homem ~, procurava ver-se nelas a expressão da «composição progressiva» defendida por Lamarck como uma das causalidades evolutivas. Cuvier, que, ao contrário de Lamarck, era fixista, contestou a seriação dos animais e a ideia de tendência para a perfeição: «... je n'ai eu ni la prétension, ni le désir de classcr les êtres de maniere à en former une seule ligne, ou à marquer leur supériorité réciproque ... je n'entends pas que les mammiferes ou les oiseaux, placés les derniers, soient les plus imparfaits de leur classe ... » (Cuvier, 1817, p. XX). De acordo com estas ideias, considerou quatro tipos independentes de organização - Radiados, Articulados, Moluscos e Vertebrados - , desmembrando assim qualquer tentativa de seriar o Reino Animal: «C'est en conformité de cette maniere de voir [o repúdio da seriação], que j'ai établi ma division générale en quatre embranchemens ... » (Cuvier, 1817, p. XXI). De forma contraditória, Bumay, no seguimento de Haeckel (1874),

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apoiou toda a sua concepção taxonómica na seriação, que asseguraria a coerência genealógica, mas, ao mesmo tempo, também na destruição dela. Com efeito, ao considerar as grandes divisões do Reino Animal, são precisamente as de Cuvier, confirmadas independentemente pelas investi­ gações embriológicas de von Baer, que Burnay aceita (1880, p. 32). Ora, como se viu, as quatro grandes divisões, que são coerentes dos pontos de vista evolutivo e ontogenético, contrariam toda a ideia de seriação do Reino Animal. As divergências no sentido da especialização e o próprio grau de espe­ cialização consumariam, dentro das quatro grandes divisões, a subsequente hierarquização taxonómica, permitindo a formação de categorias suces­ sivamente menos inclusivas. A anatomia e fisiologia comparadas denun­ ciariam a especialização. Para Burnay, a análise da progressão e da divergência seriam, assim, as vias para a tradução taxonómica da evolução4 • Como se pode verificar, não saíam do quadro do darwinismo inicial, haeckeliano, absorvente do lamarquismo. A taxonomia, porém, tem um papel prático da maior importância. Daí a procura de correlações entre caracteres diagnosticantes anátomo-fisiológicos e morfológicos externos, desde sempre adoptados na prática taxonómica. Burnay enfatiza, no entanto, o interesse actual dos caracteres anatómicos, nomeadamente dos esqueléticos, dada a grande contribuição que a paleontologia pode fornecer à taxonomia zoológica. Os caracteres morfo­ lógicos poderão bastar para a taxonomia das categorias menos inclusivas, por exemplo a variedade, mas não para as superiores. Seja como for, toda a taxonomia depende da definição de espécie - a unidade biotáxica absoluta, nas palavras de Burnay - e tal definição é difícil de estabelecer. Três dos quatro critérios de espécie de autores fixistas são repudiados por Burnay: afiliação primitiva comum e exclusiva, por não ter verificação possível; a reprodutibilidade ln01jológica indefinida. pela variabilidade existente no seio das espécies; e a esterilidade das alian­ ças heterolnorfas, por se conhecerem híbridos interespecíficos. Resta a semelhança m01jológica, este, sim, um bom critério específico na opinião de Burnay. A universalidade da variabilidade, porém, exige que, obliteran­ do-a, se crie uma abstracção, o tipo, que representará, afinal, apenas o conjunto de caracteres compartilhados por todos os indivíduos da espécie.
















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