O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome. João Cabral de Melo Neto
Pausa para ser lido nos intervalos
BELO HORIZONTE ABRIL DE 2008 NÚMERO TRÊS
carte postale tradução a crítica pop ensaio a primeira visão prosa do diário de um vírus
expediente Conselho Editorial Alexandre Fantagussi Erick Costa Maraíza Labanca Rafael Reis II Projeto Gráfico e Direção de Arte Fernanda Gontijo II Colaboradores desta edição Bruno Martins Cíntia França Evandro de Sousa Juliana Vallim Pedro Kalil II Capa Bruno Martins II Revisão Isabela Monteiro II Impressão Guia Prático II Tiragem 1.000 exemplares II Informações Críticas Comentários Envio de Material Contato jornal.pausa@gmail.com II As opiniões expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores II Favor não deixar este jornal em vias públicas
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Jacques Derrida Le 3 juin 1977 et quand je t’appelle mon amour, mon amour, est-ce que j’appelle ou mon amour? Toi, mon amour, est-ce toi que je nomme ainsi, à toi que je m’adresse? Je ne sais pás si la question est bien formée, elle me fait peur. Mais je sûr que la reponse, si elle m’arrive un jour, elle me sera venue de toi. Toi seulement, mon amour, toi seulement tu l’aurais su. nous sommes demandé l’impossible, comme l’impossible, tous les deux. «Ein jeder Engel ist schreklich», bien aimé. quand je t’appelle mon amour, est-ce que je t’appelle, toi, ou est-ce que je te dis mon amour? et quand je te dis mon amour est-ce que je declare mon amour ou bien est-ce que te dis, toi, mon amour, et que tu es mon amour. Je voudrais tant te dire
3 de junho de 1977 e quando te chamo meu amor, meu amor, é que te chamo ou o meu amor? Tu, meu amor, é a ti que nomeio assim, a ti que me dirijo? Não sei se a pergunta está bem formada, faço-a com medo. Mas, certo que a resposta, se me chegar um dia, me virá de ti. Tu somente, meu amor, tu somente o terás sabido. nós pedimos o impossível, como o impossível, ambos. «Ein jeder Engel ist schreklich», bem amado. quando te chamo meu amor, meu amor, eu te chamo, a ti, ou te digo o meu amor? e quando te digo meu amor é que declaro meu amor ou é bem que te digo, a ti, que tu és meu amor. Eu quereria tanto te dizer
Evandro de Sousa
Evandro de Sousa é editor da revista eletrônica Trasilau www.cce.ufsc.br/revistatrasilau
e d o m e h t when c i s u m e h t of s l l a w e h t , changes shake of the city g Ginsber
V
Vou falar sobre música pop. Vou usar pop porque não se trata de música clássica ou acadêmica. Pop veio de popular, ou seja, música popular no sentido mais amplo de que não é música erudita. Pop aqui não quer dizer Madonna ou Ivete Sangalo, até porque sabemos que os Beatles foram (ou são) bem mais famosos ou populares até do que Jesus Cristo. O próprio jazz, hoje bem mais aceito por pessoas “inteligentes”, foi durante mais de sessenta anos considerado música pop. É difícil nortear o que é essa música pop; Leadbelly era música pop, assim como Edith Piaf e Emilinha Borba, mas convenhamos, aqui neste texto, que o fenômeno se tornou de fato mundialmente reconhecido depois que o rock explodiu, de Elvis aos Beatles. Até o rock alternativo reivindicou o título de música pop. Pensando dessa maneira, faz muito mais sentido pensar que Michael Jackson se apoderou do rock do que o rock quis ser o Michael Jackson. Para fins mais didáticos, consideremos que música pop é algo muito mais próximo do rock, e o que hoje já é canonizado academicamente, folk, jazz, blues, samba, etc, não vai ser do que trataremos aqui. Mas o que diabos escrever? A maioria dos sites ou revistas que escrevem sobre música pop são em geral muito feios, aqueles textos tipo “uma música que nos faz remeter os domingos gelados de nossa infância”. Acabam sendo sempre muito constrangedores. Também é meio constrangedor ouvir essas pessoas que se metem
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A
a ser enciclopédia do rock. Nada melhor pra ilustrar isso do que um cara velho da TV, que fica pirando nuns rock progressivos que só ele conhece e ninguém quer conhecer. O problema não é bem o de ter uma crítica impressionista. Afinal, quem mais pode ensinar sobre crítica musical deve ser o norte-americano Lester Bangs, que fazia de seus textos sobre música uma experiência pessoal, mas que transcendia. Ele não era provavelmente a pessoa que mais conhecia bandas, músicas, solos de guitarra, mas era quem entendia melhor o que tudo isso representava e sabia que, quando uma música era boa, ela realmente significava mais do que emoções pessoais que você tiraria dali. Bangs também parecia entender que um fenômeno musical pop era mais do que a música em si, era também um fenômeno social, comportamental, era, por mais clichê que seja, um jeito de viver. Ele não criava rótulos e nem tentava criar tribos urbanas como hoje existem para qualquer banda nova que aparece (new rave, emo, etc). Ele também não apontava uma nova banda por semana como a salvação do rock: ele deve ter sido a primeira e última pessoa, tirando o Neil Young, que percebeu que o rock não vai morrer, que ele, no máximo, vai se transformar em outra coisa, ou seja, é impossível hoje ter um novo Stones, um novo Dead Kennedys ou um novo Joy Division. Aliás, é difícil ter hoje coisas bem mais próximas, um Nirvana ou um Pavement, como também vai ser impossível depois termos um Strokes. Hoje ainda temos o problema de termos acesso a uma infinidade de músicas, tanto antigas como novas. O papel de uma pessoa que escreve sobre música apareceria bem aí.
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Q
Quem hoje é à-toa o suficiente para ouvir tudo o que já foi produzido e tudo o que é produzido hoje? Mesmo que muitas vezes possamos encontrar certa qualidade nas escolhas dos melhores discos pelos críticos, os textos sobre os mesmos beiram o lamentável. Grande parte das pessoas que consomem música gostariam também de consumir textos sobre, eu acho. Mas a quantidade de músicas acessíveis e a qualidade dos textos parece o que vemos em carros com grande potência no som: quanto mais alto o volume da música, pior o gosto musical. Eu sei que às vezes nos parece tentador escrever sobre um disco ou mesmo sobre uma música que nos deixam apaixonados, eu mesmo já tentei e, claro, ficou ridículo. Pode parecer fácil escrever sobre música, mas não é. Seria muito difícil, por exemplo, explicarmos o porquê da escolha dos nossos dez discos favoritos. E é impossível dizer por que são esses dez e não dez completamente diferentes. E qualquer pessoa ficaria em dúvida sobre como fechar a lista, se coloca o décimo primeiro ou o primeiro décimo que apareceu na cachola. Quanto às enciclopédias musicais ambulantes, é difícil compreender até que ponto isso tem verdadeira relevância, a não ser a quem se resguarde o gosto pelo museu. Até porque muitas vezes parecem mais apaixonados por conhecer muita música do que gostar delas, e a grande maioria parece muito mais interessada na qualidade dos músicos, os que “tocam pra caralho”, do que nos que tocam músicas boas. É difícil aceitar que Camel é melhor que Ramones, porque o cara do Camel “dibulha” e Ramones tem só três acordes. Enfim, enquanto a crítica continuar a nos servir textos indigestos, o que nos resta a fazer é simplesmente consumir a música. A música, por pior que seja, sabemos se gostamos dela ou não.
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a primeira visão Após abrir os olhos, tudo o que enxerguei foi o amor. Amor sabendo que ele não existiria; e, se existisse, encheria tanto os pulmões... até estourar. Quis isso quando criança, mas noutros tempos quis só esquecer que talvez as pessoas tenham nascido para amar; senão, qual outra utilidade para viver? Pergunta exclusa do meu pensamento. E meu corpo fora lançado contra as rochas, no mar, e os olhos fechados outra vez e a coisa especial de não se poder cair: pensei que o amor fosse isso, o amor pelo qual esperamos toda vida... mas como ter a certeza? Gosto das exatidões quando se precisa agarrar numa esperançosa verdade. Depois de muito adormecida, os olhos se abrem enquanto tudo diz: feche os olhos! E o som denso de água, como o som da morte; onde a noção se perde e o espaço é grande demais. A mistura das águas com os olhos, já cristalinos. A esperança balbuciando frente a tudo aquilo. A imensidão. Acolhida por um universo de água sem fim, que não se espelha e também não multiplica nenhuma vontade – sem dor, fome ou desespero. Talvez isso seja amor.
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do diário de um vírus
sábado, 02 de novembro de 1968 É pouco, é muito pouco. Ser a forma de vida mais simples na mais complexa. Outro corpo para me reproduzir. Minha única condição de vida, que não se cura. A vida de fusão: o que é vivo vai para. O estremecimento gigantesco veio do ventre dela neste momento em que nos fundimos, a hora em que fazemos o grande perigo de. Estamos íntimos e sinto seus núcleos dispersos. Os nervos a descoberto, viciados em intensidade. Existo nesse corpo sem pedir licença. Ela sente a própria dor no instante em que escrevemos, a hora do maior desamparo. O peito estreito. O que é vivo, por ser vivo, se contrai. E então eu soube: a vida nascendo dói. Sem coração, carrego a angina pectoris da alma. Não posso ser apenas eu.
11 de fevereiro de 2001 Ninguém acredita em elefantes azuis que voam, porque ninguém nunca viu. Eles se confundem com o azul do céu, flutuando como balões de gás. E estão em toda parte. Eu não acredito, eu sei que elefantes azuis que voam existem, porque sinto e penetro seus corpos. Têm a carne de algodão doce, o sangue feito de sopro, e andam quase se dissolvendo pelo ar, como as últimas imagens de sonho no decorrer do dia. A razão não alcança esses elefantes. Amo a sutileza desses bichos flanando sobre os arranha-céus. Pegá-los no pulo do sol pela manhã. Revirar o sangue de sopro em ventania pela tarde, descolorir a pele em tons cinza de concreto urbano, esgarçar o algodão da carne até desmanchar o corpo. Enquanto os homens pensam que quem vira é o tempo. Tromba d’água. Enquanto a razão faz meteorologia.
Cíntia França