Pausa

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Porque tão somente o diminuto banquete da aranha basta para romper o equilíbrio de todo o céu. F. García Lorca

Pausa para ser lido nos intervalos

BELO HORIZONTE FEVEREIRO DE 2008 NÚMERO UM


Todas as imagens desta edição são de autoria de Fernando Levi, artista plástico que vive e trabalha em Belo Horizonte, no seu ateliê Marafundabstrata. < www.fernandolevi.art.br >

expediente Conselho Editorial Alexandre Fantagussi Erick Costa Rafael Reis II Projeto Gráfico e Direção de Arte Fernanda Gontijo II Colaboradores Fernando Levi Jacyntho Lins Brandão Mariana Camilo de Oliveira II Capa Fernando Levi II Revisão Isabela Monteiro II Impressão Guia Prático II Tiragem 1.000 exemplares II Informações Críticas Comentários Envio de Material Contato jornal.pausa@gmail.com II As opiniões expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores.


Primeiro foi o zero, mas o zero não pretendia ser mais que um ponto: ponto de partida, ponto zero; passo incerto. Haveria o encontro com um leitor? Como seria esse encontro? O encontro aconteceu, das mais diversas maneiras. Se foi positivo ou negativo, não nos cabe dizer; importa que houve um curto intervalo marcado pela atenção. Isso bastou. Um dj, sentado atrás da mesa de som, está imerso numa leitura inconveniente. A música acaba e, como ele não o percebe logo, há alguns segundos de silêncio. Repentinamente ele se sobressalta, joga o jornal sobre a mesa e troca o cd. As pessoas parecem não se dar conta de sua distração. Foi apenas um lapso, mas sua falha deve ser perdoada: não se poderia culpar a pressa da música que acaba antes da leitura? Um executivo, sentado no tédio de um café de shopping, esperando acabar o horário de almoço, lê seu jornal cotidiano. Instigado pela presença de um jornal estranho que acaba de aparecer no balcão, rejeita sua leitura diária e volta sua atenção para o jornal desconhecido. Pode ser uma novidade, pode ser apenas um desvio de atenção. Pouco importa. O acaso também cuidou de preparar suas surpresas. Um leitor (algo inesperado) mandou para o e-mail do jornal um texto de sua autoria (duplamente inesperado), que, a nosso ver, deveria ser publicado (conferir páginas 10 e 11). Respeitamos sua vontade de permanecer anônimo: um bom texto está além de qualquer nome. Acreditamos que muitos artistas talentosos dormem nessas paragens, por preguiça ou por falta de opção. Queremos despertá-los. Houve o número zero, eis o primeiro. O que muda: abertura, passagem – falar também de outras artes. O que se mantém: a simplicidade do texto, a escrita despretensiosa, a página limpa.

Play.

Editorial II 3


De vez em quando se encontra no meio de uma discussão que parece ser seriíssima (para todo mundo menos ele). Autores, citações, referências bibliográficas. Interrompe a verborragia e diz: “Vocês têm noção da contribuição de Ian Curtis para a formação do conceito de sociedade de massa?” ou então “Vocês tomaram conhecimento do recente dossiê Johan Neeskens sobre a miséria na África?”

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Aqueles que conhecem os nomes citados o acham um idiota. Aqueles que não conhecem se acham idiotas.

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ELE 4 II Alexandre Fantagussi

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Ambos têm razão.


POEMA Inconfundível pela voz: duro fechado como dentro – distante o baile incerto de uma libélula noturna

Rafael Reis II 5


– entrevista com Jacyntho Lins Brandão

QUE VENHA A

SENHORA DONA Jacyntho Lins Brandão é escritor, tradutor, estudioso de língua e literatura gregas e atual diretor da Faculdade de Letras da UFMG. Lançou pela Tessitura, no ano passado, sua peça Que Venha a Senhora Dona, escrita e encenada na década de 80. Nesta conversa, ele fala ao jornal sobre a peça, o teatro e a literatura.

Pausa: Que Venha a Senhora Dona, embora tenha sido escrita na década de 80, só foi publicada ano passado. Essa peça é sua única obra literária publicada? Jacyntho: Não, há outras obras além dela... e muita coisa que ficou na gaveta também. A gaveta também interessa... No começo dos anos 80, eu publiquei um pequeno romance, chamado Relicário, que saiu pela José Olympio. Sempre fiz assim: coloco num pacote e mando pra um punhado de editoras, sem nem saber quem vai ler e publicar, até pra experimentar se estão se interessando ou não pelo texto. Testar o texto e os leitores... Sim. Com Que Venha a Senhora Dona foi diferente, a Editora Tessitura me pediu. Essa peça foi escrita no início da década de 80, numa época em que eu queria muito mexer com teatro, não apenas com o texto, mas com a parte de produção, montagem. Na verdade, era algo que eu queria fazer, e essa peça foi um modo de trabalhar com teatro. Na época, o diretor, inclusive, me chamou algumas vezes pra assistir ao ensaio. Embora ele me perguntasse como eu tinha imaginado tal parte, eu respondia: ‘não tenho a menor idéia. Você é o diretor, você que faz’. Acho que a parte que sei fazer bem é a construção do diálogo. Não escrever frases longas, o bateboca: uma pessoa fala, a outra não entende direito e responde outra coisa – mudar o tempo da fala... Depois da montagem, a peça ficou pronta e guardada na gaveta. Ainda escrevi uma outra que continua guardada, teve só uma leitura dramática no Francisco Nunes... Gosto de experimentar, acho que deve ser sensacional escrever novela pra televisão... Já pensou que delícia? Você fica cinco meses por conta, uma multidão vendo aquilo, e o interessante é que você escreve enquanto a montagem e a exibição da novela acontecem.

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Uma série de fatores pode mudar o rumo das coisas... Na vida também. Na década de 90, a prefeitura abriu um dos concursos literários que faz todo ano. Eu estava precisando de dinheiro e já tinha uma idéia pra um romance. Cheguei em casa e avisei: ‘está tendo um concurso da prefeitura, o prêmio é de 10 mil, eu vou escrever um romance!’ Sentei e escrevi em um mês e pouco. Quando fui ver o número de cópias que deveria enviar, descobri que o concurso daquele ano era só pra teatro, crônica, mais sei lá o quê. A minha mulher ainda falou: ‘então faz virar teatro!’ Acabei deixando o romance de lado, depois enviei pra Nova Fronteira, que publicou O Fosso de Babel. Você já escreveu de tudo um pouco. Nunca arriscou um poema? Até já escrevi, mas joguei fora. Eu sei fazer a parte técnica, mas não é só isso que envolve a linguagem poética. Eu gosto muito de escrever e ler prosa. Pra poesia sou muito seletivo. Os poemas de que eu gosto, eu gosto tanto que acabo decorando. Se aparece alguma coisa nova, demoro a assimilar. Meu poeta preferido, por exemplo, é Manuel Bandeira. Dele eu acho que gosto de tudo. A questão é que com poesia tem que ter “simpatia”, estou pensando no sentido grego, aquilo que estabelece um pathos com. É muito difícil, inclusive, abrir um livro de poesia e ler de cabo a rabo. Nem sempre se consegue manter a relação. É o que o Manoel de Barros fala, no filme Língua de Brincar, aconselhando as pessoas a escreverem livros de poesia pequenos... Não escrever mais do que 30 páginas. “Não faça isso com o leitor”, ele diz. É isso. Eu conheci uma sobrinha do Manuel Bandeira, que era carmelita no Convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Ela me contou um caso engraçado. Um dia ela falou ao Manuel: ‘por que você não faz um livro com uma seleção das suas poesias? Mas não ponha esses poemas sobre sexo, essas coisas... pra ele poder ser lido em conventos’. Ele respondeu: ‘ah, quando você não gostar de algo, arranca a página.’ Você acha muito distinto o processo de construção das suas obras literárias e teóricas? Não acho distinto não... acho até parecido. São gêneros diferentes, mas não acho que sejam tão distantes, porque, mesmo que você esteja fazendo ficção (pode-se pensar que é mais gostoso, mais livre), tem que haver um controle sobre o texto, um controle mínimo sobre o enredo ou a caracterização de um personagem.

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Podemos considerar também, por outro lado, o aspecto intuitivo que é comum à elaboração de ambos os textos. Eu não faço nada muito planejado: eu ajo mais intuitivamente, embora pense sempre pra frente. Nos dois casos, quando escrevo a primeira linha, eu estou começando um texto que vai até o final, não escrevo fragmentadamente. Claro que eu posso mexer no que já escrevi, mas há este aspecto comum no processo: os textos vão acontecendo à medida que estão sendo feitos. Por exemplo, no caso da tese acadêmica, às vezes você descobre coisas durante a pesquisa e muda o percurso que havia planejado, o que não é muito diferente da escrita de um romance: também se descobrem coisas à medida que se escreve a narrativa. Foi bastante interessante acompanhar a montagem de Que Venha a Senhora Dona, ouvir as dúvidas do diretor e dos atores, isso me ajudava a repensar o texto. Depois, pra publicar, eu acabei mexendo no original. Nas marcações de palco, no enredo, nos diálogos? As marcações de palco eu coloquei só na hora de publicar. Antes, havia só os diálogos, sem interrupção alguma. Eu acho legal escrever só diálogo, sem marcação de personagem... Se pensarmos nos diálogos platônicos e nas tragédias gregas, não havia essas marcações. Quando você assiste a uma peça, você só sabe o nome de um personagem quando outro personagem se dirige a ele. Eles não entram no palco com o nome escrito no peito. Ainda sobre a peça, o texto começa de uma forma leve, com diálogos bem-humorados, mas, à medida que avança, passa do cômico ao trágico. Esse é que é o perigo do texto... de se fazer uma comédia pastelão. O diretor me perguntou: ‘isso é o quê?’ Eu falei: ‘o texto é trágico, tem que controlar... é engraçado, mas é sério: trata da morte.’ Quando estreou, eu fiquei muito impressionado, pois eu não sabia que era tão engraçado. O público ria do começo ao fim. É aquela história: livro, depois que se publica, é igual filho: vai cuidar da sua vida... Quais os próximos planos do escritor? Já está pronta uma tradução comentada do Como se Deve Escrever a História, de Luciano de Samósata. Deve sair em breve, também pela Tessitura. Bom... eu sempre dei aula e trabalhei na parte administrativa da Faculdade, até porque gosto disso. Mas a escrita requer tempo, você tem que ter disponibilidade. Eu agora ando cansado de realizar essas duas tarefas (sinal da idade). Quando terminar este meu mandato de diretor, vou ficar apenas dando aula e fazendo algo que quero há bastante tempo: escrever mais ficção, sobretudo pra teatro.

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Leicht tat sich dein Schoß auf, still stieg ein Hauch in den Äther, und was sich wölkte, wars nicht, wars nicht Gestalt und von uns her, wars nicht so gut wie ein Name?

Groß kam eine Sonne geschwommen, hell standen ihr Seele und Seele entgegen, klar, gebieterisch schwiegen sie ihr ihre Bahn vor.

Wer sagt, daß uns alles erstarb, da uns das Aug brach? Alles erwachte, alles hob an.

MIT ALLEN GEDANKEN ging ich hinaus aus der Welt: da warst du, du meine Leise, du meine Offne, und – du empfingst uns.

poema paul celan tradução mariana oliveira COM TODOS OS PENSAMENTOS fui para fora do mundo: lá estavas tu, tu minha quieta, tu minha aberta, e – tu nos recebeste. Quem diz que tudo nos morreu, quando nos quebraram o olho? Tudo despertou, tudo se ergueu. Grande veio um sol flutuante, diáfanas confrontaram-no alma e alma, claras, imperiosas pressilenciaram-lhe sua trajetória. Leve abriu-se o teu seio, soturno subiu um sopro ao éter, e o que se anuviou não era, não era forma e desde nós, não era tanto quanto um nome?


OFÍCIO Este espaço foi cedido ao texto de um escritor que preferiu o anonimato. O jornal Pausa continuará aberto a colaborações. Envie seu texto para: jornal.pausa@gmail.com

Não seria preciso abrir os olhos pra prever mais um dia miserável. 43 cafés, 128 cigarros, mais noites de insônia. Risco paredes, faço contas. Sim, o passado pode ser um animal grotesco. O que não autoriza entornar tanta lama por aí. Princípio de valores: é falta de dignidade, em qualquer circunstância, choramingar entre um gole de café e um trago de cigarro. Então, pensar em começar o dia. Pensar, porque sempre, desde sempre, há um só dia insuportável. Lembrete no maço de cigarros: “não é preciso atravessar o inferno todos os dias, se você pode fazê-lo a qualquer hora.” Mais princípio de valores. Dia canalha. O maço de cigarro esvaziando. O café frio. A cabeça partindo. É o diabo. Um gole, um trago. Sim: ao ofício, à parte canalha do relato. Aqui, sigo arrastando o morto. Quando me canso, se me canso, ele é meu leito. Arrasto o morto há séculos porque me foi confiado este apego. Nessa trilha onde vago, nem fim nem começo. Não há luz, mas não me perco; só há um caminho. Não sei se deveria, mas me deito algumas noites ao seu lado e o abraço, para aquecê-lo. Para que viva. Mas esfrio. Levanto-me então um pouco mais cansado e sigo arrastando o morto. Arrastando-o, vivo. Consumido aos poucos. Se me livro, me perco? Que o morto não me


morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que esteja viciado. - Al Berto

esfrie completamente. Que não me assombre nas noites de desespero. Em seu jazigo, que não me ocupe todo espaço do peito. Acanalhei o troço. É o diabo. Cafés, cigarros e registros. É daí que retiro meu sustento. Em minha idade não há motivos pra extravagâncias: saio da cama apenas pra três coisas: 1 - comprar cafés e cigarros; 2 - necessidades fisiológicas, que já não são muitas; 3 - banho – não tolero o despudor da falta de higiene. Guimbas. A cada 10 num cinzeiro, 30 metros quadrados da casa empesteados. Mas sou sensível, é aí que me movo melhor. Daqui faço registros. Que se ouça bem: registros, nem mais nem menos. (O registro, ainda emperrado...) Sei que logo abrirão inquérito pelo que direi, mas insisto: pra tudo nessa vida é preciso uma justa medida. Não entendem. Alguém tem que estar aí pra isso. Não digo nome porque dispenso as honras da tarefa. Por exemplo, cafés e cigarros: é essa a medida desse registro. Nunca um cigarro novo: queimá-lo até a justa medida – uma guimba. Diante dela resta apenas uma coisa a fazer: acender outro cigarro. É de bom-tom dizer: ninguém duvida da guimba de um cigarro. Restinho intragável, nojento, na ponta dos dedos. Assim se conta toda uma vida. Sim, começar e acabar... eu, o condenado... com os diabos... preciso começar de novo. Mais alguns e talvez feche o dia. Dia escuro, quase noite em toda parte.



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