Forum 100

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100 ano9 julho 2011 Território Federal do Oiapoque Território Federal do Rio Negro

Tapajós Carajás

Maranhão do Sul

Território Federal dos Solimões

Território Federal do Juruá

Gurgueia Araguaia Mato Grosso do Norte

Plebiscito sobre a criação dos estados de Carajás e Tapajós abre caminho para outros projetos de novas unidades federativas

Estado do Rio São Francisco

Território Federal do Pantanal

Estado do Triângulo

As armas de Obama e dos republicanos para 2012

Um novo mapa do Brasil?

Encarte Clacso: entrevista com Franz Joseph Hinkelammert 1519-8952

no 100 R$ 8,90

issn



A quem interessa os novos estados? Obama e os republicanos: os preparativos para 2012 O saldo do #2BlogProg A necessidade de criminalizar a homofobia

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Clacso: entrevista com Franz Joseph Hinkelammert

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Feminicídio e desigualdade de gênero na sociedade

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30 Inclusão digital e e-cidadania 34 A imprensa que combateu a ditadura

Os vinis ainda resistem

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Rádio Heliópolis e as comunitárias no Brasil

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Luiz Beltrame: 102 anos, ainda na luta

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A vitória de Humala e a trincheira da internet Entrevista: Pierre Calame

Cartas Espaço Solidário Diversidade Mundo do Trabalho Toques Musicais Penúltimas Palavras

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É bom demais ver o número 100 lá na capa Esta é a edição número 100 da Fórum. Não dá para fazer de conta que isso não é relevante para uma revista independente. É um fato e tanto. Pouquíssimas publicações com as características da Fórum chegaram à edição 100. Mas este não será o único número simbólico deste ano. Em setembro, a revista completa dez anos de distribuição nacional.

A história da Fórum já foi contada algumas vezes por aqui, mas não custa lembrar que ela nasceu para registrar o 1º Fórum Social Mundial e que não tinha nenhuma pretensão de ser periódica. O que hoje chamamos de número zero, saiu em abril de 2001. E como a venda de cotas de exemplares foi muito além das expectativas, decidimos encarar o desafio de fazer uma publicação regular. Por três anos, foi bimestral. Depois se tornou mensal.

Gostamos muito de fazer a Fórum, mas não podemos dizer que fazemos a revista dos nossos sonhos. Ela poderia ser muito melhor se nossa estrutura não fosse tão precária. Mas, ao mesmo tempo, ela é muito mais interessante do que poderia ser se ficássemos nos limitando a nossa precariedade.

Entre outras coisas, a revista foi à Palestina entrevistar Yasser Arafat, cobriu a queda de Mubarak no Egito, o golpe contra Chávez na Venezuela, reportou o movimento de cocaleiros que levou Evo Morales ao poder, esteve presente no acampamento das Farc na Colômbia e, em todas as edições do FSM (dentre elas, as realizadas na Índia, no Quênia e no Senegal), estava lá. Além disso, participou de quase todos os movimentos de democratização da comunicação nesse período e divulgou movimentos em defesa de direitos, tanto no Brasil como em outras partes do mundo. Por essas e outras é que dá para dizer que é muito bom fazer um veículo de comunicação livre e independente.

E é muito bom também porque sabemos que, mesmo não falando com milhões, os nossos milhares de leitores são muito especiais.

São líderes e formadores de opinião, que estão em todas as partes do Brasil ajudando a construir um país mais democrático e justo. E isso não é pouca coisa. Selo FSC

Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Adriana Delorenzo, Brunna Rosa, Cynthia Semíramis, Fábio Eitelberg, Idelber Avelar, João Carlos Rebello Caribé, Julinho Bittencourt, Marcio Pochmann, Moriti Neto, Mouzar Benedito, Nina Fideles, Pedro Alexandre Sanches, Pedro Biava e Pedro Venceslau, Túlio Vianna e Vange Leonel. Ilustração de capa: Thiago Balbi. Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Administrativo: Ligia Lima. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: redacao@revistaforum.com.br. Para assinar Fórum: assine@revistaforum. com.br, http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agrade­cemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: de 9/7/2011 a 9/8/2011.

Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Coope­ração Internacional). julho de 2011

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Quem pode conter o fluxo? I E essas característica de fluxo que ninguém segura é o que mais atrai na rede, mesmo que tentem manipular o fluxo quase sempre toma um rumo próprio e algumas (?) vezes inesperado. Porque a rede é naturalmente anárquica (no sentido correto do termo) e isso é incrível! Ótimo artigo! Evandro Cesar

Quem pode conter o fluxo? II É isso aí. É preciso saber se comunicar com responsabilidade e aproveitar todos esses espaços para provocar debates sociais relevantes. Creber

Sobre o conceito de cultura I Ótimo texto que me fez pensar na classificação interna a esse universo de sentidos e práticas chamado “cultura”. Não seria mais apropriado pensar, então, em diferentes instâncias, como a artística, a artesanal, a industrial, comercial etc para se discutir os efeitos e alcances de uma instância burocrática como o Ministério da Cultura? Creio que há muitas vantagens na perspectiva relativista, mas também há problemas, uma vez que, no âmbito do livro, por exemplo, não é possível pensar que um romance machadiano possa ter o mesmo estatuto “cultural” de um livro de receitas da Palmirinha. Abraços. Alexandre Marcelo Bueno

Sobre o conceito de cultura II Excelente o artigo “Sobre o conceito de cultura”, de Idelber Avelar, publicado na edição 99 da Fórum. Olhar o termo cultura do ponto de vista de sua raiz comum com o verbo cultivar traz um sentido de ação, de construção permanen-

te e, por isso mesmo, sempre em modificação e crescimento, que se aproxima do que acredito ser o melhor foco para uma discussão sobre o tema do ponto de vista das políticas públicas. Coloca a todos no mesmo patamar enquanto construtores e participantes dessa coisa fluida que é a cultura brasileira, não apenas um punhado de iluminados, a despeito do talento de cada um. No limite, acho que o melhor seria dar a todos os brasileiros o acesso a toda nossa cultura: Racionais tocando no Morumbi, Shakespeare rolando no Capão Redondo. Minha namorada contou uma história outro dia que fala bem disso. Ela tocou violão numa peça no colégio onde estudou, num bairro da periferia de Mauá. Os ensaios da banda eram na calçada e todos que passavam paravam pra ver. Quando estreou a peça, num festival da escola, os moradores, na maioria trabalhadores pobres e “sem cultura”, lotaram o teatro e adoraram. É só dar espaço que o pessoal se apropria do que já é seu.

Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada nestas logomarcas

Nicolau Soares

O crime de apologia como instrumento de censura Ótimo texto, acho que poucas pessoas tem esse mesmo pensamento que o meu. A linha tênue entre apologia e liberdade de expressão deve sempre pender para o lado da liberdade. Sou contra a descriminalização da maconha, mas totalmente a favor deles dizerem que deve ser liberado. Acho que o próprio artigo 287 está errado e sou a favor de sua revogação (o fato de eu dizer isso é apologia a apologia ao crime?). Dizer que acha certo uma coisa ilegal e fazê-lo de fato são duas coisas bem diferentes.

Essas entidades nos apoiam de diferentes maneiras, mas principalmente com assinaturas coletivas da revista. Se você faz parte de uma entidade que acredita na importância de construir veículos independentes, nos procure, solicite uma tabela e paute na sua diretoria o debate para colocar seu nome aqui, entre os que apoiam a Fórum. Fone: (11) 3813-1836 ou comercial@publisherbrasil.com.br.

Rodrigo Atribuição e Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil

Entre em contato. A Fórum é feita com sua colaboração. Dê sua sugestão, critique, opine, faça a revista conosco. Nosso e-mail é redacao@revistaforum.com.br e o endereço é rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. A Fórum reserva-se o direito de editar as cartas e e-mail por falta de espaço ou para facilitar a compreensão. SERVIÇO AO ASSINANTE (11) 3813.1836 | assine@revistaforum.com.br | http://assine.revistaforum.com.br

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Você pode: copiar, distribuir, exibir e executar a obra

criar obras derivadas

Sob as seguintes condições: Atribuição. Você deve dar crédito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante Compartilhamento pela mesma Licença. Se você alterar, transformar ou criar outra obra com base nesta, você somente poderá distribuir a obra resultante sob uma licença idêntica a esta


A economia solidária como um dos eixos do Brasil sem Miséria

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roDrigues poZZeBom / ABr

ançado no último dia 2 de junho, o plano , do governo federal, terá três pilares básicos: transferência de renda, inclusão produtiva e acesso a serviços públicos. Nesse sentido – objetivando a inclusão produtiva em áreas urbanas –, são planejadas ações que pretendem criar ocupação e renda por meio da economia solidária. Em entrevista à Fórum, Joaquim de Melo, coordenador geral do Instituto Palmas, organização da sociedade civil que gere e propaga práticas de economia solidária, com sede em Alagoas, analisa o papel do setor no plano do governo de Dilma Rousseff e aponta o que ainda pode ser aperfeiçoado. Fórum – Considerada uma das estratégias de superação da pobreza extrema apresentadas no Brasil sem Miséria, como a economia solidária se encaixa no plano do governo federal?

Joaquim de Melo – A economia solidária consegue, com muita facilidade, chegar aos mais pobres, porque ela parte do princípio que a solução dos problemas econômicos está na própria comunidade em que se encontram os extremamente pobres. Acreditamos que, ao criarmos uma rede de produtores e consumidores locais onde as pessoas são estimuladas a produzir e consumir umas das outras, conseguimos gerar trabalho, emprego e renda no próprio território. São as chamadas “redes de prosumatores”, onde todos são produtores, consumidores e atores sociais. Elas nos ensinam que podemos, no próprio local, bairro, município, ter um banco próprio, comunitário, que financia a produção e o comércio com linhas de crédito produtivo, financiando também o consumo local com uma linha de crédito em moeda social, criando um círculo virtuoso da economia em que a riqueza circula na própria comunidade. Só a economia solidária é capaz de pensar estruturas dessa natureza, porque acreditamos nas soluções coletivas. Como afirma o professor Paul Singer (secretário nacional de Economia Solidária): “ninguém supera a pobreza sozinho”. Portanto, precisamos de práticas de economia solidária para chegarmos aos mais empobrecidos, ajudar a organizá-los para, coletivamente, superar a miséria. A maior contribuição que se pode oferecer ao Brasil sem Miséria é disponibilizar uma série de práticas concretas de organização da comunidade para o empreendedorismo coletivo. Fórum – Dentro disso, a economia solidária, aliada a ações governamentais, pode contribuir de que forma para a organização e a participação social?

José Sarney, Dilma Rousseff, Michel Temer, Marco Maia, e Tereza Campello no lançamento do Plano Brasil sem Miséria

da cooperação e da colaboração estimula que as pessoas se organizem e se juntem de forma associativa e cooperada. As experiências de economia solidária no Brasil totalizam 22 mil empreendimentos (dados do Sistema de Informação da Economia Solidária – SIES/Ministério do Trabalho e Emprego). Além disso, existe uma variedade de cursos, oficinas e seminários em todo o país que ensinam as práticas e a filosofia da área. Hoje, são dezenas de universidades, ONGs e associações comunitárias que têm programas voltados para o setor. Contudo, considero que a maior contribuição se dá com as práticas concretas, que mostram para a população como é possível se organizar e encontrar soluções para os problemas locais. Aqui, em nossa comunidade, no Banco Palmas, temos duas mil famílias que tomam crédito, sem burocracia e comprovação de renda. Todas se filiam ao Fórum Econômico Local (FECOL) e têm o direito de participar, semanalmente, de reuniões, podendo votar e decidir sobre o futuro do banco comunitário. Fórum – O que vale ressaltar de positivo no Brasil sem Miséria?

Melo – O mais importante de tudo foi o governo federal ter apontado a superação da miséria como uma pauta prioritária para o país. O fato em si já é muito relevante, porque traz para a mesa o reconhecimento do governo da dívida que tem com 16 milhões de brasileiros. Do ponto de vista concreto, acho que o fortalecimento do microcrédito e a economia solidária são duas ações que merecem destaque.

Melo – O capitalismo nos ensina que não existe espaço para todos, por isso devemos disputar o mercado. As velhas cartilhas sobre empreendedorismo de negócios explicitam que devemos ser bem capacitados em nossos empreendimentos para ganharmos fatias de mercado. Dis- Fórum – Há pontos do plano que precisam ser melhorados sob a perspecputar, concorrer, chegar à frente, é sempre a lógica que nos leva a uma tiva da economia solidária? paranoia coletiva de sermos os melhores para ganharmos do outro. Melo – O plano não fala como vai organizar os miseráveis para que eles superem a extrema pobreza. Embora aponte algumas ações de econoUm ganha, outro perde. Não existe espaço para dois. A economia solidária prega exatamente o contrário. É muito mais viável mia solidária, creio que precisamos traçar uma estratégia clara em duas ser solidário do que ser competitivo. Economicamente falando, acredi- situações. Primeiro: como vamos organizar os miseráveis em ações ecotamos que é muito mais fácil sobrevivermos no mercado por meio de nômicas e sociais? Segundo: como vamos “empoderar” os miseráveis e ações econômicas coletivas do que isolados. Portanto, devemos pensar aumentar a auto-estima deles? Ninguém supera a pobreza com a alma em formas coletivas de comercialização de produtos, como feiras, lojas desanimada. Nenhum pobre deixa de ser pobre, nenhum miserável deisolidárias, bodegas comunitárias; em produção associada, cooperativas, xa de ser miserável, se não se decidir a sair da pobreza ou da miséria. Portanto, o Brasil sem Miséria tem um associações e grupos de produção; em formas alternativas de crédito coletivo, bancos codivulgação solidária desafio enorme de criar um plano de organização de empoderamento dos munitários, cooperativas de crédito, fundos A Fórum dedica este espaço à divulgação de iniciativa miseráveis. Sem esse plano, as ações, solidários e outros. Enfim, é a crença de que, ligadas à economia solidária. Se você participa ou promo-s ve algum tipo de empreendimento relacionado ao comércio quando chegarem, não surtirão efeito. organizados, seremos mais fortes. Essa lógica justo e solidário, entre em contato cono sco para divulgá-lo.

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Um outro mapa para o Brasil

Plebiscito sobre a criação dos estados de Carajás e Tapajós inspira movimentos separatistas e abre caminho para outros 11 projetos de novos territórios. Além de mudar o mapa do País, onda alteraria a correlação de forças no Congresso Nacional e teria custo bilionário

por pedro Venceslau

P

ouca gente sabe, mas além de ser um dos melhores marqueteiros políticos do Brasil (e notório apreciador de rinhas de galo), o publicitário Duda Mendonça é um bem-sucedido fazendeiro. Responsável por campanhas vitoriosas como a de Paulo Maluf à prefeitura de São Paulo, em 1992, e a de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência em 2002, ele investe parte do que ganha em duas propriedades de terra no Pará. Uma, fica na cidade Redenção e outra, em Tinguaras, ambas na região de Carajás. Recentemente, o publicitário foi procurado por um grupo de produtores rurais com uma proposta de trabalho não remunerado: comandar a campanha do “sim” no plebiscito sobre a emancipação do estado do Carajás. Duda teria se empolgado com a ideia e prometido assumir a empreitada a custo zero. O deputado federal Giovanni Queiroz (PDT-PA) se anima ao contar essa história à Fórum. Motivos não lhe faltam. Sem estatura política para sonhar com voos mais altos do que a Câmara dos Deputados, ele é o nome mais cotado para ser eleito o primeiro governador de Carajás em 2014, caso o “sim” saia vitorioso das urnas no plebiscito, que se dará no fim do ano. Além de Carajás, os paraenses definirão no mesmo sufrágio se querem a criação de outro estado desmembrado do Pará, o Tapajós. “O Duda, que tem duas fazendas na região, se colocou à disposição para fazer a campanha com custo zero. Enquanto aguardamos as regras do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), estamos organizando comitês locais para colocar a campanha na rua. Vamos arrecadar recursos por meio de rifas e doações”, diz Queiroz. Ele nega os rumores de que o publicitário teria cobrado R$ 50 milhões para abraçar a causa.

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Novo Pará teria mais eleitores O estado de Carajás ficaria nas regiões sul e sudeste do Pará, teria 39 municípios e 1,6 milhão de habitantes. Tapajós estaria no oeste, teria 27 cidades e 1,2 milhão de habitantes. Com o desmembramento, o novo Pará contaria com 78 municípios e 4,6 milhões de habitantes.

Pará

Tapajós Carajás

Queiroz aguarda uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF), que será definitiva em seu projeto de poder. Os magistrados ainda não definiram quem poderá votar: se todos os habitantes do Pará ou apenas aqueles que moram nas regiões que pleiteiam autonomia. “O Pará que sobraria do desmembramento teria 17% do território e 70% dos eleitores. As pesquisas indicam que se todos os paraenses votarem, o “não” vencerá”, afirma o cientista político Edir Veiga, professor da Universidade Federal do Pará. “Acho que só a população diretamente interessada deve ser ouvida. Existe jurisprudência nesse sentido. Nenhuma cidade do Brasil foi criada de outro modo”, sustenta o parlamentar do PDT. Questionado sobre o sonho de ser governador, Giovanni Queiroz desconversa. “Isso é brincadeira que amigos fazem comigo. O fato

é que, se o estado for criado, a região do Pará passará por uma multiplicação de sua força política.” O deputado federal Ivan Valente (PsolSP) tem uma opinião diametralmente oposta. “Esse dilema do STF não resolve a questão da legitimidade. O impacto da criação de dois novos estados seria nacional. Logo, o país inteiro deveria ser ouvido.” Seu partido foi um dos únicos no Congresso que se posicionaram contra a realização do plebiscito. Segundo Valente, a criação de Carajás causaria uma “brutal deformação federativa”.

No muro

Apesar de ser um tema com potencial para mudar radicalmente o cenário político paraense, o plebiscito ainda não despertou interesse entre os políticos tradicionais do


Violência seria cartão postal do novo estado Atraída pelos empregos gerados pela siderúrgica Vale do Rio Doce, uma multidão de novos moradores chega diariamente para tentar a vida em Marabá Agência Vale

estado. Até agora, quadros locais como Ana Julia Carepa (PT), Flexa Ribeiro (PSDB) e Jáder Barbalho (PMDB) não anunciaram de que lado estão. De acordo com Edir Veiga, o motivo é simples: eles têm mais votos na região de Belém, que é majoritariamente contra a separação, mas não querem se “queimar” com os eleitores de Carajás e Tapajós. Único parlamentar do Pará que recebeu votos em todos os 143 municípios do estado, o deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA) é um dos poucos que assumem a posição. “Dividir o estado seria dividir o apartheid social e a miséria. Temos o pior Ideb do Brasil e o 2° pior IDH da Amazônia, mas temos também 50% das reservas de commodities de exportação de minério de ferro do Brasil”, argumenta. “A Cia. Vale do Rio Doce teve um lucro de R$ 30 bi no ano passado, mas não recebemos um centavo disso, porque o ICMS é todo cobrado no consumo em vez de ser na fonte. Estamos patrocinando o desenvolvimento do Sudeste”, opina. Político forjado no antigo Partido Comunista, Jordy se intitula adversário das oligarquias da região. “Tem deputado dizendo que, com a divisão, vai acabar a concorrência. Estão pensando só em seus interesses pessoais. A divisão é ruim. Não sou favorável.” O repórter tentou ouvir a opinião do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA). Seus assessores disseram que ele defende a consulta em todo o estado, e não apenas na região diretamente interessada. Posição no plebiscito? “Ele não vai entrar nesse mérito”, disse um assessor. Apesar de ser da região do Tapajós, a senadora Marinor Brito (Psol-PA) também não teme assumir sua posição contrária à divisão. “São os interesses do agronegócio e das mineradoras que estão por trás da proposta da divisão. Com a criação de dois novos estados, eles ficariam mais próximos da classe política. Onde há interesse das elites, o povo leva a pior”, assegura. Essa é também a posição oficial de seu partido no Congresso. Segundo estudo feito em 2010 pelo cientista político Roberto Corrêa, da Universidade Federal do Pará, a pedido da campanha da ex-governadora Ana Júlia Carepa, a divisão do Pará em três estados fortaleceria o PT e o PMDB. Não por acaso, a principal líder do movimento pelo “sim” em Tapajós é a prefeita de Santarém, a petista Maria de Carmo Lira. Tida como favorita para o governo do Tapajós em 2014 em caso de separação, ela ficou em primeiro lugar na região em 2002, quando disputou o governo estadual. Detalhe: Santarém deve ser a capital de Tapajós em caso de vitória do “sim”.

Integrantes do MST instalados em barracas improvisadas às margens da Estrada de Ferro Carajás

S

e a divisão do Pará for aprovada no plebiscito, Carajás nascerá com o triste título de estado mais violento do país. São 58 assassinatos para cada 100 mil habitantes, sendo que a cidade de Marabá, candidata a capital do novo estado, teve em 2009 uma taxa de homicídios de 133 por 100 mil habitantes, segundo dados do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde. Por mais paradoxal que seja, a população de Marabá cresce em ritmo vertiginoso. A região, que foi povoada por índios, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, começou a receber imigrantes, em sua maioria nordestinos, nos anos 1970, quando o governo patrocinou diversas obras de infraestrutura na região. A esperança de quem chegava era conseguir empregos em obras gigantes como as rodovias Transamazônica e Belém–Brasília. Com o fim das obras, milhares de trabalhadores sem-terra ficaram na região. Vem daí a origem da violência brutal que assola a região: a disputa por terras. Em 2005, o governo criou um órgão específico para combater os crimes da região, a Delegacia de Crimes Agrários. A iniciativa, porém, não resolveu o problema. No pequeno espaço de 20 dias, entre 24 de maio e 9 de junho últimos, cinco trabalhadores rurais foram assassinados. Em todos os casos, a polícia teve dificuldade para conseguir informações básicas, como a data exata do crime, a arma usada e o número de tiros dis-

parados. A única referência do poder público para tentar avançar nas investigações é a Comissão Pastoral da Terra, o braço da Igreja Católica no campo.

Eldorado às avessas

Um estudo feito pela Vale do Rio Doce calcula que o número de moradores na cidade chegará a 300 mil até 2014. O maior atrativo da região é, claro, a própria siderúrgica. Outra sina da “capital” de Carajás é o trabalho escravo. Só nos últimos cinco anos, o Ministério Público Federal de Marabá ajuizou 150 ações por trabalho escravo. Apesar de ser o destino migratório de milhares de pessoas que sonham com uma vida melhor devido à Vale, Marabá conta com apenas 76 policiais civis. Ao todo, os 20 municípios do sudeste do Pará contam com apenas 208 policiais. A ausência do poder público no local é um dos argumentos dos defensores da divisão do estado. “As mortes do Pará aconteceram devido à ausência do estado. O Pará não tem braços para cobrir toda aquela região. Isso justifica nosso pleito”, diz o deputado federal Giovanni Queiroz. Outro dado alarmante foi divulgado pela Ouvidoria Agrária Nacional da Presidência da República. Nada menos que 98% dos assassinatos no campo ocorridos no Pará nos últimos dez anos ficaram impunes. O estudo do órgão revela, ainda, que a grande maioria das mortes é ligada a disputas por terras e recursos naturais. F julho de 2011

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Custo separatista O plebiscito sobre a criação de Carajás e Tapajós pode desencadear uma onda separatista no Brasil. Atualmente, tramitam no Congresso Nacional 11 projetos de lei propondo a criação ou plebiscito para a formação de 13 novos estados na federação brasileira. A maior parte está travada na complexa rede de tramitação do Congresso, mas pode ser ressuscitada a qualquer momento, dependendo dos humores das duas casas. O histórico do Parlamento mostra que projetos exóticos chegaram perto de ser aprovados, mas acabaram arquivados. É o caso do projeto de criação do estado de São Paulo do Leste, proposto pelo deputado federal Bispo Wanderval (PL-SP); São Paulo do Sul, ideia de Kincas Mattos (PSB-SP) e Minas do Norte, projeto de Romeu Queiroz (PTB-MG). Se o exemplo do Pará pegar e todos forem bem-sucedidos, o Brasil passaria a ter 40 subdivisões. Além de consequências políticas, esse movimento teria um alto custo financeiro. O valor? Por ano, R$ 10,8 bilhões para a sua criação e manutenção. O cálculo foi feito pelo economista Rogério Boueri, analista do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Ele assina um detalhado relatório sobre o tema chamado “Custos de funcionamento das Unidades Federativas brasileiras sobre a criação de novos estados”. O trabalho conclui que, em média, cada estado teria um custo de quase R$ 1 bilhão. No caso de Tapajós e Carajás, eles demandariam R$ 995 milhões cada. “Certamente o plebiscito sobre a criação de Carajás e Tapajós terá o impacto de encorajar as propostas que já existem e outras. Essa é uma forma muito cara de fazer o dinheiro chegar à região”, diz Boueri. À Fórum, ele se diz contra os movimentos separatistas. “Boa parte desse dinheiro vai acabar nas mãos de políticos e assessores em cargos de confiança. Os maiores beneficiados seriam os políticos locais, já que o coeficiente eleitoral cairia muito. Seria mais fácil vencer uma eleição em Tapajós do que em Belém.” O Congresso Nacional também sentiria o impacto da mudança, já que a quantidade de deputados e senadores cresceria. Na hipótese de as 13 novas unidades territoriais serem aprovadas, a Câmara dos Deputados receberia nada menos que 104 novos parlamentares. Ou seja: aumento de 20%. O Senado também teria que se adaptar. Dos atuais 81 senadores, a casa saltaria para 120. A maioria dos novos estados ficam nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o que implicaria um desequilíbrio na correlação de forças regionais do Parlamento. Vale lembrar que cada

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Antigas demandas

Mato Grosso do Norte

Entre os projetos que tramitam no Congresso, o mais antigo e que conta com o lobby mais organizado é o que propõe a criação do estado do Mato Grosso do Norte. Seus defensores, em sua maioria representantes do agronegócio, afirmam que a região foi abandonada pelo governo do estado do Mato Grosso desde a criação do Mato Grosso do Sul, em 1977. Pelo projeto, o Mato Grosso do Norte ficaria com as cidades de Alta Floresta, Apiacás, Aripuanã, Boa Esperança do Norte e Brasnorte, entre outras. Já a região do Araguaia é muito mais influenciada pela capital de Goiás, Goiânia, do que por Cuiabá. A única proposta de separatismo na região Sudeste é a proposta de criação do Estado do Triângulo, na região do Triângulo Mineiro. Ele nasceria com 66 municípios, entre eles os dois maiores polos de criação de gado do Brasil; Uberaba e Uberlândia. Em seu território viveriam 2.176.060, cerca de 11% da população mineira, com 20% de seu PIB.

parlamentar tem uma extensa lista de benefícios: carros com motorista, apartamento funcional, gabinete em Brasília e escritório político na base, funcionários nos dois locais, cota de correio...”Haveria também mais um monte de deputados estaduais, com tudo que eles têm direito”, lembra Boueri. Segundo o estudo do Ipea, a extensão territorial de um estado tem relação direta com seu gasto público, uma vez que os estados maiores necessitam de mais infraestrutura. Quanto maior for o número de municípios,

Araguaia

Mato Grosso

Território Federal do Pantanal

Mato Grosso do Sul

maior tem que ser a máquina estadual. Ainda de acordo com o estudo, em alguns dos estados propostos, como Rio Negro e Solimões, o gasto estadual superaria o Produto Interno Bruto (PIB) da unidade federativa, atestando a completa inviabilidade das proposições. O instituto levou em consideração todos os projetos apresentados desde 1992. Além de um novo mapa, o país precisaria de um novo orçamento, um novo parlamento e, certamente, de muito jogo de cintura para enfrentar uma nova guerra fiscal. F

Tocantins virou oásis político A história da criação do estado do Tocantins é um bom exemplo de como políticos locais podem ganhar projeção nacional com o separatismo. Em 1987, o então inexpressivo deputado goiano Siqueira Campos, à época relator da Subcomissão dos Estados, redigiu e entregou ao comando da Câmara dos Deputados o texto propondo a criação de um novo estado no norte de Goiás. Em 15 de novembro do ano seguinte, acontecia a primeira eleição do novo estado. Em 1° de janeiro de 1989, o estado foi oficialmente instalado, já com toda sua estrutura montada. A cidade de Palmas, que foi inaugurada em 1990, foi construída especialmente para ser a nova capital e sede do governo. Desde sua criação, Siqueira Campos, o atual governador, é o maior cacique regional. Em 2009, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou, por unanimidade, o mandato do governador Marcelo Miranda (PMDB), e de seu vice, Paulo Sidnei Antunes (PPS). O TSE julgou um processo no qual os dois foram acusados de abuso de poder, compra de votos e uso indevido dos meios de comunicação social nas eleições de 2006. O estado atraiu diversos aventureiros da política, como o treinador Vanderlei Luxemburgo, que tentou ser candidato ao Senado pelo PT do estado, sem sucesso.


Quais seriam os novos estados e suas capitais Mato Grosso do Norte: Sinop Território Federal do Pantanal: Corumbá* Araguaia: Barra do Garças Estado do Triângulo: Uberlândia* Estado do Rio São Francisco: Barreiras Gurgueia: Alvorada do Gurgueia Maranhão do Sul: Imperatriz

Carajás: Marabá Tapajós: Santarém Território Federal do Oiapoque: Oiapoque Território Federal do Alto Rio Negro: São Gabriel da Cachoeira Território Federal do Solimões: Tabatinga Juruá: Eirunepé Fontes: IPEA e Câmara dos Deputados

*O PDC 570/08, de autoria do deputado Elismar Prado (PT-MG), que reivindica a realização de plebiscito para a criação do estado do Triângulo; e o PDC 1027/03, de autoria do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), que propõe a realização de plebiscito para criar o território federal do Pantanal, foram arquivados em 1º de fevereiro de 2008, mas podem ser desarquivados mediante requerimento dos autores, dentro dos primeiros 180 dias da primeira sessão legislativa ordinária da atual legislatura, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava.

Território Federal do Oiapoque Território Federal do Rio Negro

Tapajós Carajás

Maranhão do Sul

Território Federal dos Solimões

Gurgueia

Território Federal do Juruá

Araguaia Mato Grosso do Norte

Estado do Rio São Francisco

Entenda a diferença entre estados e territórios O economista Rogerio Boueri, do Ipea, explica que os territórios se diferem dos estados por terem certa autonomia política, mas serem em última instância administrados pelo governo federal. Atualmente, não existem mais territórios no Brasil; o último foi o território de Fernando de Noronha, que foi anexado a Pernambuco na Constituição de 1988. Acre, Amapá, Rondônia e Roraima foram criados como territórios e, depois, se transformaram em estados.

Território Federal do Pantanal

Estado do Triângulo

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Carajás S.A. Dario Zalis / Vale

por Pedro Venceslau

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O poder de autorizar o desmatamento ficaria concentrado nas mãos de uma rede burocrática composta pelas forças políticas locais

or um capricho do destino o debate sobre o novo Código Florestal Brasileiro coincidiu com o movimento de criação dos estados de Tapajós e Carajás. Se depender da bancada ruralista no Congresso Nacional, os governos estaduais e municipais terão mais poder na hora de aprovar licenciamentos que afetam o meio ambiente. Além do projeto que modifica o Código, tramita no Senado um outro, que tira do Ibama (ou seja, do governo federal) o poder de multar o desmatamento irregular. Os defensores dessa transição argumentam que o poder local pode cumprir com mais eficiência essa tarefa. Há controvérsias. No caso de Carajás, que já é uma das regiões mais devastadas do Brasil, o poder de autorizar o desmatamento ficaria concentrado nas mãos de uma rede burocrática que deve ser composta pelas forças políticas locais. Os novos deputados estaduais, por exemplo, certamente terão participação nesse processo. Mas, antes disso, é preciso vencer nas urnas; logo, eles terão que buscar financiamento para suas campanhas com a elite econômica local. Mesmo sem bola de cristal, é possível prever que o cenário é propício para que se crie um círculo vicioso. “A soma do novo Código Florestal com esse projeto de lei é um pacote potencialmente explosivo para a região de Carajás. O Ibama não poderia mais multar desmatamento e os estados é que definiriam as atividades que podem ser realizadas em Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Além disso, o novo Código pretende

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Se o plebiscito aprovar a criação do estado, a influência das siderúrgicas na rede política pode ampliar a devastação ambiental e trabalhista da região

anistiar quem já desmatou, o que seria um incentivo para as madeireiras”, explica o advogado ambientalista Raul do Vale, coordenador do programa de política e direito do Instituto Socioambiental (ISA). O pesquisador e jornalista Marques Cesara, do Instituto Observatório Social, ONG ligada à CUT que monitora a cadeia produtiva e o meio ambiente, faz uma avaliação similar. “Carajás seria um estado privado e sob controle da Vale S.A. e das siderúrgicas da região. O poder de influência do setor sobre a estrutura de governo seria enorme. Não há como o bioma de lá ser preservado se eles formam a principal força econômica”, argumenta Cesara. Um estudo da ONG, coordenado por ele e divulgado no fim de junho, traça um panorama estarrecedor do cenário no polo de Carajás. A pesquisa, que começou em Nova Ipixuna (PA), onde foram assassinados José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo – ambientalistas que denunciavam a devastação da floresta para produzir carvão e madeira –, prova que grandes exportadoras de ferro gusa usam carvão do desmatamento e do trabalho escravo nos processos produtivos. Essa prática contamina toda a cadeia produtiva do aço e chega a montadoras de veículos, fabricantes de eletrodomésticos, de aviões e de computadores. “O carvão ilegal é fundamental na composição do preço do aço. Como o novo código transfere a fiscalização para os estados, aquela região da Amazônia se tornaria refém do setor siderúrgico”, diz o pesquisador. Em seu trabalho, Casara mostra que, em

algumas siderúrgicas, o uso do carvão ilegal sustenta mais da metade de toda a produção. Essa conclusão foi possível após a obtenção de dados referentes à produção anual de cada siderúrgica em 2010. As informações eram mantidas sob sigilo, para evitar o cruzamento de dados e a obtenção do índice de ilegalidade. A fraude se dá por meio da compra de carvão esquentado por mecanismos diretamente ligados à corrupção nos órgãos de fiscalização. A pesquisa revela, ainda, diversos casos nos quais o carvão é entregue sem documentação ou com o uso de documentos forjados, e os governos municipais e mesmo o governo estadual são coniventes com crimes ambientais e trabalhistas, muitas vezes usando aparatos de Estado para acobertar ações criminosas, que têm o objetivo de devastar áreas de preservação ambiental e terras indígenas. Nem as tradicionais quebradeiras de coco de babaçu estão livres de serem usadas pelo esquema. Como a casca do coco de babaçu não precisa de guia florestal para ser transportada até as carvoarias, as siderúrgicas supervalorizam a quantidade de carvão produzida com essa matéria-prima. Os pesquisadores estiveram nos locais onde as quebradeiras de coco trabalham, e elas confirmam o problema, que também está sendo investigado pelo Ibama no Maranhão e no Pará. O mesmo subterfúgio é usado com o eucalipto. Como ele também não precisa de guia florestal, as siderúrgicas maquiam boa parte da ilegalidade usando como fachada a sua produção. F


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Obama x republicanos: Faz diferença? Enquanto o Partido Republicano não define o adversário do atual presidente nas eleições de 2012, o cenário político ainda permanece levemente favorável aos democratas. Mas, mesmo que a reeleição aconteça, será uma vitória saudada dentro e fora dos EUA com muito menos entusiasmo e esperança do que em 2008 por idelber aVelar

A

s eleições presidenciais de 2012 nos EUA podem ser vistas no contexto mais amplo da Primavera Árabe, do Movimento M-15 na Espanha, da mobilização grega e mesmo do ressurgimento do movimento popular no Brasil, de Jirau às Marchas da Liberdade. Apesar de bem diferentes, todos esses acontecimentos dão testemunho de uma profunda crise de representatividade do sistema político tradicional e da emergência de uma multidão que não se vê contemplada nos partidos. A mobilização nos Estados Unidos não é comparável, claro, com o que se tem visto em outras partes do mundo. A última greve estadunidense de impacto nacional foi a dos controladores de voo, em 1981. Ela foi brutalmente decepada por Ronald Reagan com demissões sumárias, em massa. As manifestações contra a guerra do Iraque, em 2003, foram tímidas em comparação com a avalanche popular que tomou as ruas da Europa. O fortalecimento do chauvinismo antiárabe a partir do 11 de setembro de 2001 colocou a esquerda dos EUA na defensiva e tornou impensável um movimento antiguerra como o que ocupou as ruas e os campi universitários na época da invasão ao Vietnã, nos anos 1960. Mas há sinais de que os Estados Unidos não estão alheios ao ressurgimento das mobilizações populares. Os recentes protestos massivos em Wisconsin contra os cortes de pensão e o arrocho salarial aos funcionários públicos tiveram uma dimensão que não se via há tempos. O movimento passou por cima dos dois grandes partidos e mesmo do

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sindicato local, desmentindo aqueles que acreditavam que já não veríamos mobilizações da classe trabalhadora no país. A mesma crise de representação política que lança multidões às ruas na Europa causa um esvaziamento inédito em suas eleições parlamentares e presidenciais. As absten-

ções e os votos brancos e nulos atingiram percentuais recorde na recente eleição espanhola, por exemplo. Nos EUA, o quadro parece também evoluir neste sentido. Com certeza, não se verá uma repetição da enorme mobilização da juventude que precedeu a eleição de Barack Obama em 2008. O com-


parecimento às urnas deve ser menor, especialmente na base do Partido Democrata, desiludida com um governo que, em muitos sentidos, não se diferenciou significativamente do de George Bush. Apesar de tudo isso, Obama ainda é o franco favorito. O sistema eleitoral estadunidense favorece a situação e o campo de précandidatos republicanos não é exatamente forte. Sua popularidade, depois do momentâneo aumento advindo do assassinato de Bin Laden, retornou aos níveis de 46-48%, o que é zona de perigo para um presidente que tenta a reeleição. A boa notícia para Obama é que a popularidade da Câmara de Deputados republicana é ainda menor. O contexto econômico em que acontecem as eleições se configura desfavorável para o presidente. Embora a catástrofe tenha sido uma herança da desregulamentação desenfreada da era Bush, tempo suficiente já se passou para que a crise seja percebida como responsabilidade de Obama. A recuperação que se anunciava na virada do ano não se confirmou. A taxa de crescimento da economia não ultrapassa 1,8% no momento. Em maio, houve apenas 54 mil contratações no país todo, o menor número dos últimos oito meses. O desemprego oficial subiu para 9,1%, o que dá uma taxa real de, pelo menos, 16%, se contamos os trabalhadores que já desistiram de procurar e aqueles que trabalham menos horas do que gostariam. Desse universo, quase a metade está desempregada há mais de seis meses. 44 milhões de estadunidenses (um em cada sete) dependem dos humilhantes food stamps, um vale-comida oferecido pelo governo. Nada indica que esta situação se alterará significativamente até as eleições de novembro de 2012. Obama não deve ter opositores na primária democrata e será o candidato do seu partido. O campo de pré-candidatos republicanos ainda está confuso e, para entendê-lo melhor, cabe uma explicação sobre a dinâmica das primárias eleitorais estadunidenses. É comum que, durante as primárias, os pré-

candidatos enfatizem mais as posições liberais, no caso democrata, e conservadoras, no caso republicano, para conquistar os votos da base mais radicalizada de seus respectivos partidos. Depois, caminham na direção do centro durante a eleição geral. É a lógica do bipartidarismo. A esquerda sabe que, por mais centrista (ou mesmo direitista) que seja o candidato democrata, o republicano será pior. A direita mais extremista sabe que, por mais moderado que seja o candidato republicano — como McCain, por exemplo, o era para muitos —, o democrata será ainda mais inaceitável. Isso instala uma dinâmica em que, basicamente, a luta na eleição geral é pelo eleitor centrista e independente. A única chance de se romper com essa lógica é mobilizar a própria base para um comparecimento recorde às urnas, já que o voto é facultativo. Essa foi, até certo ponto, a chave para a eleição de Obama em 2008. Negros, jovens e trabalhadores urbanos votaram em números inauditos. Essa pode ser também a chave em 2012, com sinal invertido. Obama é favorito, mas caso se acentue a apatia na base democrata e a direita mais extremista consiga mobilizar o voto religioso como fez em 2004, o atual presidente corre perigo.

A escolha republicana

Até agora, o líder das intenções de voto no campo republicano é o ex-governador de Massachusetts, Mitt Romney, que já foi précandidato a presidente em 2008. No Brasil, ele seria um político do DEM. Nos EUA, é um republicano moderado. Tem em comum, com todos os seus pares republicanos, o fato de que seu único plano econômico é a repetição da receita neoconservadora: cortar impostos, cortar impostos, cortar impostos. No estágio atual de descapitalização do Estado, seria suicídio a longo prazo. Mas a mensagem ecoa na classe média estadunidense, que traz um sentimento antigoverno bastante arraigado. Romney talvez seja o candidato republicano mais elegível, mas ele enfrentará pelo menos dois grandes obstáculos em primárias republicanas, nas quais a ultra-direita

Até agora, o líder das intenções de voto no campo republicano é o exgovernador de Massachusetts, Mitt Romney, que já foi pré-candidato a presidente em 2008. No Brasil, ele seria um político do DEM. Nos EUA, é um republicano moderado

do Tea Party com certeza demonstrará força. Romney sancionou, quando era governador de Massachusetts, um plano estadual de saúde não muito diferente do aprovado por Obama e agora contestado pelos republicanos na Suprema Corte. Será atacado de forma violenta por isso durante as primárias, não há dúvidas. Caso ele conquiste a indicação, estará em condições muito precárias para criticar Obama na questão da saúde, que é um dos grandes pontos polarizadores entre republicanos e democratas no momento. Em segundo lugar, Romney é mórmon e dificilmente mobilizará a base republicana como um cristão evangélico seria capaz de fazer. São os seus dois grandes passivos na tentativa de manter a liderança nas primárias. No extremo oposto do campo político republicano, está a ultradireitista Michele Bachmann, a grande sensação da peleja até agora. Trata-se de uma deputada de Minnesota que iniciou a carreira política pregando contra a “doutrinação liberal” nos livros didáticos. É a favorita da base do Tea Party. Sua coleção de declarações a colocariam, se estivesse no Brasil, à direita de Bolsonaro. Já afirmou que gays são “coisa de Satã” e suas referências à homossexualidade como “distúrbio” ou “disfunção sexual” são constantes. Para Bachmann, Obama, que tem como assessores econômicos os neoconservadores Timothy Geithner e Lawrence Summers, representa o “último salto antes do socialismo” nos Estados Unidos. Ela propôs que deputados e senadores tenham suas vidas investigadas para detectar qualquer “atividade antiamericana” e disse ter encontrado indícios de um plano para ceder metade do Iraque ao Irã. Não acredita em aquecimento global e já afirmou que o dióxido de carbono é “algo que está acontecendo naturalmente na Terra” e que “não provoca danos”. Também disse que seria possível eliminar o desemprego abolindo o salário mínimo. Levantou recursos para a organização extremista “You can run but you cannot hide” (“Você pode correr, mas não pode se esconder”) que, entre outras coisas, já propôs o fuzilamento de gays. Evidentemente, Bachmann é anti-aborto e propõe a recusa completa do plano de saúde de Obama. Os outros candidatos incluem Tim Pawlenty, que exerceu dois mandatos como governador de Minnesota, Newt Gingrich, que foi presidente da Câmara dos Deputados durante o governo de Bill Clinton, em meados dos anos 1990, Rick Perry, governador do Texas que já chegou a propor a secessão do estado, o libertário e isolacionista radical Ron Paul, contrário a qualquer forma de presença julho de 2011

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geu com facilidade em 1996. Recentemente, Gingrich foi massacrado pela extrema-direita, quando declarou que o plano republicano para a Seguridade Social, que prevê uma virtual abolição do serviço, era extremista em excesso. A pancadaria foi de tal ordem que ele se retratou poucos dias depois. Sem dúvida, a figura mais singular é Ron Paul, isolacionista e ultralibertário — no sentido estadunidense da palavra, que designa aqueles que se opõem a qualquer presença do Estado na vida dos cidadãos, e que, portanto, defendem a legalização das drogas, o fim de qualquer ajuda estatal aos mais pobres e até mesmo a revogação de leis como a obrigatoriedade do cinto de segurança. Paul arrebatou um séquito leal e dedicado nas últimas eleições e tem a originalidade de defender posições que estão à esquerda do Partido Democrata em política internacional. Ele propõe, por exemplo, a retirada imediata e total das tropas dos EUA do Iraque e do Afeganistão. Também defende que os EUA se retirem da Organização Mundial do Comércio, da ONU e do FMI, além de propor um desmantelamento completo dos serviços estatais de assistência social. Corre por fora no Partido Republicano, sem dúvida, e não conta com uma campanha muito rica. Mas, no contexto atual, não dá para descartá-lo de antemão. A campanha democrata já sabe que alguns dos estados conquistados em 2008 serão perdidos. Parece difícil, por exemplo, que Obama repita sua vitória em Indiana, tradicional bastião republicano conquistado nas presidenciais de 2008, mas recuperado com folga pela direita nas legislativas de 2010. O desemprego em Indiana, como em quase todo o meio oeste, atinge níveis assustadores, bem acima dos números nacionais. Mesmo na Carolina do Norte, estado sulista e conservador que passou por grandes transformações de-

mográficas nos últimos anos, com população mais jovem, urbana e ligada às novas tecnologias (base da vitória de Obama em 2008), o candidato republicano, seja ele quem for, será o favorito. Mas a direita depende da conquista de estados maiores, como Ohio ou Flórida, onde a disputa será bem mais dura. As perspectivas para Obama ainda são boas, em parte porque o campo republicano é fraco, e em parte porque a direita hoje tem dificuldades para unificar o conservadorismo fiscal (a defesa do Estado mínimo) e o conservadorismo social (o ataque ao aborto, ao casamento gay etc.). A terceira perna do projeto de direita que se impôs com sucesso na década passada, o conservadorismo “falcão” e intervencionista em política externa, deve cumprir um papel menos central nesta eleição, que ocorre numa época em que as guerras já são cada vez menos populares. Uma melhora, ainda que mínima, na economia pode decidir a parada para Obama. O que é certo é que, mesmo que essa vitória aconteça, ela será saudada dentro e fora dos EUA com muito menos entusiasmo e esperança do que foi o caso em 2008. O atual presidente deportou mais imigrantes que Bush, manteve as escutas ilegais sobre cidadãos estadunidenses suspeitos de “colaboração com o terrorismo”, foi tão violento contra o Wikileaks como teria sido qualquer republicano, não cumpriu a promessa de fechar Guantánamo, defendeu e aprovou um plano de saúde que sequer oferece uma alternativa pública às companhias de seguro, bombardeou o Paquistão mais vezes que Bush, aumentou o número de tropas no Afeganistão e estendeu os cortes de impostos para os ricos, inicialmente aprovados pelo seu antecessor como medida temporária. Só mesmo o delirante extremismo de alguns candidatos republicanos nos lembra que, talvez, a eleição faça alguma diferença. F

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do governo na vida dos cidadãos, Jon Huntsman, Jr., bilionário mórmon e ex-governador de Utah, e a indefectível Sarah Palin, candidata a vice-presidente na chapa de John McCain em 2008. O mais provável é que um desses oito pré-candidatos enfrentará Obama nas eleições do ano que vem. Pawlenty teve, no seu primeiro mandato em Minnesota, um perfil de republicano moderado mais próximo a Romney. No segundo mandato, ocorreu uma radical guinada à direita, marcada por uma violenta política de repressão ao crime e descapitalização dos serviços públicos. Na opinião da maioria dos analistas, a adoção de posições cada vez mais conservadoras já era indicativa de suas ambições presidenciais, posto que é difícil que alguém vença as primárias republicanas este ano sem fazer concessões significativas ao Tea Party. Ao contrário de Romney, Pawlenty jamais apoiou qualquer plano de saúde que tivesse semelhanças com o de Obama. Na eleição geral, ele não poderia ser atacado por esse flanco. Estaria livre para fazer o discurso de que o moderadíssimo plano de saúde de Obama é um “passo ao socialismo”. Sarah Palin tem a vantagem de trazer o reconhecimento de nome advindo da campanha eleitoral de 2008, mas possui taxa de rejeição altíssima e já se converteu numa figura quase folclórica. Sua base habitual, a ultradireita do Partido Republicano, parece mais entusiasmada com Michele Bachmann. De longe, Newt Gingrich é o mais preparado. Na grande vitória dos republicanos sobre Bill Clinton nas legislativas de 1994, ele surgiu como a grande estrela do que se propagandeou como “o novo século para a América”. Mas as táticas extremistas, como a de recusar um acordo orçamentário e forçar o governo a fechar as portas, acabaram destruindo o prestígio de Gingrich, e Bill Clinton se reele-


thiAg

o BAl Bi

Cacofonia nas Redes

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uando comecei a escrever em revistas e jornais sobre homossexualidade, em 1997, sabia que encontraria resistência de leitores conservadores. Afinal, naquela época o assunto conseguia ser mais tabu ainda do que é hoje: as Paradas LGBT ainda não haviam tomado as ruas, um jornal paulista proibia que seus repórteres grafassem a palavra “lésbica” e poucos sabiam o que significava homofobia. Hoje, continuo a incomodar os mais tradicionalistas quando discorro, por exemplo, sobre mulheres que resolvem mudar de sexo. Entretanto, fico contente quando percebo que dezenas de articulistas e jornalistas abordam a homossexualidade não como um tema sensacionalista, mas como foco de uma batalha por direitos iguais. Ciente do quanto minhas palavras poderiam ser mal interpretadas por leitores à esquerda e à direita, sempre me esforcei para escrever textos de maneira direta, com o mínimo de ironia possível. Infelizmente, não é sempre que consigo o intuito. Aliás, ao longo desta década e meia como colunista, tive meu espaço paulatinamente diminuído, como se os leitores não suportassem mais textos tão longos. Há exceções,

como esta Fórum, uma das poucas revistas nacionais com matérias longas que permitem um aprofundamento do tema tratado. O fato é que há uma geração inteira de pessoas acostumadas a textos e períodos curtos. Frases com uma vírgula no meio já se tornam cansativas. Jovens preferem enviar SMS por celular a falar ao vivo com seus amigos. Sem vírgulas. E com abreviações para tudo. Falam apenas o essencial. E o essencial não cabe numa frase com vírgulas. Escrevem no máximo três parágrafos em seus blogues. Ou desistem de vez de escrever em blogues e ficam apenas no Twitter, tecendo teses e críticas em cento e quarenta caracteres. Até o momento em que mesmo as palavras se tornam enfadonhas. Então, eles migram para o Tumblr, postando apenas imagens, cada uma valendo por mil palavras que nunca foram ditas e nem precisarão ser lidas. Assim, notei uma mudança curiosa nestes últimos 15 anos. Ao mesmo tempo em que a homossexualidade tornou-se um assunto mais ventilado e abordado na mídia, o espaço existente nas publicações para aprofundar este ou qualquer outro tema vem diminuindo dia após dia. Parece que

vivemos numa era de muita informação e pouco entendimento. O resultado é uma cacofonia fragmentada de opiniões apressadas que são expressas nas redes sociais com brevidade e contundência quase leviana. Emitem-se opiniões sobre tudo e todos. O sujeito lê a manchete num portal (quem sabe, o lide, nem sempre honesto) e já tem uma opinião categórica e simplista que cabe providencialmente num tuíte de cento e quarenta caracteres. Kit anti-homofobia? Temos opinião. Abertura dos documentos secretos da República? Temos opinião. Código Florestal? Temos opinião. Belo Monte? Temos opinião. Temos opiniões sobre tudo. É claro que prefiro esta explosão de meios entendimentos e opiniões apressadas ao silêncio que nos foi imposto durante a ditadura. Aos poucos, estamos aprendendo a debater, escrever, ler e conversar na web. Tomara que tenhamos sucesso nesta tarefa de abordar a enorme complexidade do mundo através de textos curtos e fragmentos que se desmancham no ar. F Twitter: @vleonel E-mail: vangeleonel@uol.com.br

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A blogosfera se consolida O 2º Encontro Nacional dos Blogueiros Progressistas mostra a força do movimento que nasceu há cerca de um ano e reafirma a defesa pela democratização da comunicação por Adriana Delorenzo

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final da Copa Libertadores da América reuniu 37 mil pagantes no estádio do Pacaembu, em São Paulo (SP). No final de semana anterior à decisão entre Santos e Peñarol, um número semelhante esteve em algum momento plugado na transmissão do 2º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas. Nos três dias de evento, de 17 a 19 de junho, em Brasília, além das pessoas que assistiram ao #2BlogProg pela internet e cerca de 500 pessoas participaram presencialmente na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio, sendo que 369 foram inscritos e pagantes, representando 21 estados brasileiros. Se os números, que não são pequenos, já mostram a força do movimento que nasceu há menos de um ano, os convidados corroboram sua importância. Na abertura, estiveram presentes o ex-presidente Lula, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz. No dia seguinte, uma mesa de peso com o jurista Fábio Konder Comparato, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) e o professor Venício Lima discutiu a necessidade de um marco regulatório para o setor e a democratização das comunicações no País. Esse é o mote que une a blogosfera progressista, cuja atuação e trabalho vêm garantindo a pluralidade informativa. Trata-se de um movimento formado por blogueiros, “tuiteiros”, “facebookeiros”, comentaristas de blogues, enfim, ativistas digitais das mais variadas formas possíveis, ou

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simplesmente simpatizantes. Tudo começou em agosto do ano passado, quando ocorreu o 1º Encontro em São Paulo (SP). Aquele foi o primeiro contato físico de quem já se conhecia virtualmente. O movimento cresceu e, nas eleições de outubro, teve um papel importantíssimo. A tentativa de criar factoides, comum na mídia tradicional, como o episódio da bolinha de papel que acertou o então candidato José Serra, foi logo desmascarada pela blogosfera. Foi o ex-candidato que lançou a alcunha de “sujos” aos blogueiros. “Não vou esquecer nunca o papel que vocês tiveram na defesa da liberdade de expressão”, disse Lula. “Eu sei o bem que vocês fizeram à democracia do País. Não poderia deixar de vir aqui.” Para ele, há uma revolução extraordinária em curso, já que agora a sociedade participa das informações. A internet permitiu que não mais uma única mídia, uma só voz, falasse para muitos. Agora, muitos falam para muitos, sem mediação. “Vocês evitaram que a sociedade brasileira fosse manipulada, como durante muito tempo foi”, disse. Mas essa multiplicação de vozes não agrada a todos. As tentativas de censura não tardaram a surgir. Blogues retirados do ar, blogueiros ameaçados e processados, e até a suspeita de que um assassinato tenha ocor-

rido em decorrência do trabalho virtual. Na semana do 2º Encontro, Edinaldo Filgueira, que mantinha uma página na internet chamada Jornal O Serrano, foi morto com seis tiros em Serra do Mel (RN). Ele era militante do PT local e há suspeita de que o crime tenha motivação política. O Blog do Esmael, do blogueiro Esmael Moraes, ficou 75 dias fora do ar, por conta de ações contra ele impetradas por Beto Richa, do PSDB. O político disputava o governo do estado do Paraná em 2010, e sua defesa alegou que ele, a esposa e o filho estariam sofrendo abalos emocionais. Segundo Esmael, foram retiradas mais de 500 postagens que, segundo o então candidato, o abalavam, entre elas, as que falavam de nepotismo e suspeitas de caixa 2. Vale lembrar que o então candidato impediu que todas as pesquisas de opinião realizadas por


Cintia Barenho

Enquanto Lula fala aos “brogueir@s”, jornalistas da mídia cooporativa se “amassam” buscando entrevistá-lo

to (veja quadro) foi a criação de um Fundo de Apoio Jurídico e Político para auxiliar os blogueiros perseguidos ou atacados. “Nossos adversários tentam criar uma jurisprudência para nos punir e nos calar”, definiu Paulo Henrique Amorim, do Conversa Afiada, que classifica a situação como a “judicialização da censura”. Ele responde a 28 ações judiciais, 12 das quais foram propostas por Daniel Dantas. Mas, questiona: “Quantos blogueiros podem pagar advogados?”. Poucos.

institutos como Ibope, Vox Populi e Datafolha fossem divulgadas durante as eleições. O Blog do Esmael foi retirado do ar em outubro do ano passado, antes do primeiro turno das eleições. Ele buscou um servidor dos EUA para hospedar o blogue, mas mesmo assim os advogados do candidato tucano conseguiram removê-lo da rede. Há muitos outros casos, como o site de paródia Falha de S. Paulo, processado pelo jornal que inspirou os blogueiros, e o de Lúcio Flávio Pinto, do Jornal Pessoal, de Belém (PA), que sofreu ameaça de morte e acumula 19 processos por parte da família Maiorana, proprietária do grupo do jornal O Liberal. No 2º Encontro, a mesa que debateu a censura aos blogueiros teve grande participação. Por isso, um dos itens que consta na carta dos blogueiros aprovada no último dia do even-

O 2º Encontro foi superavitário, porque além do autofinanciamento (os blogueiros pagaram inscrição), teve o apoio de muitas entidades sindicais e veículos independentes, e o patrocínio da Fundação Banco do Brasil, Petrobras, Itaipu Binacional e governo de Brasília. O saldo positivo, de aproximadamente R$ 180 mil, pode garantir a abertura do fundo. Mas essa não foi a única vitória organizativa do processo. Somente neste ano foram realizados 14 encontros estaduais e dois regionais, que contaram com a participação de 2.110 pessoas, que discutiram o papel da blogosfera e formas de fortalecê-la. “A organização foi totalmente horizontal, construída em rede e respeitando a diversidade”, afirmou Altamiro Borges, presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé e da comissão organizadora do Encontro Nacional. “Não tem um dono, não tem hierarquia.” Na avaliação de Altamiro, um dos pontos de sucesso do 2º Encontro foi o “total respeito à pluralidade de opiniões existentes na rede”. “As polêmicas foram quentes – principalmente sobre a relação da blogosfera com o governo e sobre a continuidade do movimento. Mas a palavra foi garantida a todos e as inúmeras votações definiram os próximos passos. No final, predominou o esforço da construção da unidade na diversidade – sem sectarismo ou visões aparelhistas”, escreveu o blogueiro. Uma das críticas ao movimento, inclusive oriundas da própria blogosfera, é a de que “os progressistas”, na verdade, seriam “chapa-branca”. Mas na prática isso não se confirmou. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, respondeu a vários questionamentos, tanto sobre o marco regulatório do setor como sobre a implantação do Plano Nacional de Banda Larga. Questionamentos que não costuma receber quando se relaciona com a “simpática” mídia comercial. No debate, o ministro alegou dificuldades para a banda larga em regime público e defendeu a massificação do acesso, com uma velocidade de 1Mbps a R$ 35. Ou seja,

fotos: arquivo maria frô

Autogestionário e descentralizado

Acima, os blogueiros Altamiro Borges, Maria Frô, Enio, o homenageado do ano, e Renato Rovai; no centro, mesa sobre a neutralidade na rede, com Sérgio Amadeu, Tatiane Pires e Marcelo Branco; e, abaixo, Eduardo Guimarães, Luiz Carlos Azenha e Paulo Henrique Amorim na reunião da coordenação

as teles expandiriam a rede. Em resposta, organizou-se na semana seguinte um “tuitaço”, no qual os ativistas digitais cobraram que o serviço seja prestado no regime público, com o objetivo de universalizar o acesso, e que o ministério amplie o debate. A hashtag #minhainternetcaiu (na mão das teles) ficou em primeiro lugar entre os assuntos mais comentados no Twitter durante o dia 21. julho de 2011

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Arquivo maria frô Arquivo maria frô

Um dos trechos da fala de Bernardo que não agradou aos blogueiros foi quando o ministro disse que o governo teria que dar prioridade a questões como habitação e saneamento, em detrimento da banda larga pública. A blogueira Maria Frô considera que não há como hierarquizar direitos humanos. “O acesso à rede de qualidade empodera as pessoas no seu direito de se comunicar, de explicitar sua voz e, assim, lutar por mais direitos.” Ao mesmo tempo, ela considera que o ministro “foi bastante corajoso em ir ao 2º BlogProg”. Até porque, segundo ela, blogueiros, “tuiteiros” e ativistas digitais são irredutíveis na defesa de suas bandeiras de luta: a universalização da banda larga sob controle público, assim como a aprovação de um Marco Regulatório das Comunicações no Brasil e a aprovação de um Marco Civil que garanta a liberdade na rede.

“O desânimo é reacionário”

Cristina rodrigues Arquivo Azenha

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A deputada Luiza Erundina (PSB-SP), uma das parlamentares que mais têm atuado na defesa pela democratização das comunicações no Brasil, e que preside a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação com Participação Popular na Câmara, fez um discurso otimista e foi aplaudida de pé. Ela afirmou que o Congresso só responde quando sofre pressões externas e, questionada sobre os conselhos de comunicação, que alguns estados – como a Bahia – têm tentado criar, disse: “Por que vocês mesmos não criam conselhos estaduais e regionais de comunicação, sem esperar o aval de governador e de Acima, mesa com Luiza Erundina, Fábio Konder Comparato e Venício Lima, grandes nomes da luta pela democratização da comunicação; no centro, blogueiros confraternizam-se; abaixo, Maria Frô com o ministro Paulo Bernardo; e Rodrigo Vianna de olho na “sala do PIG”. Ao lado, a mesa da plenária final

prefeito? Isso é luta.” E, por fim, afirmou que mede o tempo por uma perspectiva histórica e que sonhos e utopias não devem ser contatos considerando nosso tempo de vida. Eles são bem maiores. O recado aos blogueiros foi: “Vocês não têm o direito de desanimar.” Pelo andar da carruagem, o 2º BlogProg mostrou que os blogueiros não vão desanimar. A plenária final aprovou que o 3º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas será em maio de 2012, em Salvador (BA). Antes disso, em setembro deste ano, será realizado um encontro internacional em Foz de Iguaçu (PR). Nesse evento, a ideia é contar com a participação de militantes da América Latina. No 2º Encontro, estiveram presentes os responsáveis pelas redes sociais na campanha de Ollanta Humala, no Peru (ver matéria na pág. 38). Houve ainda muitas outras discussões como a luta das mulheres na blogosfera, o sindicalismo na rede, a reforma agrária e as perspectivas na comunicação e arte e humor na internet. Segundo Karla Avanço, do Blogueiras Feministas, era visível no auditório do 2º BlogProg o equilíbrio entre a quantidade de mulheres e homens, e em todas as mesas principais havia a presença de mulheres. “A grande participação de mulheres no encontro representa um fato realmente positivo. O próximo encontro de blogueiros será o Encontro Nacional de Blogueir@s Progressistas, sem falsas neutralidades, mostrando que as mulheres também estão presentes”, destacou. Foi aprovada ainda uma vaga de gênero na comissão organizadora nacional. F


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Carta do 2 Encontro Nacional dos Blogueiros Progressistas Desde o 1o Encontro Nacional dos Blogueir@s Progressistas, em agosto de 2010, em São Paulo, nosso movimento aumentou a sua capacidade de interferência na luta pela democratização da comunicação, e se tornou protagonista da disseminação de informação crítica ao oligopólio midiático Ao mesmo tempo, a blogosfera consolidou-se como um espaço fundamental no cenário político brasileiro. É a blogosfera que tem garantido de fato maior pluralidade e diversidade informativas. Tem sido o contraponto às manipulações dos grupos tradicionais de comunicação, cujos interesses são contrários a liberdade de expressão no país. Este movimento inovador reúne ativistas digitais e atua em rede, de forma horizontal e democrática, num esforço permanente de construir a unidade na diversidade, sem hierarquias ou centralismo. Na preparação do II Encontro Nacional, isso ficou evidenciado com a realização de 14 encontros estaduais, que mobilizaram aproximadamente 1.800 ativistas digitais, e serviram para identificar os nossos pontos de unidade e para apontar as nossas próximas batalhas. O que nos une é a democratização da comunicação no país. Isso somente acontecerá a partir de intensa e eficaz mobilização da sociedade brasileira, que não ocorrerá exclusivamente por conta dos governos ou do Congresso Nacional. Para o nosso movimento, democratizar a comunicação no Brasil significa, entre outras coisas: a) Aprovar um novo Marco Regulatório dos meios de comunicação. No governo Lula, o então ministro Franklin Martins preparou um projeto que até o momento não foi tornado público. Nosso movimento exige a divulgação imediata desse documento, para que ele possa ser apreciado e debatido pela sociedade. Defendemos,entre outros pontos, que esse marco regulatório contemple o fim da propriedade cruzada dos meios de comunicação privados no Brasil. b) Aprovar um Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) que atenda ao interesse público, com internet de alta velocidade para todos os brasileiros. Nos últimos tempos, o governo tem-se mostrado hesitante e tem dado sinais de que pode ceder às pressões dos grandes grupos empresariais de telecomunicações, fragilizando o papel que a Telebrás deveria ter no processo. Manifestamos, ainda, nosso apoio à PEC da Banda Larga que tramita no Congresso Nacional (propõe que se inclua, na Constituição, o acesso à internet de alta velocidade entre os direitos fundamentais do cidadão). c) Ser contra qualquer tipo de censura ou restrição à internet. No Legislativo, continua em tramitação o projeto do senador tucano Eduardo Azeredo de controle e vigilância sobre a internet – batizado de AI-5 Digital. Ao mesmo tempo, governantes e monopólios de comunicação intensificam a perseguição aos blogueiros em várias partes do país, num processo crescente de censura pela via judicial. A blogosfera progressista repudia essas ações autoritárias. Exige a total neutralidade da rede e lança uma campanha nacional de solidariedade aos blogueiros perse-

guidos e censurados, estabelecendo como meta a criação de um “Fundo de Apoio Jurídico e Político” aos que forem atacados. d) Lutar pelo encaminhamento imediato do Marco Civil da Internet, pelo poder executivo, ao Congresso Nacional. e) Defender o Movimento Nacional de Democratização da Comunicação, no qual nos incluímos, dando total apoio à luta pela legalização das rádios e TVs comunitárias, e exigindo a distribuição democrática e transparente das concessões dos canais de rádio e TV digital. f) Democratizar a distribuição de verbas públicas de publicidade, que deve ser baseada não apenas em critérios mercadológicos, mas também em mecanismos que garantam a pluralidade e a diversidade. Estabelecer uma política pública de verbas para blogs. g) Declarar nosso repúdio às emendas aprovadas na Câmara dos Deputados ao projeto de Lei 4.361/04 (Regulamentação das Lan Houses), principais responsáveis pelos acessos à internet no Brasil, garantindo o acesso à rede de 45 milhões de usuários, segundo a ABCID (Associação Brasileira de Centros de Inclusão Digital). h) Fortalecer o movimento da blogosfera progressista, garantindo o seu caráter plural e democrático. Com o objetivo de descentralizar e enraizar ainda mais o movimento, aprovamos: – III Encontro Nacional na Bahia, em maio de 2012. – Que a Comissão Organizadora Nacional passará a contar com 15 integrantes: – Altamiro Borges, Conceição Lemes, Conceição Oliveira, Eduardo Guimarães, Paulo Henrique Amorim, Renato Rovai e Rodrigo Vianna (que já compunham a comissão anterior); – Leandro Fortes (representante do grupo que organizou o II Encontro em Brasília); – um representante da Bahia (a definir), indicado pela comissão organizadora local do III Encontro; – Tica Moreno (suplente – Julieta Palmeira), representante de gênero; – e mais um representante de cada região do país, indicados a partir das comissões regionais (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte). As comissões regionais serão formadas por até dois membros de cada estado, e ficarão responsáveis também por organizar os encontros estaduais e estimular a formação de comissões estaduais e locais. Os blogueir@s reunidos em Brasília ainda sugerem que, no próximo encontro na Bahia, a Comissão Organizadora Nacional passe por uma ampla renovação. Brasília, 19 de junho de 2011.

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Criminalizar a homofobia No Brasil, desde 1989, é crime discriminar alguém por sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, mas as discriminações por motivo de orientação sexual ainda não são passíveis de punição. Para sanar essa lacuna, tramita na Câmara o Projeto de Lei 122/2006, que tem encontrado forte resistência de quem defende um direito de discriminar em nome de Deus

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imprensAlAuro / Decom

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Congresso Nacional brasileiro não costuma convidar traficantes de drogas para audiências públicas destinadas a debater se o tráfico de drogas deve ou não ser crime. Também não convida homicidas, ladrões ou estupradores para dialogarem sobre a necessidade da existência de leis que punam seus crimes. Já os homofóbicos têm cadeiras cativas em todo e qualquer debate no Congresso que vise a criar uma lei para punir suas discriminações. Estão sempre lá, por toda parte; e é justamente por isso que a lei ainda não foi aprovada. A proposta da nova lei é demasiadamente simples: acrescentar a discriminação aos homossexuais no rol das que já são punidas pela lei penal brasileira. Nossa atual Lei 7.716/89 já pune as discriminações por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional e passaria a punir também as discriminações por orientação sexual. Hoje é crime impedir um negro de frequentar uma loja, restaurante ou hotel, mas não há penas previstas para o caso de a vítima da discriminação ser homossexual. Pelo projeto, a mesma proteção contra a discriminação que se dá hoje ao negro seria estendida aos homossexuais. Nada muito revolucionário; uma mudança mínima na lei, mas muito relevante para quem é homossexual e sofre o preconceito na pele diariamente. O artigo 20 da lei atual prevê ainda punição para quem “pratica, induz ou incita a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” e, pelo projeto, as mesmas penas seriam aplicadas a quem praticasse o crime contra os homossexuais. Os fundamentalistas religiosos, porém, não gostaram nada da ideia e defendem, com unhas e dentes, seu suposto direito de discriminar homossexuais. Dificilmente um congressista subiria em uma tribuna para defender que um pastor ou um padre tem direito de discriminar um negro, porque este seria um pecador. O racismo brasileiro é tímido demais para tolerar uma excrescência dessas. Já a homofobia é

O debate sobre a discriminação também é sobre o direito à liberdade dos homossexuais de expressarem seu afeto em locais públicos sem serem importunados, ameaçados, agredidos ou mesmo mortos

escancarada e o que se vê todos os dias são congressistas lutando pelo direito de discriminar homossexuais, sem maiores pudores. Para tentar contornar o busílis, a senadora Marta Suplicy (PT-SP) propôs uma subemenda ao projeto, acrescentando uma exceção de que a lei não se aplicaria “à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé, fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art.5º da Constituição Federal”. Ou seja: a nova lei toleraria que pastores, padres e outros clérigos, durante seus cultos religiosos, afirmassem que os homossexuais, os negros e outras minorias são pecadores e já possuem câmaras de tortura reservadas para eles no inferno.

Ainda que o recuo tático da senadora possa ser interpretado por muitos como um retrocesso, na atual composição do Congresso Nacional, marcada por expressiva presença de fundamentalistas religiosos, ele se faz necessária para neutralizar o principal argumento dos homofóbicos: o suposto cerceamento da liberdade de manifestação de fé e pensamento.

Discriminar em nome de Deus

Não existem direitos absolutos e, quando nos deparamos com um conflito de direitos, é preciso ponderar para que se permita o máximo exercício de ambos os direitos com o mínimo cerceamento de cada um deles. No


conflito entre o direito à livre manifestação de fé e de pensamento e o direito à igualdade e à honra, a questão é definir se a lei deve punir apenas as ações discriminatórias (como impedir um negro ou um homossexual de frequentar um restaurante) ou também as manifestações de pensamento preconceituosas (como afirmar publicamente que um negro ou um homossexual está fadado a passar a eternidade queimando no inferno). A solução dada a esse conflito de direitos varia nas democracias contemporâneas. Nos EUA, o direito à liberdade de manifestação de pensamento tende a preponderar, em função da enorme relevância que a cultura jurídica estadunidense atribui à primeira emenda da sua Constituição. Por conta disso, admite-se a manifestação de pensamentos preconceituosos, punindo-se exclusivamente as ações discriminatórias. Já na Europa, em função da dramática experiência histórica do nazismo, mesmo as manifestações de pensamento preconceituosas costumam ser criminalizadas. No Brasil, em função da forte presença religiosa que tem dominado o Congresso Nacional, o mais provável é que o “direito de discriminar em nome de Deus” acabe mesmo sendo incorporado à lei. Com isso, nosso sistema se aproximaria da tradição estadunidense, permitindo a livre manifestação de ideias preconceituosas, mas punindo as ações concretas de discriminação. Um avanço, sem dúvidas, em relação à ausência de punição às discriminações homofóbicas que temos hoje, mas que está longe de pôr um ponto final no tratamento jurídico dado à questão.

Homofobia mata

O debate sobre a discriminação em razão da orientação sexual vai muito além da defesa do respeito à honra e à dignidade dos homossexuais. É um debate sobre o direito à liberdade dos homossexuais de expressarem seu afeto em locais públicos sem serem importunados, ameaçados, agredidos ou mesmo mortos. Os crimes violentos contra homossexuais têm aumentado bastante no Brasil nos últimos anos. Segundo o Relatório Anual de

Assassinato de Homossexuais de 2010, divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), no ano passado foram documentados 260 homicídios de gays, lésbicas e travestis, o que demonstra um crescimento significativo em relação aos 198 homicídios registrados em 2009.

A aprovação de uma lei punindo as discriminações contra os homossexuais, por certo,

A criminalização desse tipo de discriminação terá um importante efeito simbólico de estabelecer que a sociedade brasileira não tolera mais a homofobia e valora esta conduta como uma grave violação das regras inerentes a uma sociedade democrática não terá o condão de eliminar esses crimes, até porque já existem penas para os crimes de ameaça, lesões corporais e homicídios. A criminalização desse tipo de discriminação, porém, terá um importante efeito simbólico de estabelecer que a sociedade brasileira não tolera mais a discriminação homofóbica e valora esta conduta como uma grave violação das regras de boa convivência inerentes a uma sociedade democrática. No passado, o homossexual já foi tratado como criminoso e foi punido pelo crime de sodomia. Posteriormente, foi tratado como vítima de uma doença chamada homossexualismo e, não raras vezes, submetido aos mais variados e desumanos tratamentos compulsórios. Hoje, a Medicina reconhece a homossexualidade como uma dentre as diversas orientações sexuais possíveis e o Direito brasileiro reconhece a união estável de casais homossexuais como plenamente legal. A cultura preconceituosa criada e mantida ao longo de décadas, porém, não foi erradicada pelos novos posicionamentos da Medicina e do Direito. É preciso novas leis que estimulem e promovam a igualdade de tratamento que, ao longo de tanto tempo, foi reiteradamente rejeitada. O Direito Penal tem, neste momento histórico, um importante papel como instrumento de promoção de direitos. A Lei 7.716/89 tem sido, desde sua entrada em vigor, uma poderosa ferramenta no combate à discriminação racial. Que sirva também para combater a homofobia. Assim como hoje é considerado cri-

minoso quem discrimina o negro, amanhã também deve ser quem discrimina o homossexual. E ainda que, por ora, todos continuem sendo livres para expressar seus pensamentos preconceituosos em nome de seu Deus, chegará um dia em que a maioria terá vergonha de fazê-lo em voz alta. E, nesse dia, talvez não sejam mais necessárias leis penais para coibi-los - o asco social lhes bastará. F

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Social

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TRANSFORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO EM DEBATE NA ESCOLA

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Cadernos do pensamento crítico latinoamericano

Os Cadernos do Pensamento Crítico buscam difundir, mais além dos espaços acadêmicos, reflexões sobre problemas contemporâneos fundamentais, em contraposição ao pensamento único e aos órgãos que os divulgam. A América Latina representa hoje o único espaço de integração regional independente dos EUA e a única região que tem governos que desenvolvem políticas que pretendem superar o neoliberalismo. Ao mesmo tempo, a intelectualidade latino-americana desenvolve formas de pensar que permitem questionar os dogmas do pensamento conservador e avançar em perspectivas teóricas que ajudam na construção do “outro mundo possível”.

CLACSO assume entre suas funções a de incentivar a pesquisa e a difusão dos seus resultados desenvolvidos nos Grupos de Trabalho e em outras atividades dos já quase 300 centros afiliados em toda a América Latina e em outros continentes. Os textos publicados nos Cadernos, bem como toda a produção editorial do Conselho, encontra-se disponível na Biblioteca Virtual – www.clacso.org – em forma integral e de acesso gratuito.

encarte no 17

Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum.

CLACSO é uma rede de 300 instituições que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países. www.clacso.org FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados latino-americanos. www.flacso.org.br

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A rebelião dos limites: entrevista com Franz Joseph Hinkelammert As culturas que sempre foram consideradas como atrasadas hoje indicam o caminho a ser seguido, pois as culturas anteriores não eram tão suicidas quanto a cultura moderno-ocidental. Então, por onde se deveria construir o caminho?

por Estela Fernández Nadal e Gustavo David Silnik 1

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conomista, filósofo e teólogo da libertação. Doutor em Economia pela Universidade Livre de Berlim. Exerceu o cargo de professor de Economia no DEI – Departamento Ecumênico de Pesquisas (por suas siglas em espanhol), na Costa Rica. Atualmente faz parte do Grupo de Pensamento Crítico e está vinculado à Universidade Nacional Autônoma em Heredia, Costa Rica.

Estela Fernández Nadal – Franz, a que você se refere, exatamente, quando fala de “crise dos limites de crescimento”? Como ela se evidencia?

Franz Joseph Hinkelammert – A crise dos limites de crescimento é evidenciada pelo fato de que um alto crescimento linear não é sustentável, e isso está presente, atualmente, no âmbito do petróleo e dos cereais. No caso do petróleo, a experiência empírica demonstra que uma taxa de crescimento de 5%, aproximadamente, pressupõe um crescimento do consumo de petróleo de 2% a 3%. Se calcularmos com base em 20 anos, um crescimento desse porte representa um aumento de um terço no consumo de petróleo. Imagine: não há petróleo suficiente para isso! Sendo assim, propõe-se substituir o consumo de petróleo pelo quê? Pelos cereais. Dessa forma, aumenta-se a produção de cereais e reduz-se a de alimentos para seres humanos. Quem surge agora como os famintos mais urgentes e com poder de compra suficiente para substituí-los? Os automóveis, pois são eles que possuem a demanda de cereais, neste momento, e o poder de compra. As pessoas famintas, por sua vez, não têm esse poder de compra. Logo, quem ganha? Os automóveis, que devoram as pessoas. Temos, então, as duas energias básicas: a energia básica para o corpo humano é o cereal, e a energia básica para as máquinas é o petróleo. Note que o preço do barril de petróleo já chegou a 90 dólares, e fala-se em subir novamente para 100 dólares2. Bom, com 100 dólares ainda podemos viver. Mas e se a taxa de crescimento continuar crescendo em nível mundial? O resultado será um novo aumento, chegando a 140 dólares, como em 2008, e haverá outra crise, considerada uma nova crise financeira. Isso é o que está sendo discutido.


Hinkelammert – Todos os impactos estão inter-relacionados: a falta de alimentos para as pessoas, a escassez de energia para as máquinas e a crise do meio ambiente. Tudo isso faz parte de uma grande crise, uma crise global que é tratada como se fosse uma crise climática, quando se trata na verdade de uma crise dos limites do crescimento, uma rebelião dos limites. Como nunca foram respeitados, os próprios limites agora se rebelam. E surge novamente a necessidade de outra civilização, levantada pela própria questão da produção de alimentos e energia. Não somente a partir do problema da convivência, que a cada dia é mais subvertida. A convivência está em crise, mas é, ao mesmo tempo, um aspecto da crise da rebelião dos limites. A crise de 2008 foi a primeira cuja raiz foi a rebelião dos limites. Embora não se fale publicamente de uma rebelião dos limites do crescimento, os militares sabem disso claramente, e por esse motivo as guerras são motivadas pelo petróleo: aquele que possui o petróleo domina o mundo. E não surge nenhum pensamento consensual, apenas guerra. O sistema só pensa em guerra, principalmente os Estados Unidos. Nesse sentido, os Estados Unidos são herdeiros do nazismo, pois só conseguem pensar em soluções a partir da guerra. Não são capazes de refletir sobre firmar acordos, não entendem isso, pois o cálculo da utilidade própria sempre leva à guerra, a guerra sempre parece ser o mais útil, nunca a paz. Nadal – Você caracterizou essa atitude como “cortar o galho da árvore sobre o qual se está sentado”, não é mesmo?3

Hinkelammert – Exatamente.

Nadal – Na América Latina, principalmente na Bolívia, mas também no Equador, na Venezuela e talvez no Brasil, os governos possuem – em diferentes escalas – certa consciência sobre esses limites e, em muitos casos, discute-se sobre que forma de crescimento se deve promover, que não termine sendo destruidora para o meio ambiente e para o ser humano. Mas como você mesmo mencionava, nem sempre se sabe como agir, porque ao mesmo tempo são países que possuem muitas carências, são muito atrasados do ponto de vista de suas infraestruturas, são países que precisam construir represas, estradas, gasodutos etc.

Hinkelammert – Sim, esse é o problema. Mas há mais uma questão aqui: as culturas que sempre foram consideradas como atrasadas hoje indicam o caminho a ser seguido, pois as culturas anteriores não eram tão suicidas quanto a cultura moderno-ocidental. Então, por onde se deveria construir o caminho? É possível ver por meio dessas culturas com mais clareza do que a partir das culturas do progresso. Elas se transformam em muito atuais, plenamente atualizadas. Gustavo David Silnik – É isso que você vê na Bolívia?

Hinkelammert – Por trás está a cultura andina. Normalmente, pensa-se que se deve dissolver a cultura considerada atrasada para

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O texto publicado neste Caderno é uma antecipação do quinto número da revista Crítica y Emancipación. (Buenos Aires, CLACSO, 2011), a ser publicado em breve.

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No momento de edição desta entrevista (março de 2011), o preço do petróleo já havia subido a cifras superiores a 100 dólares por barril [N. do E.].

luiZ noVAes / folhApress

Nadal – E paralelamente a essa questão (de pessoas famintas e produção de cereais para agrocombustíveis) há o impacto sobre o meio ambiente.

Garimpo de Serra Pelada, Curionópolis, PA

transformá-la em modernidade. Eu acredito que seja o contrário: essa cultura pode ser hoje a bússola para fazer caminhos. Insisto na palavra bússola, pois não é possível copiá-la. Deve-se inventar. Acredito que isso deve ser pensado com muita seriedade. Certa vez, na Alemanha, em uma reunião com pessoas de outros países, um africano dizia: “A África não é o problema, é a solução.” Algumas pessoas riam, mas isso é algo muito sério, pois na África também existe essa consciência. É algo parecido com o que ocorre na América Latina com a cultura andina: aí está a solução, não em Nova Iork. Talvez não proporcione “a” solução, mas sim a direção na qual se deve construir os caminhos.

Nadal – Qual a sua opinião sobre esse modelo de minas que temos na Argentina e em outros países da região, a megamineração a céu aberto?

Hinkelammert – Considero horrível. Todos os restos de ouro que sobram, querem levar. Isso ocorre porque há uma rebelião dos limites, portanto, querem aproveitar os restos. Pior ainda: quando realmente encontram ouro, chega a ser ridículo! Há 500 anos tem-se a mesma atitude: retiram o ouro daqui e o colocam em depósitos do banco central de um país do centro. A irracionalidade é total. O ouro não tem nenhum valor de uso, pois não há tantas pessoas dispostas a colocar todas as joias produzidas. Esse é o único valor de uso que julho de 2011

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se tem, sua beleza, mas esse não é o motivo pelo qual o desejam. Retiram o outro da terra, destruindo-a, para enterrá-lo novamente nos depósitos dos bancos.

Nadal – Essa é a nova forma de saque que encontraram em nossos países, ao mesmo tempo em que aceleram a destruição das geleiras, fazendo uso de cianeto, arsênico, poluindo as fontes de água subterrânea com os dejetos...

Hinkelammert – Sim, destroem zonas inteiras... Aqui [Costa Rica] havia um grande projeto, em Las Crucecitas, mas houve também uma forte resistência da sociedade civil, o que conseguiu detê-lo. Devemos estar atentos para até quando ficará assim, pois o poder econômico continua insistindo, comprando, corrompendo para obter a permissão que precisam. Nunca deixarão de pressionar para ter a possibilidade de aumentar a catástrofe, pois a catástrofe traz muitos lucros. Já que evitá-la não gera lucros, todos calculam que continuar é mais proveitoso do que parar ou mudar. Nadal – Também está a favor deles a ideia de que não se pode renunciar à tecnologia, nem à alta tecnologia. O que você acha disso?

Hinkelammert – Mas nunca devemos pensar que a tecnologia é por si só o progresso. Por exemplo, a tecnologia atômica não foi um progresso, foi uma regressão total. Muitas vezes, na atualidade, as tecnologias se transformam em regressão. Em todos os lugares é possível perceber o perigo trazido pelo desenvolvimento tecnológico. É possível que a Aids seja um produto disso, não sabemos, mas existe a possibilidade. Não há um desenvolvimento tecnológico limpo, e os riscos são cada vez maiores. A geladeira, como artefato doméstico, é muito boa, mas o desenvolvimento técnico é cada vez mais arriscado, não é algo limpo.

Silnik – Pensando no que você escreveu no Chile com relação à crítica das ideologias do desenvolvimento3, muitas vezes nas discussões de nossa equipe de Mendoza, nos perguntamos: até que ponto os modelos atuais latino-americanos (especificamente Brasil, Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela) não estão repetindo esses modelos desenvolvimentistas dos anos sessenta e setenta? Claro que em outros contextos e dotados de alguns conteúdos políticos diferentes, mas não é repetida a mesma lógica de celebrar, acima de qualquer outra coisa, os aumentos das taxas de crescimento econômico, inclusive acima da crise do meio ambiente?

Hinkelammert – Evidentemente, e agora não há taxas de crescimento para celebrar, não é mesmo? Mas mesmo quando há o que celebrar, então, a ausência das mesmas se transforma na preocupação principal do mundo. Bom, acredito que esses novos tipos de pensamento que surgem, especialmente na Bolívia – pois há muitas diferenças entre os diversos países latino-americanos que você mencionou, inclusive diferenças muito grandes –, onde querem realmente uma sociedade guiada pela convivência, estão numa etapa muito preliminar. Há ainda muitos conflitos a serem resolvidos e ainda não existe uma ideia clara do que se pode fazer com isso. Eu também não tenho a resposta. 3

Hinkelammert, Franz J. 2001 “Asesinato es suicidio: cortar la rama del árbol en la cual se está sentado” em El nihilismo al desnudo. Los tiempos de la globalización (Santiago do Chile: LOM Editores) pp. 155-183. Hinkelammert, Franz J. 1970 Ideologías del desarrollo y dialéctica de la historia (Buenos Aires: Biblioteca de Ciencias Sociales-Universidad Católica de Chile/Paidós) pag. 308.

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Mas nunca devemos pensar que a tecnologia é por si só o progresso. A tecnologia atômica não foi um progresso, foi uma regressão total. Muitas vezes, as tecnologias se transformam em regressão

Silnik – Estamos perguntando pelo que você identifica como problema, mais do que pela resposta a ele.

Hinkelammert – Esse é o problema. Por exemplo, na Venezuela foram realizadas ações importantes, sobretudo com relação à população marginalizada. Mas o aparato industrial, o capital, continua como antes. Não lidam com ele, ou lidam apenas de forma marginal como, por exemplo, ao nacionalizar a energia. Não se pode negar que o governo progrediu bastante na promoção da educação pública e da saúde pública, mas ainda não mexeram no núcleo. Porque, por outro lado, não se sabe como agir, não vejo que haja uma ideia clara do que pode ser um desenvolvimento diferente. Ou seja, há uma ideia geral, a qual está formulada mais precisamente na Bolívia: o “bem viver”, o “governar obedecendo”, e muito disso é realizado. Mas transformá-lo em uma alternativa ao capitalismo mundial não foi possível, muito menos em nível nacional. O problema reside no fato de que, até 40 anos atrás, havia uma ideia disponível sobre o socialismo, sabia-se o que deveria ser feito. Mas hoje, não. Estamos todos submersos na mesma questão, e na condição de críticos podemos trazer à luz o que falta, o que não foi solucionado, mas “como enfrentá-lo” continua sendo uma questão enigmática. Há propostas muito razoáveis, mas são parciais. E, muitas vezes (e não se entenda como uma queixa), são lembranças do Estado de Bem-estar, que é mil vezes preferível ao que temos, mas que mostrou seus limites. Silnik – Isso significa que as novas propostas sociais e políticas tentam recuperar algo que foi desmontado pelo neoliberalismo, que em comparação pode ser melhor, mas claramente não representam uma saída ou uma alternativa?

Hinkelammert – Acredito que de todas as formas deve ser feito, mas não nos deve levar a ter esperanças com relação ao futuro. Nadal – Isso tem a ver com sua observação a respeito da atual crise mundial, quando diz que não é uma crise financeira nem econômica, mas algo de alcance muito maior, uma crise civilizatória?

Hinkelammert – Exato. E uma civilização não se constrói a partir do nada, não sai da mente de alguém que chega com a solução para somente aplicá-la. Trata-se de outra civilização. E, nesse sentido, há uma falência geral e diante dela um sistema cego, absolutamente cego. Logo, não há possibilidades de diálogo, o sistema não dialoga, é extremista, defende as armas de destruição massiva, financeiras, mercantis etc. Silnik – E se não dá conta, buscam-se as armas mais convencionais de destruição massiva.

Hinkelammert – Sim, as bélicas. Nós nos deparamos com isso, o que me lembra de algo muito interessante que dizem os surrealistas: “O início de tudo é sermos pessimistas”. Eu diria que não apenas sermos pessimistas, mas termos expectativas com base no pessimismo, não nas esperanças.


Nadal – Poderia nos explicar sobre este conceito de “pessimismo com esperança”?

Hinkelammert – Somos pessimistas com relação aos resultados que a civilização – na qual ainda nos movemos – nos trará. E pessimistas também com relação à possibilidade de enfrentar esses resultados. Precisamos, por essa razão, de uma justificativa da ação para isso, a qual não calcula a possibilidade da vitória. Isso também é uma vantagem dos surrealistas: eles resistem a fazer cálculos, no sentido de que a ação não é válida pelo sucesso que possa alcançar, mas tem sentido em si mesma, mesmo que não dê resultados. Nós nos deparamos, então, com outro conto de rabinos da Europa Oriental. O rabi se dirigia a uma cidade, mas lhe chegou a notícia de que havia ocorrido um violento ataque e nada mais poderia ser feito ali. Então, ele se foi. Nesse momento, encontrou-se com Deus, que lhe disse: “Aonde você vai?” Ele respondeu: “Eu queria ir a esta cidade, mas já não há nada para fazer, minha presença já não tem

sentido para as pessoas.” Então, Deus lhe disse: “É muito possível que esteja certo, mas a sua ida teria sentido para você” (risos). Você já não poderia fazer nada pelos dos outros, mas o fato de ter ido teria sentido para você mesmo.

Estela Fernandez Nadal Doutora em Filosofia, Pesquisadora Principal do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET) e docente-pesquisadora da Universidade Nacional de Cuyo. Discípula de Franz Hinkelammert há uma década, aproximadamente, e integrante do Grupo de Pensamento Crítico, com sede em San José, Costa Rica.

Gustavo David Silnik Licenciado em Sociologia e Professor da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional de Cuyo. Pesquisador da crítica da lei em Franz Hinkelammert e sua vinculação com a tradição judaica. Discípulo de Franz Hinkelammert há uma década, aproximadamente, e integrante do Grupo de Pensamento Crítico, com sede em San José, Costa Rica.

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Feminicídio: a morte de mulheres em razão de gênero Casos como o de Eloá Pimentel, longe de serem isolados, fazem parte de uma categoria que evidencia o impacto da desigualdade de gênero na sociedade por Cynthia Semíramis

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loá Cristina Pimentel tinha 15 anos quando foi mantida em cárcere privado, sofrendo agressões físicas e psicológicas durante cinco dias, até morrer após ser baleada na cabeça e no púbis. O agressor foi o ex- namorado, que não se conformava com o fim do namoro. A abordagem do caso pela mídia foi extravagante e inadequada: formatado como uma novela televisiva, teve programas sensacionalistas fazendo entrevistas ao vivo com o agressor e diversos especialistas (inclusive advogados e policiais) procuraram justificar a agressão afirmando que se tratava de uma prova de amor, pois o rapaz (tido como sério, trabalhador e vivendo uma crise amorosa) estava se arriscando a destruir sua vida por Eloá. Houve até quem sugerisse que o caso terminasse em reconciliação e casamento. Foram desprezados não só o sigilo e a abordagem não sexista que deveria envolver o caso, mas principalmente a vontade da agredida, que perdeu a vida porque não desejava mais se relacionar com o agressor. Este caso, e muitos outros de mesmo teor, mas sem a mesma abordagem midiática, poderiam ser vistos como fatalidades isoladas que acometem mulheres. No entanto, estão

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sendo estudados pela antropologia e por ativistas feministas como feminicídios. Trata-se de uma categoria criada para englobar o que há em comum na agressão e morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, evidenciando o impacto político de uma desigualdade de gênero. Em outras palavras, procura-se mostrar que mulheres são mortas ou sofrem violência para se adequar àquilo que determinada sociedade considera ser o papel das mulheres. Em 1993, Diana Russell e Jill Radford editaram o livro Femicide, que se tornou referência para os estudos de violência de gênero. Marcela Lagarde posteriormente diferenciou os termos femicídio (a morte de mulheres em geral, uma espécie de feminino de homicídio) e feminicídio, referente às mortes de mulheres causadas e legitimadas por um sistema patriarcal e misógino. Feminicídio é algo que vai além da misoginia, criando um clima de terror que gera a perseguição e morte da mulher a partir de agressões físicas e psicológicas dos mais variados tipos, como abuso físico e verbal, estupro, tortura, escravidão sexual, espancamentos, assédio sexual, mutilação genital e cirurgias ginecológicas desnecessárias, proibição do aborto e da contracepção, cirurgias cosméticas, negação da alimentação, maternidade, heterossexualidade e esterilização forçadas. Em todos esses casos, o que se tem em comum é o fato de as vítimas serem mulheres, e estarem sendo coagidas a cumprir o papel que aquela sociedade destina a elas. As mulheres que não se adaptam a esse sistema (“desobedientes”, “vadias”, prostitutas, de “gênio forte”, dentre outros termos afins) perdem o direito à autonomia e à própria vida. As agressões a elas são toleradas, inclusive pelo Estado, suas mortes não são lamentadas e seus agressores não são punidos; muitas vezes, serão até glorificados. Neste

ponto, vale lembrar que houve negociações para que, no primeiro aniversário da morte de Eloá, seu ex-namorado concedesse entrevistas para a televisão. Na sociedade brasileira, as meninas são treinadas desde a infância em um modelo de feminilidade bastante restrito: devem ser bonitas, sem opiniões fortes, de comportamento (inclusive sexual) discreto quando em público e, privadamente, voltado à satisfação do namorado. O prestígio social ocorre através do casamento e, em menor medida, da maternidade; portanto, uma mulher que não atenda aos requisitos desse modelo de feminilidade sofrerá pressão para se enquadrar, chegando ao ponto de ser incentivada a sacrificar sua integridade física e psicológica em nome da manutenção do casamento e da família. Nesse tipo de sociedade, os feminicídios ocorrem especialmente em relação à vida familiar e aos relacionamentos afetivos, principalmente quando a mulher não deseja prosseguir com o relacionamento ou deseja ter vida profissional e financeira independe do marido.

Medo e relações de poder

Pesquisa do Ibope/Instituto Avon indicou que um dos motivos mais fortes que levam uma mulher a não abandonar o agressor é o medo de ser morta se a relação for rompida; esse medo foi mais citado por pessoas de menor poder aquisitivo, menor escolaridade e pessoas mais jovens. Nos processos judiciais estudados por Wânia Izumino, dos 62 casos de lesões corporais sofridas por mulheres, 51 foram cometidos por companheiros; dos 13 processos de homicídio e oito de tentativa de homicídio, só dois casos não foram cometidos por companheiros das vítimas (um deles envolveu mãe e filho, e o outro envolveu tia e sobrinho, evidentemente um conflito de caráter familiar). Pesqui-


sa da Fundação Perseu Abramo estima que uma mulher é agredida a cada 15 segundos no Brasil, sendo que a maioria é vítima dos companheiros ou ex-companheiros. Analisando relações de poder ligadas à violência, a professora Rita Segato (UnB) observa dois eixos de atuação, relacionados ao agressor, sua vítima e seus pares. No eixo vertical, ela inclui a relação assimétrica entre agressor e vítima (pois ele tem mais poder físico e simbólico que ela), enquanto que, no eixo horizontal, se encontram as relações entre o agressor e seus pares, uma “irmandade masculina” na qual todos trabalham para manter a simetria de suas relações, mesmo que com isso precisem reforçar a assimetria entre agressor e vítima. Nesse sentido, a sociedade patriarcal age para que a agressão contra mulheres seja minimizada em nome do profissional famoso e respeitável, do bom trabalhador, do pai de família ou do amigo incapaz de agredir um mosquito, sendo que nenhum deles hesita em agredir física ou psicologicamente uma mulher que ele considere que está desobedecendo ao modelo de feminilidade vigente e que, a seus olhos, torna-se merecedora de violência. Em outros países da América Latina há também muitos feminicídios, notadamente em Ciudad Juárez (México), Guatemala, Honduras e El Salvador. Mas o enfoque é diferente, menos vinculado a relacionamentos afetivos e mais ligado à emancipação femini-

A discussão sobre o feminicídio ainda está se iniciando no Brasil, e há um longo caminho a ser percorrido, a começar pelo reconhecimento de que há desigualdade de gênero a ser combatida com ações direcionadas, para mostrar o caráter coletivo desses crimes e evitar seu esquecimento e banalização

na e a uma disputa de poder local. O caso de Ciudad Juárez é emblemático: desde o final do século XX, meninas e mulheres de Ciudad Juárez desaparecem ou são barbaramente violadas, mutiladas e mortas, e o Estado mexicano pouco fez para solucionar os crimes. Em 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou o México culpado por violar o direito à vida, integridade e liberdade pessoal de mulheres violentadas e mortas no Campo Algodonero, em Ciudad Juárez, em 2001, caracterizando a primeira condenação de um Estado por feminicídio. Desde 2007 o México tem a Ley General De Acceso De Las Mujeres A Una Vida Libre De Violencia. Esta lei, assim como a Lei Maria da Penha (2006) no Brasil, demonstra que os Estados reconhecem a desigualdade de gênero que gera a violência contra as mulheres, e toma a iniciativa de combatê-la não só com maior visibilidade e categorias específicas em relação à questão criminal, mas

Maria Eugênia Sá

também por meio de políticas públicas que transformem essas relações, aumentando a autonomia e a integridade física e psicológica das mulheres. Nesse sentido, pesquisa comparativa entre México e Brasil, realizada pela professora Teresa Lisboa (UFSC), demonstrou que o sistema de proteção às mulheres vítimas de violência no Brasil é ainda bastante falho e incipiente, especialmente em comparação com o modelo mexicano. A literatura sobre feminicídios é pródiga em casos como o de Eloá, mas sem o tratamento novelístico que o tornou um marco da misoginia no Brasil. A tendência dos meios de comunicação e até de algumas instituições governamentais é não dar destaque ao tema para não questionar os valores misóginos de uma sociedade patriarcal. Assim, a ação é no sentido de diluir esses crimes, considerando-os casos isolados, de caráter privado, indignos de atenção e até mesmo negando que estejam relacionados a gênero (como aconteceu recentemente no Massacre de Realengo, quando um atirador, obcecado com questões sobre virgindade e pureza, invadiu uma escola e escolheu as vítimas, matando 10 meninas e dois meninos; as análises sobre o caso silenciaram sobre essa disparidade de gênero). A discussão sobre o feminicídio ainda está se iniciando no Brasil, e há um longo caminho a ser percorrido, a começar pelo reconhecimento de que há desigualdade de gênero a ser combatida com ações direcionadas para mostrar o caráter coletivo desses crimes, e evitar seu esquecimento e banalização. Além de desenvolver a discussão teórica sobre o feminicídio, é importante estimular manifestações públicas como a Marcha das Vadias, que questiona os estereótipos sexistas, e as manifestações contra a violência, que buscam reverter casos judiciais fadados ao esquecimento e à impunidade. Todas essas iniciativas estimulam as pessoas a identificar e combater a desigualdade de gênero, evitando que suas atitudes sejam responsáveis por patrocinar uma sociedade misógina, negando às mulheres o direito à autonomia. F julho de 2011

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A imprensa que combateu a ditadura no Brasil Projeto “Resistir é preciso...” resgata a trajetória de veículos de comunicação e de jornalistas que lutaram contra o regime militar no Brasil. Confira o depoimento de alguns dos protagonistas dessa luta por Denise Gomide

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final, por que tantas pessoas foram presas, torturadas e mortas durante a ditadura no Brasil? Qual é a verdadeira história dessa história? Para contá-la, ninguém melhor que os próprios protagonistas que lutaram contra esse sistema, inclusive quando este tentou silenciá-los. Com esse foco específico e após um ano e meio de trabalho intenso, foi lançada a primeira etapa do projeto do Instituto Vladimir Herzog “Resistir é preciso...”, que resgata “a trajetória da imprensa brasileira que combateu e resistiu à ditadura militar na clandestinidade, no exílio e, como alternativa, nas bancas”. O evento se deu em 27 de junho, no Memorial da Resistência, em São Paulo. A data não foi escolhida a esmo: marcou os 2 anos de existência do Instituto e também é a data em que Vlado, como era conhecido o jornalista Vladimir Herzog – assassinado em 1975, durante a ditadura, sob tortura –, celebraria seus 74 anos. De acordo com o jornalista Ricardo Carvalho, editor de conteúdo do projeto, “Resistir é preciso...” será implementado em várias etapas: a primeira, é o lançamento de 12 DVDs com trechos escolhidos de 106 horas de depoimentos, de 60 protagonistas da história de jornais alternativos, clandestinos, feitos tanto no Brasil como no exterior, no exílio. Esse material foi recolhido durante 34 anos pelo pesquisador José Luis Del Roio, coordenador de contexto histórico do projeto e responsável pela organização do maior acervo de impren­sa alternativa disponível no arquivo do Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Clarice Herzog e Ivo Herzog são responsáveis pela coordenação geral e Vladimir Sacchetta, pela de pesquisa. O apoio é da Petrobras. “Não há nenhum projeto de resgate de memória a partir do olhar de pessoas que fizeram e distribuíram jornais, como gráficos,

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jornalistas, militantes, enfim, todo o tipo de gente que trabalhou em jornais alternativos, clandestinos”, afirma Carvalho. Conforme ele, os próximos passos do projeto são fazer dez documentários para TV, e um livro com mais de 200 páginas, principalmente ilustrativo, dos jornais mais significativos, com destaque para os periódicos Opinião (1972-1977), Movimento (1975-1981) e O Pasquim (19691988) – a “trinca de ases da imprensa alternativa pós-golpe” conforme Carvalho –, que marcaram a resistência ao regime militar. Fórum ouviu alguns dos protagonistas de “Resistir é preciso...”. Eles discorreram sobre os mais significativos períodos por que passaram durante o regime militar, no exercício de um jornalismo de denúncia e resistência.

Exílio voluntário

Após a curta, mas intensa, experiência em Veja, no final da década de 1960, Bernardo Kucinski, jornalista, professor de Jornalismo aposentado e autor de diversos livros – atualmente ficcionista –, saiu do Brasil por livre vontade, quando sua equipe na revista, liderada por Raimundo Pereira e com o apoio de Mino Carta, publicou as duas capas denunciando torturas no Brasil. “A reação do governo a essas capas tornou nossa permanência em Veja difícil, e o grupo se dispersou; como minha mulher precisava fazer seu doutorado na Inglaterra, decidimos partir.” E Bernardo Kucinski

o “exílio voluntário” se prolongou por quase quatro anos. Alguns meses antes de partir, a pedido do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que tinha ligações com a editora francesa Maspero, Kucinski escreveu, com o jornalista Ítalo Tronca e a ajuda de outros companheiros, um livro denunciando as torturas no Brasil. “Eu e minha mulher levamos o manuscrito, que entreguei ao Merlino em Paris. O livro foi publicado obviamente sem indicação de autoria, com o titulo Pau de Arara, a violência Militar no Brasil. Merlino, posteriormente, foi assassinado numa prisão brasileira”, relembra. “Apenas lamento que Luiz Merlino seja pouco lembrado nos trabalhos sobre a repressão política durante a ditadura Foi um jornalista talentoso e dotado de estilo apurado, com vasta bagagem cultural e política, que abdicou de uma carreira convencional na imprensa para combater a ditadura.” Em Londres, Kucinski trabalhou principalmente na BBC, Serviço Brasileiro, e para a newsletter Latin América Political Report, que na época divulgava informações quentes sobre os acontecimentos no Brasil, Argentina e Uruguai. Também colaborou com outras publicações, como a Index on Censorship, que expôs a censura à imprensa no Brasil. “Ainda em Londres, por meio de Fernando Gasparian, que foi para lá depois do assassinato de Rubens Paiva, ajudei a criar o semanário Opinião, do qual me tornei correspondente”, destaca. Quando retornou ao Brasil, Kucinski foi para a redação da Gazeta Mercantil, da qual era correspondente no seu último ano em Londres, mas logo saiu para participar da fundação do Movimento. “Foi um período difícil, em que se deu o desaparecimento de minha irmã e de seu marido, militantes da ALN [Ação Libertadora Nacional]. Após o racha no Movimento, participei da fundação do Em Tempo, do qual fui o primeiro editor. A partir de 1978 me aproximei do PT, ajudando a fundar o Jornal dos Trabalhadores e posteriormente editando o Boletim Nacional do partido.”


As fotos foram cedidas pelo Projeto “Resistir é preciso...”

Paulo e Beatriz (Bia) Cannabrava

Um casal no exílio Resistir e denunciar os “atos” do regime militar levou o casal Beatriz (Bia) e Paulo Cannabrava a passarem 12 anos no exílio. Ela, então dentista formada pela USP e dedicada à música. Ele, jornalista, trabalhava em veículos da grande imprensa. “Quando a ditadura cívico-militar tornou insustentável seguir como repórter político no Correio da Manhã, fui para a Folha de S. Paulo nas mesmas funções, até que assumi como editor. Paralelamente, eu era diretor de redação da Rádio Marconi”, conta. De acordo com Paulo, de 1964 a 1968 foram anos bastante conturbados politicamente e em duas frentes: o combate à ditadura e a luta interna no PCB, que culminou com o rompimento do grupo liderado por Carlos Marighella. “A partir dai minha permanência no Brasil tornou-se insustentável e temerária, e o próprio Marighella providenciou a nossa retirada, minha e da família, a Bia e nossos dois filhos.” Assim, em 1968, o casal foi para Cuba. Paulo foi trabalhar na Rádio Havana e Bia, sob o pseudônimo de Marina Pérez, na Casa de las Américas, cantando e fazendo pesquisa musical, e na Faculdade de Odontologia, como assistente de Odontopediatria. “Voltei para o Brasil em 1969, com os filhos, pois necessitava de uma cirurgia. Paulo voltou depois. Quando vimos que depois da morte do Marighella a situação estava insustentável, o Paulo saiu novamente e fui me encontrar com ele em Buenos Aires. Os filhos ficaram com os avós”, recorda Bia. “Daí fomos para a Bolívia, onde ficamos até o golpe contra o governo Torres, em 1971. Lá, trabalhei dando aulas de música e cantando em peñas folclóricas. Paulo, trabalhando no diário El Nacional e como correspondente da France Press. Da Bolívia, conseguimos ir para o Peru, onde ficamos cinco anos. Não consegui revalidar meu diploma de cirurgiã-dentista, e continuei dando aulas de música e cantando, principalmente em eventos políticos e sindicais.” Bia também de­nunciava as truculências da ditadura no Brasil cantando e trabalhando

nos Comitês de Solidariedade. Conforme ela, os comitês eram amplos e contavam tanto com integrantes do governo como com “um grupinho de radicais, que mais tarde cresceu muito e se transformou no Sendero Luminoso - mas que, na época, ainda não se chamavam assim”. “Também aproveitei todas as minhas apresentações em sindicatos, peñas, recitais etc., para denunciar do que acontecia aqui e, depois, em outros países da América Latina.” Além disso, teve uma coluna semanal no diário Expresso, que se chamava “Siete notas para una canción”, onde publicava uma música com letra, notação musical, acordes para violão e a história ou o seu contexto. Eu continuei esse trabalho no Panamá. A revista mensal Diálogo Social publicava a mesma coisa na contracapa, só que com outro nome: “América canta así”. Em 1977, no Peru, com a queda do governo de Velasco Alvarado, o casal rememoraque fugiu novamente, diante da ameaça de serem entregues aos militares brasileiros. Sob a proteção do general Omar Torrijos, foram para o Panamá, onde Paulo montou e dirigiu a agência Interpress Service, além de fazer parte da assessoria de comunicação da Comissão de Negociação dos novos tratados sobre o Canal do Panamá. “Em 12 anos de exílio, exerci um jornalismo de combate, nunca perdendo oportunidades de denunciar as permanentes violações aos direitos humanos praticadas pelo governo brasileiro. Governo que tampouco deixou de me perseguir, já que em cada país por onde passamos, a embaixada pedia ao governo que me extraditasse, e deixava claro que não estavam satisfeitos com minha presença. Além disso, a partir do início da década de 1970, havia também a Operação Condor”, destaca Paulo, que de 1975 até 2005 integrou a equipe dos Cadernos do Terceiro Mundo, publicação que circulava com uma edição em espanhol e outra, em português, pelos países da América Latina, África, Portugal e clandestinamente também no Brasil, “até que a anistia permitiu o retorno e o lançamento da revista também aqui”. Desde então, tem elaborado projetos de comunicação social e de pesquisa histórica, é sócio fundador e membro da diretoria da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual dos Jornalistas e da diretoria do Espaço Cultural Diálogos do Sul, além de diretor da Nova Sociedade Comunicação, empresa de consultoria em projetos de comunicação social e culturais.

“Em todos esses países, mantive Marina como nome artístico. Ao voltar, recuperei a minha ‘verdadeira personalidade’”, afirma Bia, que desde então passou a trabalhar como educadora social, e é hoje tradutora juramentada de espanhol, sendo uma das fundadoras e responsável legal pela Rede Mulher de Educação; membro do Conselho Consultivo Permanente da Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe, além de diretora adjunta da Associação Mulheres pela Paz.

A resistência no Brasil

O jornalista e escritor Audálio Dantas participou, por diversos meios, da resistência à ditadura militar no próprio Brasil. “O principal foi no exercício da presidência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo [1975-1978], quando do assassinato de Vladimir Herzog no DOI-Codi do II Exército. Foi do sindicato que partiu a denúncia e a responsabilização das autoridades militares pela morte de Vlado, o que levou à mobilização que atingiu amplos setores da sociedade civil”, salienta Dantas, que também é ex-presidente da Federação Nacional do Jornalistas – Fenaj (1983/1986) e hoje integra a vice-presidência União Brasileira de Escritores (UBE). “Após o culto ecumênico em memória de Vlado, organizado pelo sindicato, os movimentos de resistência cresceram, levando posteriormente à queda da ditadura. A morte de Vlado foi a gota d`água.” A atividade jornalística que manteve durante o regime foi na redação da que ele considera a principal revista de reportagens da época, a Realidade, e em jornais como o Movimento, do qual integrou o Conselho Editorial, ao lado de outras pessoas “com atuação marcante na luta democrática, como Fernando Henrique Cardoso, Chico Buarque, Elifas Andreato, Orlando Villas Bôas”. Como deputado federal por São Paulo (1979-1983), Dantas relata que seu mandato foi marcado pela luta contra a censura e a violência da ditadura militar, as prisões Audálio Dantas

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ilegais, a tortura, o assassinato de opositores do regime e, de modo intenso, pela Anistia. “Propus, no MDB, criar a Comissão de Apoio aos exilados que voltavam ao País desde o início de 1979, muitos dos quais eram apanhados pela Polícia Federal ao desembarcarem”, acrescenta. “Participei, ao lado de líderes da oposição – entre os quais Teotônio Vilela, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves –, da organização do movimento das Diretas Já, em 1983, responsável pelo primeiro grande comício que reuniu 300 mil pessoas na praça da Sé [SP], em janeiro de 1984, e de outros que se realizaram depois, com a participação cada vez maior da população.” Carlos Alberto de Azevedo, jornalista e escritor, foi repórter em A Hora, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Diário da Noite,nas revistas O Cruzeiro, 4 Rodas, Realidade, entre outros veículos, até 1968. “Em seguida, participei do movimento de resistência à ditadura, colaborando em jornais clandestinos como Libertação e Classe Operária e em livros clandestinos como o Livro Negro da Ditadura Militar [1970], Política de Genocídio contra os índios do Brasil [1973]”, informa. Em 1967, quando era repórter de Realidade, passou a militar na organização política Ação Popular (AP). “Passei a colaborar com a AP como jornalista, escrevendo artigos e jornais de denúncia da ditadura. Com o agravamento da repressão, saí de Realidade e, aos poucos, fui passando à clandestinidade, para poder prosseguir no trabalho de jornalismo sem censura.” Perseguido pelos órgãos de repressão, viveu e trabalhou cerca de dez anos na clandestinidade a partir de 1968, elaborando jornais e outros materiais de mobilização popular e de denúncia dos crimes e exploração da ditadura militar. “Com minha mulher e três filhos, vivi na clandestinidade de 1969 a 1979, ano da anistia. Ao longo desses anos, morávamos em casas simples em bairros populares, em Osasco, São Bernardo do Campo e Campinas. Por acaso, não fomos presos”, diz e avalia Azevedo, que também foi, entre 1975 e 1979, colaborador do jornal Movimento. Alguns meses antes da anistia, em maio de 1979, voltou à vida “legal”. “Com apoio de Raimundo Pereira, diretor do jornal Movimento,

Saiba mais

tornei pública minha colaboração no jornal, passei a assinar as matérias com meu próprio nome. Pouco depois, participei da equipe que preparou e lançou o jornal ‘Tribuna da Luta Operária’, jornal legal do PCdoB.” Para Azevedo, a imprensa alternativa e a imprensa clandestina foram fruto da resistência Adélia Borges popular contra a ditadura militar, “sustentada pelo grande empresariado brasileiro e sob o comando da política imperial dos Estados Unidos. Foram um instrumento fundamental da luta pela democratização do país”. Após a anistia, trabalhou no Globo Rural (TV Globo), na TV Cultura; fez programas políticos de TV para o PCdoB entre 1989-98; foi editor-chefe das campanhas de TV de Lula à presidência da República em 1989 e 1994. Escreveu os livros Do tear ao computador, a luta pela industrialização no Brasil (três edições, 1986/88/89); Cicatriz de Reportagem (2007). Participou da elaboração dos livros Brasil, Direitos Humanos (2008) e Habeas Corpus – que se apresente o corpo (2010), para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Ações e imprensa feministas

“Trabalhei na Folha de S. Paulo e oito anos no Estadão, do qual fui afastada por ter liderado uma greve, mesmo estando grávida e sendo diretora do sindicato. Na ocasião, eu também era editora contribuinte no jornal Movimento”, relata Adélia Borges, jornalista, curadora especializada em design e professora de História do Design na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) – cuja história de militância teve início nos movimentos estudantil e sindical. No segundo semestre de 1976, coordenou uma equipe para preparar uma edição especial do Movimento dedicada ao trabalho da mulher no Brasil, que contou com artigos de intelectuais como Paul Singer e Chico de Oliveira. “O material foi censurado em cerca de 95%, inclusive os gráficos feitos com base em estatísticas fornecidas pelo IBGE. Os 5% restantes foram publicados como matéria na edição de 27 de dezembro de 1976 do jornal.”

Para obter a íntegra de qualquer um dos 60 depoimentos, basta enviar solicitação para o e-mail protagonistas@vladimirherzog.org, que o Instituto Vladimir Herzog enviará a entrevista em DVD, pelo correio. Visite os sites: Projeto “Resistir é preciso...” (http://www.resistirepreciso.org.br/ ) Instituto Vladimir Herzog (http://www.vladimirherzog.org/)

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e Carlos Alberto de Azevedo

Demitida do Estadão, as portas se fecharam, para ela, e Adélia passou a integrar uma lista das empresas jornalísticas de pessoas inconvenientes por sua militância sindical. “Com 31 anos, dois filhos pequenos para criar e separada, gostei muito do convite da Fundação Carlos Chagas. Pude fazer uma conexão até então inexistente entre a minha vida e a minha profissão.” Dessa forma, nasceu o Mulherio, no início de 1981, quando, no âmbito acadêmico, pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas envolvidas com o estudo da condição feminina no Brasil preocuparam-se em sistematizar informações sobre o assunto. De acordo com Adélia, no início, a proposta era compor um boletim de notícias que fizesse o intercâmbio entre as diversas instituições e estudiosos do tema, que forneceriam dados de forma sistemática e abrangente sobre os problemas que envolviam a mulher brasileira. O projeto, financiado pela Fundação Ford, teve como responsável a pesquisadora Fúlvia Rosenberg. “Pela experiência na grande imprensa e minha atuação como jornalista, sugeri fazer um jornal, para ampliar o espectro”, diz Adélia, a primeira editora-chefe de Mulherio. “Na imprensa, aparecíamos de uma maneira dual: nuas, nas revistas masculinas; de avental, nas revistas femininas e nas seções de jornais dedicadas às mulheres; nas publicações “sérias”, nas editorias importantes, éramos invisíveis, havia um limbo. Nossos interesses, na visão dos editores, se limitavam às receitas e às dicas de beleza.” Mas aqui e ali, diz Adélia, começavam a aparecer matérias nos jornais. “E sonhamos que poderíamos servir de orientação e manancial informativo para os meios de comunicação.” Assim, formou um conselho editorial “fantástico”, composto por reconhecidas acadêmicas, feministas e jornalistas, como Carmen da Silva, Elizabeth Souza Lobo, Eva Alterman Blay, Fúlvia Rosemberg, Heleieth Saffioti, Lélia Gonzalez, Maria Carneiro da Cunha, Maria Moraes, Maria Rita Kehl, entre outras. “Foi uma experiência muito boa, que a meu ver contribuiu para levantar a questão da situação da mulher no Brasil.” F


O neoliberalismo resiste O

resultado do processo político das três últimas eleições nacionais parece não ter sido suficiente para inibir – pelo menos – a arrogância dos defensores do neoliberalismo no Brasil. Permanecem resistentes como se nada houvesse mudado na sociedade, fazendo desconhecer, inclusive, a regressão socioeconômica pela qual mantiveram o país prisioneiro por quase duas décadas. No ano 2000, por exemplo, o Brasil situava-se na posição de 14ª economia do mundo, ocupando o terceiro posto no ranking do desemprego global, enquanto em 1980 encontrava-se entre as oito economias mais importantes do planeta e estava na 13ª posição do desemprego mundial. A estabilização monetária a partir do Plano Real foi um avanço, não obstante a demora assistida até a sua obtenção, após mais de quatro anos de experimentalismo neoliberal. Por conta disso, o Brasil se tornou um dos últimos países a superar a superinflação, posto que desde os anos 1990 ela praticamente se afastou do alto patamar verificado nas décadas de 1970 e 1980. Mesmo assim, a estabilidade monetária obtida no país desde 1994 se mostrou incompleta e insuficiente para permitir a volta sustentável ao desenvolvimento nacional, uma vez que o dinamismo econômico esteve contido e extremamente vulnerável, com perversos efeitos sociais. Naquela época, por exemplo, bastava que algum país tossisse para que o Brasil registrasse uma baita pneumonia, o que foi comprovado nas crises financeiras da segunda metade da década de 1990 (mexicana, asiática e russa). Todas elas, por sinal, acompanhadas tanto pela elevação interna dos juros e da carga tributária como pela contração do gasto público e dos investimentos. O resultado era a ampliação do desemprego e a redução da participação dos salários na renda nacional. Com isso, o conjunto da renda dos proprietários (lucro, juro, aluguel e renda da terra) se mantinha inatingível

e com maior presença na riqueza do país. O contrário ocorreu em 2008, quando os países ricos se contaminaram com uma grave pneumonia que atingiu o mundo todo. O Brasil, contudo, acusou um resfriado. Um ano depois, a economia nacional encontrava-se entre as sete principais do mundo, ao passo que, juntamente com a China e a Índia, transformou-se em uma das novas locomotivas a puxar o crescimento econômico global. Evidentemente, isso não resultou de simples mágica, mas da alteração profunda nas opções de políticas econômicas e sociais desde o primeiro mandato do governo Lula. O corte gradual na taxa de juros, com suave recomposição da carga tributária, ocorreu simultaneamente à difusão dos investimentos e do gasto público, com elevação real do poder aquisitivo do salário mínimo e a ampliação da rede de proteção social. Mesmo durante a crise global do capitalismo, em 2008, o Brasil seguiu reduzindo a pobreza e a desigualdade de renda, a ponto de oferecer até 2015 o horizonte de superação da miséria e do reposicionamento da economia nacional entre as cinco mais importantes do mundo. É nesse contexto que a participação do rendimento do trabalho voltou a recuperar o terreno perdido frente à renda do conjunto dos proprietários. O quadro atual é de escassez de mão de obra qualificada, somente vivido pelo país durante a primeira metade da década de 1970. Apesar disso, os defensores do neoliberalismo seguem atualmente inflexíveis, com críticas contínuas ao papel do Estado e ao gasto público, bem como à ausência das reformas de segunda geração (privatização do que ficou, como o Banco do Brasil, a Petrobrás, a Eletrobrás, a previdência e assistência social, entre outros). Exemplos disso não faltam e podem ser encontrados recorrentemente na mídia, como no caso dos artigos publicados no jornal Valor Econômico, no dia 13 de junho, e, especialmente, na Folha de S.Paulo, do dia 17 de junho, quando L. C. Mendonça de Bar-

Brasil: distribuição funcional da renda nacional** (total = 100) Renda da propriedade e mista

56,0 54,0 52,0 50,0 48,0 46,0 44,0

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Fonte: IBGE – SCN; PNAD; PME; MTE - RAIS (Elaboração própria).

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2000*

*estimativa; ** exclui imposto líquido sobre a produção

ros introduziu uma novidade mágica. Ou seja, a atribuição ao governo FHC – do qual participou ativamente na privatização do setor produtivo estatal – a responsabilidade principal pela construção da nova economia brasileira. Para isso, utilizou-se do argumento central relativo à evolução real da massa de salários para negar a existência de uma “herança maldita” ao governo Lula. Interessante a resistência dos neoliberais, sobretudo em argumentos como os adotados por Mendonça de Barros, que considera o comportamento da remuneração do trabalho desconectado da evolução da renda dos proprietários no Brasil. Destaca-se que a estabilidade monetária obtida nos governos Itamar/ FHC não recompôs a distribuição entre lucros e salários, mantendo-a aberta à sangria dos juros altos e do elevado desemprego. Somente a ruptura com as políticas de corte neoliberal durante o governo Lula permitiu que a participação do rendimento do trabalho na renda nacional passasse a crescer continuamente, ultrapassando o peso relativo da renda somada dos proprietários e mista ao final da década de 2000. Entre 1990 e 1996, por exemplo, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional diminuiu 15,4%, com sua leve e não sustentável recuperação de 4,9% entre 1996 e 2001. De 2001 a 2004 houve nova queda de 2,1% no peso relativo do rendimento do trabalho na renda nacional, para, a partir de então, registrar a tendência de elevação dos salários acima da renda dos proprietários, cuja estimativa de aumento acumulado seria de 10,3% até 2010. Neste ano, em especial, o peso relativo do total da remuneração dos trabalhadores na renda nacional teria ultrapassado o conjunto das demais rendas pela primeira vez desde a ascensão das políticas neoliberais. Ou seja, quase 20 anos depois. A resistência dos neoliberais segue inviabilizada pela verdade dos fatos. Seus argumentos procuram menosprezar o sucesso das políticas econômicas e sociais atuais, quando, na realidade, nada apresentam de conexão com a regressão socioeconômica da década de 1990. Apenas a ilustração referente à evolução da distribuição funcional da renda nacional permite constatar o sucesso do Brasil pós-neoliberal. F

MARCIO POCHMANN é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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A inclusão digital e a construção do e-cidadão por João Carlos Rebello Caribé

A

internet há muito deixou de ser apenas uma rede de computadores: ubiquamente ela permeia o tecido social, tornando-se invisível. Vai sendo incorporada ao nosso ecossistema social de modo tão eficiente que, hoje, muitos de nós não saberíamos mais viver sem ela. A dicotomia real versus virtual já não faz mais sentido, ela é apenas um instrumento metafórico que nós, imigrantes digitais, usamos para fazer a ponte com os “analógicos” e para que possamos entender a revolução que vai se desenrolando a passos largos. Para os nativos digitais, essa dicotomia simplesmente não existe, assim como muitos outros dogmas e valores do século XX, que começam a ser questionados no novo choque de gerações. Este novo ecossistema social deu voz aos excluídos, permitiu conectar ideias e ideais, mudou radicalmente o modelo de comunicação de massa. Democratizou o acesso ao conhecimento e à produção cultural e intelectual, e segue criando novas formas de relacionamentos. A facilidade e a velocidade de se produzir e consumir informação nesse espaço alavancou o conceito da instantaneidade e sublimou o romantismo do “furo jornalístico”, vários grandes fatos recentes noticiados pela mídia mainstream foram antes noticiados pela mídia mystream. A teia global agora é uma colmeia global, onde a construção coletiva e cognitiva do conhecimento está formando a Inteligência Coletiva, são os prosumers que trabalham em crowdsourcing para isto. Os fatores geo­ gráficos e sociais não são mais os únicos a delinear os grupos de interesse, pessoas se agrupam por afinidade ideológica com grande facilidade - e sem necessariamente estarem geograficamente próximas ou serem da mesma classe ou grupo social. Essas inovações também estão mudando as formas de articulação da sociedade e da política. O mundo real é plural: além dos nativos e imigrantes digitais, temos os excluídos digitais, que justamente por não estarem par-

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Para incluir as pessoas digitalmente, é necessário pensar além do simples acesso ou conhecimento técnico, e entender como são construídas as relações dos incluídos com a rede e com seus pares dentro do ecossistema social ticipando dessa revolução, estão involuntariamente aumentando o gap de sua própria exclusão social. O Brasil é o quinto país com o maior número de usuários de internet, ficando atrás apenas da China, Estados Unidos, Japão e Índia. Se levarmos em conta a penetração da internet, o Brasil não se posiciona nem entre os 50 primeiros. Chegando a 43% da população, o país fica acima da média da América Latina, que é de 34,8%, e da média mundial, de 28,7%, e acima da média de penetração dos Brics, 22,5%; nesse bloco, o Brasil é o país que melhor se posiciona. Em relação ao G8, onde a internet chega a 70,2% da população, o Brasil está muito distante. Se levarmos em conta o crescimento de 13% registrado no período entre 2008 e 2009, somente em 2014 teremos a média atual do G8. Manter ou aumentar esta taxa não é tarefa fácil, já que se trata de um país enorme, tanto em tamanho como em diversidade, sendo que a penetração do acesso nos centros urbanos é de 47% enquanto nas áreas rurais é de 21%. Existem ainda grandes diferenças entre as re-

giões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste, e de faixa etária, classe social, dentre outras, assim como nas formas e locais de acesso. O governo federal tem atualmente 23 programas de inclusão digital, incluindo o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), distribuídos em cinco áreas de atuação específica, que identifico como: Monitoramento, Infraestrutura, Fomento de negócios, Acesso, Educação e capacitação. Além desses, temos de contabilizar o trabalho de inclusão digital proporcionado pelos centros pagos de acesso público, as lan houses, que concentram 45% dos acessos à internet no País, e com grande penetração justamente nas áreas mais carentes. Organizações como a ABCID, CDI, Cufa, Raio e Sebrae desenvolvem excelentes programas para a inclusão digital e o fomento de negócios pela internet. E, para sermos justos, temos ainda de adicionar na conta os milhares de programas de inclusão digital nas esferas estaduais e municipais, além de milhões de iniciativas voluntárias. A criação da nova Secretaria de Inclusão Digital Interministerial, envolvendo pelo me-

Penetração da internet

Usuários conectados

Percentual da população

Valores em milhões

100%

100%

80%

80%

60%

60%

40%

40%

20%

20%

0%

China EUA Japão Usuários População

Fonte: Internet World Stats

Índia

Brasil

0%

China Usuários

EUA

Japão

Índia

Brasil


A construção do e-cidadão

Para atingir os objetivos da inclusão digital, é necessário pensar muito além do simples acesso ou conhecimento técnico - é preciso entender como são construídas as relações dos incluídos (nativos e imigrantes digitais) com a rede e com seus pares no ecossistema social. Em 2008, publiquei em meu blogue a Pirâmide das Necessidades em Mídias Sociais, baseada na Hierarquia das Necessidades de Maslow. Esta pirâmide apresenta as etapas das relações dos usuários com a rede e seus pares, desde o acesso inicial até se tornar uma cibercelebridade. A mesma pirâmide pode ser aplicada perfeitamente às etapas a serem percorridas no processo de inclusão digital e construção do e-cidadão:

elZA fiÚZA / ABr

nos 13 ministérios, é uma sinalização clara de que o governo deseja intensificar a inclusão digital no País. Este é o momento mais propício para avaliar os programas existentes de forma estratégica, mensurar seus resultados e pensar nos principais objetivos da inclusão digital para o futuro da nação. Mas para que a inclusão digital? E com que objetivo? No Plano Brasil 2022, uma projeção bem interessante desenvolvida pela Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo federal mostra que existem objetivos claros que apontam a necessidade de uma inclusão digital intensa. São eles: a necessidade de aprofundar políticas públicas de redução da desigualdade, redução da assimetria dos estados, maior participação da sociedade nos temas do Executivo e do Legislativo, questões ambientais, e tudo isso baseado em um moderno sistema de comunicações que permita a participação da sociedade no sistema econômico e social. Segundo Manuel Castells, o desenvolvimento sem internet na era da participação seria o equivalente à industrialização sem eletricidade na era industrial. Ele reforça, ainda, que sem uma economia e gestão baseadas na internet, qualquer país tem pouca chance de gerar os recursos necessários para cobrir suas necessidades de desenvolvimento num terreno sustentável, sob todos os aspectos. Em pesquisa recente, identifiquei nove objetivos da inclusão digital, que são o acesso à informação e ao conhecimento, produção cultural, produção científica e acadêmica, empreendedorismo, e-gov, educação, negócios, questões ambientais e construção coletiva (construção da inteligência coletiva). Por fim, enquanto a inclusão social tem como meta principal a construção do cidadão, podemos afirmar que a inclusão digital tem como meta principal a construção do e-cidadão.

Para atingir os objetivos da inclusão digital, é necessário pensar muito além do simples acesso técnico

Conhecimento tecnológico – O conhecimento técnico mínimo necessário para permitir ao usuário a utilização de um dispositivo computacional. Conexão, acesso – Esta segunda etapa está nos objetivos de infraestrutura e acesso. Interação, participação – É o momento em que o usuário começa a interagir em mídias sociais, é o momento das descobertas que, em geral, são feitas com pares próximos – laços fortes. Estima, reconhecimento – O usuário já transita com facilidade no novo espaço e

tornou-se de fato um interagente, um prosumer, que produz e compartilha em busca de estima e reconhecimento. Autorrealização – O usuário conseguiu produzir relevância com seus pares e, no seu nicho de atuação, é uma cibercelebridade, conquistou respeito e admiração. A quebra de barreiras geográficas e culturais proporcionada pela internet permite ao indivíduo agrupar-se por interesses e ideologias, cada grupo desse é um cluster. Indivíduos pertencem a tantos clusters quantos forem seus interesses e ideologias, sendo

Construção do e-cidadão

A pirâmide das necessidades em mídias sociais Autorrealização Estima, fama Interação, participação Conexão, acesso Conhecimento técnico julho de 2011

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que em cada um ele pode ter um nível de envolvimento e importância diferente. Dessa forma, ele pode estar no topo da pirâmide em um cluster ou no terceiro degrau em outro. Mas qual a proporção atual de usuários em cada um dos degraus? Em seu livro The Open Brand, Kelly Mooney apresentou o estudo E-citizens, de 2007, que, se conectado com a nossa pirâmide, dividiria o degrau “interação e participação” em dois, que seriam o que ela chama de “competência e coletivismo” e que incluiriam 90% dos usuários de internet. Um dos objetivos da construção do e-cidadão é leválos para a fase da mudança cultural, na qual consequentemente serão construídas novas e-celebridades. Nessas duas fases ou nos dois últimos degraus da pirâmide, encontramos o que podemos chamar de e-cidadão. Podemos observar, na construção do e-cidadão, que ele transita de um espaço de colaboração intensa com laços fortes (pessoas com quem nos relacionamos on-line e também off-line) para um espaço de colaboração com laços fracos (pessoas com quem nos relacionamos apenas on-line). Ainda nesse processo, temos claramente a percepção da troca de uma relação de colaboratividade para uma relação de individualismo. Temos também outro elemento a ser percebido, decorrente da inclusão digital, que é a redução do Índice de Distância do Poder (IDP), isso porque a internet facilita o contato entre as pessoas e dispensa intermediários. Assim nos tornamos próximos de políticos, celebridades e empresários. Geert Hofstede desenvolveu o estudo das dimensões culturais da sociedade em mais de 70 países, onde siste-

74%

16%

COMPETÊNCIA

COLETIVISMO

Eu posso!

Eu conecto!

Usa as ferramentas da web Conecta e compartilha para diversão, aprendizagem com pessoas que possuem e produtividade interesses similares

NEÓFITOS Força dos laços fortes

Dimensões culturais IDP

Geert Hofstede 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%

G8

EUA

matizou cinco dimensões culturais. Em nossa análise, utilizaremos apenas duas delas, o IDP e o Índice de Individualismo (IDV). Ao cruzar os dados dos índices de Geert com os dados de penetração da internet, percebemos que, nos países com maior penetração, há a redução do IDP e o aumento do IDV. O IDP médio do G8 é de 52 e o IDV de 70, sendo os Estados Unidos o país mais individualista do bloco, com um IDP de 40 e um IDV de 91. A América do Sul possui um IDP médio de 66 e um IDV de 26, e o Brasil possui respectivamente 69 e 38. Estes números nos fazem crer que a construção do e-cidadão leva ao crescimento do individualismo dentro da cultura nacional, o que, segundo Norberto Bobbio, é interessante para o desenvolvimento da democracia, uma vez que o individualismo faz com que as massas não fiquem estagnadas. A questão é que, se o

7%

3%

MUDANÇA CULTURAL

CELEBRIDADE

Eu faço!

Eu sou o cara!

Produz e compartilha experiência com os outros, torna-se um formador de opinião

Busca reconhecimento e fama em seu nicho

ELITE Força dos laços fracos Kelly Mooney / The Open Brand

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IDV

América Latina

Brasil

individualismo for a regra, e não a exceção, poderemos perder um ponto forte dentro do nosso ecossistema social. Clay Shirky, no documentário Us Now, apresenta um novo olhar sobre a sociedade atual. Shirky afirma que o comportamento da sociedade no século XX foi, na verdade, uma anomalia, e hoje estamos vendo uma reversão a um padrão humano natural de solidariedade e colaboração, de coletivismo em detrimento do individualismo. É o que nos aponta a pesquisa Sonho Brasileiro, segundo a qual mais da metade dos jovens pensam e agem em coletivismo, e mais de 70% deles consideram a internet como ferramenta para fazer política.

A emergência do quinto poder

Promovendo uma adequada inclusão digital, com fomento de oportunidades e letramento digital, no espaço da cidadania, estaremos reforçando o novo elemento da matriz de força que constitui os poderes da democracia. Não podemos mais nos restringir apenas aos três poderes do Estado e às corporações como o quarto poder. Hoje, temos claramente a construção de um quinto poder, que é a sociedade organizada e conectada (e-cidadania), ou seja, os e-cidadãos. Estamos vendo a Global Revolution, Marcha da Liberdade e outros movimentos, e-cidadãos estão articulando e agindo politicamente como nunca na história da humanidade, estão clamando por um mundo melhor para todos, estão construindo o quinto poder, equilibrando a matriz de poderes para o aprimoramento do estado democrático no século XXI. F João Carlos Rebello Caribé é publicitário, consultor

de inovação e ciberativista e escreve no blogue Entropia http://entropia.blog.br. Este texto é uma adaptação do artigo publicado no e-book Para entender as mídias sociais, disponível em http://va.mu/ECJ.


Os caminhos virtuais do triunfo de Humala Em uma disputa acirrada no segundo turno, a internet foi um fator fundamental para a vitória do candidato da coligação Gana Perú

por Brunna Rosa

littonoma

C

om apenas 3% de vantagem, a vitória do candidato progressista Ollanta Humala sobre a candidata da direita Keiko Fujimori evitou, nas palavras do prêmio Nobel de literatura Mario Vargas Llosa, o retorno “de uma gangue voraz aliada a negócios sem moralidade, jornalistas desonestos, bandidos e assassinos”, ou ainda do “fascismo do século XXI” no Peru. O uso de palavras tão fortes não era mero acaso. Keiko Fujimori é filha do ex-presidente e ditador Alberto Fujimori, que comandou o país entre 1990 e 2000, e, apesar de tentar desvincular a sua imagem da de seu pai, não conseguiu se desvincular politicamente do seu legado. “Não se trata apenas de pedir desculpas em uma conjuntura eleitoral para ganhar votos. Trata-se de reconhecer os fatos e se comprometer que estes não vão se repetir. Mas quando se está rodeada das mesmas pessoas, corruptas e cúmplices de todos os crimes da ditadura de Fujimori, acho que não mudou nada”, denuncia Gisele Ortiz, parente de um dos desaparecidos políticos durante o governo fujimorista. Em abril, o resultado do primeiro turno das eleições peruanas apontava a disputa final entre Ollanta Humala, candidato pela Gana Perú, que havia conquistado 33% dos votos, e Keiko Fujimori, da Fuerza 2011, com 21%. Começava a batalha pelos votos no segundo turno, e Lima, a capital peruana, seria o palco principal. Ali se concentram quase 35% dos habitantes do país, e nenhum dos dois candidatos havia conseguido maioria no primeiro turno. Quase 25% dos eleitores locais haviam optado pelo candidato da Alian-

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za por el Gran Cambio, Pedro Paulo Kucinsky, seguido por Keiko, com quase 21% e Humala, com 19%. A principal trincheira para a campanha de Humala também estava definida, a internet. Aproximadamente 5.280 milhões de peruanos têm acesso à rede, sendo que 77% possuem uma página pessoal no Facebook. Destes, 50,5% estão localizados em Lima, ou seja, a internet passava a ser mais do que estratégica para o candidato da Gana Perú diminuir a sua rejeição. À época, a primeira pesquisa divulgada após o primeiro turno, pelo instituto de pesquisa Ipsos – o mais confiável no país –, apontava para um cenário indefinido, no qual a vitória de um ou de outro candidato seria “cabeça a cabeça”. Humala entrava, então, em seu purgatório e passava a enfrentar o jogo sujo de uma significativa parcela dos meios de comunicação. Pesava também outro fator contra o candidato: a sua baixa popularidade entre a juventude peruana. Segundo o levantamento do Ipsos, Keiko Fujimori tinha 45% das preferências entre pessoas de 18 a 24 anos, enquanto Humala contava com 38%.

muitos meios existia um grande temor de na TV para promover campanhas difamatóque Humala reproduzisse o que Chávez fez rias. Jaime Bayly, apresentador da América na Venezuela. O medo não era ideológico, TV, dedicou quatro programas, de uma hora nem político, o medo era de quem detém os cada, para criticar o candidato da Gana Perú. meios”, avalia a especialista. A organização Em um deles, Bayle pronunciou 40 vezes o não governamental foi uma das instituições nome de Humala (sempre de forma negatique apresentaram estudos que comprovam va), com acusações como a de que ele fingio apoio da imprensa à candidata da direita. ria “ser um democrata, mas, no fundo, é um “Não há análises sérias na imprensa perua- golpista, um capanga mascarado, um consna, o processo eleitoral é apresentado como pirador contra a democracia e a propriedase Humala representasse o inferno. Apenas de privada”. Como contraponto, o escritor dois veículos de comunicação impressos – o Mario Vargas Llosa se ofereceu para produLa Republica e o La Primeira – estavam com zir gratuitamente um programa específico Humala, os demais, estavam todos com Kei- para análise das eleições. A proposta foi enko. É impressionante a sua força”, aponta. Foi caminhada por Gustavo Mohme, que detém justamente através do jornal La Primeira, 30% das ações da rede, mas foi recusada que as primeiras denúncias sobre o “Plan pelo acionista majoritário, que é o próprio Sabana” vieram a público. Por conta disso, o grupo El Comercio. jornal recebeu em sua sede coroas fúnebres Faltando quatro semanas para o fim do com os nomes dos editores, em 12 de maio. segundo turno, o país estava em meio a uma Já nos veículos de rádio e TV, a opção à guerra na comunicação. Organizações sodireita também era escancarada, o que re- ciais e de direitos humanos, estudantes e vísultou no pedido de demissão de vários jor- timas do governo autoritário do pai de Keiko nalistas. Três repórteres da Rádio Líder, por lançaram a campanha “Fujimorismo nunca exemplo, deixaram seus empregos depois de mais”, com o objetivo de evitar que a filha serem pressionados a favorecer Keiko. Fede- repetisse a trajetória paterna. “Seria a reediPlan Sabana rico Rosado Zavala, Jorge Álvarez e Jesús Coa ção de um governo semelhante ao governo No segundo turno, Humala precisou en- debatiam como se dava a manipulação da de Fujimori de 1992, quando deu o golpe, frentar a avidez dos viúvos do poder, que mídia no governo de Alberto Fujimori quan- até 2000, quando já havia ‘comprado’ quacontavam com o apoio de uma verdadeira do receberam um telefonema do gerente da se todos os meios de comunicação”, avalia ofensiva midiática, que se esmerava na fa- rádio, mandando que parassem de falar so- Rocio Silva Santisteban, secretária executiva bricação de factoides para desestabilizar sua bre o assunto. Federico Rosado, que coman- do Conselho Nacional de Direitos Humanos imagem. Era o “Plan Sabana” sendo colocado dava o programa havia 12 anos, não aceitou do Peru. A declaração é uma alusão ao que em marcha, jogando o candidato no meio de e se demitiu no ar. ocorria na era Fujimori, quando uma verdadeira avalanche de boatos, que, Outro caso envolveu Patricia Feito na presença de muitos veículos de comunicação foainda que fossem continuamente desmenti- Montero e José Jara, produtores políticos de diversos ram subornados e/ou extorquidos partidos, intelectuais, dos, na manhã seguinte seriam reproduzidos do canal a cabo “N”, do grupo El artistas, dirigentes para que o regime não sofresse opocomo verdade pelas manchetes dos jornais. Comércio, que foram demitidos sindicais e represen- sição na imprensa. O objetivo era imobilizar o candidato e asso- sob a “acusação” de “humanizar” tantes de organismos “Fujimori encontrou um meio ciar de vez sua figura à do presidente Hugo Humala. Já a apresentadora Jose- internacionais de mais moderno de manter os veícudireitos humanos, o Chávez – “o caudilho histérico”, de acordo fina Townsend, do mesmo canal, discurso foi conside- los de comunicação ao seu lado. Em com a mídia local. protestou ao vivo contra a deci- rado um compromis- vez de ameaçar os jornalistas, ele De acordo com Rosa Maria Alfaro, direto- são da emissora de interromper a so similar ao feito por comprou todas as opiniões”, opina ra da Associação de Comunicadores Sociais transmissão do “juramento pela Lula em 2002, na sua Ângelo Páez, jornalista investigativo Carta aos Brasileiros. Calandria, tais práticas estimularam o medo democracia”, feito pelo candidato. peruano. Fujimori contava com Vlae a desconfiança em boa parte dos eleitoEnquanto alguns jornalistas dimiro Montesinos, diretor do Servires no país. “Tenho a impressão de que em protestavam, outros dedicavam seu tempo ço de Inteligência Nacional (SNI) e principal responsável pela estratégia de compra das opiniões e pela política dos factoides, que consistia na avalanche de notícias com um único objetivo: destruir qualquer adversário em escândalos fabricados. Faltando quatro semanas para o fim do segundo turno, o país estava político As imagens de Montesinos entregando em meio a uma guerra na comunicação. Organizações sociais e de di- US$ 15 mil ao congressista Alberto Kouri, reitos humanos, estudantes e vítimas do governo autoritário do pai de episódio que foi o estopim da crise que levou à queda do ex-presidente, representavam Keiko lançaram a campanha “Fujimorismo nunca mais”, com o objeti- bem como o governo baseava suas relações vo de evitar que a filha repetisse a trajetória paterna com parlamentares, empresários e mídia. O local onde se deu o flagrante foi uma das sa-

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Roberto Stuckert Filho / PR

las do Serviço de Inteligência Nacional (SIN), onde o dirigente recebia políticos, membros das Forças Armadas, autoridades do Executivo e Judiciário, além de donos de empresas privadas e de veículos de comunicação. O próprio Montesinos realizou as gravações que ficariam conhecidas como “vladivídeos”, hoje sob custódia do Congresso peruano. Em 2004, o Congresso transcreveu e publicou seis volumes chamados de “Na sala da corrupção: vídeos e áudio de Vladimiro Montesinos” (1998-2000). Disponíveis no YouTube, os vídeos revelam diálogos como o de Montesinos entregando “350 mil, para dois meses” nas mãos do então dono da Panamericana Televisión, Ernesto Schutz.

“Nós matamos menos que os outros”

A campanha de Humala passou a usar intensamente a internet para divulgar as denúncias das vítimas de Fujimori e contribuir para as mobilizações de rua. O movimento faria sua última manifestação em 26 de maio, o que na internet também ficaria conhecido como #26M, em alusão às manifestações dos “indignados” na Espanha. “Temos a firme convicção de que um futuro governo de Keiko dará as estruturas estatais a um grupo de pessoas que já esteve no poder na década de 1990 e que articulou um Estado corrupto, violou direitos humanos e realizou uma série de latrocínios”, discursou Rocio Silva Santisteban durante o lançamento do movimento. Com as pesquisas apontando crescimento de Keiko perante Humala, associar de vez a imagem de Keiko à de seu pai Alberto Fujimori foi a principal estratégia da campanha do esquerdista na reta final. A coordenação do candidato elegeu as redes sociais como uma das principais frentes para a conquista de voto e produziu material específico sobre a era Fujimori e os desaparecidos políticos. “Muitos diziam que as redes sociais eram apenas para difundir temas, mas, na prática, elas foram o grande diferencial da campanha e por meio delas conseguimos atingir setores que estavam mais contidos”, avalia Elvis Mori, coordenador das redes sociais da campanha. Mas a mudança de cenário contou com uma ajuda do outro lado. Faltando 15 dias para a eleição, o porta-voz da campanha de Keiko, Jorge Trelles, quis defender o governo de Alberto Fujimori com uma argumentação curiosa. “Em todo caso, nós matamos menos que os dois governos que nos antecederam”, afirmou. A frase gerou uma onda de críticas, que continuou mesmo após a candidata condenar as declarações. O porta-voz foi destituído, mas o estafe de Humala sabia que ali

Humala, como Dilma, sofreu ataques na internet no segundo turno e teve que contra-atacar

estava a oportunidade de fortalecer a ligação da candidata com seu pai. Foi promovida uma série de ações que culminaram na presença de mais de 20 mil pessoas no #26M, empunhando o “Não a Keiko”. Faltando poucos dias para a eleição, Vargas Llosa enviou uma carta ao diretor do El Pais solicitando que sua coluna ‘Piedra de Toque’ não fosse mais reproduzida no jornal peruano El Comercio. Segundo Llosa, o diário havia se convertido “em uma máquina de propaganda de Keiko Fujimori”, fazendo de tudo para prejudicar a candidatura de Ollanta Humala, ao “violar as mais elementares noções de objetividade e da ética jornalística”. A carta, enviada, em 31 de maio foi mais uma forma de protesto, com o intuito de mobilizar a sociedade. Um dia depois, mais de 40 intelectuais peruanos lançaram um manifesto afirmando que a chegada de Keiko ao poder seria o pior ao país e que isso significaria dar o poder novamente ao pai.

Em 5 de junho, data do pleito final, o jornal La Republica publicou um editorial que fazia uma “menção especial” aos quase 200 mil jovens que, mesmo não se conhecendo, se associaram por ideias comuns em mobilizações nunca vistas no país. “Hoje os cidadãos contam com ferramentas que lhes permitem exercer diretamente seu direito a se expressar e ser informado. As redes sociais foram uma façanha eleitoral que transformou os fluxos de informação, criando sua própria corrente de opinião.” No final desse mesmo dia, Ollanta Humala iniciou seu discurso da vitória. “Chegamos com êxito ao fim de uma campanha. A grande transformação que hoje chega ao Palácio do Governo é o resultado do trabalho de milhões de peruanos, homens e mulheres, que lutaram para defender a democracia e seus valores”, discursou, perante uma multidão na Plaza Dos de Mayo. Mas, sem a internet, a história poderia ter sido outra. F

A campanha de Humala passou a usar intensamente a internet para divulgar as denúncias das vítimas de Fujimori e contribuir para as mobilizações de rua. O movimento faria sua última manifestação em 26 de maio, o que na internet também ficaria conhecido como #26M, em alusão às manifestações dos “indignados” na Espanha julho de 2011

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“O que queremos são sociedades sustentáveis” Para Pierre Calame, o termo desenvolvimento sustentável é um conceito vazio, que não funciona muito bem no mundo real por Adriana Delorenzo e Renato Rovai

E

m visita ao Brasil, o presidente da fundação francesa Charles Léopold Mayer, Pierre Calame, concedeu esta entrevista à Fórum, na qual defende a expressão “sociedade sustentável”, que implica um novo modo de viver. Ele é autor, entre outros livros, de Missão possível – pensar o futuro do planeta e A questão do Estado no coração do futuro. Com Edith Sizoo, Calame veio ao país para uma conversa com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Os dois lutam por uma aliança mundial para um mundo responsável, plural e solidário, e buscam adeptos para a Carta das Responsabilidades Humanas Universais. A ideia é transformá-la em um documento reconhecido mundialmente tal qual a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Carta das Nações Unidas. Seria um terceiro pilar adequado para lidar com os desafios do século XXI. Nessa concepção, a humanidade tem uma responsabilidade fundamental: preservar os povos, outras formas de vida e o planeta como um todo. Calame estará no Brasil de 19 a 22 de setembro para um seminário no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), onde será apresentada a Carta, que pretende levar à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20, em junho de 2012. Confira a entrevista.

mundiais, durante esta década: a Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos e a Rio+20. A Conferência é um evento histórico para vocês trazerem algo ao mundo, e se transformarem num grande país. E não somente um país poderoso. Às vezes, quando se está distante, as coisas ficam mais claras do que quando se está vendo de dentro. Então, eu gostaria de explicar o porquê deste momento histórico. Primeiro de tudo, Lula quis a Rio+20. Governos importantes de todo o mundo ficariam felizes se tivéssemos esquecido desse aniversário de 20 anos da primeira Cúpula da Terra, e esperavam que nada fosse feito. Porque essa primeira Cúpula, mesmo com algumas deficiências, foi um momento histórico. No entanto, naquela época, o Brasil não estava tão distante da ditadura militar. Vocês sediaram o evento, mas, de fato, o país não era considerado tão potente. De qualquer forma, foram tiradas orientações, diretrizes, pelas quais o mundo deveria mudar, mas o que ocorreu foi que nós nos ativemos ao conceito de “desenvolvimento sustentável”. Mas o desenvolvimento sustentável é um não-conceito, é um conceito vazio. O “desenvolvimento sustentável” é um paradoxo. São duas palavras que significam coisas contraditórias, colocadas juntas, e dizem: pronto, está resolvido! A contradição está superada!

Fórum – Quais são as conexões entre Brasil e França, bem como as expectativas para a Rio+20?

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arquivo pessoal

Pierre Calame – Começo com uma pequena história. A China será, num futuro próximo, o país mais poderoso economicamente, e se conversarmos com os jovens chineses, eles dirão: “Agora é a nossa vez!”. É algo que ouvimos com frequência. “O tempo da Europa e o tempo dos EUA já passaram.” O canal de TV nacional exibiu uma série de documentários sobre o que poderia explicar este momento da história em que um país vira um agente muito potente. A resposta foi que, quando um país inventa algo universal, ele pode ser o mais poderoso do mundo. Mas se não trouxer nada de universal ao mundo, ainda permanecerá provinciano, mesmo sendo a maior potência econômica do planeta. Acredito que essa seja uma questão, agora, para cada um dos países emergentes, inclusive o Brasil. Nossa visita aqui traz uma mensagem muito simples: vocês têm um papel histórico a cumprir, que ninguém cumprirá se vocês não o fizerem. Vocês organizarão três eventos


Infelizmente, trata-se de mágica, e a mágica não funciona tão bem no mundo real. Portanto, todos começaram a exercer o “desenvolvimento sustentável”. A “pegada sustentável” segue crescendo, enquanto o número de carros está explodindo, tanto em São Paulo como na China, e não está diminuindo na Europa. E quando diminui um pouco, todos choram por causa da crise econômica. A contradição entre a necessidade de desenvolvimento, do bem-estar para todos, pode-se dizer, e a necessidade de preservar o planeta levou ao pensamento contraditório, de colocar as duas palavras juntas como se a contradição estivesse resolvida. A esquizofrenia é a epidemia mais importante do mundo. O ano de 2009 foi fascinante sob essa perspectiva. Houve apenas três meses entre o G-20 e a negociação de Copenhague. No G-20, a questão era “como evitar uma recessão global”, e as pessoas discutiram sobre os modos de acabar com as dívidas, de dar mais confiança aos bancos, de começar a recuperar crédito, de lançar uma nova concepção de “desenvolvimento”. Da mesma forma, foram a Copenhague e disseram: “se nós continuarmos consumindo, nós destruiremos o planeta!” Notavelmente, todos eles ficaram loucos. Todos ali eram esquizofrênicos. Eles são ministros das Finanças numa reunião, e ministros do meio ambiente na outra, e dizem coisas completamente contraditórias. É por isso que a maioria dos governos mais importantes do mundo não está muito empolgada para que este evento de aniversário aconteça. Fórum – No passado discutíamos os direitos humanos, mas agora se fala em responsabilidades humanas, estamos num outro momento histórico, sem ter garantido os direitos básicos a toda a humanidade?

brasileiro deve considerar. É a emergência de outro tipo de comunidade global, que ainda não se definiu como o modelo futuro de sociedade. Opor-se é uma maneira de continuar consumindo. É comum o pensamento: “Eu não estou no comando, você está no comando. Não concordo com o que você faz, então, só me oponho”. E quando surge a questão de como fazer a transição para uma sociedade sustentável, muitos se isentam da responsabilidade. Mas é claro que são responsáveis. Para não serem meros consumidores, os movimentos sociais precisam se ver de forma diferente. O que nós precisamos agora é de um novo estágio, em que a sociedade global seja parte da invenção do processo de transição. Para tanto, há outra proposta que trazemos à mesa, um novo desafio que trazemos ao governo brasileiro e à sociedade civil como um todo: o que vamos conceber no momento da Rio+20? Um novo Fórum Social numa sala fechada, com pessoas lendo documentos, e o resto do povo a quilômetros de distância? E então esse povo decide se manifestar e invadir a sala de conferências, e enfrentar a polícia para dizer: “Esses caras são os poderosos e eles não nos querem como parte desta negociação”? Isso foi extremamente útil num dado momento, mas não é mais suficiente. Nós precisamos partir de uma sociedade consumidora e que protesta para uma sociedade que invente essas transições. Os líderes políticos não foram inventados e, enquanto eles decidirem sozinhos os caminhos, eles serão tão impotentes quanto o povo que os considera impotentes. Quando observamos esses líderes, eles estão indo de uma crise à outra, e obviamente não estão preocupados com o futuro do planeta. Fórum – Será possível superar essas contradições na Rio+20?

Calame – Deve-se entender que, há 40 anos, no momento da Confe- Calame – Se não quisermos perder esse momento histórico, teremos rência de Estocolmo, muita gente compreendeu que os dois pilares que fazer acontecer. Mas depende da maneira como ele for organizaexistentes na sociedade – ONU e Declaração de Direitos Humanos do. Se for organizado no formato do Fórum Social Mundial, em que – não eram suficientes. Estes dois pilares da chamada comunidade qualquer um que queira ir possa ir. E qualquer um que for, leve suas internacional, hoje não lidam próprias questões, seus interesde nenhuma maneira com a inNós precisamos partir de uma sociedade consumi- ses, e se todos o fizerem, será tegridade do planeta, nem com dora e que protesta para uma sociedade que invente novamente uma grande jogada a questão de como fazer os dide marketing. E será novamente essas transições. Os líderes políticos não foram reitos ambientais e econômicos um lugar onde todos estarão tenserem de fato efetivos. Pode-se inventados e, enquanto eles decidirem sozinhos os tando convencer os convencidos, hoje discutir e adicionar muitos ou, como dizemos, “pregar para caminhos, eles serão tão impotentes quanto o povo os convertidos”. Até agora, todas direitos aos que já existem, mas que os considera impotentes as conferências nesse sentido, o que aconteceria? Quando você tem seus direitos políticos negaaté mesmo as da ONU, não foram dos, você pode reclamar ou procapazes de dizer aos governos testar, mas se você tem seus direitos ambientais negados, onde é que que ali estavam sentados juntos, qual era o objetivo claro. você reclama? Os governos dizem: “Certo, acontece, mas não há nada Só conseguiram dizer, por exemplo, que o que se queria era “desenvolque possamos fazer, não há dinheiro.” Portanto, no decorrer destes vimento sustentável”. Mas isso não resolve o problema, porque desenúltimos 40 anos, ficou claro que nós precisaríamos de um terceiro volvimento significa a destruição dos recursos naturais, a poluição do pilar para a sociedade, para a comunidade internacional. ar e assim por diante. O que nós queremos são sociedades sustentáveis. Ao longo desses anos, houve muitas tentativas, reuniões, negocia- A menos que a Rio+20 seja organizada de um jeito bastante diferente, ções, para a criação e adaptação disso que poderia ser chamado ela não trará nenhum novo empurrão em direção a um novo modo de de “terceiro pilar”. Mas a grande dificuldade que surgiu foi: o que viver e não influenciará os governos. Porém, essa é uma oportunidaé e quais são as especificidades deste terceiro pilar? É neste ponto de histórica para os brasileiros, para tirarem vantagens dos avanços que estamos trabalhando pelos últimos 15 anos: como colocar esse que houve, das novas formas de se praticar a democracia, servindo tema na agenda internacional, e é aí que entra a responsabilidade para formar uma Assembleia dos Cidadãos do Mundo. E aí colocamos do governo brasileiro. na mesa o que queremos dizer com “responsabilidades universais”, colocamos na mesa uma transição econômica, colocamos na mesa Fórum – Como fazer para que isso esteja próximo da sociedade, com as como conseguir que a comunidade global abrace questões globais. F pessoas sendo vistas cada vez mais como consumidores e não cidadãos?

Calame – Aqui há outra responsabilidade da Rio+20, que o governo

(Tradução de Cainã Vidor)

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A fantástica fábrica de LPs

Conheça a história da única produtora ativa de vinis na América Latina, uma das 41 que ainda resistem no planeta

texto e fotos por Pedro Alexandre Sanches

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m 1969, o mecânico mineiro Nilton Rocha chegou ao Rio de Janeiro e foi trabalhar na manutenção do maquinário de uma grande fábrica de discos. “Lembro da euforia na fábrica, a gente de plantão esperando o Brasil ganhar a Copa do Mundo de 1970 pra prensar mais cópias do compacto com Pra Frente, Brasil, recorda ele, na oficina em que trabalha hoje, em Belfort Roxo, cidade periférica da Baixada Fluminense. Ao seu redor, erguem-se antigas máquinas que em décadas passadas pertenceram à então onipotente indústria fonográfica. Em 1999, Nilton estava para se aposentar. Os bolachões com lado A e lado B haviam sido substituídos em larga escala por discos laser, ou CDs, e a indústria só fazia se desvencilhar das antigas geringonças de fabricar vinil. Em sociedade com o caldeireiro José Rocha, Nilton adquiriu uma série de máquinas obsoletas, de que multinacionais como PolyGram, EMI e Warner queriam se livrar a preços de ferro velho. “Resolvi fazer um apanhado. As fábricas foram fechando, nós fomos comprando as máquinas. Mais por paixão, por gostar e não querer que aquilo acabasse.” Naquele ano, Nilton e José abriram as portas da Polysom. Ali em Belfort Roxo, montaram artesanalmente uma quixotesca fábrica de LPs, quando quase ninguém se interessava mais por LPs. “No início, fizeram muito dinheiro fazendo vinis de música gospel. Mas começaram a lutar com muita dificuldade, porque não tinham mais clientes”, conta João Augusto, um personagem que entrará nesta história logo a seguir. Em 2007, a Polysom de Nilton e José foi à falência e fechou as portas para sempre, ou quase. “O finalzinho foi bem difícil. Aí apareceu outro maluco”, relata Nilton. Refere-se a João Augusto, ex-homem forte de gravadoras

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como a PolyGram (atual Universal), a EMI e a extinta Abril Music, que entre os anos 1980 e 2000 produziu sucessos populares de artistas como Emílio Santiago, Marina Lima, Eduardo Dussek, Legião Urbana, Marisa Monte, Mamonas Assassinas, Los Hermanos, Falamansa, Bruno & Marrone. Dissidente da grande indústria (hoje nada grande), João é desde 1998 proprietário da gravadora independente Deckdisc, que providenciou o advento de artistas como a roqueira Pitty, a sambista Teresa Cristina, os pagodeiros Revelação, Boka Loka e Sorriso Maroto, os sertanejos Edson & Hudson. “Como a gente está sobrevivendo? Não sei. A gente não faz grana como fazia antigamente”, é sua não resposta à pergunta inevitável sobre como se vendem CDs “de verdade” em tempos nos quais o público se esparrama entre CDs piratas, downloads em MP3 e audição de música on-line. Pois não bastava ser quixotesco produzindo e vendendo CDs. Em 2010, João pôs em funcionamento (“ainda claudicando”) aquela que é hoje a única fábrica ativa de vinis na América Latina, uma das 41 ainda resistentes no planeta. “Como a nossa, são só 11. A maioria só prensa os discos, a gente faz o serviço completo”, orgulha-se. Um dos equipamentos pré-cambrianos que integram o aparato é a máquina que faz o material plástico onde serão impressos os sons, o vinil, composto por policloreto de vinila (o popular PVC), estearato de cálcio, cera, corante carbon black (o vinil, em si, é branco, e não preto) e rebarba (ou seja, fragmentos reaproveitados de antigos vinis moídos ali mesmo). Mas por que abrir uma fábrica de vinis quando nem CDs o público quer consumir mais? “Como sempre, fui pressionado pelo Rafael para fazer mais essa maluquice na minha vida”, brinca João, referindo-se ao filho, o músico e produtor Rafael Ramos, que 15 anos atrás o azucrinou até que lançasse os Mamonas Assassinas, que virariam um dos maiores

fenômenos populares dos anos 1990. “Já fiz muita merda, uma a mais não vai fazer diferença. Quando comprei a Polysom, Rafael disse: ‘Agora, sim, você provou que tem culhão’.” Assumiu as dívidas da Polysom, manteve o nome e contratou Nilton e José como funcionários (o último se desligou há pouco, mas seu filho, William Carvalho, é operador de áudio da fábrica). “O risco é alto, mas acho que a advogada que avaliou o caso se apaixonou por mim e falou: ‘Vai lá’”, João, segue brincando, sem bem saber explicar por que ter uma fábrica de discões em 2011. “Era uma construção em ruínas. O cara da manutenção disse: ‘Sou seu amigo, não entra nessa’.” João entrou, reformou as instalações, inteirou-se da mecânica braçal do ofício. “Produção de CD é muito mais veloz, depende menos de erros e acertos”, avalia.

Artigo de luxo e objeto de culto

Dirigindo seu carro a caminho da Polysom, ele conta que a fábrica fica no bairro pobre de Água Branca, onde viveu Wilson Simonal – diz que pensa em colocar uma placa em homenagem ao cantor à entrada. No pátio do terreno, além da caldeira (para as etapas que demandam calor) e do bujão de óleo que a alimenta, há pés de manga e cajá. “Minha esposa veio aqui no início, falou que sou maluco e nunca mais voltou”, ri. “Cada árvore que derrubei tive que explicar pra ela primeiro.” Explica que a região é suscetível a alagamentos, mas o processo de licenciamento ambiental é complicado, e foi mais simples mantê-la ali mesmo. “A fábrica é potencialmente poluidora, tem que ver quanto de fumaça a caldeira a vapor joga no ar, o material de descarte dura séculos. A gente teve que criar todos os protocolos necessários. Antigamente nem havia esse tipo de preocupação na indústria. A fábrica da antiga PolyGram matou um rio, no Alto da Boa Vista. Hoje não faço nenhuma poluição, reprocesso os encalhes, tudo é misturado de novo na composição.”


Ao lado, algumas das etapas de produção de um LP. A etapa mais delicada é a da galvanoplastia, quando, a partir do acetato, é produzida uma matriz de níquel e prata que servirá de molde na fabricação das cópias

É provável que quem canta ou escuta nunca pense nisso, mas, sim, música é poluente. “CD também polui, mas menos. Não depende de caldeira, é à base de laser”, aprende-e-ensina João. “Marisa Monte queria fazer vinil, quando viu como é falou: ‘É muito plástico!’. Eu disse: ‘Tem razão, vou fechar a fábrica’. ‘Não, não, não fecha. Mas é muito plástico.’”, ilustra. No ponto de partida, o conteúdo de um disco chega ao estúdio em Belfort Roxo num CD (antigamente era em fitas de rolo) e passa pelo processo de corte: é gravado por uma agulha de safira num disco de alma de alumínio revestida com laca, conhecido como acetato. Hoje, já há participação de softwares de computador nessa etapa, mas o equipamento mecânico de corte é alemão, datado dos anos 1960 ou 1970, segundo João. Um microscópio acoplado permite verificar os sulcos onde os sons vão sendo gravados – a transcrição dura o tempo exato de audição, e uma vez iniciado o processo não pode ser pausado. Pronto, o acetato não deve ser ouvido, para impedir perdas sonoras. A etapa mais delicada é a da galvanoplastia, quando, a partir do acetato, é produzida uma matriz de níquel e prata que servirá de molde na fabricação das cópias em vinil (com cada matriz, é possível produzir de 300 a 500 cópias de um disco). “Em muitos momentos quase desisti, porque não conseguia fazer a galvanoplastia funcionar direito. É a hora mais bonita, mas também a que dá mais trabalho. William cortava os acetatos e eu estragava. Teve que fazer 23 vezes o lado B de um disco”, lembra João. Pronta a matriz, ela vai para a prensa (a fábrica tem três: duas, para LPs e uma, para compactos), onde servirá como negativo a ser transferido para bolachas incandescentes de vinil, nas quais são grudados, ao mesmo tempo, os rótulos centrais de papelão. Na mesma sala, os discos recém-fabricados são acondicionados nas capas impressas em gráfica, fora dali, e embalados em filmes de plástico. O processo é todo manual, cópia por cópia. A linha de produção na Polysom é inconstante, oscilando numa média de cinco a dez títulos por mês. No dia da visita da reportagem, estava em fabricação um disco da banda carioca Os Azuis. Morto e enterrado, o disco de vinil revive como artigo de luxo e objeto de culto. Chico Buarque encomendou à Polysom uma tira-

gem de LPs de seu novo álbum. Até hoje a microindústria só produziu um produto de exportação, de um disco da banda argentina Babasónicos. DJs profissionais que preferem trabalhar com discos de vinil não são clientes potenciais, segundo João. “O mínimo de cópias que a fábrica produz é 300, uma quantidade que não interessa para eles. A lei brasileira proíbe a cópia privada, e eu, como fábrica, tenho compromisso com direitos autorais. Se o cara não é proprietário dos direitos, sou impedido de produzir”, conta, referindo-se sutilmente a um dos pontos de caduquice da lei de direito autoral vigente no Brasil. Os discos circulam em prateleiras de livrarias como as da Cultura e da Saraiva, em lojas históricas de vinil como a Baratos Afins, ou em ocasiões especiais – a Polysom terá uma loja na nova edição do Rock in Rio, por exemplo. O catálogo da Deckdisc é todo editado em CD e vinil. Parte substancial do movimento da fábrica vem da reprensagem de material histórico das “grandes” gravadoras, licenciados pela Polysom e reeditados na série “Clássicos em Vinil”, mediante pagamento de royalties. Nas salas de estoque, há discos de Jorge Ben (A Tábua de Esmeralda, África Brasil), Tom Zé (Todos os Olhos, Estudando o Samba), Novos Baianos (Acabou Chorare), Djavan (O Som, a Voz, o Violão de Djavan), Secos & Molhados, Titãs e outros. Saem dali ao preço médio de R$ 50 por cópia, e são revendidos por valores não raro exorbitantes. “Estive várias vezes dentro e fora da indústria. Muito dentro, você tende a se amesquinhar e a vedar sua visão. Se torna patronal, tem que defender interesses da empresa. Hoje, nas grandes gravadoras, só vejo todo mundo querendo segurar o emprego”, João avalia, hoje meio dentro, meio fora, e sempre sem muito saber explicar que impulsos o movem. No ritmo atual, sete funcionários dão conta de todo o processo de fabricação da Polysom. Na gravadora Deckdisc, são 20 ao todo, e esse é o tamanho básico das “João Augusto enterprises”. Na ponta mecânica da grande fábrica de ilusões, o resistente Nilton Rocha é um dos sete funcionários da Polysom. Trabalha numa oficina-depósito ao fundo, onde reforma máquinas velhas e cria novas engenhocas. Com material que, para a “grande” indústria, era sucata, ele inventou, por exemplo, uma máquina para furar o centro dos discos de vinil, outra para eliminar os rótulos de papelão antes da moagem dos descartes, outra para embalar numa capa de plástico os lindos bolachões de vinil que as velhas máquinas ainda não desistiram de cuspir. F julho de 2011

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Sintonizando Heliópolis Como muitas emissoras comunitárias do País, a Rádio Heliópolis tem dificuldades para se manter no ar, mas sua atuação já faz parte da história local por nina Fideles

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o alcance, e colocava todas as rádios comunitárias operando em um mesmo dial. Para Laurindo Leal Filho, sociólogo, jornalista e professor de Jornalismo da ECA-USP, a legislação brasileira é restritiva e conivente com os interesses de grandes meios de comunicação, que não querem ser incomodados. “Os detentores do poder no Brasil vão tentar impedir qualquer tipo de concorrência, pois o principal objetivo deles é comercial”, afirma. Quando a lei entrou em vigor, a Rádio Heliópolis teve todos os equipamentos apreendidos na “Operação Sintonia” e um dos coordenadores da rádio foi preso por algumas horas, mesmo com o processo de regularização tramitando no Ministério das Comunicações. Ao ser levado pela Polícia Federal, João Miranda disse aos policiais que “não sabia que orientar e informar a comunidade era crime”. Quem conta a história é Reginaldo José Gonçalves, coordenador geral da rádio e diretor da Unidade de Núcleos Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis (Unas) e do Projeto Jovens Alconscientes. Há mais de 19 anos Gonçalves está atuando na emissora. Entrou como auxiliar no programa de música negra da programação, anotando pedidos dos ouvintes e, alguns O termo rádio pirata, muito anos depois, assumiu a locução do utilizado no Brasil para programa Revolução Rap. definir a prática, remonta “Quando a rádio surgiu foi por às experiências inglesas de uma necessidade da comunidade rádios que operavam em de discutir os problemas, de inforbarcos, de modo a burlar a legislação e furar o blomar os dias de mutirão. Até entrarqueio de apenas um veículo mos no dial, eu não tinha noção do autorizado a transmitir que era uma rádio comunitária, de sinal. Hoje é utilizado de forma pejorativa, agredindo sua importância e do poder que tínhamos nas mãos”, conta Gonaqueles que defendem a rádio comunitária. çalves. Em 2008, a rádio conseguiu

m 1992, com alguns alto-falantes “cornetas” pendurados nos postes da conhecida Rua da Mina, a Rádio Heliópolis começou a transmitir sua mensagem e a fazer parte da vida das pessoas deste lugar que já foi considerado a maior favela do Brasil. É cerca de um milhão de metros quadrados, e possui uma população de mais de 190 mil habitantes, nos 14 núcleos existentes em Helipa, como a comunidade é carinhosamente chamada. Hoje, perto de completar 20 anos, a emissora já passou por diversas frequências do dial, inúmeras notificações de fechamento e uma “visita” da Anatel e da Polícia Federal, que levou todos os equipamentos recém comprados. Mas a história da Rádio Heliópolis mostra que a disputa travada pelas emissoras comunitárias pelas ondas do espaço brasileiro ainda é permeada por leis polêmicas, processos intermináveis de homologação, além de envolver interesses e recursos das poderosas empresas midiáticas. Uma história semelhante à de tantas outras rádios comunitárias por todo o país, que já conseguiram, ou ainda não, operar dentro dos marcos da lei.

Do poste ao dial

Depois de cinco anos transmitindo a programação por meio das “cornetas”, a rádio entrou no sistema de dial, em 1997, e passou a operar sem autorização, como “pirata”. Nesse mesmo ano, a Lei 9.612 entrava em vigor, instituindo o serviço de radiodifusão comunitária, e a vida da Rádio Heliópolis mudou. A lei passava a limitar a potência,

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uma permissão para operar em caráter experimental para fins científicos, uma maneira de testar a frequência 87,7 FM, que abriga as rádios comunitárias que conseguiram a concessão. Um ano após o período de experiências, finalmente saiu a legalização, o que implicava operar nas limitações impostas pela lei para as rádios comunitárias, ou seja, com um transmissor de até 25 watts de potência, atingindo o raio de um quilômetro. Ainda assim, a emissora consegue chegar a quase toda Heliópolis e regiões próximas. Todos os veículos que passaram pelo processo experimental e que tiveram suas licenças regularizadas ocupam o mesmo espaço, o que, para Gonçalves, faz com que as próprias rádios passem a brigar entre si, provocando a desarticulação do movimento. Além disso, sintonizados praticamente no primeiro dial, alguns aparelhos sequer conseguem encontrar a sintonia. “Mesmo considerando a era digital, a rádio comunitária, se bem instituída, tem um papel importante nas pequenas comunidades e regiões mais afastadas, como a Amazônica e algumas áreas rurais. Os grandes meios de comunicação passam a informação de maneira muito homogeneizada, com pautas mais abrangentes, e pouca coisa de local, que é mais atrativa para um público da região”, opina Leal. Gonçalves concorda com a análise. “Nossa rádio tem que ser diferenciada. Falar do mundo, do Brasil, mas principalmente da nossa comunidade. E quando se tem informação, se consegue melhorar a vida, lutar pelos direitos, dos seus e do local onde se vive.” Exemplo dessas mudanças são as diversas histórias


“Não é qualquer música, qualquer rap, que coloco na programação. Tem que ter a ver com o nosso dia a dia, com a nossa comunidade e com a nossa missão de conscientizar sobre a importância da vida, falar de amor”, diz Mano Zóio

Evelson de Freitas / Folhapress

que permeiam a vida da rádio e da comunidade. Uma vez, a filha procurava a mãe depois de 30 anos. Do Ceará, descobriu que a mãe morava em Heliópolis e contatou a rádio. Com o nome completo da mãe e alguns telefonemas, as duas se reencontraram. “Eu não consigo ver Heliópolis sem a rádio comunitária. Tudo perpassa pela rádio e nós temos um veículo de comunicação à disposição da comunidade. É um orgulho”, salienta Gonçalves.

Dezoito horas no ar

São 32 locutores voluntários para manter a rádio funcionando entre as 6 horas da manhã e meia-noite, com música e muita informação. Há programas voltados especificamente para determinados temas como saúde, meio ambiente, cultura e educação. A área musical da rádio também é bem eclética. Gonçalves conta que logo mais será inaugurado um programa de música clássica em parceria com o Instituto Bacarelli, uma escola de música que também atua na região de Heliópolis. “É por meio da demanda da comunidade que criamos a programação. Se alguém estiver sentindo falta de algum tipo de música, ele mesmo pode criar um programa para contemplar o estilo”, conta. Entre os locutores está Danilo Barreto, 27 anos, conhecido como Mano Zóio. Ele é quem comanda o programa Revolução Rap, o mesmo que Gonçalves conduzia há alguns anos. Nascido e criado em Heliópolis, Zóio acompanha a vida da rádio desde 1995 e lembra quando a ouvia ainda pelos megafones nos postes. “Eu sempre ficava curioso e com vontade de falar no microfone, mexer

na mesa de som”, recorda. Foi em 2000 que assumiu um programa e, desde então, nunca mais parou. “A rádio é uma escola para Heliópolis. Com ela conquistei muita coisa, conheci pessoas, música e história”, afirma. Como em toda a programação, a preocupação em passar a informação também está presente no programa do Zóio. Citando alguns dados do desmatamento da Amazônia, diz que gosta de passar a importância do cuidado com a natureza para os ouvintes, como a prática da separação do lixo, a conscientização dos jovens em relação ao uso do álcool, o respeito ao próximo e à comunidade. Quanto às músicas ouvidas pelos jovens, ele se mostra preocupado. “Não é qualquer música, qualquer rap, que coloco na programação. Tem que ter a ver com o nosso dia a dia, com a nossa comunidade e com a nossa missão de conscientizar sobre a importância da vida, falar de amor”, conclui. Mas quem pode falar com conhecimento de causa a respeito da programação é a piauiense Francisca Maria dos Santos, a Chiquinha. Costureira, com 47 anos e há 15 morando em Heliópolis, ela sintoniza a rádio praticamente o dia todo. “Eu acordo, ligo o rádio e aí vou fazer meu café, fazer as minhas coisas. E só depois que a programação acaba que eu vou dormir”, diz. Ela conta que, antes de conhecer a emissora, ouvia uma estação comercial, mas, depois de ter ficado acordada até às 3 horas da manhã esperando tocar a música que pediu, resolveu mudar. “Nessas rádios a gente não consegue falar ao vivo, mandar abraço pros amigos, oferecer uma música, dizer um boa-noite”, explica.

Gonçalves ressalta a importância de Chiquinha no momento em que a rádio entrou no período experimental com a mudança de dial. Ali, foi necessário um forte trabalho de divulgação e, por conta disso, ela telefonava todos os dias, divulgava a emissora e incentivava todas as suas amigas a ligar também. “Teve um dia que eu contei: liguei 24 vezes”, conta orgulhosa. Até hoje tem o hábito de telefonar durante toda a programação, sem distinção de estilo musical e locutor. “Quando ela não liga, a gente até estranha, fica preocupado, acha que ela tá doen­te ou que aconteceu alguma coisa. Rola até uma ciumeira, quando ela deixa de ligar para algum programa”, brinca Gonçalves. Segundo ele, as maiores dificuldades em manter a rádio são financeiras, que sobrevive de doações e apoios culturais de ONGs e pessoas. “A lei regulamenta, mas não dá condições de fazer o trabalho. A maioria das rádios que conseguiu a concessão não se manteve viva.” Para Laurindo Leal, a manutenção, a viabilidade financeira dessas rádios, e a presença da comunidade no dia a dia são pontos que devem ser vistos com muito cuidado. “É importante garantir a participação efetiva das pessoas nas rádios, pois grande parte delas acaba tendo seus objetivos desviados por políticos e igrejas locais, e se tornam porta-vozes destes interesses. E a questão da publicidade pode gerar desvios nos objetivos dessas emissoras. É preciso criar outros mecanismos de apoio do Estado”, opina. Ele menciona que parte da receita de algumas emissoras de TV aberta e a cabo nos Estados Unidos é revertida para um fundo comum voltado para emissoras de televisão comunitárias. A política de outros países sobre os serviços de radiodifusão é bem diferente da que é aplicada no Brasil. Movimentos e organizações populares que lutam pela democratização da comunicação travam batalhas no Legislativo e nas ruas para ampliar a atua­ ção dessas rádios, que, sendo comunitárias, transformam e informam. Enquanto isso não acontece, sintonize a Heliópolis. F

Na rede

Para conhecer mais sobre a Rádio Heliópolis e acompanhar sua programação, acesse www.heliopolisfm.com.br. julho de 2011

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Luiz Beltrame, 102: obra em construção por Fábio Eitelberg e Pedro Biava, de Coroados

Fotos: Pedro Biava

Completei 14 anos / E escrever eu já sabia / Já assinava o meu nome / Lia as coisas que eu queria / Sempre prestando atenção / E fazendo minhas poesias / Aí deixei meu sertão / No estado da Bahia / Vim parar aqui em São Paulo/ Trabalhar de boia fria / Então resolvi casar / e oito filhos teria

Prestes a completar 103 anos, seo Luiz escreve todos os dias. Da luta pela terra ao amor pela viola, tudo é assunto para esse velho poeta, que já viveu muito mais do que uma vida

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ram quase 11 da manhã quando chegamos a Coroados, cidadezinha paulista a pouco mais de 500 quilômetros de São Paulo, ao lado de Araçatuba. “Vire à direita na segunda rua”, assim nos foi indicado. Ele nos esperava sozinho no portão, de chapéu, camisa e calça comprida. Exibia um meio sorriso. Não, era um quarto de sorriso, desconfiado. “Prazer, seo Luiz!”. Poeta e agricultor aposentado, Luiz Beltrame de Castro é pai de oito filhos, tem 47 netos, 75 bisnetos e 20 tataranetos. Escreve poemas desde os anos 1930. Nasceu em 10 de outubro de 1908, na cidadezinha de Paramirim, no sertão da Bahia. Aos 13 anos, mudava com a família para o oeste paulista, vivendo sempre na roça. Não imaginávamos encontrar um homem de 102 anos com tamanha energia, memória, curiosidade e com um senso de humor aguçado, de alguém que está no auge da vida. Do momento do encontro até a nossa partida, o vimos poucas vezes sentado. Parar para um cochilo durante o dia, nem pensar. Ele não usa óculos. Tampouco toma remédios. Não tem dores. Caminha com facilidade. Anda de ônibus, visita amigos, conversa. E como conversa. Seo Luiz gosta de uma prosa. A primeira coisa que disse foi que se não viéssemos daquela vez, não nos receberia mais. Foi uma bronca de boas-vindas, já que fazia mais de um mês que tentávamos cruzar o estado para conhecê-lo. Ele olhava curioso o desem-

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barque dos cinco paulistanos e uma parafernália de equipamentos: câmeras, tripés, computadores. A família foi aparecendo aos poucos, tímida no início. As filhas e alguns netos vieram cumprimentar. Os Beltrame de Castro reuniram a família para nos contar orgulhosamente a vida do mais velho deles, o pai de todos. A casa, muito bem-arrumada, é de Dalva. Ela é a penúltima filha de Luiz. O patriarca veio morar com ela depois de “pendurar” a enxada, aos 96 anos. “De vez em quando, ele fala que quer carpir um pouco, não consegue ficar parado.” Assim como o pai, Dalva é viúva e é carinhosamente chamada de Nena. Os outros filhos estão espalhados. Carlos, o mais velho, tem 84 anos e mora na zona leste de São Paulo. Dirce, a segunda, vive em Birigui, a oito quilômetros de Coroados. O filho Cláudio mora em Lourdes, no interior de São Paulo.

Djalma e Valter já faleceram. Deusdete e Diorandi moram na mesma cidade que o pai. “Aqui é a sala. Este aqui é um quarto, um banheiro.” Seo Luiz foi logo apresentando os cômodos da casa até chegar no seu cantinho: um quarto pequeno com uma cama de solteiro forrada com uma colcha de retalhos muito bonita, um armário e uma mesinha de cabeceira, decorada com fotos e homenagens recebidas. O cheiro da cozinha estava muito convidativo. Realmente aconchegante, a casa. O quintal é espaçoso e tem uma parte coberta que dá abrigo a uma mesa de refeição grande, boa para reunir a família. Como em qualquer casa, roupas no varal. Uma das paredes é privilegiada com um pequeno jardim e algumas plantas e flores. Pausa para o café. Café, leite, pão, mortadela, queijo, manteiga. Uma senhora refeição estava montada enquanto as filhas manejavam inquietamente


o fogão. “Vamos comer, pois logo sai o almoço!”. Seo Luiz come pouco. Gosta de arroz e feijão e toma muito café. Meio-dia cravado. O aroma da comida se espalhava na vizinhança. Hora de conversar com a filharada. Dona Dirce lembrou que já tinham se passado mais de 40 anos desde a morte da mãe. E o pai nunca mais se casou. Nem namorou. O velho poeta sossegou em um luto silencioso. Seu espírito achou na luta pela terra uma atividade para dedicar-se. Dona Avelina, sua esposa, morreu atropelada em São Paulo. Foi se tratar de uma doença na capital e acabou vítima do trânsito. Partiu como a Iracema, de Adoniran Barbosa. Seo Luiz não guardou as meias e sapatos da amada, como na canção, mas uma boa lembrança no coração e um retrato muito bonito: ele e ela, jovens, no começo da vida. Ela era muito bonita. Ele também.

Essa noite eu tive um sonho / Eu o guardei na memória / Quando o dia amanheceu / O que é bom permaneceu / O que era ruim joguei fora

mesmo. Se não tiver um pouco de coração, fica seco. Pode ser uma beleza, com o português correto, mas não passa nada. O negócio do artista é passar alguma coisa pra plateia. Senão não vai”, disse Inezita. Elogio do ídolo, pito da filha. “Pai, por que o senhor escreveu que mora na rua da Amargura?”, questiona Dalva. “Que coisa!”.

Marchando pela terra Foi numa dessas tardes de inspiração que seo Luiz escreveu alguns versos que chamou de Homenagem ao programa. É uma declaração de amor ao Viola, minha viola, apresentado pela cantora Inezita Barroso na TV Cultura desde o início dos anos 1980. Fala assim:

O Movimento dos Sem Terra foi apresentado ao velho agricultor por um dos filhos, na década de 1980. Caiu como uma luva. Ele vestiu a bandeira e o lápis. Poemas sobre a questão fundiária brotaram aos montes. O MST virou tema principal e foi recorrentemente homenageado. Para ele, surgia enfim

Viola, minha viola / Um programa admirado / Esta homenagem eu faço /Porém não sou estudado / Com estes pequenos versos / Peço aos senhores jurados / Que vejam direitinho / Mandem a resposta pra mim / Que moro aqui em Coroado Resposta? É pra já, seo Luiz. Antes de irmos ao encontro dos Beltrame de Castro, levamos o texto a ela, a homenageada. Inezita, emocionada, leu um trecho do poema. Moro aqui em Coroados / Na rua da Amargura / Eu trabalho pesado / Pois tenho pouca cultura / Vivo sempre enganado / Fazendo essas loucuras. O modo como Luiz Beltrame escreve versos fez a cantora e apresentadora lembrar de João Pacífico (1909-1998). Compositor de música caipira, Pacífico escrevia a letra das músicas batucando na mesa da cozinha. Não tocava instrumento, mas era como se tocasse. “É um milagre. Só o coração

um movimento que buscava tirar a terra improdutiva dos poderosos e dar aos trabalhadores. Seo Luiz marchou. Marchou nove longas marchas. Aos 95 anos, realizou uma façanha singular. Em 77 dias, foi da Praça da Sé ao Palácio do Planalto. São Paulo-Brasília. Marchou tanto que conseguiu. No assentamento Reunidas, em Promissão, 700 famílias conquistaram o direito a um pedacinho de chão para plantar. Lá, ele cultivou arroz, alface, quiabo, pepino, feijão, um pouco de tudo. Saía com o carrinho para vender as coisas. Hoje em dia, passa um caminhão para recolher a produção. “Na enxada, nem os netos, que são mais novos, podem com ele, não”, conta Dirce. Seo Luiz nos levou para conhecer o sítio. No caminho, passamos por um acampamento na beira da estrada. “Aqui tem 400 famílias à espera de um pedaço de terra”, nos contou. Ao chegar no lote no qual

Tem a semana e tem os dois dias / Tem as noites e as horas / Assim eu pego na caneta / para contar essa história

Poesia Por que o senhor escreve poesia, seo Luiz? “Eu fecho os olhos e parece que vem alguma coisa. É coisa que Deus manda.” Ele nunca foi à escola, mas aprendeu a escrever com 14 anos, ensinado pelo pai. Desde então, não parou mais. Com os cadernos e roupas, está uma viola velha que ganhou de presente. “Ele tocava e cantava muito bem, é fã do Tonico e Tinoco, mas parou de tocar porque não escuta direito.” A fala é da filha Dirce. As filhas não se conformam. Enquanto precisam de lentes grossas e lupas para enxergar as letrinhas, o pai escreve direitinho, bem em cima das linhas, de olhos nus. Todo dia é assim, ainda mais produtivo depois que deixou a roça de lado. Dalva conta como o pai escreve: “ele pega um dos cadernos, lápis e senta na cama. De repente, se deita e fica com as mãos batucando na barriga. As palavras vão surgindo e ele vai montando o texto mentalmente.” Levanta-se e continua o mesmo batuque numa mesinha de cabeceira. A poesia rimada termina como em um processo musical. “Às vezes eu estou dormindo e acordo assim, pensando as coisas. A gente vê o mundo como é que está. Está muito diferente do que passou. Então a gente fica pensando muita coisa”.

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morou, fez uma exibição de orgulho. Logo na entrada, um pé de tamarindo com mais de 18 anos, alto e formoso. Tem a idade do seu tataraneto mais velho. “Plantei quando cheguei aqui.” A nora, que hoje mora ali sozinha, depois da morte do marido, recebeu o velhinho com carinho. Seo Luiz quis mostrar tudo. Primeiro, a casa, com uma boa cozinha e um quintal arejado, como a da cidade. Depois, com muita disposição, nos levou ao pé de jatobá, que fica no meio do pasto, inspiração para um poema que gosta muito. Um dia estava pensando / Logo que vim pra cá / Aqui no córrego rico / Quando era um literal / Quando tinha a estrada velha / Tinha um pé de Jatobá Seo Luiz foi lembrando do tempo de assentamento em Promissão. “Agora tá bom, porque agora tem umas casinhas pra morar. Quando nós ‘entremos’ ali pra pegar aquela terra, era

Outras estórias – Aqui tinha um gato muito esperto. Um dia eu deixei uma vasilha de café com leite para ele. Quando voltei, ele tinha tomado só o leite e deixado o café. Seo Luiz espera. Olha para os lados. Sorri. Silêncio. Todos riem. – É que o café era em grão... ********* “Não vou tomar remédio bom pra gripe. Quando eu tomo remédio é para “mal” pra gripe. Fazer bem pra ela pra quê?” ********* – As duas palavras que mais têm no mundo, quais são? – Não sei, seo Luiz. – É isso, falou: “não” e “sei”. ********* Abril de 2011. – Sério, pai? O prefeito? – Sim, estava aqui agorinha. – Fazendo o quê? – Sei não. Dona Dalva correu a conferir. Pediu a um dos netos que verificasse o motivo da visita. O menino voltou com a informação: o prefeito não tinha visitado a casa dos Beltrame de Castro. Alerta. Será que a cabeça do patriarca estava começando a falhar? Será que ele estava começando a inventar histórias? A família se preocupou. Seo Luiz esperou o mal-estar se alastrar e, diante de rostos pasmados, soltou: – Primeiro de abril. ********* “Sabe qual é o nome que mais tem no mundo? Quando eu morrer, vocês falam finado. É o nome que tem mais no mundo. É finado. Porque fala, quando morreu, finado Luiz, morreu finado José. O nome primeiro é finado.”

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no asfalto, na enxada limpa, não tinha nada. Fiquei um ano guardando a terra.” Já faz seis anos que ele deixou o campo e foi morar em Coroados, com a filha Dalva. Das marchas ele não participa mais há dois anos. Quando o movimento chama, porém, ele não recusa. Pega ônibus sozinho, visita Promissão, São Paulo, Brasília e Salvador. Tem muito o que falar e já virou referência no Movimento.

100 anos

A igreja de Coroados ficou pequena para tantos convidados. Em 10 de outubro de 2008, parentes de amigos de seo Luiz se reuniram para a missa que celebrou o centenário do chefe dos Beltrame de Castro. Seo Luiz faz questão de nos mostrar um DVD com imagens da festa, que guarda com carinho. O aniversariante, ao lado do padre no altar, recebia com orgulho a homenagem. Os filhos, na primeira fila, estavam emocionados. A festa que seguiu foi num salão. Nos alto-falantes, muito forró. Logo se fez uma grande fila feminina para dançar com o dono da noite, que mostrou por que é considerado um verdadeiro pé-devalsa. Não declinou o dueto com nenhuma das mulheres, mais de vinte, que se aglomeravam ordenadamente para colar o corpo junto ao seu. “Se deixar, ele fica a noite inteira dançando, sem parar. Tanto que no dia seguinte da festa ele andou tortinho, tortinho”, conta a filha Dalva. “Eu estou na terceira idade. Quando a gente sai por aí, ele vai também. Todas as minhas amigas perguntam se eu não vou ficar cuidando do meu pai. Mas ele vai sozinho. Elas perguntam: ‘Ele faz a barba, ele toma banho?’ Sim. Tudo isso ele faz sozinho.” Bem, se os filhos estão na terceira idade, em qual idade estaria seo Luiz? Na idade da alegria: “Acho que é a minha natureza andar com o povo, contente, alegre. Não gosto de brigar, graças a Deus nunca briguei. Acho que a minha vida foi assim até agora. De agora pra frente, não sei.” Para o velho poeta, há uma receita clara para chegar aonde chegou: comer quando não tem fome, beber quando não tem sede, dormir quando não tem sono e depois deitar na rede e descansar. Como assim? “Porque comer sem fome é comer pouco. Beber sem sede é beber pouco. Dormir sem sono é dormir quase nada. E descansar é muito bom...” Desde os 80 anos, ele decidiu comemorar aniversários de cinco em cinco anos. Não que não haja bolinho e parabéns todo ano. Mas festa mesmo, com toda a família reunida, só a cada cinco primaveras. “Talvez a gente não vá durar o tanto que ele dura, mas a gente quer imitar um pouco”, diz o filho Cláudio, que também escreve poemas.

Para a neta Sônia, 2013 promete outra grande festa. O homenageado merece. “Meu avô parece eterno. Ele é tão presente no nosso dia a dia que nós não conseguimos imaginálo no outro mundo.” Já é quase meia-noite e nos esbaldamos no churrasco de boas vindas oferecido pela família. Seo Luiz segue firme. Descansar? Que nada. Incansável, o velho poeta ainda tem fôlego para dançar forró com as filhas e netas. Prestes a completar 103 anos, ele pode não ser eterno, mas demonstra ter disposição de sobra para continuar a escrever suas poesias por muitos anos ainda. E não duvide, em 2013 vai ter festa. F

Fazem parte da equipe que foi a Coroados: Bruno Benedetti, Patrick Torres e Rafael Stédile.

Sempre com a bandeira nas costas, seo Luiz marchou 9 vezes. Na maior delas, foi de São a Paulo a Brasília em 77 dias. Na época, tinha 95 anos


EXISTEM TRÊS FORTES RAZÕES PARA OUVIR E SE APAIXONAR PELO DISCO JUNTE TUDO O QUE É SEU..., de CARLOS NAVAS. A primeira delas é a linda voz e interpretação certeira e encantadora do autor do disco. A outra, é que Navas é acompanhado ao longo de toda a gravação apenas pelo lindo piano de Gustavo Sarzi. A terceira e definitiva razão habita o olimpo da nossa canção popular. O disco inteiro é formado por canções de Custódio Mesquita. Posto isso, seria óbvio e temerário que algo aí pudesse não funcionar. Não basta, assim como quem prepara uma receita qualquer, juntar três grandes ingredientes para que tudo dê certo. As coisas precisam se harmonizar, tudo precisa estar, enfim, em perfeita sintonia. Navas, em seu nono disco, nos dá a impressão de que nasceu para cantar essas canções. Suas pausas curtas, o ritmo contido, a intensidade com que pronuncia os versos, parece que nasceram colados às obras de Custódio desde sempre.

tADeu loppArA

lidade à obra. Navas percebe isso com muita riqueza e consegue, ao mesmo tempo, ser intenso e relaxado, resultado de inteligência e intuição funcionando juntas.

Por sua vez, a economia e o bom gosto de Sarzi nos lembra, de forma irônica, o piano de Tom Jobim. A ironia reside no fato de Custódio Mesquita ser um dos compositores preferidos do maestro soberano. No entanto, ainda que a sonoridade aqui e acolá nos deixe impresso algo de Tom, o jeitão geral da gravação está muito mais para as saborosas invenções dos anos 1930 e 1940, do próprio Custódio. O acertado seria dizer que tanto Tom quanto Navas, com Sarzi, beberam da mesma fonte.

O disco traz ainda a participação das cantoras Rosa Marya Colin, na clássica “Nada Além”, feita em parceira com Mário Lago, e Alzira E., em “Nossa Comédia”. Navas teve o cuidado de, no encarte, fazer um breve comentário em cada faixa, sempre homenageando o seu intérprete original e, consequentemente, as suas grandes influências vocais. Vale lembrar que o lindo repertório de Custódio Mesquita é de um tempo em que o público não identificava o compositor. São, portanto, no consciente coletivo, canções de Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Aracy de Almeida, Mário Reis entre muitos outros.

A música de Custódio Mesquita tem algo de trágico e, ao mesmo tempo, irônico, irreverente. Um humor sutil, quase imperceptível, que serve de alento ao drama que, invariavelmente, se desenrola nas canções. Um contraste difícil, que acaba por conferir ainda mais genia-

Carlos Navas, ao mesmo tempo em que, de certa forma, corrige esse pequeno engano, o reafirma. Com as suas interpretações e um álbum muito bem cuidado, ele transforma esses clássicos do passado em canções um pouco suas também.

JÁ O CANTOR, COMPOSITOR E AGORA SECRETÁRIO DE CULTURA DO ESTADO DA PARAÍBA, CHICO CÉSAR, tocou no ponto, desta vez como administrador público. Pela proximidade das festas juninas, o mercado de shows do Nordeste fica alvoroçado atrás das verbas estatais. Chico declarou, causando um pandemônio danado, que os grupos de forró de plástico não seriam pagos com o dinheiro do Estado.

prossegue com uma indisfarçável e brilhante desfaçatez: “Mas nunca nos passou pela cabeça proibir ou sugerir a proibição de quaisquer tendências. Quem quiser tê-los que os pague, apenas isso.”

Antes que nos aprofundemos na celeuma, é bom definir o que vem a ser, na acertada concepção do secretário, o tal forró de plástico. A expressão, muito bem cunhada, designa os inúmeros grupos que proliferaram do Nordeste para o Brasil afora que tocam o ritmo de maneira industrializada, com apelos sexistas, bailarinas seminuas, instrumentos eletrônicos e uma música que tem pouco ou quase nada a ver com a cultura da região. Não é, enfim, nenhuma novidade. O mesmo já foi feito com a moda de viola do Centro-Oeste brasileiro, com o boi-bumbá do Norte, com o trio elétrico baiano e por onde mais a indústria do disco achar necessário. É uma mina de ouro devastadora, que toma de assalto manifestações que são legítimas e as transforma em um produto de larga escala. Não se trata aqui de preconceito contra o sucesso, mas sim de uma ampla discussão sobre o fomento da cultura e o papel do Estado. Vivemos, enfim, em um país livre. Não constitui crime, portanto, moldar a música à explosão de consumo. São fórmulas conhecidas dos produtores, que invariavelmente dão certo, vendem. O que não se pode admitir é que esse tipo de manifestação, que já tira o espaço de qualquer outra dentro do mercado, seja feito também com as verbas públicas. Ao Estado cabe, sim, preservar a identidade de sua gente, de suas riquezas materiais e imateriais, ou seja, patrimônio histórico e cultural, que são as festas, ritmos, folguedos, prédios históricos etc. O Estado, por definição, é sua gente, sua representação. E sua gente é representada pelas suas manifestações ancestrais, suas obras e gestos. Quando Chico César, numa carta de esclarecimento enviada à imprensa, diz: “O Estado (da Paraíba) não vai contratar nem pagar grupos musicais e artistas cujos estilos nada têm a ver com a herança da tradição musical nordestina, cujo ápice se dá no período junino”, como artista e homem público, ele compra uma briga tão antiga quanto a República. E

No final das contas, Chico prossegue com seus golpes nos detratores que o acusaram de intolerante: “Intolerância é excluir da programação do rádio paraibano [concessão pública] durante o ano inteiro, artistas como Parrá, Baixinho do Pandeiro, Cátia de França, Zabé da Loca, Escurinho, Beto Brito, Dejinha de Monteiro, Livardo Alves, Pinto do Acordeon, Mestre Fuba, Vital Farias, Biliu de Campina, Fuba de Taperoá, Sandra Belê e excluí-los de novo na hora em que se deve celebrar a música regional e a cultura popular.” Parece simples e óbvia a atitude do secretário Chico César. Parece, mas não é. E tampouco é o que se tem como prática Brasil afora. A verdade deslavada é que em muitos dos nossos municípios o que se vê é um extermínio da nossa tradição oral e dos valores básicos da nossa cultura com o aval dos seus governantes. Estados covardes, que servem de extensão ao mercado, que se amparam nele, e vice-versa. Atitudes que justificam e referendam o desmando da grana sobre o patrimônio público e a sua devastação. Além de simples e óbvio, pode parecer fácil também o enfrentamento que Chico César acabou de comprar. Num rápido sobrevoo sobre jornais e sites da Paraíba, no entanto, se percebe o oposto. Ao contrariar interesses de grandes produtores, Chico apanha de setores da imprensa, que o acusam de ditador e conservador, entre outras pérolas. Apesar disso, neste momento, artistas e agentes culturais independentes, de todos os cantos do País, acompanham, entre orgulhosos e ansiosos, o desfecho da história. Os festejos juninos da Paraíba, assim como seu secretário, passaram a ser um paradigma para o Brasil. A pequenina pedra de Davi na testa de Golias, ao contrário do episódio bíblico, não vai derrubá-lo. Mas talvez faça despertar outros gigantes.

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Uma parada em Goiânia E

spírito de geógrafo é uma coisa danada! Enquanto as pessoas “normais” vão passar férias em cidades praianas e outros lugares turísticos, a gente procura conhecer de verdade o Brasil. Não deixamos de ir aos lugares ditos turísticos ― já fui pra Salvador, Diamantina, Belém, São Francisco do Sul, Florianópolis, Maceió, Foz do Iguaçu, Manaus e muitos outros lugares desses ― mas de vez em quando nos enfiamos por lugares onde normalmente só vai quem tem parentes lá. E muitas vezes acabamos “descobrindo” ótimos lugares aonde ninguém vai. Quem já viajou de férias ou folgas prolongadas para Santana do Cariri e Crato (CE), para o Vale do Jequitinhonha (MG), Corumbá e Ladário (MS), Caruaru e Petrolina (PE), Barra e Barreiras (BA), Iraí (RS), Teresina e Picos (PI), Timão (MA), Mulungu (PB), Itapura (SP), Macapá (AP), Barracão (PR), Dionísio Cerqueira (SC), Palmas (TO) e Boa Vista (RR)? Pois eu já. Tá certo que não foram férias inteiras nesses lugares, muitas vezes acabei esticando até lugares como Canoa Quebrada, Fortaleza, Baía da Traição, Recife e Olinda, São Luís e outros locais “turísticos”, mas nossos destinos principais eram os primeiros citados. Nosso negócio era conhecer de verdade o Brasil. Numa dessas viagens de férias, fui parar em Posse, norte de Goiás, com um amigo e colega de muitas viagens, o Marinho. De lá, seguiríamos para Goiânia, lugar que me dava sorte, com muitas mulheres bonitas e em que eu sempre arrumava namorada. Depois, iríamos para as cidades de Goiás e Pirenópolis ― esta última, ainda quase desconhecida pelos turistas. Hoje é uma cidade badalada. Em Posse mesmo, o Marinho começou a namorar uma moreninha linda, a Edinha. E ela resolveu acompanhar a gente até Goiânia, onde um tio seu, o Sissi, tinha um bar no bairro chamado Campinas. Chegamos a Goiânia e, para azar meu, havia um hotelzinho bem espelunca ao lado do bar do Sissi. Pronto! O Marinho não sairia mais dali. Um barzinho bem caído, com uma morena bonita lhe fazendo companhia o dia inteiro, e o hotel baratinho ao lado... era tudo o que ele queria. Um lugar pra parar um tempão. Seria difícil continuar a viagem. Levantávamos por volta das dez da manhã, tomávamos um café e ele ia pro Bar do Sissi, onde a Edinha já estava. Começava a

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beber cerveja e dançar com ela e assim ia até de madrugada. Almoçava e jantava no Bar do Sissi. Durante o resto do tempo, bebia e dançava com a Edinha, quando o rádio do bar tocava alguma música legal. E, como estava animado, achava todas as músicas ótimas. Eu ficava um pouco no bar, mas saía bastante, voltava, e ele estava lá, bebendo e dançando. Lá pelo quarto ou quinto dia comecei a insistir em continuar a viagem. Ele pedia mais um dia... Até que dei um ultimato: – Se você quiser, fique aí. Eu sigo pra Goiás amanhã. Já vi até os horários de ônibus. Falei isso e fui passear. Voltei às cinco da tarde, já pensando em continuar a viagem sozinho mesmo. Os dois dançavam animados. Ela estava com um vestido tomara-quecaia, cobrindo só dos seios para baixo. Os ombros ficavam expostos, e o Marinho quase babava neles, dançando. Quase babava... e vomitou. Isso mesmo. Tinha comido alguma coisa e bebido bastan-

te. Não deu tempo pra nada. Vomitou feio no ombro da Edinha. Vi o vômito descendo pelo peito e pelas costas e entrando debaixo do vestido, e fiquei alegre, pensando que agora ela lhe daria um fora e ele não teria mais o que fazer ali. Eu teria companhia para continuar a viagem. A Edinha pegou um pano de limpar pratos, ao lado da pia, limpou os ombros, as costas e os seios, sujos de vômitos, rindo, e continuaram a dançar. – Ô mulher sem-vergonha ― falei baixinho, e fui a um boteco frequentado por universitárias, belas morenas goianas... F (publicada originalmente, com adaptações, no livro Trem Doido)

MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).


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