104 ano11 novembro 2011
O mundo contra Wall Street Para enfrentar a ditadura do sistema financeiro, milhares de jovens ocupam praças de várias cidades do planeta. São os 99% contra o 1%
issn
1519-8952
no 104 R$ 8,90
Copa 2014 e Olimpíadas 2016: o impacto dos próximos megaeventos
Como a mudança de um albergue desnudou o preconceito em São Paulo
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novembro de 2011
O 15 de outubro
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São Paulo: o albergue e o preconceito
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A marcha das vadias e a liberdade
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Especial Occupy Wall Street O poder da multidão
Clacso A Argentina não volta atrás Especial Megaeventos As escolas no alvo O futebol anticapitalista do St. Pauli A leitura em toda parte Quinteto Violado
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Cartas
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Espaço Solidário
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Diversidade
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Direito
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Mundo do Trabalho
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Nossa Estante
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Toques Musicais
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Penúltimas Palavras
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Por que a democracia não deve ser para poucos A capa desta edição traz o Occupy Wall Street, um movimento que atingiu o centro financeiro dos EUA e, consequentemente, um dos principais do planeta. Não é a pri meira capa em que mostramos a juventude indo às ruas para contestar um sistema dito democrático, que se mostra restritivo e excludente. Os indignados espanhóis já foram nosso tema principal, evidenciando o novo fazer político que surge das ruas, de uma multidão que não tem como referência mais os líderes de outrora, mas sim uma tentativa de tornar horizontais as decisões.
A voz que se ouve hoje não é de um ou de dois, mas de muitos. Aos poucos, na prática, aprendemos como experimentar a participação e o diálogo, não somente no âmbito político, mas em todos os espaços de nossa vida. Não se quer mais o exemplo daque la pessoa que grita por liberdade em praça pública e, dentro de casa ou do trabalho, invoca o autoritarismo. O que se entende por democracia é algo a ser vivido em tempo integral, 24 horas, da forma mais plena.
E esses jovens - e outros tantos não tão jovens - que vão às ruas querem resgatar esses ideais que se perderam em vias pragmáticas, nas quais se acreditou que não se podia fazer mais do que aquilo que se entendia como “o possível”. Até porque o 1%, contra o qual 99% da população começa a se rebelar, deseja que todos entendam que o limite é bem menor do que é de fato. Como diz a jornalista Naomi Klein, essa parcela menor da sociedade espera por crises, já que é nesse cenário, quando as pessoas estão deses peradas, o momento ideal para impor a lista de políticas pró-corporações. Segundo ela, mudanças como “privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públi cos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo”. Mas, desta vez, a história está sendo escrita de forma diferente. E aos críticos que pretendem desmoralizar o movimento por ele, em tese, não “apresentar soluções”, fica outra questão: que tipo de resposta ao cenário de crise, em todas as suas dimen sões, foi oferecida até agora por aqueles que a causaram, ou seja, o 1% que resiste em não partilhar o poder?
A crise, finalmente, surge como oportunidade para que se conquiste algo além das fórmulas prontas, desgastadas, que já não servem a ninguém. E Fórum está acompa nhando esse e todos os movimentos que estão surgindo. Selo FSC
Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Cynthia Semíramis, Idelber Avelar, Igor Carvalho, João Peres, Juliana Rocha Barroso, Julinho Bittencourt, Marcio Pochmann, Mario Henrique de Oliveira, Mouzar Benedito, Nina Fideles, Pedro Alexandre Sanches, Pedro Venceslau, Portia Crowe, Rafael Nardini, Thalita Pires, Túlio Vianna e Vange Leonel. Ilustração de capa: Luciano Tasso. Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: redacao@revistaforum.com.br. Para assinar Fórum: assine@revistaforum.com.br, http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agradecemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 10/11/2011 a 9/12/2011 Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenadora do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Cooperação Internacional). novembro de 2011
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A periferia e sua Primavera de Praga (edição 102) Opa! Que ótimo ler isto aqui! Esse foi um processo que eu tive a felicidade de acompanhar por dentro, de 1993 até pouco tempo. E de perceber muito cedo que tinha potencial de acontecer - tanto que foi lá por 1998 que lancei com a moçada da Trópis, no Jardim Monte Azul, o mote “A periferia é o centro”. Claro que não estou dizendo que foram essas palavras que fizeram a coisa acontecer... mas podem ter ajudado pelo menos uma parte desse movimento a se dar conta de que existia e era isso: um movimento. Ralf Rickli http://pluralf.blogspot.com/
Falsos dilemas e controvérsias sobre o crack (edição 95) Muito boa a matéria. O artigo será citado nas referências bibliográficas de conclusão do meu curso de Multimídia Digital, num documentário sobre crack. Obrigado Geovane Gonçalves
Saramago e nossos moinhos de vento (edição 102) Salve, Saramago! Saudosamente, leio-te mais uma vez e, mais uma vez, com a argúcia da linguagem, a crítica bem construída e a motivação de herança... Que seu legado interdisciplinar, contundente e reflexivo alcance as massas e as faça ver, enfim, que unidos há esperança... ou... seguir-se-á o caminho da cidadania amputada ad eternum... Thaisy Perotto
A coisa mais importante do mundo (página eletrônica) Vi o vídeo A Doutrina do Choque no início do ano, e pude ver com mais clareza que a desgraça capitalista é muito maior do que podemos imaginar. E olha que já nem achamos mais inacreditável isso ou aquilo. Mas o movimento que se inicia é uma luz diante do lucro e da
espoliação do capital financeiro. A revista está de parabéns. Sou assinante com muito orgulho.
Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada nestas logomarcas
Tania Trento
Chega de chiclete (página eletrônica) Não sou economista nem tampouco jornalista, e li na íntegra essa matéria. Os EUA, desde que me entendo por “gente”, sempre foi exuberante, a verdadeira potência mundial. O que percebi é que o capitalismo foi tão selvagem e agressivo que até mesmo eles estão perdendo o controle. Tenho receio, como simples mortal, que eles deem a volta por cima e venham nos cobrar com juros e correção monetária, haja vista que fazem de tudo pra viver o melhor possível, com toda comodidade! Não quero ser pessimista. Bernadete da Graça Andrade
Primeiro comunicado oficial do Ocupar Wall Street (página eletrônica) Só queria elogiar o importante trabalho de tradução que o Idelber Avelar fez e destacar a necessidade de a gente debater as semelhanças entre os movimentos na Primavera Árabe, los indignados em Madrid, os rioters em Londres e os ocupantes de Nova Iorque. Tenho divulgado tudo o que posso no Observatório de Relações Internacionais (www.neccint.ufop.br) Vejam a postagem em: http://neccint.wordpress.com/ 2011/10/04/1%C2%AA-declaracaooficial-do-movimento-de-ocupacao-de-wall-street-divulguem-nainternet-facebook-twitter-e-e-mails/ Estamos todos juntos nesta. Abraços. Luiz Albuquerque
Porto das dúvidas (edição 99) Veja que contradição!!! O capitalismo faz o estrago no mundo e depois ainda aparece alguém pra dizer que Thatcher estava certa. A mídia é um caso sério mesmo...
Essas entidades nos apoiam de diferentes maneiras, mas principalmente com assinaturas coletivas da revista. Se você faz parte de uma entidade que acredita na importância de construir veículos independentes, nos procure, solicite uma tabela e paute na sua diretoria o debate para colocar seu nome aqui, entre os que apoiam a Fórum. Fone: (11) 3813-1836 ou comercial@publisherbrasil.com.br.
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Sancionado, Bolsa Verde alia combate à pobreza com preservação ambiental Em 17 de outubro, data que marca o Dia Mundial de Combate à Pobreza, a edição do Diário Oficial da União (DOU) publicou sanção da presidenta Dilma Rousseff para a lei que cria o Programa de Apoio à Conservação Ambiental (Bolsa Verde), parte do Plano Brasil sem Miséria, projeto do governo federal lançado neste ano para erradicar a pobreza extrema do país. O Programa de Apoio à Conservação Ambiental prevê o pagamento de R$ 300 por trimestre a famílias em situação de extrema pobreza que estejam em unidades de conservação e desenvolvam ações para preservá-las. O objetivo é aliar a preservação ambiental à evolução da qualidade da vida e à elevação da condição socioeconômica.
Como receber Para receber o Bolsa Verde, é preciso estar em situação de extrema pobreza, fazer parte do cadastro único para programas sociais do governo federal e desenvolver atividades de conservação nas áreas previstas. A família também deverá estar inscrita em cadastro a ser mantido pelo Ministério do Meio Ambiente e aderir ao Programa de Apoio à Conservação Ambiental por meio da assinatura de termo de adesão. A transferência dos recursos será feita por até dois anos, podendo ser prorrogada.
Conservação Entre as áreas de conservação abrangidas pela lei estão florestas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável federais; projetos de assentamento florestal, agroextrativistas e projetos instituídos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Estão incluídos também territórios ocupados por ribeirinhos, extrativistas, populações indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. A lei define que, para cumprir os objetivos do programa, a União fica autorizada a disponibilizar serviços de assistência técnica a famílias em situação de extrema pobreza que desenvolvam as atividades de conservação de recursos naturais no meio rural.
Campanha contra agrotóxicos leva filme e debate até Pernambuco O documentário O veneno está na mesa, do cineasta carioca Silvio Tendler (autor de filmes como Os anos JK, uma trajetória política e Jango) faz uma chamada para a luta contra o agronegócio e destaca a importância do estímulo à agricultura familiar. A importância do cultivo da produção agrícola saudável, livre de uso dos agrotóxicos – para um País onde 70% dos alimentos que compõem a dieta dos brasileiros são da agricultura familiar –, torna o filme um forte instrumento para o debate sobre os meios do trabalho no meio rural. Com a ideia de fomentar ainda mais a discussão, Tendler esteve em Pernambuco, na região Nordeste, no último mês de outubro. Na visita, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape) proporcionou o encontro do cineasta com famílias agricultoras da zona da mata pernambucana. O momento serviu para a coleta de informações sobre a realidade de trabalhadores rurais do estado, e subsidiará um novo documentário, que dará continuidade ao debate sobre os agrotóxicos e os riscos causados por eles. Em 20 de outubro, a exibição de O veneno está na mesa reuniu cerca de 240 pessoas no salão nobre da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Ufrpe). Estudantes, professores e agricultores acompanharam todo o percurso e os estragos causados pelo uso de agrotóxicos, assim como a relação deles com o sistema do agronegócio. Após a apresentação, houve debate sobre o assunto. Em linhas gerais, o documentário alerta sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos na agricultura brasileira, que atualmente é a recordista na utilização de agentes químicos, com a aplicação de 5,2 litros/ano por habitante. O documentário – com 50 minutos – foi lançado em julho deste ano e destaca a urgência do tema. Nele, são apontados riscos ambientais e de saúde pública causados pelos agrotóxicos, além dos históricos interesses econômicos das iniciativas pública e privada no setor agrícola. O filme tem circulado em diversos estados do Brasil, geralmente acompanhado da presença do cineasta.
A campanha A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida foi lançada em 7 de abril deste ano e reúne mais de 30 entidades da sociedade civil brasileira: movimentos sociais, entidades ambientalistas, estudantes, organizações ligadas à área da saúde e grupos de pesquisadores.
O presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Francisco Roberto Caporal, que faz parte do conjunto de ações da campanha, esteve na apresentação do filme e destacou a facilidade propiciada no Brasil para a regularização dos agrotóxicos como um dos pontos críticos da expansão desses produtos. “Enquanto nos Estados Unidos são necessários em torno de 250 mil dólares para registrar um principio ativo, no Brasil, esse valor gira entre divulgação solidária 33 e 100 dólares. A importância da intervenção do governo e da atuação A Fórum dedica este espaço à divu lgação de iniciativas ligadas à constante da sociedade aparece como cerne para a continuidade do economia solidária. Se você parti cipa ou promove algum tipo de debate”, comentou. empreendimento relacionado ao com
em contato conosco para divulgá-l
o.
ércio justo e solidário, entre
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A humanização de um espaço: a Praça da Liberdade
vanessa Zettler
Uma das manifestantes que está desde o início da ocupação em Wall Street conta sobre o cotidiano de quem lá está e as perspectivas daqueles que pensam que mudar o mundo não é somente uma utopia por vanessa zettler, de nova iorque*
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uando recebi por e-mail a notícia da campanha criada pelos Adbusters para ocupar a Organização Wall Street, sabia de ativismo que algo grande social sem fins estava por acontecer. Todo lucrativos, de o marasmo político que os fundamentação anticonsumista Estados Unidos viviam há baseada em Vandécadas, principalmente couver, Canadá. após o 11 de Setembro, não poderia continuar, especialmente depois da crise de 2008 e do episódio envolvendo a última elevação do teto da dívida americana em agosto. Acreditei que estava vivendo em uma panela de pressão, e que ela iria estou rar a qualquer momento. Foi o que aconte ceu. Esse estouro, porém, não aconteceu de
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uma vez só, mas por meio de um processo longo, que apenas agora, definitivamente, impacta o mundo inteiro. No final de julho, um grupo de indivíduos começou a se reunir no Tompkins Square Park, no boêmio bairro East Village, em Ma nhattan. Essas pessoas não se conheciam, e foi graças à internet e às redes sociais que nos encontramos. Acreditamos, desde o início, que a ocupação tinha que existir. Era possível perceber que sua força de vontade e inspiração vinham claramente dos recentes acontecimentos da Primavera Árabe e do ve rão europeu. Egito, Tunísia, Espanha, Grécia, e também o Chile e sua luta dos estudantes se transformaram em referências, que nos deram a capacidade de acreditar, ou melhor,
de nos lembrar, de que o povo unido pode, sim, transformar a realidade. Éramos por volta de 50 pessoas, e nos reu nimos naquele parque todos os fins de sema na até o dia 17 de setembro. Nesse processo, criamos os comitês Tático, Comida, Internet, Legal e Artes e Cultura, do qual eu fazia parte. Traçamos planos estratégicos para a poten cial ocupação na própria Wall Street, e planos alternativos, contando com a possibilidade de que não permitiriam que nos instalássemos ali. A expectativa era muito grande, e a exci tação para o grande dia nos inspirava cada dia mais. Não tínhamos certeza nenhuma do que nos esperava, mas tínhamos certeza da im portância desse ato e de que enfrentaríamos unidos o que quer que fosse.
voz às pessoas. Em vez de ter comunidades criadas pelo governo, as próprias pessoas criam isso para si.” Além do aspecto político, ela salienta a importância do espírito de gru po. “Aqui temos um senso de comunidade e de família que é muito importante.” Nos dias que se seguiram, tivemos uma movimentação bem pequena de gente na praça, mas a nossa instalação aconteceu ra pidamente. Logo, já tínhamos um gerador de energia, internet, computadores e a cozinha cada vez mais equipada. Vimos a multipli cação autônoma de iniciativas para formar os comitês de conforto, higiene, biblioteca, informação, ação direta, entre tantos outros. As duas primeiras semanas foram marcadas por tentativas da NYPD, a polícia de Nova Iorque, de nos tirar da praça. Pessoas foram presas por usar o megafone, outras, por er guer barracas para se protegerem da chuva, outras, até por escrever no chão com giz. O companheirismo entre nós apenas cresceu com essas tentativas e, à medida que fomos nos adaptando e negociando com a polícia, a praça foi se tornando cada vez mais um local seguro e confortável para todos aqueles que a procuravam. O sentimento de solidarieda de entre todos nós se tornou mais forte do que qualquer tentativa de nos desestabilizar. Debra Slattery, por sua vez, tem 46 anos e faz parte da ocupação desde o primeiro dia. Desde então, tem trabalhado como voluntá ria no comitê legal da ocupação, contatan do advogados e negociando com a polícia. Ela diz que foram muitos os motivos que a levaram a participar do movimento. “Estou cansada de vêlos (o governo) fazendo a mes ma coisa sempre, de novo e de novo, e espe rando resultados diferentes. Não acho que é loucura deles, acho que é falta de compaixão. Falam que o sistema está quebrado. Na mi nha opinião, o sistema nunca funcionou, a não ser como uma ideia”, analisa. Debra está preocupada com o futuro de sua família: “Eu e meus filhos somos graduados em boas uni versidades, mas não encontramos emprego.” Sobre o futuro do OWS, ela reflete: “É um trabalho em progresso. Acho que essa demo cracia participativa pode funcionar, estamos vendo como isso vai se transformar.” Quando esse texto foi escrito, em meados de outubro, a Liberty Plaza tinha intensa mo vimentação todos os dias da semana, a qual quer hora do dia. O clima na praça é de ver dadeira alegria, trabalho intenso e liberdade para falar o que você estiver pensando. A vontade de se conhecer e criar ajuda mútua entre todos é constante, e não há ninguém que passe por ali sem se engajar em alguma
boa conversa. Para dormir, porém, são neces sários tempo e paciência até encontrar um lugar, pois somos muitos os dispostos a pas sar a noite ali, não importa quanto frio este ja, e mesmo se chover, dormimos com toldos em cima de nós, já que não podemos erguer barracas. Ao redor da praça, se encontram cartazes feitos principalmente de papelão ou de caixas de pizza, com dizeres de todos os tipos. Entre demandas específicas como, por exemplo, o fim da corporate personhood – a lei dos EUA que trata as Em 1886, a Suempresas como pessoas ju prema Corte dos rídicas –, também se encon Estados Unidos tram outros cartazes mais reconheceu as reflexivos como “O mundo empresas como detentoras dos tem o suficiente para a ne mesmos direitos cessidade de todos, mas não de pessoas para a ganância de todos”, e naturais. também temos aqueles com dizeres mais simpáticos, coisas como “Você está muito bonito hoje”. Em pouco tempo, via-se a multiplicação autônoma de iniciativas para formar os comitês de conforto, higiene, biblioteca, informação, ação direta, entre tantos outros vanessa Zettler
Em 17 de setembro, por volta da uma da tarde, éramos por volta de 2 mil pessoas reunidas no Bowling Green, praça onde se lo caliza o famoso Bull, símbolo de Wall Street. Tanto o Bull como a Wall Street estavam cer cados com grades de ferro e por um intenso policiamento. O comitê tático passou então a informação de que marcharíamos até o Zuccotti Park, uma praça localizada a dois quarteirões da Wall Street, hoje em dia reba tizada por nós como Liberty Plaza, Praça da Liberdade, onde estamos instalados até hoje. Ao chegarmos na praça, nos dividimos em pequenos grupos para realizar assembleias simultâneas. O comitê de comida trouxe tone ladas de peanut butter (pasta de amendoim, muito popular entre os americanos) e bagels (pão em formato de rosca), e rapidamente começou a se instalar ali a nossa cozinha. No final do dia, realizamos uma grande assem bleia para decidir o que faríamos a seguir. Foi decidido, por consenso, que dormiríamos na praça. Dezenas de pizzas começaram a ser entregues como doações enviadas de todas as partes do mundo. Por volta de 200 pes soas passaram a primeira noite na Liberty Plaza. Uma noite fria, mas que nos enchia de satisfação pelo incrível feito que havíamos apenas começado. Entre as pessoas ali, estava Quacy Cayas so, que tem 20 anos de idade e nasceu em Georgetown, capital da Guiana. Chegou ao local da ocupação em 19 de setembro e, des de então, trabalha no centro de mídia da Li berty Plaza. “Sou um técnico em informática, e quando vi os computadores na praça, falei: é ali que eu fico!” Quacy ressalta a pluralida de do Occupy Wall Street (OWS). “Não pos so dizer o que é o movimento, porque todo mundo tem sua própria opinião sobre isso. Pessoalmente, estou muito preocupado com a educação, e acho que todo o sistema edu cacional desse país tem de ser reconstruído. Também acho que a ganância corporativa é um grande mal, e estou aqui para dizer ‘não’, eles não podem passar por cima dos meus direitos. Acho que a beleza disso aqui é que cada um pode dizer por que veio.” Quacy é esperançoso sobre o futuro. Para ele, “este movimento significa uma mudança que vai ficar para os nossos filhos e netos”. Quem também chegou logo no início da ocupação foi Kanaska Carter, 26 anos. Ela é natural de Deer Lake, no Canadá, estava em Nova Iorque de viagem quando ficou saben do da ocupação uma noite antes, por meio do Facebook. “Acho que minha vida inteira me guiou para este momento”, acredita. “Esse movimento é importante porque está dando
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A mídia, a polícia e a praça Durante semanas, o movimento foi prati camente ignorado pela mídia corporativa. O pouco que se falou sobre o assunto se limitou a uma análise rasa e superficial. O fato de que somos um movimento sem uma demanda es pecífica foi prato cheio para a grande mídia nos classificar como hippies, mimados, sem conhecimento ou sem esclarecimento. A insis tência em nos associar ao formato repetitivo e conhecido de se protestar, com uma demanda e uma data para acabar, boicotou qualquer possibilidade de análise do potencial inova dor desse movimento e desse momento histó rico. Claro que isso já era esperado, e sabemos a importância de o povo fazer e ser a sua pró pria mídia. Contamos com a tecnologia hoje acessível ao grande público e as redes sociais para divulgar a nossa posição. O Twitter conectou a OWS com o mundo inteiro. Todos os dias também publicamos um grande número de vídeos no YouTube, que rapidamente atingem um alto número de visualizações. Um dos mais acessados
mostra um policial usando spray de pimen ta em mulheres manifestantes, tendo mais de 679.427 visualizações até meados de outubro. Temos desde o começo um canal ao vivo, o Global Revolution, que divulga 24 horas tudo o que está acontecendo na pra ça. Todas as informações sempre estiveram acessíveis para qualquer um que se interes sasse pelo movimento, por meio das várias organizações de mídias independentes que estavam fazendo a nossa cobertura. Para chegar à grande mídia, contamos com uma “ajuda” inesperada. Sob o comando do pre feito de Nova Iorque, que é também mega empresário e oitavo homem mais rico dos EUA, Michael Bloomberg, a polícia da cidade reprimiu com violência as primeiras grandes marchas organizadas pelo movimento, o que repercutiu em todo o mundo. É sempre bom ressaltar que Occupy Wall Street é marcado por sua ação pacífica. Es colhemos a tática da desobediência civil não violenta como nossa mais poderosa arma. A violência, sempre que ocorreu, veio da parte
da polícia. A primeira de suas demonstra ções ocorreu no final de semana após o 17 de setembro, quando mais de mil pessoas mar charam da Liberty Plaza até a Union Square, uma praça bem movimentada e com locali zação central em Manhattan. A polícia reali zou vários bloqueios no caminho até a praça e agiu de maneira bem violenta, desmem brando a marcha, bloqueando grupos com as redes laranjas, usando spray de pimenta, violência física e realizando detenções ale atórias e em massa. Cerca de cem pessoas foram presas nessa tarde. No dia seguinte, a mídia noticiou as detenções e a brutalidade da polícia, mas pouco ou quase nada foi fala do sobre o movimento. No sábado seguinte, 1º de outubro, foi a vez da marcha pela ponte do Brooklyn. Nes ta marcha, o objetivo era cruzar a ponte pelo passeio de pedestres, mas algumas pessoas decidiram passar pela via dos carros como forma de protesto. Os policiais não apenas não fizeram nada para evitar isso, como ainda ajudaram a conduzir a marcha para
por Mario Henrique de Oliveira
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á foi dito em um documentário ir landês que a revolução não será te levisionada. Mas, com certeza, será transmitida pela internet e, muito provavelmente, ao vivo, por algum sistema como o livestream. Há algum tempo, a rede mundial de computadores vem mos trando sua força de mobilização também para causas sociais. Ela não é mais puro en tretenimento. Em fevereiro deste ano, o ex-ditador egípcio Hosni Mubarak teve de deixar o po der devido à grande pressão popular, que teve na internet uma importante ferramenta de mobilização. O caso ganhou o mundo ra pidamente, e logo outros países árabes esta vam fazendo o mesmo. Em maio, foi a vez dos
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Caco Moreira / flickr
AcampaSampa, uma versão brasileira Contrariando aqueles que achavam que o movimento não duraria muito, o acampamento, quando a matéria foi fechada, já durava mais de uma semana
espanhóis tomarem as ruas clamando por democracia. Agora, os arredores da famosa Wall Street, em Nova Iorque, estão repletos de pessoas gritando contra o capitalismo que coloca a população em segundo plano. O movimento se torna global. Em 15 de outubro, as ruas de mais de 80 países foram tomadas por aqueles que estão cansados das decisões tomadas por uma par cela mínima da população que detém o con trole do poder. Estima-se que aconteceram em 950 cidades de 82 países. A ação foi cha mada de Movimento pela Democracia Real Já, e, em São Paulo, o Vale do Anhangabaú foi o local escolhido para servir de acampamento
do movimento. Desde então, o grupo já foi ameaçado por policiais e guardas municipais e quase teve impedido seu direto de perma necer no local. Mas, em 20 de outubro, a juíza Simone Lemos decidiu, em face de um pedi do de liminar feito pelos acampados: “Defiro parcialmente a medida liminar tão somente para, verificada a reunião de pessoas em es paço público tal qual permitido pela Consti tuição Federal, de modo pacífico e sem uso de armamentos de qualquer espécie, autorizar o uso de escritos, cartazes ou afins, impedindo a autoridade coatora de proceder ao recolhi mento de ditos materiais.” A parte do texto da juíza em que se lê
“defiro parcialmente”, diz respeito ao pe dido que foi feito pelos acampados. A juíza autorizou somente a comunicação visual do movimento, com faixas e banners, mas negou o pedido das barracas, pois considerou que isso descaracterizaria o movimento, que dei xaria de ser uma manifestação para ser uma ocupação. Manifestantes já entraram com um pedido de agravo no Tribunal de Justiça de São Paulo para que as barracas possam ser erguidas, alegando que não se trata de uma ocupação, mas de uma “reapropriação do que é do povo pelo povo”. Segundo o ad vogado Paulo César Malvezzi, do grupo de advogados do Instituto Práxis de Direitos Humanos, que representa os acampados, “as barracas seriam apenas uma condição da manifestação, necessária para o movimento, mas que não quer dizer, de maneira nenhu ma, que aquele espaço está sendo tomado”. Caíque Mezzeti, de 27 anos, é a prova do poder da internet nessas mobilizações. Mo rador de Santos, foi por uma rede social que ficou sabendo do acampamento. “Vi na pági na de um amigo e pensei: ‘preciso ir para lá, isso é demais’, e, no dia seguinte, estava su bindo a serra”, diz ele. Mezzeti é um dos que estão dormindo ao relento pela proibição das barracas, mas para ele isso não é motivo de desânimo. “O que falta no Brasil é o povo se mexer e, aos poucos vamos conseguindo isso com o movimento”, completou. Contrariando opositores e aqueles que achavam que o movimento não duraria muito, o acampamento no centro de São Paulo, quan
david shankbone / flickr
o meio da ponte. Quando já estávamos com todas as pessoas na ponte, a polícia fechou os dois lados e prendeu 700 manifestantes, contando com ajuda de ônibus para levar os detentos para a delegacia. Dessa vez, a gran de mídia foi obrigada a falar sobre o Occupy Wall Street. A tática do prefeito Bloomberg para nos enfraquecer acabou funcionando de maneira oposta, e foi depois deste even to que passamos a ter um imenso apoio não apenas de cidadãos de Nova Iorque como do mundo inteiro. O ativista Hiro, de 21 anos de idade, já foi preso três vezes em ativida des relacionadas ao OWS. “É uma forma de opressão, eu nunca fiz nada de errado para ser preso.” Ele conta que na primeira deten ção, em 24 de setembro, ficou preso durante 26 horas: “Não é uma experiência legal. Eu não sabia de nada o que estava acontecen do, mas quando eu fui solto e voltei para a praça, ela estava com o dobro de gente, e me receberam muito bem.” Hiro concorda que as prisões trouxeram atenção para o movimen to “A gente só cresce com isso. Os vídeos com
Em 17 de setembro, o famoso Bull, símbolo de Wall Street, estava cercado com grades de ferro e por um intenso policiamento
a brutalidade da polícia se tornam virais, e eles acabam colaborando com a nossa cam panha publicitária.” Outro momento que também significou uma guinada na divulgação do OWS foi a marcha de solidariedade que contou com a
presença maciça dos sindicatos de trabalha dores de Nova Iorque e dos estudantes das principais universidades. Esta marcha ocor reu em 5 de outubro, uma ensolarada quar ta-feira, e reuniu mais de 30 mil pessoas em frente à prefeitura da cidade.
do esta matéria foi fechada, já durava mais de uma semana e, mesmo com o movimento de pessoas sendo rotativo, pois muitos vão para suas casas ou saem para trabalhar e voltam depois, cerca de 50 pessoas dormem no local, e há momentos em que é possível encontrar mais de 300 pessoas sob o Viaduto do Chá. Assim como muitas das ocupações em ou tras partes do mundo, o movimento está muito bem organizado. Há divisões das pessoas em comissões, como a da alimentação, da segu rança e da divulgação, tudo isso para otimizar o trabalho, que aliás pode ser acompanhado ao vivo pela internet no endereço livestream/ AnonymousBR, canal cedido pelos ocupantes de Wall Street, mostrando mais uma vez o ca ráter mundial da proposta. Todas as noites, por volta das 20 horas, ocorre uma assembleia geral, na qual um membro de cada comissão toma a palavra para dizer como andam os tra balhos e, após isso, é dada voz a quem quiser falar. Antes das assembleias e durante o dia todo, megafones dão voz a incansáveis gargan tas que bradam gritos como “O povo unido go verna sem partido” e “Não nos representam”, pelas ruas e viadutos do centro. Além disso, há também, na entrada do acampamento, uma tabela com a programa ção da semana, sinal de que não pretendem deixar o local tão cedo, como diz Rafael Vila Nova, de 25 anos. “Não há intenção se sair. O principal objetivo é fazer o movimento cres cer e chamar a atenção”. Já houve palestras socioambientais com pessoas de ONGs e cooperativas, aulas de
antropologia e filosofia com professores uni versitários e a presença de artistas como o rapper Gog, que, entre outras coisas, chamou a política de drogas no Brasil de “genocida e exterminadora”, ponderou que a polícia “só existe para cuidar do patrimônio, e não das pessoas” e atribuiu a recusa de inúme ros convites da Rede Globo para aparecer na emissora ao fato de Ali Kamel, diretor-geral de jornalismo, ser “contra a política de cotas e a favor da redução da maioridade penal”. “Esse microfone [no qual estava discursando] fala mais alto que qualquer TV”, disse o músi co, ovacionado depois de suas palavras. Mesmo pedindo mais participação da po pulação nas decisões do governo por meio de referendos e plebiscitos, o principal objetivo da ocupação, segundo participantes, é deixar uma herança, uma história de batalha pelos direitos. “É como a Semana de Arte Moderna de 1922: podem ter sido poucas pessoas que a fizeram, mas deixou um legado, algo para ser debatido pelas outras gerações”, diz Fá bio Mocci, 29, que faz parte da Comissão de Comunicação e postou em seu blogue todo o início do acampamento. Além do AcampaSampa, movimentos semelhantes tomaram praças públicas no Rio de Janeiro, Campinas e Salvador, entre outros locais. Nas redes sociais, internautas não param de perguntar por ações em sua ci dade. A vontade de colaborar parece ser tão grande quanto a velocidade da internet que transmite as notícias. A indignação com o sistema político também está globalizada. F novembro de 2011
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Quem chega na Liberty Plaza pela primei ra vez se impressiona com a estrutura e ener gia vibrante que encontra ali. Apesar disso, porém, parece que a sensação é sempre a de estar um pouco perdido. “Quem é o represen tante disso aqui?”, geralmente me perguntam. A resposta sempre é dada com a explicação orgulhosa de que somos um movimento sem líderes, e de que eu ou qualquer outra pessoa envolvida pode nos representar. As informa ções se concentram na mesa onde se lê escrito Info, e temos um quadro com a programação do dia sempre atualizada, além do nosso jor nal, o The Occupied Wall Street Journal, acessí vel em inglês e em espanhol. Quem passa a noite na praça sempre con corda que acordar na Liberty é uma sensa ção sem precedentes. É acordar no olho do furacão, mas estar em paz, ao mesmo tem po, por saber que todas as outras pessoas que ali habitam têm um motivo muito forte para ali estar. Também é acordar com mi lhares de coisas acontecendo ao seu redor ao mesmo tempo: câmeras tirando sua foto enquanto você ainda se espreguiça, grupos de trabalho que já se organizam ali do seu lado, algumas pessoas tocando música, ou tras fazendo ioga... O café da manhã dura até o meio dia. Com cereais, frutas e pães para todos os gostos. Os grupos de trabalho e gru pos temáticos de discussão, que já se contam às dezenas, se reúnem ao longo do dia. Além das atividades que organizamos, recebemos cada vez mais as visitas de personalidades ilustres, como o filósofo Slavoj Žižek, a escri tora Naomi Klein, o músico Tom Morello, da banda Rage Against the Machine, e o ativista As noções de solidariedade e autonomia entre os ocupantes é o que os mantêm ali até hoje
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Vanessa Zettler
O cotidiano na Liberty Plaza
político Jesse Jackson, entre tantos outros. O pico de movimentação na praça se dá às sete da noite, quando chega o momento de reali zar a assembleia geral, para a qual trazemos as questões debatidas nos grupos de traba lho, fazemos anúncios e abrimos espaço para quem quiser falar ou propor qualquer ideia. O grito de guerra mais usado pelos ma nifestantes quando marcham é o refrão que diz: “Esse é o jeito que a democracia se pare ce”. Esse mote reflete o grito mais agudo que vem desse movimento: o da busca por demo cracia de verdade. A democracia representa tiva já não atende às demandas do agora ba tizado “99%” da população, e essas pessoas decidiram fazer com suas próprias mãos a sua própria forma de democracia. Clamando pela redistribuição da riqueza concentrada em 1% da população, o Occupy Wall Street representa não apenas os estadunidenses, mas o mundo inteiro, que por tempo demais viveu sufocado sob o poder desta forma de organização que nunca atendeu às necessi dades globais por um mundo mais justo. “Achava que seria apenas mais um protes to comum, mas não é. Isso não é uma mani
Na assembleia geral, os grupos de trabalho fazem anúncios e abrem espaço para quem quiser falar
festação tradicional, nós criamos uma nova comunidade aqui”, acredita a jornalista Emily Crockett, que veio de Washington para o OWS. “Nós estamos ‘ocupando’ a opinião pública, estamos mudando o curso do debate nacio nal. Se você vir quais palavras mais circulavam na mídia antes e quais circulam agora, depois da ocupação, verá a diferença. Agora falamos muito mais sobre os reais problemas do país”, garante. Para Emily, o futuro da ocupação “está sendo escrito a cada dia. Cada dia aqui nós co metemos erros e enfrentamos problemas, e a cada dia criamos novas soluções para eles”. A consciência social que se vê entre os ocupantes da Liberty Plaza é cada vez maior. As noções de solidariedade e autonomia en tre nós, os ocupantes, é o que nos mantém ali até hoje. Em uma cidade tão marcada pela apatia política e individualismo como Nova Iorque, a Liberty Plaza se transformou em uma esfera atemporal de companheirismo e humanização de um espaço. Sabemos cada vez mais que este momento político nunca foi apenas norte-americano, pois veio da ins piração do mundo árabe, e agora já atraves sou as fronteiras dos EUA e vem inspirando tantas outras ocupações ao redor do mundo. A força de Occupy Wall Street está em mos trar que sabemos a responsabilidade que temos como atores políticos, em criar uma nova consciência, mais humana e comuni tária. Como lembra a canadense Kanaska, trata-se de uma perspectiva de mudança de vida. Da vida dela e de muitas outras pesso as. “As pessoas, quando vêm para cá, nunca mais querem ir embora. Eu me pergunto: por que isso não poderia durar para sempre?” F
*Vanessa Zettler, 23 anos, é brasileira e mora em Nova Iorque há um ano. Frequenta seu último ano de graduação na The New School for General Studies.
Occupy Wall Street: quatro etapas e um desafio Movimento deixará legado positivo e duradouro. Mas pode tornar-se ainda mais potente, e alcançar objetivos imediatos por Immanuel Wallerstein
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movimento Occupy Wall Street – por enquanto, é um movimento – é o acontecimento político mais impor tante nos Estados Unidos desde as rebeliões de 1968, das quais é descendente ou continuação direta. Por que começou nos Estados Unidos em dado momento – e não três dias, três meses, três anos antes ou depois –, jamais sabere mos ao certo. As condições estavam dadas: crescimento agudo do desastre econômico, não só para os realmente acometidos pela pobreza, mas também para um segmento cada vez mais vasto dos trabalhadores po bres; incríveis exageros (exploração, ganân cia) do 1% mais rico da população americana (“Wall Street”); o exemplo de iradas rebeliões ao redor do mundo (a “Primavera Árabe”, os indignados espanhóis, os estudantes chile nos, os sindicatos de Wisconsin e mais uma longa lista). Não importa tanto saber qual fa gulha acendeu a fogueira. Ela foi acesa. Na primeira etapa – os dias iniciais –, o movimento resumia-se a um punhado de pessoas audaciosas, e na maioria jovens, pro curando se manifestar. A imprensa ignorouas completamente. Até que alguns chefes de polícia imbecis acharam que um pouco de brutalidade acabaria com as manifestações. Acabaram capturados por filmagens e as fil magens infestaram o YouTube. O que nos leva à segunda etapa – a publi cidade. A imprensa não pôde mais ignorar to talmente as manifestações. Então, tentou ser condescendente. O que esses tolos e ignoran tes jovens (e uma e outra mulher mais velha) sabiam de economia? Será que tinham algum programa positivo? Eram “disciplinados”? Fomos informados de que logo as manifesta ções iriam minguar. O que não era esperado pela imprensa e pelos poderes correntes (pa rece que eles nunca aprendem) é que o tema do protesto ressoaria de maneira ampla e rapidamente se popularizaria. De cidade em
cidade, “ocupações” similares foram inicia das. Cinquentões desempregados começa ram a aderir. Celebridades fizeram o mesmo. O mesmo ocorreu com sindicatos, inclusive ninguém menos que o presidente da Federa ção Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO). A im prensa de fora dos Estados Unidos começa va a cobrir os eventos. Questionados sobre o que queriam, os manifestantes respondiam: “Justiça”. Essa começava a parecer uma res posta significativa para mais e mais pessoas. Veio, então, a terceira etapa – a legitimi dade. Acadêmicos de certa reputação passa ram a sugerir que o ataque a “Wall Street” tinha alguma justificação. Repentinamente, a principal voz da respeitabilidade centrista, o New York Times, rodou, em 8 de outubro, um editorial dizendo que os protestantes tinham realmente “uma mensagem clara e preceitos políticos específicos”, e que o movimento era “mais que uma revolta de juventude.” O Times prosseguia: “Desigualdade extrema é a marca de uma economia disfuncional, dominada por um setor financeiro guiado em grande parte por especulação, trapaça e amparo governamental, tanto quanto por investimentos produtivos.” Linguagem pe sada para o Times. Em seguida, o comitê de campanha democrata no Congresso passou a circular uma petição solicitando aos adeptos do partido que declarassem: “Estou com os protestos do Occupy Wall Street”. O movimento tornara-se respeitável. E com a respeitabilidade veio o perigo – quarta etapa. Um grande movimento de protesto, ao se popularizar, costuma enfrentar duas gran des ameaças. Uma, é a organização de signi ficativa contramanifestação de direita nas ruas. Com efeito, Eric Cantor, o linha-dura (e muito astuto) líder republicano no Congres so, já foi convocado. Tais contramanifesta ções podem ser bastante ferozes. O Occupy Wall Street precisa estar preparado para isso e cogitar a maneira como pretende dominar ou neutralizar a eventual contraofensiva.
Mas a segunda e maior ameaça vem do sucesso genuíno do movimento. Conforme ganha mais apoio, ele amplia a diversidade de opiniões entre os manifestantes ativos. O pro blema aqui, como sempre, é como evitar, ao mesmo tempo, Cila e Caribdis¹. Impedir que Occupy Wall Street torne-se um culto para poucos, que seria levado à derrota por ter ba ses muito limitadas; ou que, no esforço para atrair mais gente, o movimento perca coerên cia. Não há fórmula simples para manter-se afastado de ambos os extremos. É difícil. Quanto ao futuro, pode ser que o movi mento tenha força em momentos específi cos. De duas coisas ele pode ser capaz. For çar uma revisão rápida das medidas reais do governo, para minimizar a dor aguda que as pessoas estão obviamente sentindo. E trans formar, a longo prazo, a visão de largos seg mentos da população norte-americana sobre as realidades da crise estrutural do capitalis mo e as grandes transformações geopolíticas que estão ocorrendo, por vivermos hoje em um mundo multipolar. Mesmo que o Occupy Wall Street venha a se esgotar por exaustão ou repressão, ele já terá sido bem-sucedido e deixará um lega do duradouro, assim como ocorreu com as revoltas de 1968. Os Estados Unidos terão mudado, e em sentido positivo. Como diz o ditado, “Roma não foi feita em um dia”. Cons truir uma ordem mundial nova e melhor, e um país novo e melhor, são tarefas que re querem esforço contínuo de várias gerações. Mas um outro mundo é de fato possível (em bora não inevitável). E nós podemos fazer a diferença. Occupy Wall Street está fazendo a diferença – uma grande diferença. F Tradução de Paulo Cezar de Mello, publicado por Outras Palavras (www.outraspalavras.net)
1 Referência à mitologia grega. Cila e Caribdis são monstros poderosos e vorazes, que habitam rochedos opostos, às margens de um estreito. A distância entre eles é inferior ao alcance de uma seta. Por isso, os navegantes precisam de grande destreza para não se aproximar nem de um, nem de outro lado. Referência, na vida social, às situações em que duas posições extremas, e opostas, são igualmente desastrosas. novembro de 2011
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Ocupar Wall Street e o poder constituinte da multidão
A recorrente alusão a um suposto caráter “vago” das reivindicações do Ocupar Wall Street se tornou uma espécie de mantra, de senso comum universal em todas as referências da mídia dos EUA
david shankbone / flickr
por Idelber Avelar
“A
primeira verdade é que a li berdade da democracia não estará a salvo se o povo tole rar o crescimento do poder privado até o ponto em que ele se torne mais forte que o próprio estado democrático. Isso é, em essência, o fascismo — a posse do governo por um indivíduo, um grupo ou qualquer outro poder privado que o controle.” Enunciadas nos EUA em qualquer momento das últimas três décadas, essas frases pareceriam de autoria de algum peri goso comunista. Se perguntássemos a um es tadunidense médio ou a algum comentarista de mídia quem foi o seu signatário, o mais provável é que ouvíssemos menção a Marx, Stálin, Chomsky ou outro “extremista”. O fato
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é que essas frases são de autoria de ninguém menos que o mais bem-sucedido presidente dos EUA no século XX, Franklin Delano Roo sevelt, em mensagem ao Congresso apresen tada em 29 de abril de 1938. O fato de elas soarem tão subversivas e esquerdistas nos EUA de hoje nos mostra o grau do mergulho do país no neoconservadorismo – e derruba, por si só, outro grande mito dos EUA (e do Ocidente), o progresso humano rumo a uma razão cada vez mais ilustrada. Ocupar Wall Street é, acima de tudo, isto: a primeira reve lação em muito tempo, para amplas massas de trabalhadores estadunidenses, de que a História não anda para frente, de que as coi sas não melhoram progressivamente. O momento mais notável do discurso da pensadora e ativista Naomi Klein aos ocu pantes de Wall Street foi o contraste feito
por ela entre os comentários sobre a ocu pação na mídia dos EUA (quando esta não pôde mais ignorá-la) e a reação do resto do mundo ao movimento: “‘Por que eles estão protestando?’, perguntam-se os confusos co mentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta: ‘Por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam aparecer.’ E, acima de tudo, o mundo diz: ‘Bem-vindos’”. Não há contraste mais nítido entre a bolha em que vive a mídia dos EUA e a realidade vivida por milhões de trabalha dores no mundo todo. Fora dos EUA, a per gunta mais recorrente era: “Como é possível que eles não se revoltem?”. Dentro dos EUA, permanecia a estupefação: “O que querem realmente os manifestantes de Wall Street?”. A recorrente alusão a um suposto ca ráter “vago” das reivindicações do Ocupar Wall Street se tornou uma espécie de man tra, de senso comum universal em todas as referências da mídia dos EUA ao movimen to. Na verdade, poucos movimentos são tão claros em seu protesto como o Ocupar Wall Street: o saqueio do bem público pelo capi tal financeiro; a desapropriação de enormes massas de trabalhadores para que o socorro aos bancos pudesse ser pago com dinheiro público; a precarização das condições de tra balho para que o capital pudesse maximizar seus ganhos; a terceirização como alavanca para multiplicar lucros e evitar o pagamento de benefícios trabalhistas; os bônus exorbi tantes a executivos de Wall Street pagos com dinheiro que não foi usado para gerar empre gos; o saqueio completo do sistema de saúde pelas empresas de seguros, que mobilizam exércitos de advogados até mesmo para evi tar pagar o que devem segundo os contratos que elas mesmas assinaram; a enorme quan tidade de dinheiro doada pelas corporações
a políticos cuja tarefa é, esperar-se-ia, a regu lação dessas mesmas corporações; a perpe tuação da tortura, do assassinato e da produ ção armamentista como mecanismo gerador de lucro e destrutor do meio ambiente. O que é tão difícil de entender aqui? Até mesmo um garoto de nove 9 de idade, Sam Kesler, acam pava na recém-nomeada Praça Liberdade com total clareza de seus motivos para estar ali: “O nosso sistema está montado para tirar dos pobres e dar aos ricos. É o contrário de Robin Hood. Não faz nenhum sentido!” O garoto de nove anos explicou o mo vimento com clareza cristalina, mas ABC, CBS, NBC, FOX, CNN e até mesmo o canal “progressista” de notícias, a MSNBC, não conseguem entender: “O que querem os manifestantes de Wall Street? Qual a solu ção que eles propõem?”. O fato de que a mí dia americana não “entende” o Ocupar Wall Street não deve ser debitado simplesmente à hipocrisia ou à má-fé. Seria um erro ler a situação nesses termos. Ela não entende o Ocupar Wall Street porque, para o senso
comum estadunidense, esse movimento extrapola o imaginável. A mídia americana não entende a ocupação porque já não lhe resta língua para entendê-la. A crítica radical ao capitalismo já não habita a esfera do dizível. O crítico literário marxista Fredric Jame son resumiu a coisa de forma lapidar: hoje, é mais fácil imaginar a extinção, o fim da espécie humana, que imaginar o fim do ca pitalismo. É essa completa atrofia no nosso poder imaginativo que o Ocupar Wall Street vem questionar. Confirmação disso é a fúria repressiva com que o movimento foi recebido não só em Nova Iorque, mas em praticamente todas as cidades para as quais se espraiou. A revista Alternet fez a lista das 12 leis mais ab surdas ou anacrônicas que foram desenterra das para justificar as prisões dos manifestan tes. Ela inclui desde a proibição de dormir em público até a proibição de que se assente ou se deite nas calçadas de San Francisco, e até mesmo a proibição de que mais de duas pes soas mascaradas se reúnam em lugar públi
co em Nova Iorque, lei que tem mais de 150 anos de idade. A brutal repressão, que tem incluído ataques não provocados aos ocu pantes, com prisões em massa realizadas, em geral, de madrugada, enterrou de vez qual quer ilusão de que os EUA seriam um país caracterizado pela liberdade de expressão e manifestação em praça pública. Como sempre é o caso nas distorções ideológicas, a confusão da mídia americana não é totalmente despropositada. Ela tem o seu fundo de verdade. Ocupar Wall Street é realmente um movimento que aponta para algo que ainda não tem nome, algo da ordem do inimaginável. A sua única aposta é o po der criativo, constituinte da multidão, mas a única possibilidade de sucesso completo seria uma derrubada total do capitalismo financeiro dos EUA, objetivo que ainda não está no horizonte imediato. No entanto, é justamente isso que faz do dito marxiano, no Manifesto Comunista, algo ainda mais re levante e urgente para os dias de hoje: não há nada a perder, a não ser os grilhões. F
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Trata-se de um movimento largamente espontâneo, na sua maioria jovem, com um enorme potencial de desenvolvimento, que inquieta fortemente os governos, os dirigentes das grandes empresas e todos os policiais do mundo
O movimento dos indignados nasceu na Espanha em maio de 2011, após as rebeliões tunisinas e egípcias dos meses antecedentes. E se estendeu
por ÉriC toussaint
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esde fevereiro de 2003, é a primeira vez que um apelo a uma ação inter nacional numa data determinada recebe um tal eco. Na Espanha, de onde a iniciativa partiu, perto de 500 mil manifestantes desfilaram nas ruas de cerca de 80 cidades diferentes – dos quais 200 mil ou mais em Madrid1.2 Em cinco continen tes, assistiuse a ações populares. Mais de 80 países e cerca de mil cidades viram desfilar centenas de milhares de jovens e adultos em protesto contra a gestão da crise econômica internacional por governos que acodem em socorro de instituições privadas responsá veis pela derrocada e que dela tiram proveito para reforçar políticas neoliberais: demissões em massa nos serviços públicos, sangrias nos serviços sociais e respectivos orçamentos, privatizações maciças, atentados contra os mecanismos de solidariedade coletiva (siste mas públicos de pensão de reforma, direito ao subsídio de desemprego, negociações coleti vas entre assalariados e patronato etc.). Por toda a parte, o reembolso da dívida pública é o pretexto utilizado para reforçar a austerida de. Por toda a parte, os manifestantes denun ciam os bancos. Em fevereiro de 2003, assistimos à maior mobilização internacional para tentar im pedir uma guerra: a invasão do Iraque. Mais de 10 milhões de pessoas reuniramse em inúmeras manifestações em todo o planeta. Depois disso, a dinâmica do movimento al termundista, nascido ao longo dos anos 1990, abrandou progressivamente, sem, no entanto, desaparecer por completo. Em 15 de outubro de 2011, manifestaram se um pouco menos de um milhão de pessoas, mas se trata de uma enorme vitória, porque é
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osvaldo gago / fotografar
15 de outubro: a grande vitória dos indignados a primeira grande manifestação realizada em 24 horas em todo o mundo contra os respon sáveis pela crise capitalista, que faz dezenas de milhões de vítimas. A crise financeira e econômica, iniciadas nos EUA em 2007, estendeuse principalmen te à Europa a partir de 2008. A crise da dívida, que era coisa dos países em desenvolvimen to, deslocouse para os países do Norte. Esta crise está ligada à alimentar, que ataca vastas regiões dos países em desenvolvimento des de 20072008. E se acresce à crise climática, que afeta principalmente as populações do Sul do planeta. Esta crise sistêmica exprime se igualmente ao nível institucional: os diri gentes dos países do G8 sabem que não têm meios para gerir a crise internacional, por isso, reuniram os G20. Estes, por sua vez, há três anos demonstram serem incapazes de encontrar soluções válidas. Esta crise adquiriu uma dimensão civiliza cional. Pôla em causa significa pôr em causa o consumismo; a mercantilização generali zada; o desprezo pelos impactos ambientais das atividades econômicas; o produtivismo; a procura de satisfação dos interesses privados em detrimento dos interesses, dos bens e dos serviços coletivos; a utilização sistemática da violência pelas grandes potências; a negação dos direitos elementares dos povos, como o da Palestina… Muitas vezes é o capitalismo que está no centro do que é posto em questão. Nenhuma organização centralista con vocou essa manifestação. O movimento dos indignados nasceu na Espanha em maio de 2011, após as rebeliões tunisinas e egípcias dos meses antecedentes (e após a espan tosa manifestação de 12 de março em Por tugal, que deixou todos de boca aberta ao
pôr na rua, num só dia, quase meio milhão de pessoas indignadas, ou seja, cerca de 4% da população portuguesa). Esse movimen to estendeuse à Grécia em junho de 2011 e a outros países europeus. Atravessou o Atlântico Norte em setembro de 2011. Evi dentemente, uma série de organizações po líticas e de movimentos sociais organizados apoiam o movimento, mas não o conduzem. A sua influência é limitada. Tratase de um movimento largamente espontâneo, na sua maioria jovem, com um enorme potencial de desenvolvimento, que inquieta fortemente os governos, os dirigentes das grandes em presas e todos os policiais do mundo. Pode alastrar como fogo num monte de palha ou morrer em cinzas. Ninguém sabe. O 15 de outubro de 2011, o apelo à mo bilização, reuniu sobretudo manifestantes dos países do Norte e não poupou os centros financeiros do mundo inteiro, o que é promis sor. O movimento dos indignados desenca deou uma dinâmica muito criativa e emanci padora. Se você ainda não faz parte, procure juntarse a ela, ou lançála se ainda não existe no local onde vive. Interconectemonos para uma autêntica emancipação. F (Traduzido por Rui Viana Pereira para Alainet – http://alainet.org, adaptado para o português do Brasil por Fórum. Original em http://alainet.org/ active/50175)
1 Escrevo estas linhas em Madri, onde participei nesta imponente manifestação de 200 mil pessoas. 2 Nota do tradutor: Em Lisboa, cerca de 100 mil manifestantes marcharam em direção ao Parlamento; aí realizaram uma assembleia popular, aprovaram o apelo a uma greve geral do país, a continuação de diversas formas de luta, e um apelo à suspensão do pagamento da dívida e ao arranque de um processo de auditoria cidadã da dívida pública.
Pra que biofobia? Q
thiago
balbi
uer deixar uma feminista furiosa? Diga que o papel da mulher é, essen cialmente, ligado à sua função bioló gica como reprodutora. Ou que ela perten ce ao sexo que, instintivamente, tem mais condições de cuidar da prole. É verdade que nossos corpos têm um útero capaz de abrigar e levar adiante uma gestação. Não se pode negar também que a amamentação traz benefícios para o bebê. Mas como lidar com essa condição biológica sem incorrer num tipo de sexismo benevolente, que nos coloca como nutrizes preferenciais e alvo de um essencialismo perverso?A solução, a meu ver, seria colocar um fim na dicotomia inútil e já ultrapassada entre biologia e cul tura, entre Ciências Sociais e Ciências Bioló gicas, entre o que é inato e o que é adquirido.
Não se engane com “determinismos bioló gicos”. Desde o final do século XX, evolucionis tas têm derrubado argumentações determi nistas ou fatalistas sobre a natureza humana. Há mais variedade de comportamentos e pa péis sexuais entre sociedades humanas do que a vã antropologia clássica poderia imaginar. Em vez de negar estudos biológicoevolutivos, eu, feminista, me aprofundei neles e descobri um corpo teórico que pode ser muito útil na luta por um mundo mais igualitário. Em primeiro lugar, ao contrário do que Freud dizia, anatomia não é destino. Se de fato não nascemos mulher, mas nos tornamos mulher (e não nascemos feministas, mas nos tornamos feministas), é verdade também que nosso corpo biológico pode ser transformado pelo ambiente físico e até por nós
mesmos. Numa época em que cirurgias para mudança de sexo ficam mais corriqueiras e um macaco pode sentir texturas por meio de um braço biônico, a cisão entre tecnologia, Ci ências Sociais e Biologia parece cada vez mais inadequada. Em segundo lugar, estudos de antropó logas e biólogas feministas contribuem cada vez mais para eliminar a biofobia entre o movimento de mulheres e, ao mesmo tempo, abrem os olhos dos colegas cientistas para o machismo existente em seus campos de co nhecimento. A antropóloga e primatologista feminista Sarah B. Hrdy, por exemplo, de monstrou que fêmeas primatas podem ser tão promíscuas quanto os machos (algo que Darwin não percebeu) e, em seu mais recente trabalho, diz que não há como criar filhos sem uma extensa rede de proteção social e afetiva. Hrdy criou o termo allomother para designar indivíduos de ambos os sexos que ajudam a mãe na criação de seus filhos. Como se sabe, a criança humana tem uma infância longa e, por isso, é mais dependente de tempo e recursos que qualquer outra espécie animal. Sendo as sim, Hrdy cogitou que, sem assistência da co munidade, nenhuma mulher poderia dar con ta, sozinha, de criar seus filhos (sim, desde a PréHistória as mulheres acumulam trabalho e maternidade, lidando com a falta de contri buição paterna). Enfim, Hrdy concluiu que “a ajuda de allomothers foi essencial para a sobrevivência de crianças durante a era do Pleistoceno”. Se você pensou que darwinismo era a “sobrevi vência do mais forte”, saiba que hoje também pensamos em evolução como “sobrevivência dos que mais cooperam”. As sociólogas feministas que lutam por mais creches, maior divisão de tarefas do mésticas, licença maternidade e Bolsa Fa mília nas mãos das mulheres (para lhes dar mais autonomia) estão, no fundo, falando quase a mesma língua das biólogas femi nistas. Assim, biofobia (aversão à biolo gia) não tem o menor sentido. F Twitter: @vleonel E-mail: vangeleonel@uol.com.br
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urbano
Uma história de segregacionismo No bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, um grupo de moradores e comerciantes tentou manter longe de suas casas um albergue que abriga moradores de rua. Um episódio que revela as desigualdades e as contradições da capital paulista texto e fotos por Igor Carvalho
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olado na grade que divisa a calça da da rua Cardeal Arcoverde com o imóvel de número 3.041, está Fá bio Vasconcelos. Aos 34 anos, ele se viu como alvo do julgamento moral de moradores de uma região nobre, que fica a pouco menos de dois quilômetros do lugar em que habita há quatro meses. Enquanto está reunido com os amigos, ele parece ani mado e falador, mas muda quando é indagado sobre a celeuma que envolveu recentemente o albergue onde mora. Nesse momento, este migrante muda completamente a expressão e o ritmo da fala. Preocupado com a escolha das palavras, ele se desculpa e diz que tentará se defender. “Estou no albergue para não pa gar aluguel, sou chapeiro [trabalha como ajudante de cozinha, preparando pratos na chapa do restaurante], tenho quatro filhos no Norte com a minha mulher. Esse pessoal da classe média, eles acham que só porque você está em um albergue é ladrão”, lamenta. “Trabalho, com carteira assinada, a maioria aqui traba lha.” Fábio é um dos moradores do Albergue Cor, que deve ser transferido do atual ende reço para uma área mais nobre de Pinheiros, ainda na mesma rua. Mas seus futuros vizi nhos não o querem por lá. Em 27 de setembro, em uma reunião na Associação Comercial de São Paulo do bairro de Pinheiros, uma comissão informal de mo radores e comerciantes da região entregou ao subprefeito Sérgio Teixeira Alves e à presi denta do Conselho de Segurança de Pinheiros, Mirian Ito, uma petição com 1,2 mil assinatu ras, na qual solicitavam que fosse impedida a transferência do albergue para a sua vizi nhança. A representação foi encaminhada ao Ministério Público, mas o promotor Maurício Antonio Ribeiro Lopes indeferiu o pedido e
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julgou ser discriminatória a representação. “A fúria pequeno-burguesa insurge-se contra a instalação de albergue para moradores de rua pela Prefeitura de São Paulo no bairro de Pi nheiros. Naturalmente os mesmos signatários nada teriam a objetar se o referido albergue fosse instalado no último rincão da periferia da cidade”, escreveu o promotor. Joacy, que pediu para não ter o sobrenome revelado, comerciante da região e uma das or ganizadoras do movimento que tentou impe dir a mudança do albergue, alega que a culpa pela repercussão do caso na mídia foi do pro motor. “Não fizemos nada demais, nós esta mos corretos e não me arrependo da petição. Esse promotor gosta de aparecer.” A revolta dos moradores foi por conta da alegação de Lopes que, quando indeferiu a representação, escreveu que a atitude dos moradores era de “provocar inveja a qualquer higienista do Ter ceiro Reich”. Em sua resposta ao abaixo-assi nado, o promotor rechaça a associação entre pobreza e criminalidade, discurso comumen te ouvido nas travessas de Pinheiros.
A convivência com os atuais vizinhos
Na carta que acompanha o abaixo-assi nado, os signatários mencionam o medo do convívio com os alberguistas como uma de suas preocupações. “Mesmo que o efetivo da polícia dobre, vai ser difícil acabar com a inse gurança (pois já temos históricos, na própria rua Simão Álvares, do ataque de cachorros de Moradores de Rua a crianças e idosos, com BO registrado na delegacia em 17/03/2006)”, es creveu a comissão. Ao longo de todo o texto do documento, mesmo quando o enfoque é a questão da insegurança, há apenas um apon tamento factual sobre as alegações, que é este “ataque de cachorro” ocorrido nos arredores. Joacy contextualiza a preocupação da comissão: “75% dos moradores de rua são
dependentes de droga ou álcool. Isso é um perigo para a população.” Indagada sobre os números que foram apresentados, a co merciante diz que foram extraídos de uma matéria do portal IG, de 31 de maio de 2010. Porém, o texto da matéria informa que “74% dos entrevistados utilizam álcool, drogas ou ambos”, e não diz que são “dependentes”. Para Alderón Pereira da Costa, coordenador de projetos da Associação Rede Rua – ONG que luta pela inserção na sociedade de pessoas em situação de rua –, associar o usuário de alber gue com a violência é “um absurdo, de uma falta de informação e digno de dó. Não consi go nem nominar isso”, afirma. Doutora em economia pela Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e
professora de Teoria Econômica pela mesma FEA, Silvia Maria Schor foi coordenadora das quatro pesquisas realizadas pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) na última década, sendo a última em 2010, sobre a população de pessoas em situação de rua na capital paulista. Ela também comenta a asso ciação da imagem do morador de rua com à criminalidade, ao uso de drogas e álcool. “Mi nha avaliação é que o crescimento das drogas se estendeu, também, à população de rua. Ou seja, eles não ficaram imunes à expansão que atinge a cidade toda. Quanto aos demais cri mes – assassinatos, roubos etc. – entendo que não houve nenhuma mudança significativa.” A assessoria de imprensa da Secretaria de Segu rança Pública do Estado de São Paulo não tem qualquer estudo que relacione a presença de albergues ao aumento da criminalidade nos locais em que são instalados. No local onde está atualmente o albergue, prevalecem os estabelecimentos comerciais. Essa área fica próxima ao tumultuado Largo da Batata e é menos valorizada que o próxi
À esquerda, onde está atualmente o albergue; abaixo, a futura morada: prefeitura garante mudança
identificar, a revista recebeu uma carta da co missão que deveria ser publicada na íntegra, e havia a expectativa de que fosse publicada uma matéria favorável à demanda dos mora dores. A edição acabou trazendo um perfil, com angulação depreciativa, do promotor Maurício Ribeiro Lopes. Em seu blogue no portal da revista, o colunista Reinaldo Azeve do diz: “Bairros costumam rejeitar albergues; cidades costumam reagir mal a presídios ou a casas que abrigam menores infratores. Será que isso tudo é só preconceito? Não haveria aí a expressão de um problema real, que afeta mesmo a vida das pessoas?”
Um modelo que não atende à demanda
mo endereço, que deve abrigar cem pessoas, um aumento de 25% da capacidade atual. Há um ano e meio, Carlos Roberto é gerente de um hotel que fica em frente ao Albergue Cor e, para ele, a violência nunca foi uma reali dade na relação com os usuários do abrigo. “O único inconveniente que nós temos com a presença dos mendigos é que eles sentam na minha calçada, falam mais alto, usam pa lavras de baixo calão, mas só isso. Nunca tive problema de violência, tanto que já coloquei duas pessoas do albergue para trabalhar comigo de manobrista, e foram ótimos fun cionários”. Na doceria de Gilmara Souza, os usuários do albergue são clientes. “Com os que vivem aí, tenho uma ótima relação, eles frequentam a loja e pagam corretamente, nunca tive problemas”, disse ela. A poucos metros do albergue, Roberto Fontanese gerencia um restaurante. Durante a noite, ele observa o movimento em frente ao seu estabelecimento e enumera os seus problemas, porém, não cita a criminalidade como um deles. “Eles normalmente dormem aí, têm o hábito de fazer rodinhas, isso inco moda porque afasta os clientes, a gente tem que tomar cuidado e não deixar, porque, se deixar, eles tomam conta. Mas de violência, isso eu nunca tive problema, é só visual.” Uma das alegações na petição é o prejuí zo comercial que o albergue pode trazer. “O comércio possivelmente não vai sobreviver, uma vez que a população local será acuada em suas residências e os visitantes de outros bairros vão nos trocar por outros centros comerciais, mais tranquilos e seguros”, afir mam os signatários. Edmar Honório é ma nobrista no estacionamento que funciona ao lado do albergue, mas não crê que a presença do abrigo influencie na decisão dos clientes em deixar ou não o carro ali. “Desde que eu entrei aqui são os mesmos clientes, não
atrapalha em nada”, assegura. “Eles [os usuários do albergue] respeitam, não passam dos limites, se começa uma briga, eles próprios se juntam e não deixam continuar, ninguém abusa, não tem problema.”
À espera de Veja
“Agora, estão todos contra nós por cau sa do documento.” A afirmação é de Roseli Bauduíno, comerciante que colaborou com o abaixo-assinado. Alguns signatários da petição reclamaram do conteúdo da carta, pois, segundo eles, o documento original, encaminhado aos moradores e comercian tes da região para colher as assinaturas, em nada lembra o que foi entregue ao Ministério Público. “Quando recebi o documento, não tinha a carta. Aliás, ainda não vi, trabalho muito aqui, não tive nem tempo de entrar na internet para ver”, diz Jason Franco, outro co merciante que afirma ter assinado a petição, porém, sem conhecer o conteúdo que foi re digido após o recolhimento das assinaturas. Fórum teve acesso ao documento origi nal, entregue aos moradores para que assi nassem. O texto é mais curto e elenca outros motivos para o impedimento da transferência do albergue, que não constaram na carta final, como o fato de ser um lugar em que existe um “corredor de ônibus com grande movimenta ção de ônibus e pessoas” e “grande movimen to de entrada e saída de veículos em garagens de edifícios e casas”. Agora, os moradores desistiram da petição e vão aguardar a deci são da Delegacia de Polícia Especializada em Crimes Raciais de Delitos de Intolerância (De cradi), para onde os nomes de seis signatários foram encaminhados pelo promotor Lopes. Antes da decisão, os moradores decidiram aguardar o posicionamento da revista Veja, em sua edição impressa de 26 de outubro. Se gundo uma comerciante, que preferiu não se
Para Alderón Pereira, da Rede Rua, o mo delo de albergues precisa ser repensado e ampliado para que possa atender às deman das da população de rua na capital paulista. “O albergue, em sua origem, era uma política emergencial, para o imigrante que passava pela cidade. Hoje, em São Paulo, esse modelo não atende à demanda, que não é mais rota tiva, é permanente”. A Fundação Instituto de Pesquisas Eco nômicas (Fipe) divulgou, em maio de 2010, o censo da população de rua de São Paulo, co ordenado pela professora Silvia Maria Schor. Segundo os dados apresentados, moram nas ruas da cidade ou em albergues 13.666 pes soas. O número representa um crescimento de 57% em relação à primeira pesquisa, em 2000, quando havia 8.706 pessoas em situ ação de rua. A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Assistência e De senvolvimento Social (Smads) informou que, hoje, “são 56 Centros de Acolhida instalados em todas as regiões da cidade, e que, juntos, somam mais de 10 mil vagas”. Esse número evidencia que São Paulo não tem capacidade para abrigar sua população de rua. Para a professora Schor, “uma forma de abordar o problema é considerar as condições que encontramos associadas à ida para as ruas: desemprego, álcool e rompimento dos laços familiares. Claramente, políticas de emprego são prioritárias”. A intervenção pública se faz necessária para frear o crescimento demográ fico da população de rua, além de estabelecer melhores condições de vida aos que lá estão. De acordo com Schor, quanto antes a pessoa for retirada da situação de rua, mais fácil sua reinserção na sociedade. “A variável chave para a discussão da reinserção dos moradores de rua é o ‘tempo de rua’. A sociabilidade que se desenvolve ali fica mais dominante com o passar do tempo, e a ‘volta às condições’ ante riores à rua fica mais problemática.” F novembro de 2011
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Legalizar as casas de prostituição O Brasil deve abolir esse crime sem vítima, motivado tão somente por valorações moralistas e religiosas que recriminam o comércio do sexo entre pessoas adultas e capazes. Um resquício de nosso Código Penal autoritário, que precisa ser superado
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á um princípio elementar de Direito Penal democrático que veda que cri mes sejam criados para punir condutas meramente imorais. Em Estados Democráti cos de Direito, o legislador não é livre para criminalizar qualquer ação, mas somente pode proibir condutas que lesam ou colocam em risco de lesão bens jurídicos alheios, tais como a vida, a saúde, a liberdade, o patri mônio e outros direitos fundamentais. Essa limitação ao poder do legislador, conhecida como princípio da lesividade, é uma impor tante garantia de que as minorias não serão submetidas à imposição dos valores morais e/ou religiosos de uma maioria intolerante.
Essa garantia é especialmente relevan te quando se trata de crimes sexuais. Uma lei que proibisse, por exemplo, a prática do sexo anal, seria inconstitucional, mesmo se hipoteticamente aprovada pela maio ria absoluta da Câmara e do Senado e re ferendada pelo voto popular. Isso porque democracia não se confunde com ditadura da maioria, e a Constituição da República garante em seu art.5º, VIII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófi ca ou política”. No Estado Democrático de Direito, a maioria não pode impor suas convicções religiosas ou morais à minoria. Nossa Constituição reconhece a autode terminação dos indivíduos e impede que comportamentos consensuais entre pes soas maiores e capazes, que não causam dano a terceiros, sejam criminalizados. Lamentavelmente, nosso Código Penal não compartilha a ideologia política que inspirou nossa Constituição; muito pelo contrário: sua principal influência foi o có digo penal fascista italiano de 1930 (Codice Rocco). E, como em todo código penal auto ritário, o respeito à autodeterminação hu
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mana é substituído por uma pretensa tutela de valores abstratos como “bons costumes” e “moralidade pública”. E é em razão des sa nefasta herança histórica, infelizmente ainda não rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal, que as casas de prostituição ainda são ilegais no Brasil, e seus proprietários podem ser punidos como criminosos.
Crime sem vítima
A prostituição em si não é crime no Brasil. A troca de sexo por dinheiro ou qualquer outro tipo de pagamento é ple namente lícita no país. Paradoxalmente, porém, é crime manter estabelecimentos onde prostitutas possam prestar estes ser viços sexuais (art. 229 do Código Penal). Esta visível incoerência do sistema penal, que tolera a prostituição quando praticada individualmente, mas reprime a prostituição coletiva nos prostíbulos, não se sustenta juridicamente, pois não há um bem jurídico a ser tutelado e muito menos uma vítima a ser protegida. Tudo o que há são argumentações exclusivamente mo rais, que partem de valorações religiosas do tipo “o corpo é sagrado e não deve ser comercializado” ou “o sexo deve ser prati cado somente na constância do matrimô nio, com amor, e única e exclusivamente para procriação”. Na impossibilidade constitucional de se impor concepções morais por meio de crimes, muitos acabam procurando disfar çar seus argumentos moralistas contrários à legalização da prostituição na tutela de uma suposta liberdade sexual da própria prostituta. Afirmam que a prostituição não é uma escolha da mulher, que seria levada a vender seu corpo ora por violência sexual, ora por necessidades econômicas. Tratase, evidentemente, de duas hipóteses bastante
distintas. Se a vítima foi forçada a se prosti tuir, não se trata de mera prostituição, mas de estupro ou de escravidão para fins se xuais, e por esses graves crimes o autor deve ser punido, já que houve uma inequívoca le são ao direito à liberdade sexual da vítima. Situação bastante diversa é quando a mulher, por necessidade econômica, é le vada a se prostituir. Aqui não há vítima, pelo menos no sentido jurídico do termo, já que a mulher fez uma escolha por essa forma de ganhar a vida. É bem verdade que essa escolha pode não ter sido volun tária e que suas condições socioeconô micas talvez tenham sido determinantes em sua decisão, mas certamente foi uma escolha livre. Escolhas livres não são ne cessariamente voluntárias, no sentido de serem determinadas por um desejo íntimo independente das condições socioeconô micas em que se vive. O sistema capitalista é bastante perverso, já que permite a mui to poucas pessoas escolherem voluntaria mente se preferem ser médicas ou faxinei ras, engenheiras ou serventes de pedreiro, advogadas ou traficantes de drogas, atri zes ou prostitutas, mas não se pode cair no determinismo simplista de afirmar que suas escolhas não sejam livres. Do con trário, boa parte dos traficantes de dro gas e ladrões não poderiam também ser presos, pois seus crimes também não se riam escolhas livres. E o crime de casa de prostituição deveria ser imputado não ao proprietário, mas ao Estado que não deu condições socioeconômicas para a mulher optar por uma outra carreira. Vêse, pois, que não se pode querer pu nir os donos e donas de casas de prostitui ção por meio do singelo argumento de que exploram as prostitutas que não estão ali por escolhas voluntárias, pois no sistema
capitalista, por definição, é isso que fazem todos os proprietários dos meios de pro dução: o fazendeiro explora o camponês porque é dono da terra; o industrial explo ra o operário porque é dono das máquinas; o comerciante explora o balconista porque é dono da loja. E o(a) dono(a) do prostíbu lo há de explorar também a prostituta por ser dono(a) do quarto e da cama. A questão não é a exploração do traba lho em si, mas a condenação moral de um trabalho que tem por fim a satisfação se xual de alguém. O que incomoda é a heran ça moral cristã que condena como pecado uma profissão que, em vez de produzir ri queza, produz prazer.
A criminalização dos prostíbulos não evita a prostituição, mas tem o efeito de penalizar as prostitutas
Afastado qualquer tipo de moralismo, a prostituição é uma profissão como qual quer outra, que pode ser explorada econo micamente e deve ser regulada pelo Estado para que as prostitutas possam ter direitos trabalhistas e previdenciários como qual quer outro trabalhador. É bem verdade que a profissional do sexo já pode hoje pagar a previdência social como autônoma e se aposentar. Manter as casas de prostituição na ilegalidade, porém, equivale a impedir a prostituta de ser trabalhadora assalariada, negandolhe, por questões exclusivamente morais, os direitos constitucionais a salário mínimo, segurodesemprego, repouso se manal remunerado, férias anuais e licença saúde e gestante. Na Europa, as casas de prostituição são legalizadas e regulamentadas na Ale manha, Holanda, Suíça, Áustria, Hungria, Grécia e Turquia e, na América Latina, esses estabelecimentos são legais no Mé xico, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Países que su peraram o moralismo em prol da dignida de desta parcela de trabalhadores que me rece o mesmo respeito de qualquer outra atividade humana. A criminalização dos prostíbulos não evita a prostituição, mas tem o efeito de pe nalizar as prostitutas, não só lhes negando os direitos de trabalhadoras assalariadas, mas principalmente forçandoas a se pros tituírem nas ruas, onde ficam muito mais vulneráveis às agressões de clientes e crimi nosos. É sabido que nos países onde a pros tituição é legalizada, muitas agressões às prostitutas são evitadas, pois os prostíbulos possuem seguranças e até mesmo “botões
gerardo laZZari
Moralismo que restringe direitos
de pânico” nos quartos que são acionados quando há algum tipo de ameaça. A legalização das casas de prostituição é uma necessidade de política pública para reduzir a violência principalmente contra mulheres, mas também contra travestis e homens que prestam serviços sexuais e são alvos das mais variadas agressões, mo tivadas pelo preconceito social legitimado e incentivado por uma lei criminal que condena o comércio do sexo. A pena não escrita à qual o Estado con dena as prostitutas é a ausência de prote ção contra todo tipo de agressões por par te de seus clientes; seu julgamento moral é o mais perverso, pois não é feito diante de um tribunal com oportunidade de defe sa, mas perante as ruas, onde são julgadas por sua própria sorte. A pena alternativa que lhes resta, diante da omissão estatal, é buscar proteção na ilegalidade dos cafe
tões e prostíbulos, que não prestam contas de suas atividades a ninguém e ficam li vres para explorar seu trabalho sexual em um capitalismo totalmente selvagem, sem qualquer tipo de regulação estatal. O risco constante de serem estupradas e agredidas ou da semiescravidão no tra balho em prostíbulos são as penas morais não escritas a que as prostitutas estão hoje condenadas. A criminalização da prostitui ção, ao longo da história, nunca conseguiu pôr fim ao comércio sexual, mas sempre serviu bem ao propósito não declarado de estigmatizar e causar sofrimento àquelas que desafiam com seu trabalho a morali dade dominante, que recrimina o sexo ca sual como forma legítima de prazer. F TÚLIO VIANNA, professor da Faculdade de Direito da UFMG.
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A marcha pela liberdade das mulheres Embora já tenha sido obtida a igualdade jurídica entre homens e mulheres, às mulheres ainda é negado o direito à autonomia, especialmente em relação a sua sexualidade e aparência. As Marchas das Vadias que vêm ocorrendo no mundo problematizam essa questão e indicam o caminho para efetivar a liberdade das mulheres
por Cynthia Semíramis
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Douglas Arruda
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m abril de 2011, um policial cana dense, ao fazer uma palestra sobre violência, afirmou que as mulheres evitariam estupros se não se ves tissem como vadias, vagabundas (sluts). Ele classificou mulheres pela aparên cia: as roupas “certas”, discretas, evitariam violência, enquanto as roupas “erradas” tor nariam a vítima culpada pelo estupro. O policial canadense tratou mulheres como pessoas sem direito à liberdade, que precisam ter seu comportamento e suas rou pas monitoradas para receberem proteção do Estado. Por ser um agente do Estado, o poli cial deveria cumprir a lei e proteger a vítima de um crime. Sua manifestação foi exatamen te oposta: ao culpar a vítima, ele protegeu e perdoou quem cometeu o crime de estupro. O que determina o estupro não é a roupa, é a relação de poder. Homens estupram por que consideram que as vítimas estão ali para satisfazer seus desejos, inclusive o de serem forçadas a se submeter a uma relação sexual. Colocar a culpa do estupro nas vítimas é ig norar que elas têm o direito de escolher se e quando vão se relacionar sexualmente com alguém. Roupas não têm nada a ver com isso. Em resposta à fala do policial, surgiram reações indignadas em todos os níveis. Foram acionados os mecanismos legais, como um processo administrativo e discussão sobre a capacitação adequada de policiais. E também foi criada uma passeata denominada “Slutwalk” (Marcha das Vadias, no Brasil). Nela, mulheres protestaram contra o preconceito que vincula roupas curtas ao estupro, portan do cartazes feministas e vestindo roupas cur tas, que remetem ao estereótipo de “vadias”. Demonstrando que a opressão das mu lheres ainda é uma constante no mundo, a Marcha das Vadias se espalhou em efeito do minó. Milhares de mulheres de vários países vêm saindo às ruas, desde abril, em diversas
Milhares de mulheres de vários países vêm saindo às ruas em diversas Slutwalks e Marchas das Vadias, deixando claro seu descontentamento com a forma como vêm sendo tratadas em razão de suas roupas e comportamento
Slutwalks e Marchas das Vadias, deixando claro seu descontentamento com a forma como vêm sendo tratadas em razão de suas roupas e comportamento.
O feminismo da Marcha das Vadias
A Marcha das Vadias é feminista, pois de nuncia o tratamento desigual para homens e mulheres. Um homem ou menino que sofra violência sexual não é acusado de ter mere cido a violência por causa de suas roupas.
No entanto, uma mulher ou menina vai ser sempre questionada sobre suas roupas, ma quiagem ou consumo de bebidas alcoólicas. É importante destacar o caráter feminis ta das Marchas das Vadias, pois o que se di vulga na mídia atualmente é que o movimen to feminista é inexistente ou desnecessário. Afirmam que as mulheres têm igualdade de direitos, independência (inclusive financei ra), orgasmo e direito à contracepção, e não há mais pelo que lutar. Ou, então, afirma-se
que a única causa feminista relevante atual mente é combater a violência, especialmente a que ocorre em ambiente familiar. Essas são afirmações que evidenciam a incompreensão acerca da situação das mu lheres hoje. O movimento feminista existe e continua ativo, atuando em nível institucio nal contra todo tipo de discriminação contra mulheres. E as Marchas das Vadias, espon tâneas, organizadas de forma colaborativa e sem hierarquia, via internet, mostram pon tos que ainda precisam de muita atenção, especialmente em relação ao respeito aos desejos sexuais das mulheres.
Disputando o controle da sexualidade feminina
Não há dúvidas de que as mulheres estão insatisfeitas com a situação em que vivem. Apesar de terem a igualdade de direitos na lei, no cotidiano essa igualdade é condicio nada ao controle da sexualidade feminina. As mulheres perdem autonomia: elas não podem decidir a forma de exercer sua sexua lidade, sendo sutilmente forçadas a escolher entre dois modelos bastante excludentes. A mulher recatada, de vida sexual discre ta, à espera do companheiro ideal (antiga mente conhecido como príncipe encantado), ainda é valorizada como modelo de condu ta. A mulher que não se censura, vivendo de acordo com seus desejos sexuais, é tratada como inadequada. Uma forma de fazer essa mulher perder sua autonomia e se enqua drar no modelo recatado é considerá-la cul pada por tudo de ruim que acontecer com ela. Roupas são a forma pela qual essa distin ção será tornada pública. Porém, a autonomia feminina passa pelo poder de cada mulher escolher como se ves tir, como se comportar, sem necessariamen te ter de se enquadrar nesses dois modelos como obrigação eterna e imutável. A mulher pode escolher inclusive oscilar entre ambos os modelos, não se enquadrar em nenhum, ou criar um terceiro, mais adequado à sua personalidade e a seus gostos. E, mais im portante, ela não deve perder direitos nem pode ser julgada por causa dessas escolhas. A participação espontânea e bastante expressiva de mulheres jovens nas Marchas das Vadias mostra que o controle da sexu alidade feminina é para elas um ponto im portante a ser combatido. Essas mulheres nasceram em um mundo no qual, segundo os conservadores, as mulheres já conquistaram todos os direitos. No entanto, as jovens comparecem mas sivamente às passeatas para mostrar que seu
cotidiano é bem diferente: seus desejos e sua autonomia estão sendo sistematicamente cer ceados por causa do controle da sexualidade feminina. Elas não estão livres, ainda não po dem se comportar da forma que desejam. O que essas jovens já perceberam, e es tão se insurgindo contra isso, é que mulheres ainda são julgadas por não quererem obede cer a uma ordem social que pune seus dese jos. Mulheres ainda são consideradas como máquinas de sexo para o prazer masculino, enquanto têm de refrear a própria sexualida de. Elas ainda são espancadas e mortas por não se submeterem aos desejos masculinos em relação a sexo, maternidade e profissão. O que o movimento feminista quer, e a Marcha das Vadias torna público, é que as mulheres não sejam julgadas nem punidas por não obedecerem a um sistema que as oprime. Querem exercer sua sexualidade livremente, sem serem discriminadas por suas roupas, idade, aparência ou pelo núme ro de parceiros e parceiras. Querem escolher se e quando terão filhos. Querem ter vida se xual depois que passarem pela menopausa. Querem dar vazão aos seus desejos, ao invés de se restringirem a um modelo binário de comportamento que limita suas possibilida des. Querem um mundo mais livre e menos violento para as mulheres.
Combatendo a violência contra mulheres
Pais, irmãos, maridos e companheiros são os responsáveis pela maior parte da violência cometida contra mulheres. Eles espancam porque elas escolhem usar rou pas que não lhes agradam, porque elas não querem se divertir da forma que eles consi deram adequada, porque se sentem mal por elas não dependerem deles financeiramente, porque elas não querem se relacionar sexu
A Marcha das Vadias expressa os desejos das mulheres: não querem que os relacionamentos que as oprimem sejam a regra. E não querem que o Estado encampe um recuo conservador, agindo para constranger as mulheres a voltar ao sistema de opressão institucionalizado que vigorou até recentemente
almente com eles na hora que eles desejam. E eles matam porque elas não querem obe decer nem continuar mantendo um relacio namento de subordinação com eles. Esses relacionamentos são construídos com base na opressão feminina. Quanto mais a igualdade entre homens e mulheres é ins crita na lei, mais a opressão é deslocada para o controle da sexualidade feminina. A lei garante direitos iguais, mas a liber dade sexual ainda é cuidadosamente contro lada, especialmente pela influência da mídia. A maioria das revistas femininas não explica como a mulher pode chegar ao orgasmo – o foco é ensinar como a mulher faz o homem ter orgasmo. A lei proíbe agressões físicas, mas toda novela mostra uma mulher sendo espancada. Esse espancamento não é punido porque a mulher era uma vilã e estava agin do como “vadia”. Quando a mídia mostra mulheres sofren do violência, não as trata como vítimas de um crime. Elas são tratadas como desobedientes que “mereceram” uma punição. É o mesmo raciocínio do policial canadense, que descul pa o agressor e culpa a vítima. A violência é usada para constranger mulheres a cercear sua autonomia e obedecer ao agressor. A Marcha das Vadias expõe essas ques tões, e expressa os desejos das mulheres: não querem que os relacionamentos que as oprimem sejam a regra. E não querem que o Estado encampe um recuo conservador, agindo para constranger as mulheres a vol tar ao sistema de opressão institucionaliza do que vigorou até recentemente. É necessário direcionar todos os esforços do movimento feminista para impedir um retrocesso: não se deve voltar a um modelo de comportamento que nega a sexualida de e a liberdade femininas. Esse modelo de comportamento é a causa da violência con tra mulheres. E é ele o maior obstáculo atual para as mulheres jovens. As Marchas das Vadias indicam clara mente que as mulheres não querem que seu comportamento e seus desejos continuem sendo controlados. Resta a todos nós enten dermos isso e lutarmos para garantir que as mulheres tenham o exercício pleno de suas vontades e de sua sexualidade. É necessário parar de julgar mulheres pela sua sexualidade e aparência. É neces sário punir quem comete crime ao não res peitar a vontade da mulher. E é necessário lembrar sempre que as mulheres não podem ser forçadas a se enquadrar em um modelo de comportamento que nega sua autonomia e sua liberdade. F novembro de 2011
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Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano
Pensar com a própria cabeça. Educação e pensamento 1 crítico na América Latina por Raquel Sosa Elízaga*
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Nossa aposta, portanto, não pode ser mais irracional do que aquilo que nos impuseram os conquistadores: “Inventamos ou erramos”, dis se muito bem Simón Rodríguez, afirmando que o único caminho pos sível para nós é o que decidamos construir entre todos com base em nossa própria experiência, em nossas próprias perguntas, em nossas necessidades e sonhos. Precisamos ser os mais radicais possíveis, isto é, capazes de desentranhar, sem medo ou falsas suposições, as raízes dos nossos problemas e o modo em que poderemos nos empenhar a remontá-los, com as forças e a capacidade de que disponhamos em cada época. Precisamos aprender a olhar uns aos outros com outros olhos, nossos olhos, para refazer o amor por nossa terra, por nossos saberes, pela cor e pelo cheiro da nossa pele. As sociedades latinoamericanas devem se reinventar constantemente, sempre que cada
imón Rodríguez, o admirável mestre de todos nós que acom panhamos Simón Bolívar em seu périplo, passou toda sua vida imaginando, desenhando e construindo os fundamentos de uma proposta educacional com base na explosão da cria tividade de nossos povos, a qual só pode ser explicada pelo irrenun ciável desejo de liberdade perante a contínua opressão (Rodríguez, 1975). Consideremos que, se o colonialismo produz impotência e dis sabor, seu efeito mais perverso é induzir o conquistado a se confor mar diante do fato de que sua liberdade tenha sido cerceada, talvez para sempre, e que, para continuar existindo, deve inevitavelmente se dar por vencido, aceitando e repetindo aquilo que seus opressores lhe impõem. A sequência dramática é tão atroz que o conquistado acaba considerando o pensamento imposto como se fosse o seu e a obstrução de sua liberdade como parte do caminho que o levará ao aprimoramento de sua vida. Retroceder esses passos, rompendo com esses tortuosos vínculos, para muitas pessoas pode parecer um salto no escuro, uma aventura sem destino, uma espécie de suicídio intelectual e moral. Entretanto, nenhuma geração humana pode renunciar ao seu direito de criar, de imaginar e projetar sua própria vida, sob o risco de transformar-se em um reprodutor conformista de tudo o que em verdade lhe produz um autêntico mal-estar cultural: a frustração, o desenraizamento, a perda de objetivos e o esquecimento dos sonhos – um problema do qual padecem muitos jovens em nossas sociedades ainda no dia de hoje. Todos esses males não têm outra origem nem outra razão de ser além da ruptura dos vínculos com nossa realidade uma realidade de sociedades oprimidas, empobrecidas, construídas sobre a desi gualdade, a exclusão e o esquecimento, mas que também possuem a energia, a vontade e a esperança de ser capazes de remontar sua odiosa condição de submissão.
1
texto publicado neste Caderno é uma versão reduzida da palestra O homônima apresentada no XXVIII Congresso Internacional da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas) “Fronteras Abiertas de América Latina”, que ocorreu em Recife (PE), de 6 a 11 de setembro de 2011.
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simenon / flickr
A reforma da educação no Chile foi realizada no contexto de uma brutal repressão ao povo chileno, repressão esta que deixou uma parte significativa de vítimas entre os estudantes e suas famílias e os docentes e trabalhadores
experiência de surgimento de liberdade seja seguida de golpes dos velhos e novos conquistadores. Principalmente – e talvez esta seja a condição mais dramática que enfrentamos – nossas sociedades de vem se proteger do fato de que a memória perversa da opressão as chame para regressar a ela como lugar seguro, apesar de toda dor que produz. Lembrome muito bem das frases de Norbert Lechner, que no contexto da ditadura pinochetista afirmava que não havia outra sociedade que a sociedade possível, que não cabia outra imaginação além daquela indicada por quem se sentia cansado dos extremos, que somente o reconhecimento da necessidade de segurança, de tranqui lidade, de proteção, de ordem, podia ser a garantia de uma sociedade harmoniosamente moderna (Lechner, 1986). Descanse em paz esse pensador e vida longa aos jovens chilenos que nos devolveram a espe rança com sua teimosia em resistir ao colonialismo contemporâneo, com sua cruel pilhagem e sua opressão sobre a educação.
A reforma educacional neoliberal: a história que vivemos e pouco vimos
Assim como os chilenos, o que todos nós, latinoamericanos, precisamos é voltar ao momento em que as baionetas e os unifor mes verdes substituíram a inteligência no país de Neruda, De Rokha, Violeta Parra e Salvador Allende. Devemos à pesquisadora Marcela Gajardo a recuperação das abomináveis circulares da Junta Militar, quando impôs um Comando de Institutos Militares, cujos delegados seriam responsáveis por: garantir que as atividades educativas e anexas [...] sejam re alizadas em todos os níveis do sistema escolar [...] com uma sujeição estrita aos postulados preconizados pela H. Junta de
Governo; obedecendo fielmente às diretrizes emanadas do Ministério de Educação; observada a mais estrita disciplina e justiça; entregandose exclusiva e totalmente a trabalhos pu ramente profissionais com complexa exclusão do proselitis mo político ou de ações obscuras de grupos ideológicos [...].
Essta circular, emitida em agosto de 1974, forçava os diretores das escolas, sob pena de destituição imediata de seus cargos, a in formar a seus superiores quando acontecessem casos nos quais os docentes, seus auxiliares ou trabalhadores administrativos da edu cação emitissem “comentários políticos, difusão de comentários mal intencionados sobre as atividades de governo, difusão de piadas ou histórias estranhas relacionadas à gestão da Junta, [...] distorção dos conceitos ou valores patrióticos, distorção das ideias contidas nos textos de estudo [...]” etc. (Gajardo, 1982). A reforma da educação no Chile foi realizada no contexto de uma brutal repressão ao povo chileno, repressão esta que deixou uma parte significativa de vítimas entre os estudantes e suas famílias e os docentes e trabalhadores or ganizados cuja influência acreditavase ser ampla e completamente contrária aos fins da ditadura (Sosa, 2010). Diferentemente do que muitos pedagogos supõem, não foram os Chicago Boys que introduziram o modelo neoliberal no Chile, mas sim a necessidade de suprimir toda a memória e experiência orga nizacional independente; foi o feroz empreendimento de subordinar completamente as consciências das chilenas e chilenos que abriu ca minho para as concepções empresariais que hoje recebem seu pri meiro grande golpe no país em que foram fundadas (Vázquez, 2010). Seguindo a lógica burguesa que bem descreveu Marx em O Manifesto Comunista, a Junta Militar e seus aliados internacionais se empe nharam para – e em grande medida conseguiram – fazer com que tudo o que era sólido se dissolvesse no ar, isto é, que uma prolongada tradição democrática e de desenvolvimento da inteligência criativa e autônoma das organizações civis e sociais, dos colégios e universida des, sindicados e partidos, intelectuais, acadêmicos e artistas, fosse dissolvida no ácido da perseguição, da queima de livros, da morte, do desalojamento e do refúgio de centenas de milhares de pessoas. Meus amigos e mestres queridos Agustín Cueva, René Zavaleta, Ruy Mauro Marini, Theotonio Dos Santos, Eduardo Ruiz Contardo, Carlos Morales Oyarzún, Hugo Zemelman, entre muitíssimos outros, beberam neste recipiente do conhecimento que foi o Chile da Unida de Popular, e acredito que nunca deixariam de refletir sobre os desas trosos efeitos produzidos por sua destruição. Surpreendentemente, o que foi difícil de perceber nos espaços de nossas universidades foi o verdadeiro alcance do processo de colo nização mental, que ocorreu a partir da imposição do esquema ne oliberal em nosso subcontinente. Isso se explica em grande medida por duas razões: a primeira, obviamente, é que praticamente todas as nossas universidades foram objeto de perseguição, tiveram seus professores e seus estudantes perseguidos, presos ou assassinados, tendo o desenvolvimento do pensamento crítico violentamente sus penso em seus centros de pesquisa e salas de aula. Além disso, a falta de visão do que ocorria na educação como um todo também se deve ao fato de que foram precisamente nossas uni versidades as que receberam o primeiro e mais definitivo golpe da reforma educacional, com a imposição da linguagem empresarial ou mais precisamente bancária (não no sentido de Paulo Freire, mas no sentido do Banco Mundial), a qual posteriormente se generalizaria novembro de 2011
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Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano
em todas as instituições sociais, da educação à saúde, do funciona mento da economia aos meios de comunicação. Foi em nossas univer sidades que começou a ser utilizada a linguagem das competições, da certificação, da busca pela excelência, do estabelecimento de índices de desempenho, da avaliação de acordo com parâmetros internacio nais e dos estímulos à produtividade (De Moura e Levy, 1997). Praticamente todas as nossas universidades aceitaram e incorpo raram, a partir de meados dos anos 1980, as orientações e os instru mentos de avaliação cuja aplicação se tornou condição para concessão de empréstimos que o Banco Mundial ofereceu para superar o desas tre da redução generalizada dos orçamentos públicos, após o ajuste estrutural dos anos 1980. Esses instrumentos se transformariam nos fundamentos de uma nova concepção da vida pública e, de maneira central, da educação (De Wit, Jaramillo et al, 2010; Thorn e Soo, 2006). Não podemos deixar de insistir em que, tal e qual a orgulhosa cidade da Nova Espanha foi construída sobre as ruínas do Templo Maior dos mexicas em Tenochtitlan, os neoliberais primeiro destruíram, mas logo se empenharam em surgir como os únicos capazes de controlar e dirigir as consciências de todos nós, com a anuência e a subordinação sem limites daqueles que ficaram encarregados de nossas instituições públicas: os novos conquistados pela religião da competitividade. Os fanáticos religiosos da nova evangelização neoliberal seriam as auto ridades de nossas universidades e de centenas de colegas de todas as áreas do conhecimento, ungidos como professores de excelência e encarregados de avaliar e, dentro do possível, suprimir as marcas de um pensamento crítico. Durante os anos 1990 e boa parte da década passada, poucas instituições aceitaram editar e promover os traba lhos de autores qualificados como ideologizados, de escassa projeção internacional, ou cuja produtividade fosse julgada como insuficiente, particularmente porque dão conferências, participam de eventos ou ainda editam suas obras em âmbitos não arbitrados.
nos formados pelo sistema educacional nas gerações do neolibera lismo. Durante esses anos, algo muito profundo se perdeu de forma acelerada, e acredito que é o momento de começarmos a processar a reversão dessa perda, pois, ao não fazêlo, corremos o grave risco de que em alguns anos fiquemos sem instrumentos de conhecimento que nos permitam lançar mão de nossas reservas estratégicas para salvar nossos saberes tradicionais, os princípios e valores sobre os quais se fundou a existência de comunidades e povos, o uso não des trutivo dos recursos naturais, sociais e estratégicos de nossos países. Portanto, temos uma dívida com nossa memória, que é desen terrar o esquecimento e poder reconstruir, passo a passo, as nossas necessidades, que podem novamente dar sentido aos atos de nos sa vida. Precisamos poder voltar a nomear tudo, transformando os conceitos e categorias impostos nesses terríveis anos em referências secundárias e armazenando a enorme tradição intelectual e cultural que fez da América Latina a região de maior riqueza histórica viva do mundo. Temos de nos lembrar de nossos mortos e de nossos vivos, sujeitos presentes nessa longa luta por sermos nós mesmos, que her damos e da qual fazemos parte. Precisamos ser capazes de transfor mar nossas bibliotecas, nossas casas e as casas de todas as famílias de nossa região em espaços de restauração de uma identidade da qual só vimos pedaços nos olhos de nossos conquistadores. É absoluta mente indispensável que iniciemos uma nova e mais profunda etapa de revolução de independência e de reconquista de nossa soberania, que não é outra coisa senão nosso poder de decidir, nos mais míni mos detalhes, como queremos viver. Pensar com a própria cabeça é o começo de olhar o mundo e ter a valentia de recusar a existência de um pensamento único, da falsa religião do mercado, do comércio da morte. Pensar com um pensamento crítico deve nos levar a saber que é possível transformar nossas cabeças e nosso horizonte, confiando que as soluções que propusermos serão certamente melhores do que as que nos obrigaram a aceitar. A liberdade terá seus custos e suas consequências, mas seus caminhos se iluminam com a felicidade que sentiremos por não termos de viver à sombra de nós mesmos. Estas formosas terras e nós, os seres humanos que nelas habitamos, mere cemos dar um espaço à alegria e à esperança verdadeiras.
Um olhar para o futuro
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*Doutora em História, latino-americanista e socióloga. Professora pesquisadora do Centro de Estudos Latino-americanos da Unam desde 1976. Autora de Hacia la recuperación de la soberanía educativa en América Latina.
Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano constituem uma iniciativa do Conselho LatinoAmericano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade LatinoAmericana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum.
encarte no 20
Os neoliberais introduziram em nossa região uma estratégia de controle e coerção, que consiste no abuso sistemático dos meios de comunicação para socializar suas posturas com relação a todos os assuntos da vida pública, juntamente com o desenvolvimento das forças da ordem, para atemorizar e conter as populações que mani festem críticas ao fato de que alguns poucos tenham se apropriado do direito de todos de decidir sobre os assuntos vitais de seu país. Temos também todos os elementos para afirmar que um dos pontos de destaque da chamada reforma educacional foi a elimina ção de conteúdos e práticas que tinham a tendência a estimular nos estudantes a imaginação, a memória, a criatividade. Com exceção dos casos de Cuba e Venezuela, em todo o restante da América Latina a reforma impôs como eixos a supressão da capacidade de localização histórica e geográfica, assim como a eliminação do reconhecimento das peculiaridades culturais e da identidade de nossos povos, por meio da escola. Isso, obviamente, no contexto do estabelecimento de um sistema de controlesubordinação que garantisse a repetição de lemas, a execução de ordens e a identificação dos estudantes com a busca da conquista individual, a aceitação das regras do mercado, o conformismo e o desmemoriamento. Acredito que, para avaliar os danos causados à nossa capacidade de pensar, deveríamos começar estabelecendo um índice de desaprendizagem, o que significaria compreender os limites da repressão da identidade, da memória, da vontade, do projeto de futuro nos alu
CLACSO é uma rede de 300 instituições, que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países (www.clacso.org).
FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados LatinoAmericanos (www.flacso.org.br).
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américa latina
Argentina: Sem retrocesso por João Peres, de Buenos Aires
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Argentinos dão a Cristina Kirchner a maior vitória de um presidente desde a redemocratização, rejeitam uma oposição sem alternativas e o discurso da imprensa que não reconhece as conquistas do governo
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oi menos de um ano após a morte de Néstor Kirchner. E menos de dez anos após uma das piores crises institucionais do país. A Argentina se mostrou novamente palco do improvável ao reeleger Cristina Fernández de Kirchner para mais quatro anos. Enxergar além dos 11 milhões de votos recebidos no fim de outubro, quebrando uma série de re cordes, é rever um roteiro conhecido de ou tras eleições, em que o candidato é favoreci do por uma economia nos trilhos e políticas sociais que formam o eixo principal da alta aprovação. Mas deve se somar a isso uma oposição incapaz de apresentar projetos al ternativos e segmentos da imprensa com di ficuldades para compreender a inteligência e a argúcia de uma presidenta que mostrou competência e habilidade política. A vitória de Cristina impôs algumas mar cas que pareciam absolutamente impossí veis havia pouco mais de um ano. Foi o maior percentual de votos desde a redemocratiza ção, em 1983, superando os 51,7% obtidos por Raúl Alfonsín naquele ano. Foi também a maior diferença para um segundo coloca do – no caso, Hermes Binner, do Partido So cialista, com 16,87%. Foi a vitória no maior número de províncias, 23 de 24, com resul tados vexatórios para os opositores, como o de Santiago del Estero, onde o segundo co locado, Ricardo Alfonsín, filho de Raúl, obte ve 7,03%. De quebra, Cristina recuperou as maiorias na Câmara e no Senado, perdidas nas eleições legislativas de 2009. A construção do triunfo teve capítulos importantes. Em meio à sua maior crise, em 2009, Cristina firmou um decreto que criava o Benefício Universal por Filho, que concede 220 pesos (em torno de R$90) a menores de 18 anos cujos pais estejam desempregados, subempregados ou realizando trabalhos do mésticos com ganhos inferiores ao salário
CFK Argentina
mínimo. “Muitos diziam que iria desmoronar tudo, que o Estado não teria como pagar tan tos benefícios, mas parece que não”, ironiza Osvaldo Tagliani, um velho morador de Par que Avellaneda, bairro de classe média assa lariada. “Tudo isso serve para fazer andar uma roda progressista. O pobre, o único dinheiro que gasta é na comida. Não especula, não com pra na bolsa, não faz nada. É rápido, o movi mento”, comenta. Entre 2009 e 2010, a taxa de pobreza na Argentina recuou de 24,8% para 21,6%, o que significa uma diferença de 1,3 milhão de pessoas. A pobreza extrema foi de 6,6% para 3,2%, com uma redução mais acen tuada entre crianças e adolescentes, de 10,2% para 4%, segundo o Centro de Investigação e Formação da República Argentina. Nada mau para uma nação que, há menos de uma déca da, tinha mais de 50% de pobres e um desem prego que atingia um quarto das pessoas. Atualmente, são 4,5 milhões de crianças beneficiadas, pouco mais de 10% da popula ção. Não tarda para que se valha de sarcasmo para dizer que se está votando com o bolso, como em eleições recentes realizadas no Brasil. “Em um país com tantas crises cícli cas, viver bons momentos é um bem muito apreciado”, esclarece Roberto Bacman, do Ceop, um instituto de pesquisas de opinião pública. O Ceop constatou que o Benefício Universal é tido por 38,2% como a principal conquista do governo. Na sequência, vem o aumento dos ganhos para aposentados. A terceira maior conquista é a estabilidade econômica na crise, outra semelhança com o caso brasileiro. A esse respeito, o levanta mento mostrou que 40,9% dos argentinos acreditam que em 2012, a situação ficará igual, ante 34,3%, que pensam que vai me lhorar e 18,3%, que indicam que haverá pio ra – um claro anseio de continuidade. Outro capítulo importante da trajetória de Cristina diz respeito às brigas com o agro negócio em meio à tentativa de aplicar uma retenção maior das riquezas do setor-chave da economia local, conflitos que levaram a um desgaste geral da imagem do governo. “Tem de brigar pelo que vale a pena brigar”, critica o intelectual marxista Atilio Borón. “Estou totalmente de acordo com aplicar re tenções, mas não se pode aplicar a mesma retenção a um senhor que tem 40 hectares de soja e a outro que tem mil hectares.” Foi após a derrota que Cristina e Néstor começaram a costurar a reação, enquanto a oposição já discutia quem se apresentaria para presidir o país. Apresentaram a Lei de Meios, uma necessidade que ficou evidente com a constatação de que os grandes grupos
Cristina poderia ter tomado dois caminhos frente à morte de Néstor: assumir a imagem de fragilidade e depois anunciar que se retiraria da carreira política, ou trilhar sua reeleição. Optou pelo segundo caminho
de comunicação do país manipulavam o no ticiário da crise entre Casa Rosada e agrone gócio (veja mais à página 28). Somaram-se ao Benefício Universal por Filho a recupe ração para o poder público da gestão das aposentadorias e da companhia Aerolíneas Argentinas, além da reforma política. Antes que assumisse o novo Congresso, de maioria opositora, Cristina já tinha as rédeas de volta nas mãos. “De um lado, existia um bloco ho mogêneo e coeso, que era o oficialismo, e, de outro, um processo de formação de ilhas de oposição”, analisa Diego Reynoso, cientista político da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
Virada improvável
A morte de Néstor, em 27 de outubro de 2010, fez com que uma parte da imprensa e da oposição queimassem novamente o sinal da largada. Imaginaram que Cristina jamais teria força política para conduzir sozinha o governo, e seguiram apostando que ela não era nada mais que uma marionete do mari do. “Me aproximou dela ver sua capacidade, a ação, a força”, conta Miriam Mala, uma mé dica que diz que “não se casa” com ninguém, ou seja, não integra nenhum movimento, nenhum partido, nenhum governo. “Quan do morreu Néstor Kirchner, aí me dei conta. Sobretudo a gente aí na rua, o sofrimento. E essa mulher, vi a capacidade que tem, a força, sequer teve tempo de chorar.” Muitos argen tinos tiveram a mesma impressão que ela. Cristina poderia ter tomado dois cami nhos com a morte de Néstor: assumir a ima
Outro capítulo importante da trajetória de Cristina diz respeito às brigas com o agronegócio em meio à tentativa de aplicar uma retenção maior das riquezas do setor-chave da economia local, conflitos que levaram a um desgaste geral da imagem do governo
gem de fragilidade e, depois de alguns meses, anunciar que se retiraria da carreira política, ou assumir-se como forte e anunciar que iria trilhar sua reeleição. Optou pelo segundo caminho, o que pode ter agredido quem não conseguia enxergar sua habilidade. A morte do ex-presidente teve um efeito catalisador para a recuperação da imagem do governo, que logo saltou entre 10 e 15 pontos, confor me o instituto de pesquisa. Entra em jogo um fator psicológico de difícil avaliação, mas que sempre se fez presente na política argenti na: a identificação com o sofrimento. “Isso é muito estranho para a cultura brasileira. Mas aqui é a tradição política”, aponta Borón. “O que não se examina é que a morte do espo so de Cristina criou um fenômeno completa mente inesperado, que foi a constituição de um ator político novo, muito importante e muito dinâmico, a juventude.” A presidenta, a bem da verdade, vale-se do fator emocional. “Ele”, em seus discursos, novembro de 2011
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é a referência a Néstor, quase nunca citado diretamente pelo nome. No dia das eleições, vestindo negro, Cristina dedicou a “ele” os re sultados, e demonstrou uma habilidade dis cursiva digna dos melhores da retórica – pri meiro, no pronunciamento à nação; depois, em plena Praça de Maio. “Quero agradecer a alguém que já não pode me chamar, mas que é o fundador desta vitória”, afirmou. Durante pouco mais de meia hora, foi do tom sereno ao agressivo, do carinhoso ao repreensivo. “Nunca acreditei em fazer sem ele, sem sua incomensurável coragem e valentia”, desta cou, com a voz embargada, sofrida. “Lembro desta praça em momentos de adversidade, e agora me emociona esta juventude que com preendeu que este é um governo que traba lha pelo presente, mas trabalha muito mais pelo futuro”, reforçou a presidenta em uma Praça de Maio repleta de jovens. Bem antes do fechamento das urnas, quando já era evidente que não se poderia contrariar uma margem de diferença tão grande, o povo começou a marchar de dife rentes pontos da cidade. As várias vias que
Quando a Espanha solicitou a extradição de militares argentinos para serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, Kirchner determinou que se fizesse um projeto para revogar os atos que protegiam os repressores
Outubro marcou também o aniversário de 2 anos da sanção da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, mais conhecida como Lei de Meios, que visa a desconcentrar a comunicação e, por consequência, democratizá-la. Liminares obtidas pelo Grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia argentino, impedem a aplicação dos pontos que previam limitar o número de concessões de rádio e televisão, um espectro público, nas mãos de agentes privados. Ao mesmo tempo, estão sendo concedidas novas frequências para veículos comunitários e sendo implementados os artigos que dão um maior incentivo à produção nacional, com especial ênfase aos conteúdos regionais. Neste momento, admite-se a necessidade de conceder incentivos financeiros para aperfeiçoar a aplicação das medidas. “Ainda que apareçam novos meios e se criem mais instâncias de pluralismo, a presença de alguém que tem tanto domínio sobre algo que se chama facilidades técnicas, ou seja, o domínio de infraestrutura, de publicidade, de clientelas, torna muito difícil entrar aí”, explica Damian Loreti, professor da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade de Buenos Aires e um dos pais do “espírito da lei”, como gosta de dizer, de forma a ressaltar que a lei em si é fruto de sugestões de centenas de entidades e de pessoas. Uma pesquisa publicada dois dias após a eleição mostrou que a Lei de Meios tem a aprovação de 54% da população – entre os que votaram em Cristina, a aprovação à medida é de 84%. O Clarín ainda controla canais de TV, o maior diário, rádios, as principais operadoras de TV a cabo e os principais provedores de internet. Espera-se que a Corte Suprema defina a questão. “A OEA indica que a comunicação não é um mero direito declamativo. Implica dar os mecanismos para garantir esse exercício”, assinala Loreti. “É um dogma dos direitos humanos. Os monopólios e os oligopólios minam a democracia.” O professor da UBA foi chamado, em 2008, para ajudar a elaborar o texto básico da lei. Já o havia feito a pedido de um deputado entre o fim da década de 1980 e o início dos anos 1990, mas a tentativa naufragou por falta de apoio no Congresso. “Sem vontade política é impossível. Sem um bom projeto, também.” Mais tarde, conseguiu encontrar ambos.
desembocam no clássico e mítico ponto de encontro de Buenos Aires se encheram de pessoas carregando bandeiras e tocando bumbos e trompetes. “Vamos, Cristina, não podemos perder. Néstor olha com Perón des de o céu”, gritavam. Muitas das canções de incentivo são trechos de músicas populares do país ou de cantos que levantam as torci das de futebol. “Chora, chora, chora a direita porque nós estamos em festa, e vamos mos trar que Néstor não se foi”, aludiam à memó ria do ex-presidente e, em seguida, à do ícone
A Lei de Meios, ainda em partes
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maior da política argentina: “Perón, Perón, que grande é, meu general, quanto vale.” Encher a Praça de Maio com jovens para uma celebração parecia impossível dez anos atrás, quando o local foi ponto de repressão e morte em uma nação em colapso, obra de uma década de políticas neoliberais. Após a queda de Fernando de la Rúa, revezamse cinco presidentes em poucas semanas. Assume o cargo Eduardo Duhalde, o único com alguma capacidade para minimizar os problemas, que convoca eleições para 2003. Escolhe para candidato um improvável Nés tor Kirchner, ex-governador da província de Santa Cruz, uma pequena povoação que, para a maioria dos argentinos, nada mais é que um ponto imaginário de um Sul inabita do, frio e inóspito. E lá veio o Pinguim obter 22% dos votos válidos no primeiro turno. À frente dele, o ex-presidente Carlos Menem, com 24%, uma velha raposa política que, ao notar que perderia com uma rejeição na casa dos 70%, retirou-se da disputa. Néstor chegou à Casa Rosada por meio de eleições que não venceu. Faltavam-lhe o ca risma e o respaldo político, mas o improvável atravessou o caminho mais uma vez. O novo presidente precisava resgatar a confiança da população na política tradicional se quisesse sobreviver. “De nós, não esperem anúncios retumbantes. Dia após dia trabalhando, como vocês fazem em seus trabalhos, porque o pre sidente ou o ministro, ou o governador, defi nitivamente não são de uma casta diferente. Somos homens comuns”, afirmava Néstor, que sempre fazia referência a um “povo sofrido”, prejudicado pelas oligarquias. Quando a Espanha solicitou a extradição de militares argentinos para serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, o então presidente determinou que se fi zesse um projeto para revogar os atos que protegiam os repressores: a escolha era en tre ser julgado no próprio país ou apodrecer em uma cela na Europa. Assim, começou a ganhar a confiança dos jovens. Uma heran ça que Cristina soube capitalizar e ampliar. A Lei de Matrimônios Igualitários, que con cede às uniões homoafetivas os mesmos di reitos das heteroafetivas, a Lei de Meios e a discussão sobre o aborto são alguns dos exemplos. Neste ano, a presidenta começou a fazer um deslocamento da coluna verte bral de seu governo. Aos poucos, saíram as centrais de trabalhadores, e entraram as en tidades representativas dos jovens. Cristina deslocou as peças em seu tabuleiro e impôs novidades ao peronismo. A oposição e parte da imprensa não se renovaram. F
Terceirização do trabalho A
terceirização do trabalho expressa uma das maiores alterações no modo de produção e distribuição de bens e serviços verificados durante a passagem para o século XXI nas economias capitalistas. Mesmo assim, preponderam diferenças im portantes e inegáveis no movimento geral de terceirização do trabalho entre países. Nas economias desenvolvidas, por exem plo, a terceirização do trabalho resulta, mui tas vezes, da opção patronal pela ampliação dos ganhos de produtividades. Com a adoção de novos meios de gestão da mão de obra e in corporação tecnológica, o processo produtivo passou a ser crescentemente compartilhado por um conjunto de diversas empresas que subcontratam seus empregados. Nos países não desenvolvidos, a terceirização do traba lho expandiuse mais recentemente. A prin cipal motivação do processo de terceirização tem sido geralmente a busca da redução do custo do trabalho como mecanismo de maior competitividade e ampliação da margem de lucro diante da exposição do setor produtivo à concorrência internacional. Em função dis so, a terceirização apresenta predominante mente a modalidade de contratações de tra balhadores com remuneração e condições de trabalho inferiores aos postos de trabalho an teriormente existentes e aos equivalentes não submetidos à subcontratação da mão de obra. Para o Brasil, a terceirização do trabalho ganhou importância a partir dos anos 1990, coincidindo com o movimento de abertu ra comercial e de desregulamentação dos contratos de trabalho. Ao mesmo tempo, a estabilidade monetária alcançada a partir de 1994 vigorou associada à presença de ambiente competitivo desfavorável ao mer cado interno. Ou seja, baixo dinamismo eco
nômico, com contida geração de empregos, em meio a taxa de câmbio valorizada e altas taxas de juros. Hoje, o trabalho terceirizado perdeu importância relativa no total do em prego formal gerado no Brasil, embora seja crescente a expansão absoluta dos postos de empregos formais. As ocupações geradas em torno do processo de terceirização do traba lho tendem a se concentrar na base da pirâ mide social brasileira. O uso da terceirização da mão de obra tem se expandido funda mentalmente pelo setor de serviços, embora esteja presente em todos os ramos do setor produtivo. Em síntese, a terceirização transformou se num dos principais elementos de modifica ção do mundo do trabalho, capaz de equivaler quase a uma reforma trabalhista, visto que o Brasil não passou por uma reforma trabalhis ta de corte neoliberal, conforme verificado em outros países. Mesmo assim, várias ações em direção à desregulamentação do mercado de trabalho foram adotadas, especialmente nos anos 1990, quando as políticas neoliberais es tiveram em maior evidência. Por conta disso, o país registrou quatro trajetórias distintas durante os últimos 25 anos na dinâmica da terceirização do trabalho. A primeira, obser vada durante a década de 1980, expressou o movimento de focalização de atividades espe cializadas. Em geral, a terceirização da mão de obra correspondeu à externalização de partes das atividades que anteriormente eram reali zadas, sobretudo nas grandes empresas pri vadas estrangeiras. A internalização de novos métodos de organização da produção e gestão da força de trabalho, adotada originalmente nas economias desenvolvidas, permitiu que a taxa de terceirização fosse crescente. Entre 1985 e 1990, a taxa de terceirização do em
São Paulo: evolução da taxa de terceirização* *relação entre empregos terceirizados formais e empregos formais gerados
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1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Fonte: MTE/RAIS (Elaboração própria)
prego formal no estado de São Paulo passou de 11,7% para 58,2% do saldo líquido das ocupações geradas a cada ano. Com a recessão econômica no início dos anos 1990, concomitante aos fracassos dos planos de estabilização monetária e à aber tura comercial, a dinâmica da terceirização da mão de obra como mecanismo de moder nização das grandes empresas perdeu senti do. O corte generalizado do emprego em um contexto de altas taxas de inflação permitiu ao setor patronal encontrar ajustes de custos alternativos à terceirização de mão de obra. Entre 1990 e 1995, por exemplo, a taxa de ter ceirização no estado de São Paulo decresceu de 58,2% para 8,9% do saldo total líquido de postos de trabalho formais abertos. Além da estabilização monetária com o Plano Real, com impacto inegável na redefi nição da estrutura de preços e competição no interior do setor produtivo, teve impor tância o Enunciado 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que definiu os setores cabíveis da terceirização da mão de obra e concedeu segurança jurídica às empresas. Em virtude disso, a trajetória da contratação de emprega dos formais entrou na sua terceira dinâmica. Por consequência, a taxa de terceirização re gistrou elevação inédita, passando de 8,9% a 97,6% do saldo líquido dos empregos gerados no estado de São Paulo entre 1995 e 2002. Dessa forma, o movimento de terceirização da mão de obra que, até então, se encontrava relacionado ao interesse das grandes corpora ções transnacionais passou a ser difundido no conjunto das empresas em operação no Brasil. Pelas condições da estabilidade monetá ria, alcançada com altas taxas de juros reais e valorização do real, as condições de com petição interempresarial tornaramse mais acirradas. A redução do custo do emprego da força de trabalho estimulou o crescimento da terceirização, inclusive no aparecimento de empresas sem empregados. A quarta di nâmica na trajetória da contratação de em pregos formais ganhou importância desde o início da década de 2000, com a queda na taxa de terceirização. Entre 2000 e 2010, a taxa de terceirização passou de 97,6% para 13,6% do saldo líquido de empregos formais no estado de São Paulo. F
MARCIO POCHMANN é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
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Sociedade fluminense terá que se mobilizar para que Copa e Olimpíadas deixem uma herança positiva para a cidade por tHalita pires
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história mostra que, mesmo em períodos de pouca abertura de mocrática como foi o final do Estado Novo, é possível levar a vontade popular em conta, em processos decisórios. Isso ocorreu, por exem plo, na construção do Estádio municipal Má rio Filho, o Maracanã, que sediou a final da Copa de 1950. Não é, no entanto, o que se vê agora. Apesar de a organização popular ser forte em todas as cidades que receberão os jogos do Mundial de 2014, tudo que envolve os megaeventos no País é encoberto por uma névoa difícil de desvelar. No Rio de Janeiro, por exemplo, o projeto da reforma do Maracanã, com todas as mu danças previstas no estádio e a justificativa dos gastos, não é acessível. O traçado dos corredores de ônibus que estão sendo cons truídos para melhorar a acessibilidade da Barra da Tijuca, onde ocorrerá a maior par te das provas dos Jogos Olímpicos em 2016, tampouco é totalmente conhecido. O número de moradores removidos de suas casas por conta das obras nunca foi divulgado pela prefeitura. Sem saber onde acontecerão as próximas desapropriações, os movimentos populares não conseguem apresentar sua própria estimativa. O número varia entre 30 mil e 100 mil famílias, mas é provável que o real impacto para os moradores da cidade só seja conhecido depois do evento. A prefeitu ra afirma que já reassentou 12 mil famílias. O problema não é apenas o desconheci
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mento quase total sobre as transformações na cidade, mas também a falta de debate so bre o que deve ser feito. A população não foi consultada para discutir opções alternativas aos projetos ou a destinação do orçamento de cada um dos eventos, e isso é, na práti ca, parte inerente daquilo que se entende por megaevento hoje no mundo. Para fun cionarem de acordo com a vontade de seus promotores, eles não podem ser transparen tes. “Comparo acontecimentos como Copa e Olimpíadas às guerras modernas. Os dois têm que ser vendidos para irem adiante. O marketing feito para convencer a população a aceitar um megaevento é parecido com aquele feito para dar apoio à guerra”, afirma Christopher Gaffney, professor de Planeja mento Urbano da Universidade Federal Flu minense (UFF). “Isso acontece porque há in teresses financeiros pesados nesses eventos que não podem ser divulgados”, diz. Há uma série de táticas usadas para im pedir a participação das pessoas no proces so. O processo de propaganda é longo. Nor malmente, há uma empresa de marketing internacional contratada para realizar o pla no, apoiada pelos setores que vão de fato se beneficiar do evento, como a construção civil e os comitês organizadores. “Os estudos eco nômicos usados para convencer a população de que o evento é bom são realizados por empresas privadas, contratadas pelos pró prios beneficiados”, explica Gaffney. Outro exercício retórico comumente usado é a ven
rodrigo soldon
O Rio em busca do legado É possível questionar a necessidade da reforma do Maracanã, que já passou por grandes obras em 1999 e 2005. O planejamento do seu uso futuro também merece atenção
da de uma ameaça inexistente, um processo mais sutil. “A população é ameaçada com a ideia de que os benefícios da Copa ou das Olimpíadas vão para outra cidade ou país, o que geraria perdas econômicas e a inexistên cia de um legado positivo”, conta.
O legado das obras
Normalmente, Copas do Mundo trazem atreladas à sua imagem benefícios para a mobilidade urbana, enquanto as Olimpíadas, além da mobilidade, teriam potencial de de senvolvimento de áreas específicas da cida de, como é proposto em Londres e no Rio de Janeiro. Além disso, há a propaganda de ga nhos econômicos e do aumento sustentado do turismo, entre outros benefícios. Só que esse legado pode não correspon der ao anunciado pelos governos das cida des sede. Em relação aos benefícios físicos – as obras –, é muito difícil que aquelas escolhidas como prioritárias para a Copa guardem relação com as que seriam as mais necessárias para a cida de. No Rio de Janeiro, estão sendo construídos três corredores de ônibus semelhantes aos de Curitiba, com estações de embarque no can teiro central e cobrança de passagem fora dos veículos. O Transoeste, que ligará toda a Barra da Tijuca até Santa Cruz, bairro no extremo oeste da cidade, será importante para os ca riocas mesmo depois dos Jogos Olímpicos. A zona oeste é a região que mais cresce na ci dade, mas suas conexões de transporte com o
centro estão muito aquém do necessário. Já o Transcarioca, entre a Barra e o aeroporto do Galeão, e a Transolímpica, que liga a Barra a Deodoro, não atendem às necessidades re ais de transporte da cidade. “A prioridade de transporte no Rio deveria estar na conexão da Baixada Fluminense com o centro. No dia a dia, as pessoas não vão para o Galeão”, acredi ta Christopher Gaffney. Se o benefício dos projetos de transporte é duvidoso, o investimento em arenas para os esportes olímpicos é ainda mais contro verso. Um exemplo do que pode ser conside rado desperdício de recursos é a construção do novo complexo de esportes aquáticos. O Centro Aquático Maria Lenk será usado ape nas para as competições de polo aquático e saltos ornamentais, enquanto o novo com plexo abrigará a natação e o nado sincroniza do. A questão é que o Maria Lenk foi constru ído para os Jogos Pan-Americanos de 2007, o que significa que, em menos de dez anos, a obra se tornou obsoleta. Da mesma forma, é possível questionar a necessidade de re formas no velódromo, também construído para o Pan, e do Maracanã, que já passou por grandes obras em 1999 e 2005. Além disso, o planejamento do uso futuro dessas arenas deve ser cuidadoso. As instalações olímpicas de Atenas, por exemplo, estão em sua maio ria abandonadas. Aliás, Atenas foi uma das cidades com mais problemas pós-Olimpíada. “Os investimentos feitos lá previam um gran de retorno em turismo. Só que a crise que
começou em 2008 destruiu essa possibilida de”, diz Gaffney. “Quando as pessoas não têm dinheiro, a primeira coisa que cortam são as viagens. O turismo é um dos setores mais frágeis da economia”, avalia. Uma pesquisa elaborada por Patrick Bond, da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul, e por Eddie Cottle, do Labour Research Service, na Cidade do Cabo, susten ta que os estudos de viabilidade econômica feitos para justificar a Copa do Mundo na África do Sul têm defeitos conceituais que levaram o país a superestimar o legado do evento. Em primeiro lugar, a estimativa de gastos dos participantes do evento é bruta, e não líquida. Além disso, tal estimativa inclui gastos com consumo dos moradores locais, que movimentariam a economia mesmo que a Copa não acontecesse no local. Outro equívoco é a alta expectativa em relação ao número de turistas. Isso normal mente acontece porque os turistas regulares
Na África do Sul, ainda é impossível medir de maneira objetiva os lucros com a Copa. Algumas pistas, no entanto, mostram que o cenário é bem distinto do que o imaginado antes do evento
evitam o país na época da Copa, por conta dos preços altos. Por último, o efeito multipli cador na economia é frágil, em parte porque não conta com a remessa de lucros das em presas para fora do país e também porque a criação de empregos locais é menor do que o esperado. Em um evento tão curto, é mais fácil aumentar a carga de trabalho daqueles que já estão empregados do que abrir novas vagas. A possibilidade de lucro para o país também é diminuída pelas isenções de impostos exi gidas pela Fifa para si e seus patrocinadores. Na África do Sul, ainda é impossível me dir de maneira objetiva os lucros com a Copa. Algumas pistas, no entanto, mostram que o cenário é bem distinto do que o imaginado antes do evento. Em 2003, os gastos estima dos do país com o evento foram calculados em cerca de US$ 280 milhões. Esse número subiu para US$ 2,1 bilhões em 2007 e, fi nalmente, em 2010, para US$ 3,7 bilhões. A contribuição para o PIB do país, prevista para atingir 3%, ficou entre 0,2% e 0,3%, de acordo com o Conselho para Pesquisa em Ciências Sociais do país. É importante lem brar que esse cálculo não leva em conta os prejuízos sociais causados pelas remoções de milhares de famílias de suas casas nem outras violações de direitos humanos, como prisões sumárias, feitas sem julgamento. A organização do Pan-Americano de 2007, no Rio de Janeiro, teve problemas muito semelhantes aos vistos na África. “O orçamento final foi dez vezes maior do que o novembro de 2011
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original”, afirma Brian Mier, coordenador do Direito à Cidade da Action Aid Brasil. “Mas não podemos analisar o prejuízo só pelo lado do orçamento. Os abusos aos direitos humanos aconteceram no Pan e estão ocor rendo outra vez para a Copa e a Olimpíada”, crê. Em 26 de junho de 2007, dias antes da cerimônia de abertura do campeonato, uma megaoperação no Morro do Alemão deixou 19 mortos e marcou o início de uma política de segurança baseada no confronto. O rela tório Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro, da Justiça Global Brasil, defende que “a política de segurança, visando à realização dos Jogos Pan-Americanos, transformou-se, progressivamente, no tubo de ensaio que permitiu, ao seu término, a transformação da execução sumária em política de segurança”. No ano do Pan, 1.330 civis foram mortos pela polícia do Rio, um recorde no estado.
As oportunidades
Se é consenso entre os especialistas que a falta de transparência acompanha todos os níveis da preparação para os Jogos Olímpi cos e a Copa do Mundo no Brasil, a pergunta premente é: é possível organizar um mega evento sem atropelar a soberania do país e respeitando a vontade dos cidadãos? Por in crível que pareça, a resposta geral é sim. “A Fifa e o Comitê Olímpico Internacional (COI) exigem muito do país na hora da escolha da sede. Durante a organização, é a hora do país barganhar a seu favor e negociar certas condições”, comenta Christopher Gaffney. De certa forma, é isso que o Brasil está fazendo neste momento, ao debater, ainda que de maneira tímida, pontos controversos da Lei Geral da Copa com a Fifa. Erick Omena, pesquisador do Observa tório das Metrópoles/Ippur e da Biblioteca Nacional, lembra que a participação popular nunca é dada de mão beijada e deve ser perse guida pelos cidadãos. “Uma maneira de con seguir informações é se aproveitar das ares tas que existem entre os entes organizadores, como o embate entre a Fifa e o governo brasi leiro em relação à Lei Geral da Copa”, afirma. Outra disputa que pode render frutos para a sociedade se dá entre Globo e Record, em re lação aos direitos de transmissão do futebol. “O Movimento Fora Ricardo Teixeira ganhou notoriedade na TV por conta dessa disputa”, lembra Omena. O ponto-chave é a sociedade exigir transparência nos processos. “O acesso a informações de obras e processos públicos é um direito constitucional. Deixar a organi zação acontecer em segredo é antidemocráti co”, argumenta o pesquisador. F
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O debate público na construção do Maracanã U
m debate público profundo e inclusi vo fez parte da preparação da cidade do Rio de Janeiro para a Copa do Mun do. Os principais jornais tomaram posição e discutiram as diversas questões envolvidas, como a localização e o tipo de financiamen to dos empreendimentos necessários para o evento. Essa situação parece, em 2011, fazer parte da ficção, tendo em vista a pre paração do Brasil para a Copa de 2014 e do Rio de Janeiro para o Mundial e as Olimpía das de 2016. Todas as decisões são tomadas em gabinetes, e a transparência passa ao largo do processo. Por isso, revisar a pró pria história pode ser útil. Mas a discussão que parece interdita hoje ocorreu há mais de seis décadas no Brasil. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano e Re gional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) buscou resgatar a his tória do estádio carioca, construído para a Copa de 1950, e mostrou que, apesar da de mocracia incipiente à época, a participação da sociedade civil no processo foi maior do que agora. “É verdade que grande parte da participação popular na escolha do projeto do Maracanã foi uma estratégia populista, mas, no final das contas, a vontade dos mo radores foi mais respeitada no fim dos anos 1940 do que na atual democracia”, afirma o autor do estudo, Erick Omena, pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur e da Biblioteca Nacional. A história da construção do Maracanã começa em 1946, com a escolha do Brasil para ser sede da Copa. Quase imediatamen te, a imprensa carioca começou a debater as alternativas possíveis para a construção de um novo estádio na cidade. Até então, o maior estádio disponível era o de São Janu ário, considerado inapropriado para o even to. Os dois principais veículos que entraram nesse debate foram o Jornal dos Esportes, capitaneado por Mário Filho, e o Correio da Manhã, cuja principal voz era Carlos La cerda. Sem um projeto imposto pelo poder público, houve espaço para a discussão de diversos aspectos da construção do estádio.
O primeiro deles foi a necessidade, ou não, de um estádio. Essa questão não tinha apenas relação com a capacidade da arena, mas também com a defesa da prática de es portes, em alta na época. O custo da oportu nidade de tamanho investimento também foi discutido, ou seja, quais poderiam ser as outras destinações do dinheiro usado na construção do novo estádio. Outro ponto dizia respeito à forma de financiamento. As opções apresentadas eram financiamento público ou privado e, se público, bancado pela União ou pelo município. A questão mais importante do deba te, no entanto, se referia à localização. No começo, as opções ficaram restritas a dois locais: a Barra da Tijuca – então conhecida como Restinga de Jacarepaguá – e o Derby Club, no bairro do Maracanã. O projeto da restinga, defendido por Carlos Lacerda, previa a construção de um complexo olím pico. Depois de lançada a pedra fundamen tal da construção do novo estádio, outro parque olímpico foi sugerido, dessa vez em Irajá, às margens da Avenida Brasil. “O projeto do Maracanã defendia, ainda que de forma populista, a interação entre todas as classes sociais. A geral é um exemplo disso”, afirma Omena. “Já a ideia do parque olímpico flertava com o nazismo e com ide ais de eugenia”, completa. A discussão evidentemente não ficou restrita à imprensa. Ary Barroso, que era vereador, advogava na Câmara em favor do projeto no bairro do Maracanã, enquanto Carlos Lacerda, que também era vereador, tentava defender os projetos de seu jornal. A decisão final foi tomada em 1947, quan do Barroso levou à Câmara uma pesquisa de opinião realizada pelo então nascente Instituto Ibope, mostrando que a popula ção da cidade apoiava, em sua maioria, a construção de um estádio público no bair ro do Maracanã. “Essa pesquisa foi essen cial para a aprovação do projeto da forma como aconteceu. Apesar de não ter acon tecido uma consulta popular estritamente falando, essa pesquisa foi importante para a decisão”, conta Omena. F
A Copa e o direito à moradia em São Paulo Obras do estádio do Corinthians e arredores vão afetar a vida de muitas comunidades em Itaquera, na capital paulista. Mas moradores já se mobilizam
por Nina Fideles
Gabo Morales / Folhapress
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m outubro de 2007, a Federação In ternacional de Futebol (Fifa) anun ciou que o Brasil iria sediar a Copa de 2014. Os investimentos, naquela época, foram estimados em R$ 2,8 bilhões apenas em construção e recuperação de estádios, mas hoje esse valor pode ser até triplicado (ver boxe) – obras de infraestrutura para transporte, hospedagem, grandes expec tativas de empresas de turismo e uma gama enorme de serviços a serem prestados. Se o evento traz possibilidades econômicas, tam bém surge o debate sobre os grandes efeitos diretos e indiretos sobre a população do país anfitrião, além dos impactos ambientais. A Organização das Nações Unidas (ONU), quando lançou em março de 2010 o primei ro relatório completo sobre o impacto de megaeventos esportivos nos países que os sediam, concluiu que a organização de Co pas do Mundo e Olimpíadas, entre outros eventos similares, gerou milhares de expul sões e despejos forçados, a redução do aces so à moradia, operações contra sem-teto e a discriminação dos grupos marginalizados. Segundo o documento, para as Olimpíadas de Seul, capital sul-coreana, 48 mil edifícios foram destruídos e 15% da população sofreu despejos forçados. Em Nova Délhi, na Índia, 35 mil famílias foram desalojadas para os Jogos da Commonwealth de 2010; na África do Sul, 20 mil moradores de um dos maiores assentamentos informais do país, chamado Joe Slovo, foram realocados para áreas mais distantes da cidade; em Pequim, mais de 1,5
Moradores da Cohab 1 jogam partida de futebol em quadra de futsal ao lado do terreno das obras do estádio do Corinthians, em Itaquera
milhão de pessoas foram deslocadas em fun ção das Olimpíadas de 2008. E assim segue a lista, apontando impactos diretos, como os despejos, e indiretos, como a supervaloriza ção da terra e da moradia nas regiões, o que acabou gerando deslocamentos massivos. No Brasil, tal cenário não seria diferente. A responsável pelo documento da ONU é a ur banista brasileira Raquel Rolnik, relatora da organização para o Direito à Moradia. Neste ano, ela diz ter recebido inúmeras denúncias de remoções e despejos para a preparação da Copa do Mundo de 2014 nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro (nesta, também por con ta das Olimpíadas de 2016), Belo Horizonte, Porto Alegre, Natal e Fortaleza.
Obras e moradia Na zona leste de São Paulo, na região de Itaquera, onde será construído o estádio do Corinthians, sede da abertura do Mundial, estima-se que as obras possam afetar apro ximadamente 15 comunidades. Com a falta de informações oficiais por parte da prefei tura, os moradores não sabem o que pode acontecer a eles. O que se sabe, e se tornou público, foram as plantas oficiais das obras de infraestrutura na região, apresentadas pelo secretário municipal do Desenvolvi mento Urbano, Miguel Luiz Bucalem, em agosto deste ano, no 2º Seminário sobre o Desenvolvimento da Zona Leste de São Pau lo. No projeto, constam construções como a novembro de 2011
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do Parque Linear – uma enorme área verde que abrange as comunidades da Favela da Paz, Miguel Inácio Cury I, Francisco Munhoz Filho e Lavios –, polos tecnológico e econô mico, novas avenidas, alças de ligação e ade quações viárias que literalmente passam por cima das comunidades. “O anúncio da Copa foi feito há quase cinco anos, e até agora nada foi informado e esclarecido. As famílias não sabem o que vai acontecer, pra onde elas irão, como e de que forma, mas o projeto mostra claramente as obras sobre suas moradias”, afirma Glória Orlando, uma das integrantes do Comitê Po pular Copa Pra Quem, de Itaquera, formado por moradores da região e por movimentos populares. “O que irá acontecer com essas famílias é uma incógnita.” Muitas famílias já receberam a propos ta de indenização da prefeitura no valor de R$ 5 mil e uma bolsa aluguel no valor de R$ 300, paga durante seis meses, para deixarem o local. Outras, já estão inseridas em proje tos habitacionais como o da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do
A Copa e os custos As diferenças entre as estimativas de custos da Copa variam conforme as fontes. Segundo o Portal da Transparência, coordenado pela Controladoria-Geral da União, serão R$ 23,4 bilhões. Já para a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), o cálculo é R$ 84,9 bi. Nesse orçamento, estão incluídos aeroportos, portos, segurança, arenas e mobilidade urbana. As discrepâncias entre estimativas e orçamento real também são comuns em eventos dessa natureza, assim como aconteceu nos Jogos Pan-Americanos, no Rio de Janeiro, em 2007, em que o total dos custos superou em 10 vezes a previsão de investimentos. Além de todas as obras de infraestrutura para receber a Copa, o estádio do Corinthians também conta recursos públicos para sua construção. Começando pelo terreno, da prefeitura, que passou ao time uma concessão de uso por 99 anos. O custo estimado para a construção do estádio é, inicialmente, de R$ 820 milhões. Um pouco menos da metade será financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e R$ 420 milhões representam incentivos financeiros pela prefeitura. Além de R$ 79 mi em isenções fiscais e R$ 46 milhões para a colocação de arquibancadas móveis, pois a Fifa exige capacidade para 65 mil pessoas e o projeto inicial previa 48 mil.
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Estado de São Paulo (CDHU), como é o caso da comunidade de Caititu. Mas, ainda assim, a insegurança é permanente. Com as melhorias previstas na Avenida Caititu pelo projeto da secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano, a comunidade de mesmo nome e as do Jardim Guarani e Jacupe val serão atingidas. Segundo informações da coordenadoria geral de imprensa da prefeitu ra de São Paulo, essas obras “encontram-se na fase de estudos preliminares e, portanto, não há ainda, na atual fase, como precisar quantas famílias serão reassentadas”. Para Clodoaldo Rocha de Oliveira, 31, mo rador da Caititu e integrante do Comitê Copa Pra Quem, “o projeto para a remoção das fa mílias daquela área é bem antigo, mas nunca foi efetivado. A Copa acelerou este processo. Com a revitalização da Caititu, está prevista toda uma reorganização da região que afeta diretamente as famílias que moram lá”. Oliveira vive na comunidade há um ano. Mudou-se para lá quando foi viver com sua esposa, que mora no local há mais de dez. A Caititu tem 1,3 mil moradores, e o projeto da CDHU contemplaria 900 dessas famílias. “Não sabemos para onde as outras vão. Não existe nenhuma proposta para elas. A prio ridade seriam as famílias que moram nas margens do córrego, que são cerca de 500. E esse é um dos motivos também pelos quais a gente está se organizando”, relata. A desinformação também faz parte do jogo, conforme Oliveira. “A prefeitura está jogando contra, o tempo todo. Quando as famílias foram se informar na subprefeitu ra, falaram para todos ficarem tranquilos e retornarem para suas casas, pois nada iria acontecer. As pessoas acabaram acreditan do e, no momento mais oportuno, oferece ram uma bolsa aluguel de R$ 300 por tempo determinado. Com o trator na frente da sua casa ou você aceita, ou se vira”, enfatiza.
De Itaquera para aonde?
A remoção dessas famílias faz parte da lógica da especulação imobiliária. Grandes eventos como a Copa se tornam pretextos para a retirada da população mais pobre de áreas até então não valorizadas e o desloca mento destas áreas para lugares mais distan tes do centro. Este caminho centro-periferia acontece há anos nas grandes cidades, e mui tas das famílias se perguntam por que se gas tam bilhões com obras voltadas para a Copa e não se investe em moradia, educação e transporte. Para Ermínia Maricato, urbanis ta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São
Paulo, o que acontece é uma radicalização, um aprofundamento de um processo que é cotidiano. “Esses grandes eventos aparecem e agudizam a exclusão e acumulação do capi tal no espaço urbano”, analisa. Oliveira sabe que as famílias da Caititu e das outras comunidades poderão ter que sair da área que ocupam, mas não aceita as condi ções oferecidas pela prefeitura nem a possibi lidade de ter que deixar a região. Ele mencio na como exemplo as comunidades que estão mais próximas à Marginal Tietê, como as do Jardim Pantanal e Jardim Romano. Em 2010, esses locais ficaram por mais de um mês de baixo d’água. E diversas denúncias apontam que, por decisão da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), várias comportas da barragem da Penha se mantiveram fecha das, o que ocasionou o alagamento. “Todas as famílias das regiões próximas ao Tietê estão sendo empurradas para Itaquaquecetuba, deixando a Marginal mais bonita pra burgue sia. Empurrando a periferia mais ainda para a periferia”, denuncia Oliveira. “E talvez seja o que vá acontecer aqui, não sabemos, mas a nossa luta é fazer com que essas famílias fi quem em Itaquera. Caso a remoção aconteça, que seja de uma forma digna e humana, o que eu acho difícil, pois conhecemos as práticas dos poderosos”, lamenta. Para Luciano Gonçalves, 33, morador da comunidade de Zorrilho – onde a planta in dica a conexão viária entre duas importantes avenidas da região –, “a prefeitura quer dar uma parte em dinheiro e mandar a gente em bora. Acho muito errado. Antes de pensar em projeto de estádio, estradas, hotel, tem que pensar nas pessoas, na moradia. Todo mun do deu sua força e suor para construir suas casinhas. Tem sangue de todo mundo aqui. Se a prefeitura quer coisa justa, tem que ser justo pra gente também”, defende. Para algumas pessoas, não seria a primei ra vez que seriam obrigadas a deixar suas vidas em uma determinada região e ir para locais mais distantes. Maria de Oliveira San tos, 62 anos, hoje mora na comunidade de Goiti, e há 24 anos passou por um despejo. Morava de aluguel com a mãe, irmão, quatro sobrinhos e cinco filhos em uma região mais próxima do centro, a Penha. A área era de propriedade particular, e algumas famílias tinham ocupado o terreno havia poucos me ses, quando a polícia e os tratores chegaram. “A área foi toda derrubada. Foi tudo, tudo. Sem aviso, sem nada. Os carros foram che gando, a polícia, e foram derrubando tudo.” Na Goiti, Maria conta que todos pagam água, esgoto, mas até hoje a prefeitura não
liberou a “papelada” para comprovar a pos se da terra dos moradores. “A gente é pobre, mas vai lutar para pagar pelo o que é nosso. Não queremos morar de graça. Agora, com a casa pronta, com tudo organizado, querem perturbar a gente. A gente precisava do nos so papel, para garantir que é nosso. Com isso na mão, a gente pode brigar com a Fifa, com os EUA, com todo mundo.” Maria explica que a população da Goiti teria tido garantias ver bais de funcionários da administração mu nicipal, mas ela afirma que só vai ficar tran quila quando estiver com os papéis na mão. Na década de 1990, foi iniciado um processo de urbanização no local, com a pavimentação das ruas, divisão dos lotes e obras de sane amento básico, mas até agora nenhum dos moradores tem a posse do terreno compro vada pela prefeitura. “Na Penha, tinha muita gente e criança, agora tá eu só. Um monte de galinha, um monte de gatinho, um monte de cachorrinho, para brigar por eles. Da Penha pra Itaquera e, agora, daqui só pro cemitério.” Enquanto regiões mais distantes do cen tro, como Itaquera, agregavam infraestrutura como água, esgoto, energia e serviços urba nos – escolas, hospitais, centros comerciais – essas populações construíam suas vidas por lá. Geralmente em terrenos públicos, sem ne
nhuma função, apelidados de áreas de “engor da”, que ficam ali à espera da valorização imo biliária da região. “As casas serão substituídas, despejos irão acontecer, e o Legislativo, o Exe cutivo e o Judiciário também vão auxiliar nes se processo”, acredita Ermínia Maricato. Com a realização de megaeventos, es sas áreas sofrem um boom imobiliário, que pode ultrapassar os 100% de valorização. Nos casos citados pelo relatório da ONU, por exemplo, em Barcelona, o aumento do valor dos imóveis num período de cinco anos an tes dos Jogos de 1992 chegou a 131%. Em Atlanta, 15 mil moradores de baixa renda abandonaram a cidade por conta do aumen to dos aluguéis, e em Sydney, nos cinco anos precedentes aos Jogos, o aumento no valor dos imóveis foi de 50%. “A partir do momento do anúncio da construção do estádio em Itaquera, a gente teve um boom imobiliário absurdo. Os ter renos vazios que não cumprem sua função social estão no aguardo dessa especulação, e pessoas estão lucrando. Tem gente já viven do em Itaquera só de especulação. Com isso, o custo de vida também vai aumentar, mas continuamos achando possível manter essas famílias aqui na região. É direito delas”, ana lisa Glória, integrante do Comitê.
De acordo com Franklin Rusig, dono da Rusig Imóveis, desde que se anunciou a construção do estádio para receber a Copa houve uma valorização de até 25% na região em relação a outros locais da cidade. “Hoje tenho imóveis com a mesma metragem e nos mesmos valores que na Vila Matilde e Penha, que são regiões mais valorizadas”, afirma. Ele conta que aluguéis no valor de R$ 600 passaram para R$ 800 nos últimos meses e acredita que daqui a dois anos os preços po dem subir até 60%. A especulação imobiliária segue seu per curso, as obras do estádio do Corinthians prosseguem e as famílias continuam sem saber o que pode acontecer. Segundo Glória, a ideia é continuar mobilizando as famílias e fortalecendo as comunidades. “Temos que construir com elas a melhor saída para essa questão”, conclui. Para Ermínia Maricato, não se pode des cartar uma vitória da população local. “Se tivesse mais força, o ideal seria continuar morando na mesma área, mas a pauta deve ser de moradia para a região. Por que o po bre não pode continuar morando em uma região qualificada? Ainda mais quando con sideramos que a valorização se deu com in vestimento público”. F
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Copa 2014: Até onde o Brasil deve ceder? Se o Brasil acatar as exigências da Fifa, será o segundo país a suspender ou modificar drasticamente suas regras de escolha de imigrantes temporários Marcello Casal Jr. / ABr
por Pedro Venceslau
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esde que assumiu o comando do Ministério do Esporte em 2006, Orlando Silva fez de suas festas de aniversário um evento oficial do calendário esportivo brasilei ro. Os encontros, que sempre ocorreram em um buffet em São Paulo, reuniam a nata do esporte, da cartolagem e da política, em um cenário que era o símbolo do seu prestígio. Até a festa deste ano, o presidente da Confe deração Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, não havia perdido nenhuma cele bração. Eram outros tempos. Mas o roteiro da roda-viva que culminou com a queda de Orlando do Ministério do Esporte começou a ser desenhado em janeiro, assim que Dilma Rousseff tomou posse no Palácio do Planalto. Por sugestão de seu antecessor e padrinho político, a presidenta manteve o comunista à frente da pasta, mas impôs uma condição: a relação dele com a CBF e a Fifa teria que sofrer uma guinada de 180°. A presidenta Dilma sabia que o momento mais complexo da organização do torneio es tava por vir. Muito mais difícil do que erguer estádios ou fazer obras viárias era negociar com a Fifa o pacote de leis exigido para se viabilizar a montagem e a gestão do evento, chamado de Lei Geral da Copa. Ao optar pelo jogo duro, Dilma seguiu o caminho da Ale manha. Se tivesse optado pelo modelo sul-africano, que cedeu em tudo, é bem provável que Orlando ainda estivesse no cargo. No dia 15 de setembro ele havia acabado de chegar na cidade mexicana de Guadalajara, onde se disputavam os Jogos Pan-Americanos, quan do ficou sabendo da reportagem da revista Veja com denúncias de corrupção feitas por um ex-policial. Naquele momento, a cúpula do PCdoB já temia que a história não ficasse circunscrita à revista semanal.
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Joseph Blatter, presidente da Fifa: o governo vai ceder ou endurecer com a entidade para elaborar a Lei Geral?
O Brasil ganhava sucessivas medalhas de ouro no México na sua melhor campanha em jogos Pan-Americanos, mas a Globo, que per deu a disputa pelos direitos de transmissão do evento para a Record, ignorava solenemente o feito. Naqueles dias, que deveriam ser festa para Silva, a Record e o governo estavam mais próximos do que nunca. A emissora do pastor Edir Macedo abriu suas câmeras para Orlando brilhar ao lado dos atletas. Enquanto isso, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, os executi vos da Globo ruminavam preocupação com a decisão do governo de incluir na Lei Geral da Copa uma cláusula que permitia às emissoras que não compraram os direitos de veiculação do evento mostrarem até 3% do tempo total dos jogos em programas jornalísticos. Formava-se, assim, um perigoso consór cio involuntário de interesses. Assim que a revista chegou às bancas no sábado, a Globo começou a produzir uma longa matéria, em tempo recorde, compilando com tom investi
gativo antigas denúncias contra o Ministério do Esporte. “Houve uma articulação forte em cima da gente. A reportagem da Veja uniu toda a oposição em torno da pauta da faxina ética”, disse Nádia Campeão, presidenta do PCdoB-SP e integrante da direção executiva nacional da legenda. O restante desse roteiro todo mundo conhece.
“Hay que endurecer”
Ao escolher o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), ex-presidente da CPI da CBF/ Nike, para suceder Orlando Silva no Esporte, a presidenta Dilma dá sinais de que pode en durecer o diálogo com a Fifa. No Congresso, a escolha foi vista como um sinal claro. Segun do um dos líderes da base governista na Câ mara, até então o Planalto não havia deixado evidente sua posição. Sem diretrizes exatas sobre como proceder no debate sobre a Lei Geral da Copa, a oposição, da direita à esquer da, unificou o discurso e passou a exigir ainda
os turistas deveriam tirar visto antes de com prar ingresso. “A apresentação de bilhete para um jogo da Copa do Mundo será vista apenas como uma forma de fundamentar o propósito da viagem, mas em si não concede o direito automático ao visto.” Na ocasião, a Fifa acatou a decisão sem fazer ameaças. Na Copa da África do Sul de 2010, o movi mento foi diametralmente oposto. Além de li berarem totalmente a entrada de turistas com bilhetes, o governo abriu mão até mesmo de cobrar uma taxa de visto de R$ 60. Na Copa de 2002, o Japão manteve a exigência de vistos para entrada no país, e o mesmo ocorreu na França, em 1998. Em 1994, os Estados Unidos foram além e criaram uma forçatarefa para fiscalizar torcedores e impedir que eles se transformassem em imigrantes ilegais. As regras da Fifa foram se tornando mais ambiciosas a cada Copa depois do torneio do Chile, em 1962, quando se exigiam apenas compromissos com segurança, hospedagem adequada para delegações e bons estádios. Em 1966, na Inglaterra, o início das trans missões ao vivo e via satélite inaugurou uma nova era nas negociações com os países sede. Com o avanço das novas mídias, o torneio foi se tornando uma máquina de fazer dinheiro. “A discussão sobre soberania é o de menos. Em momentos de crise internacional, o país deve observar com rigor a segurança jurídica de seus projetos. A decisão de decretar feria do nos dias de jogo, por exemplo, vai acarre tar prejuízos à economia. É um sinal negati vo para o mercado internacional”, pondera o economista Diogo Costa, professor de econo mia e relações internacionais do Ibmec.
Pesos e medidas
A escolha da sede de uma Copa do Mun do é um complexo jogo político. Enquanto al guns países se mobilizam para evitar mudan ças radicais em sua estrutura jurídica, outros aceitam qualquer imposição. Em 2006, o
Congresso da Alemanha não permitiu que a Fifa dominasse a venda de cerveja nos está dios. Motivo: a bebida é um patrimônio ale mão. Em nome dos costumes enraizados, o país não aceitou que apenas a marca patroci nadora da Fifa fosse vendida ali. Além disso, os alemães forçaram a entidade a aceitar que a final fosse em um estádio em Berlim, que, por ser parcialmente tombado, não permitia grandes obras de adequação ao “padrão” da Federação Internacional. Já na África do Sul, o país que mais cedeu, o governo aceitou até limitar as liberdades individuais de seus cidadãos durante o tor neio. Entre outras regras, quem fosse preso com produtos piratas ficava em detenção até o fim da competição. No caso brasileiro, em vez da cerveja, o que mais se discute é o di reito à meiaentrada nos jogos para idosos e estudantes. Pelos cálculos da entidade, isso representaria um prejuízo de U$ 100 milhões de arrecadação. Outro ponto de embate é a venda casada de ingressos com hospedagem e passagem, o que é vetado pelo Código de Defesa do Consumidor. Pelo Estatuto do Tor cedor, também é proibido vender cerveja nos estádios, como exige a Fifa. Para fustigar o Brasil, a Fifa tem usado a Rússia como exem plo. Sede da Copa do Mundo de 2018, o país já está em fase avançada de aprovação de um pacote de leis nos moldes exigidos pela Fifa. Outra exigência da Federação que inco moda o governo brasileiro são as reservas vips de ingressos e espaços nos estádios. Se tudo der certo, Neymar acabar com os ad versários e o Brasil chegar à grande final da Copa em 2014, apenas cerca de 15,2 mil ca riocas poderão ver o único jogo da seleção canarinho na cidade maravilhosa. Segundo informações da Fifa, de cada cem pessoas nos estádios dos jogos, 20 são do mundo corpo rativo, 60 são turistas de outros países e ci dades e apenas 20 moram na cidade do jogo. Fica a dúvida: a Copa do Mundo é nossa? F
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mais rigor no trato com a Fifa. “Dilma está jo gando para a plateia. Daqui para frente, o que deve ocorrer é justamente o contrário do que ela está pregando. Ou seja, a base governista vai apresentar sucessivas emendas à Lei Ge ral da Copa para contemplar a Fifa e a CBF”, diz o senador Álvaro Dias (PSDBPR). Ele chama de “chantagem” a ameaça da Federação de tirar a Copa do Brasil e, num arroubo de nacionalismo, chama de absurdas as alterações exigidas na legislação brasileira. “O governo está enviando sinais trocados e, por enquanto, a maioria governista está con fusa. Se Dilma quisesse mesmo endurecer, ela poderia transferir a responsabilidade para o Congresso”, conclui Dias. “A Fifa exige uma legislação de exceção. A disputa vai ser forte. Na Alemanha, eles não conseguiram se impor. Já na África, conseguiram fazer um botim ra zoável”, diz o deputado federal Chico Alencar (Psol/RJ). Ele afirma que há um grupo expres sivo de parlamentares que são “sensíveis” aos argumentos empresariais da entidade. “Mas não podemos aceitar essa chantagem. Esse debate vai testar a coragem dos parlamenta res. A Copa não será em outro lugar.” Se o Brasil acatar as exigências da Fifa, será o segundo país a suspender ou modifi car drasticamente suas regras de escolha de imigrantes temporários. O texto da Lei Geral da Copa prevê o relaxamento do processo de concessão de vistos a visitantes de países que jogam duro com a entrada dos brasileiros, como os Estados Unidos. No capítulo sobre ingressos e confirmação de aquisição, o texto diz: “Considerase documentação suficien te para a concessão de visto de entrada ou ingresso no território nacional o passapor te válido e qualquer outro instrumento que demonstre sua vinculação com os eventos.” Ocorre que, pelo princípio da reciprocidade, o Brasil exige visto de visitantes de países que exigem o mesmo de brasileiros. Em 2006, o governo alemão não cedeu e anunciou que
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Guerras colocam escolas na alça de mira Ataques contra instituições de ensino em zonas de guerra colocam em perigo a vida de alunos e professores e podem criar dificuldades para a superação de danos psicológicos e sociais por Portia Crowe, fotos de Bede Sheppard / Human Rights Watch
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m problema cada vez mais angus tiante que afeta meninos e meni nas é a escalada de ataques contra escolas em zonas de guerra, afir ma um estudo divulgado pela or ganização Human Rights Watch. “Queremos concentrar a atenção mundial sobre o as sunto para poder compreendê-lo de alguma forma e proteger as escolas e os estudantes”,
disse em 20 de julho Bede Sheppard, pesqui sador da Divisão de Direito Infantil da HRW, com sede em Nova York. O informe, intitulado “Escolas e conflito armado: Uma análise global das leis nacio nais e as práticas dos Estados para proteger as escolas de ataques e prevenir seu uso com fins militares”, repassa as leis existentes so bre o assunto em 56 países. A pesquisa ana
Duas bombas explodiram a escola de Belhara, na Índia, em abril de 2009
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lisa três áreas legais: a proteção de objetivos civis, incluindo edifícios e infraestrutura; a segurança de locais de ensino, para impedir que sejam usados por grupos armados, se jam forças do governo ou rebeldes; e as con sequências de longo prazo desses ataques. Algumas dessas consequências são co locar em perigo a vida dos estudantes e do corpo docente, expor os alunos a abusos físi
cos e verbais praticados pelos combatentes e causar danos psicológicos como trauma, an siedade e abatimento. “É muito mais que um edifício destruído”, ressaltou Sheppard à IPS. “É um ataque ao direito das crianças à edu cação”, acrescenta o estudo. Outros impactos são a deserção escolar, a redução de oportu nidades para progredir nos estudos e os fre quentes deslocamentos que podem afastar e dificultar o acesso dos jovens aos centros de ensino. “A situação tem impacto real em uma geração inteira”, destaca a pesquisa. “Supõe-se a educação como um meio para reunir gente e criar uma comunidade”, disse à IPS o diretor do programa Educação em Emergências, Jordan Naidoo, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). “Mas, em meio a um conflito, pode criar rachaduras sociais”, acrescentou. Unicef e HRW, entre outras entidades, formaram, em fevereiro de 2010, a Global Coalition to Pro tect Education from Attack (Coalizão mun dial para proteger a Educação de ataques), que tem prevista a organização de uma me sa-redonda no próximo ano, disse Naidoo. “Em muitos países, as escolas costumam ser o centro da comunidade. Isso também é uma perda, não só para os alunos, mas para o con junto da sociedade”, acrescentou. Os usos militares e os ataques às esco las também têm consequências no sistema educacional em sua totalidade, insistiu Nai doo, referindo-se ao custo econômico de re construir os centros de ensino. “A educação é a base para se conseguir muitos outros objetivos de desenvolvimento. Os prejuízos causados por uma situação de conflito têm múltiplas consequências no longo prazo. Prejudica realmente o país em vários níveis”, acrescentou. Quanto aos motivos que justi ficam os ataques, os autores do estudo não quiseram generalizar. “É realmente impor tante investigar as razões por trás do ataque, para elaborar respostas à causa que os origi na”, disse Sheppard. Os ataques de malaios muçulmanos da Tailândia ao governo budista são um exem plo disso. “Atentam contra as escolas porque consideram que são um local de doutrina mento das autoridades”, afirmou. Na Índia, os maoístas simplesmente consideram que os centros de estudo são alvos fáceis, cos tumam estar desprotegidos à noite e dão visibilidade. “Em alguns casos, as escolas re presentam a estabilidade. Podem fazer parte da ordem estabelecida, e por isso as atacam”, avaliou Naidoo. Em janeiro de 2009, Israel atacou esco las palestinas da Faixa de Gaza como parte
Páginas de um livro escolar no chão de uma escola de ensino básico na Tailândia, incendiada por insurgentes
de sua operação Chumbo Derretido, lançada contra o grupo radical Hamas (Movimento de Resistência Islâmica). Em zonas paquistane sas, onde estão grupos violentos ativos, como o Talibã, os ataques às escolas parecem ser parte de uma política deliberada. As organiza ções não governamentais podem ter um pa pel importante para reverter o dano infligido à educação pelo conflito, servindo de interlo cutores ou negociadores entre os combaten tes e oferecendo cursos de emergência para crianças refugiadas, sugeriu Sheppard. O Unicef trabalha no terreno durante e de pois de um conflito armado. “Reconhecemos que a educação frequentemente serve de re fúgio para os menores afetados por guerras”, afirmou Naidoo. “Também serve de alívio diante de um trauma ou de outra consequên cia psicossocial que devam enfrentar”, acres centou. O programa Educação em Emergên cias também capacita professores para que possam ajudar seus alunos a enfrentar o trau ma causado por um conflito ou por desastres naturais. O estudo destaca que, em situações de instabilidade, as escolas se tornam centro de informação vital. A educação também ga rante o desenvolvimento futuro e a segurança de um país, diz o informe. “Se não trabalharmos diretamente com as comunidades, o governo e as escolas, o transtorno pode continuar, mesmo depois de terminado o conflito armado”, insistiu Nai doo. A organização recomenda que todos os
países condenem os ataques internacionais contra escolas e que considerem sancionar leis proibindo o uso desses centros de ensino como bases armadas. Também sugere incluir informação sobre o tema em folhetos de treinamento militar e garantias de que os que violarem as disposi ções internacionais sejam punidos. “É impor tante que o governo assuma sua responsabi lidade quando há um ataque e reconstrua rapidamente a escola para tentar minimizar os prejuízos”, asseverou Sheppard. Alguns países com conflitos armados cui dam do assunto e implementam medidas de proteção para evitar que as partes enfrenta das tomem as escolas como reféns. “O fato de países como Filipinas e Colômbia dizerem que é possível que em meio a um conflito as forças militares não utilizem as escolas é uma grande mensagem para outros”, afir mou Sheppard. “É muito importante legislar a respeito, porque permite o avanço de uma nação”, salientou Naidoo. “A proteção de me ninos e meninas, de escolas e do pessoal do cente é fundamental para o desenvolvimento do país”, acrescentou. F Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde. novembro de 2011
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alternativa
Futebol engajado e anticapitalista Conheça a história do St. Pauli, clube germânico que se posiciona contra o racismo, o fascismo, a homofobia e o machismo em seu estatuto. E, com isso, conta com uma legião de fãs que ultrapassa dos limites da Alemanha por Rafael Nardini
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e na Alemanha), dos hooligans e dos proble mas políticos ocasionados especialmente por neonazistas e demais perseguidores das minorias, os torcedores do time fundado no distrito operário de St. Pauli se uniram num movimento antifascista, chegando a combatêlo com o uso de violência. Parte da torcida da equipe considerada foco do fascismo acabou por ser escanteada na marra das dependên cias do estádio Millerntor. “Isso trouxe as pessoas para dentro do clube. Torcedores an tigos do St. Pauli, mas que tinham parado de freqüentar o estádio”, conta Oliver Bock, coeditor do fanzine Der Übersteiger. A mitologia foi ganhando mais muscula
stpauli arne bratenstein
St. Pauli é um time de futebol di ferente. A equipe alemã da cidade portuária de Hamburgo se declara anticapitalista, antifascista e já teve até um diretor de teatro assumi damente gay como presidente. Encampando bandeiras de movimentos sociais e das liber dades individuais, a equipe da região Norte da Alemanha expandiu sua fama a partir dos anos 1980. Foi nessa mesma década que o clu be colocou sua visão libertária no papel. Desde então, se declara contra o racismo, o fascismo, a homofobia e o machismo em seu estatuto. Na década de 1980, auge das brigas en tre torcedores (principalmente na Inglaterra
stpauli photocapy
tura com a chegada de movimentos sociais e grupos políticos ligados aos comunistas, anar quistas e a de artistas locais que passaram a torcer pelo St. Pauli desde então. “Um monte de gente passou a sair das docas e levar bandeiras com uma caveira e ossos cruzados com as cores do clube. Era uma piada, mas isso se espalhou”, explica Sven Brux, torcedor de longo tempo e mem bro da equipe de segurança do time. “É um símbolo: nós, os pobres, contra os ricos. Clu bes ricos como [Bayern] Munich. Agora os piratas lutando pelos pobres contra os ricos é um símbolo oficial do clube”, afirma em um documentário do time. E a fama dos piratas também se esten deu mundo afora. Ao todo, são mais de 500 fã-clubes do St. Pauli espalhados pelo mundo. E não é porque o Brasil não abriga nenhum deles que não há torcedores da equipe no país. “Quando eu conheci o St. Pauli, vivia procurando materiais sobre o time. Em portu guês, não encontrava muita coisa, e o que en contrava eram informações superficiais, daí lia material em inglês, que também era pouco. A única maneira de ter algo completo era em alemão. Quando comecei o blogue em janeiro de 2009, o time estava na 2ª divisão do cam peonato alemão, e a variedade de informa ções sobre o time era bem pobre, a não ser na língua natal”, conta a designer de moda Lucia na Leal, 33 anos, que mantém um blogue, o St. Pauli Brasil (http://fcstpaulibrasil.blogspot. com/), totalmente escrito em português. Para os torcedores do time germânico, há valores mais importantes que o futebol e os resultados alcançados em campo. O clube, que estima ter 11 milhões de sócios na Alemanha, chegou a manter uma média de 15 mil torce dores por jogo enquanto estava na terceira divisão, campeonato com média geral de 200 espectadores. Uma prova de fidelidade e tanto. “Na temporada passada, quando o time esteve na liga principal, fez uma campanha
bem fraca e voltou pra 2ª divisão, e nem por isso os torcedores deixaram de apoiar. Se fosse aqui, o ex-técnico [Holger Stanislawski] teria sido demitido há muito tempo. Mas não, o treinador ficou com a equipe até o fim [ele saiu para assumir o TSG 1899 Hoffenheim] e, mesmo já tendo sido rebaixado, fizeram uma festa linda de despedida em agradecimento por toda a sua contribuição”, conta Luciana. “O time exerce uma paixão instantânea em quem o conhece”, completa a brasileira, que descobriu o time por meio de um namorado alemão “maluco pelo time”, segundo ela. Mas a paixão pelo time não impede os torcedores de atitudes muito bem pensadas. Em 2002, por exemplo, uma publicidade de uma revista masculina foi considerada sexista pelos torcedores, numa possível depreciação das mulheres, e sua veiculação no estádio ren deu diversas críticas. A direção do clube en tendeu a mensagem e mandou retirar a peça publicitária. Por ações desse calibre, a equipe pirata tem outra marca para se orgulhar: a de maior torcida feminina na Alemanha. “O Millerntor Roar! (antecessor do “Der Übers teiger”) foi o primeiro fanzine na Alemanha a não se concentrar em relatórios de jogos e de brigas com torcedores adversários, mas a ter uma agenda política. Isso trouxe um monte de intelectuais e mulheres”, diz Bock. O distrito de St. Pauli recebe desde sem pre muitos imigrantes, que trabalham nas docas do porto local, criando uma aura mul ticultural na região. Além disso, Reeperbahn, a avenida mais liberal da cidade, fica nas redondezas. É lá onde estão instalados di versos sex shops, cinemas pornô e casas com shows de sexo ao vivo. É por ali também que as prostitutas se instalaram e tentam atrair os clientes de dentro das janelas emoldura das com o neon, um red light district seme lhante ao de Amsterdã, na Holanda. Um dos clubes de striptease da cidade abrigou os pri meiros shows dos Beatles fora da Inglaterra, em 1961. O clube funciona ainda hoje, mas agora apenas para apresentações musicais.
Não ao setor VIP
Mais recentemente, o time voltou a ser destaque na imprensa internacional por duas inovações. A primeira delas foi relacionar o seu assessor de imprensa como jogador do time, no banco de reservas para uma partida válida pela primeira divisão da Bundesliga (temporada 2010/11), em fevereiro deste ano. Com vários atletas sem capacidade física de entrar em campo, o assessor Hauke Brück ner, 30 anos, que foi jogador semiprofissional, foi chamado às pressas. Em 2011, foi a vez de inovar na apresentação e divulgação do uni forme da equipe para a temporada 2011/12. Nas imagens, apenas os próprios torcedores
do time esquerdista: punks, mulheres, jovens tatuados, crianças, homens bastante acima do peso e até cachorros. Mas nem todos torcedores se mostram satisfeitos com os rumos da gestão do time que atua na segunda divisão do Campeonato Alemão. Desde o final do ano passado, o gru po de torcedores autointitulado “Românticos Sociais” (tradução do alemão: Sozialromanti ker) critica a recente instalação de outros 200 lugares na área VIP do estádio. “O St. Pauli é uma ilha no mundo do futebol profissional, que está preocupado apenas com a explora
ção financeira”, clama o manifesto intitulado “Já chega!”, que foi distribuído por eles. Os “torcedores românticos” vão aos jogos com bandeiras vermelhas grafadas com os dizerem “Tragam de volta o St. Pauli”. Outra insatisfação recente do grupo eram os shows de striptease que ocorriam dentro do estádio. Durante as comemorações dos gols da equipe mandante, as strippers tiravam peças e mais peças de roupa. A diretoria acabou cedendo, e desde fevereiro não há mais espetáculos eró ticos no Milletorn. Quer dizer, ao menos não dentro das dependências do estádio. F
Várzea anarquista em São Paulo Diz a máxima do futebol que pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube. No Autônomos FC, equipe da várzea paulistana fundada por anarquistas há cinco anos, a coisa pode ser traduzida de outra forma: pênalti é tão importante que é batido por quem leva o escudo da equipe tatuada no corpo. É o geógrafo Kadj Oman, o popular Danilo Mandioca, volante e dono da tatuagem do esquadrão, quem bate a penalidade e dá números finais à vitória de 2x1 sobre o União Marechal, no chamado Festival da Boa Vizinhança. O gol marcado no minuto final de partida no Centro Desportivo Comunitário Bento Bicudo, o glorioso Bicudão, rende ao time o troféu que leva o nome do eterno ídolo corintiano Sócrates Brasileiro. A experiência de misturar autogestão e futebol nasceu em maio de 2006, como resposta de um grupo de punks, ex-punks e anarquistas da capital paulista aos questionamentos ideológicos a que eram submetidos por conta da paixão do grupo pelo esporte bretão. Na outra ponta estava o que, aos olhos dos fundadores do Autônomos, era a submissão cada vez maior do futebol aos negócios. A solução foi juntar o útil ao agradável e ir para o jogo. Inicialmente, o grupo reduzido de jogadores atuava no futebol society (grama sintética). Passados cinco anos, a equipe agora deixou de lado os campos “engomadinhos” e começa a estender seu projeto para além dos campos de terra batida. Há poucos meses, o Autônomos acomoda também uma equipe de futebol de salão, sem falar na Autônomas FC, a equipe feminina que também atua nas quadras. Com o futebol caminhando praticamente sozinho, era hora de a equipe pensar em uma sede para viver a política. A solução veio com a Casa Mafalda, espaço cultural que abriga quase que simultaneamente grupos de discussões, sessões de vídeo, shows e festas. Localizada na Rua Clélia, na Lapa, zona oeste de São Paulo, a casa abriu suas portas pela primeira vez em 6 de agosto. No entanto, para colocar o sonho em funcionamento, os anarquistas se endividaram. “Reunimos boa parte do dinheiro para dar entrada na
casa com os próprios jogadores e o restante pegamos em empréstimos no banco (cerca de R$ 12 mil)”, conta Gabriel Brito, camisa 10 do Autônomos e “líder intelectual” fora dele, de acordo com o volante Paulo Silva Junior. O ponto custou ao Autônomos cerca de R$ 40 mil. Para pagar as contas do local, a Casa Mafalda terá de arrecadar ao menos R$ 7 mil ao mês. “O último locatário (do ponto) permaneceu por cinco anos. Nossa ideia é ficar aqui um bom tempo”, afirma Gabriel. Para isso, ele vê a necessidade de algum projeto que utilize o espaço não apenas nas sextas e sábados, como, por exemplo, uma biblioteca. “Queremos ficar aqui, criar raízes”, completa. Quem visita o espaço que leva o nome da personagem do cartunista argentino Quino não precisa perder tempo com explicações sobre “bons modos”. Na porta de entrada do local estão escritos os princípios da equipe: anticapitalista, antifascista, antirracista e antissexista. A ideia é fugir também dos padrões. Em 11 de setembro, por exemplo, nada sobre o ataque terrorista ao World Trade Center, nos Estados Unidos. Os oito presentes no local tinham disponível um documentário sobre outro aniversário daquela data: o do golpe de Estado no Chile, em 1973. Nesses dois meses iniciais do espaço autogestionado, o frequentador paga R$ 3 pelas latas de cerveja e de refrigerante. A água sai pela metade do preço. Os destilados têm valores mais altos: caipirinha, cachaça ou vodca saem a R$ 4. Já o uísque custa R$ 10. Para comer, por enquanto, apenas alguns tipos de salgadinhos e amendoim. “Umas ‘lariquinhas’ para o momento certo”, classifica Gabriel. Em 2008, a equipe rubro-negra recebeu a visita dos amadores ingleses do Easton Cowboys & Cowgirls, de Bristol. Dois anos depois, era a vez de 26 integrantes do Auto arrumarem as malas e embarcarem para a disputa da Copa do Mundo Alternativa de futebol amador, disputada em York, na Inglaterra. Com teto fixo, planos e excursão europeia, agora o Auto começa a se preparar para disputar a primeira edição da Copa América Alternativa, em janeiro de 2012, na província de Córdoba, na Argentina. novembro de 2011
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Mais diversidade, mais cultura por Juliana Rocha Barroso
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stabelecer políticas e in vestimentos que fomen tem a leitura e a difusão do livro, assim como o pleno acesso de toda a cidadania à produção literária global e local.” Esse tex to pode ser lido no artigo 36 da Agenda 21 da Cultura, documento orientador das polí ticas públicas da área construído por vários países e aprovado no Fórum Universal das Culturas, em 2004. Trata-se de um grande desafio, ainda mais no Brasil, país em que, embora o cenário cultural seja tão rico e di verso, o acesso a equipamentos e bens ainda é restrito a uma minoria. O Ministério da Cultura (MinC), por meio da Secretaria de Articulação Institucional (SAI), criou, em outubro de 2007, o Progra ma Mais Cultura, com base nos objetivos preconizados pela Agenda 21, de reconhecer a cultura como uma necessidade básica, des tacando a importância da economia da área para o desenvolvimento do País. E, como es tratégia para promover a diversidade cultu ral e ampliar o acesso a bens e serviços do setor, o programa lançou, em fevereiro de 2010, o edital Periódicos de Conteúdo Mais Cultura. A ideia foi popularizar materiais de leitura por meio de edição e distribuição pe riódica de publicações com conteúdos diver sificados e de qualidade. Por meio do edital de 14 de outubro de 2009, resultado das propostas formuladas pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e pela Diretoria de Livro, Leitura e Literatura (DLLL), da SAI/MinC, puderam participar organizações com atuação comprovada na área cultural há pelo menos dois anos. O re sultado foi a assinatura anual das 12 publica ções selecionadas a 7 mil espaços culturais, entre bibliotecas públicas, Pontos de Leitura e Pontos de Cultura, desde março de 2011. São publicações impressas de periodicidade
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Iniciativa garante que publicações impressas cheguem a bibliotecas e Pontos de Leitura e Cultura, contribuindo para promover o direito de milhões de brasileiros ao acesso a múltiplas visões de mundo mensal, bimestral ou trimestral, realizadas em território brasileiro, que desenvolvem conteúdo sobre Cultura, Sociedade, Artes, Política e Economia, com ênfase mínima de 35% da publicação para Cultura e Artes. O acompanhamento nos Pontos de Cultura é feito pela Secretaria de Cidadania e Diversi dade Cultural, nos Pontos de Leitura pela Di retoria de Livro, Leitura e Literatura (DLLL) e, nas bibliotecas, pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), do MinC. “Esse projeto tem o intuito de fortalecer dois eixos principais do Plano Nacional de Li vro e Leitura. O primeiro, é a democratização do acesso ao livro e à leitura. O foco também é diversificar a leitura, numa perspectiva de valorização das diferentes culturas, sempre
no intuito de ampliar o conhecimento, de compreender que outros mundos culturais existem além do seu próprio. O segundo eixo é o fomento à cadeia criativa e produtiva do livro. Essa iniciativa foi muito positiva para as editoras de revistas que já nos revelaram a importância de ações como essa para suas estruturas”, destaca Fabiano dos Santos Piu ba, diretor da DLLL. Os periódicos chegam a cidades do inte rior do País que não teriam acesso aos seus conteúdos, pelo desconhecimento de sua existência ou pela dificuldade de alcance des ses locais. “Como essa ação é nacional, nós exigimos que os periódicos fossem entregues nos lugares onde tivéssemos registros de bibliotecas públicas, Pontos de Leitura e de
O Brasil tem fome de quê?
Apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema (ao menos uma vez por ano). 92% dos brasileiros nunca foram a museus. 8 2% dos brasileiros não possuem computador em casa. Destes, 70% não têm qualquer acesso à internet (nem no trabalho, nem na escola). ais de 90% dos municípios não possuem salas de cinema, teatros, museus e espaços M culturais. brasileiro lê, em média, 1,3 livro per capita/ano (enquanto na França, por exemplo, O são 7 livros por pessoa). 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da população. O preço médio do livro de leitura corrente (obras literárias e de divulgação) é de R$ 25. 5 6,7% da população ocupada na área de cultura não tem carteira assinada ou trabalha por conta própria. média brasileira de despesa mensal com cultura/família é de 4,4% do total de rendimentos, A porcentual acima da educação (3,5%), não variando em razão da classe social e ocupando a 6ª posição dos gastos mensais da família.
minc brasil
Pontos de Cultura, não importa em que região estivessem localizados. Há o atendimento até de Pontos de Cultura existentes em terras in dígenas”, conta. Além do acesso, Piuba ressalta que o pro grama também tem a perspectiva de servir como instrumento para formação leitora e construção de subjetividades. “Os periódicos selecionados respondem bem à possibilida de de fruição e de leituras críticas, não ape nas em relação às artes, mas também como ampliação de leitura de mundo. Quem lê es sas revistas com certeza é instigado a ir para a literatura, para um bom poema, um bom romance, um bom filme, uma boa peça tea tral, a um bom debate político.” Segundo Elisa Machado, coordenadora do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), o Brasil está praticamente zerando o número de municípios sem bibliotecas públi cas, de acordo com os resultados do primeiro censo da área realizado em 2009 e publicado em 2010. “Nos próximos meses, os últimos 36 municípios que não têm bibliotecas rece berão o kit de implantação. Estamos traba lhando no sentido de estimular e colaborar com os governos locais para implementar mais bibliotecas e para modernizar as já existentes”, informa Elisa. Ela sinaliza que o SNBP está desenvolvendo uma série de fer ramentas para monitorar e avaliar as ações e os investimentos nas bibliotecas, como a distribuição de assinaturas de periódicos, trabalho que envolve um grande movimento de articulação e conscientização. Quanto ao uso desses periódicos e de seus conteúdos, fica a critério dos Pontos e bibliotecas. “Os bibliotecários que atuam nesses espaços são profissionais habilitados para trabalhar no sentido de disponibilizar, da forma mais adequada, esse tipo de mate rial. E estão preparados também para orga nizar e implementar ações que valorizem e fomentem a leitura consciente e crítica. Pu blicações periódicas de qualidade como as que foram distribuídas por meio desse edital são materiais riquíssimos, que colaboram para qualificar essas ações”, argumenta Elisa. A dificuldade em monitorar números como a frequência de usuários dos equipa mentos em que chegam os periódicos, média de empréstimos e os impactos parciais des sa ação é atribuída à falta de estrutura para fazer um mapeamento específico de algo tão diverso. “A responsabilidade de cadastro dos Pontos de Leitura e de Cultura no sistema do MinC é muito mais da sociedade do que do Estado. Hoje, no Brasil, existem quase 6 mil
Os Pontos de Cultura e as bibliotecas passam a ter acesso a um conteúdo informativo novo
municípios. Certamente existe um número alto que o Estado não tem conhecimento. Muitos são criados, fechados, mudam de endereço e de gestores. É impossível acom panhar essa dinâmica social, ainda que seja importante para nós ter esse mapeamento”, explica Fabiano.
Diversidade é cultura
Os periódicos contemplados no concurso são muito diversos na sua forma de se man ter, de buscar recursos, na sua proposta, na sua história, e toda essa diversidade chegan do junta aos espaços é, em si, enriquecedora. O edital apontava como pré-requisito que os candidatos dessem ênfase à cultura, com pelo menos 35% de seu conteúdo total, con siderando crônicas, charges, crítica literária, poesia, artes visuais, ou seja, num conceito bastante amplo do que é cultura. O jornal Rascunho, por exemplo, é pura mente literário e dedica muito espaço para a produção regional. A revista Caros Amigos tem muito de economia e de política, enquan to a Rolling Stone trabalha a cultura pelo viés da música pop e do rock. Wagner Nabuco, diretor geral da Caros Amigos, entende que o programa é uma iniciativa inédita no Bra sil. “Pelas nossas tradições, a informação que chega é muito homogeneizada por uma visão de mundo com pequenas diferenças, que no seu âmago são parecidas. Então, as pessoas, em geral, têm poucas possibilidades de olhar
para outras visões de mundo, que envolvam cultura, economia, política, comportamento.” Nabuco defende que as escolas do sistema de educação formal deveriam também estar recebendo essas publicações, além das he gemônicas. “Adoraria que esses milhões de estudantes brasileiros encontrassem essas publicações nas bibliotecas escolares para ampliar o seu universo de conhecimento, de informação, e depois fazer suas escolhas democráticas. Não se constrói um país mais igualitário, mais justo, sem que seus cida dãos tenham uma formação melhor na edu cação, na informação.” Outro aspecto destacado por ele é o ca nal de relacionamento aberto com os Pon tos. “Chegam correspondências, sugestões de pauta, de repente, uma delas abre nos sos olhares para uma determinada matéria ou cobertura que a gente não faria, porque também são fontes de informação de lugares em que a gente não estava chegando. É uma troca muito bacana”. É nos próprios Pontos de Cultura e nas bibliotecas que se pode medir o impacto da chegada dessas publicações para as co munidades, que passam a ter acesso a um conteúdo informativo novo. O Ponto de Lei tura Traças do Bem fica em uma comunidade de periferia, de meio rural, em Maricá (RJ). Distante do centro da cidade, tem dificulda des em relação à divulgação de suas ações. Maria Regina Moura da Silva, coordenadora novembro de 2011
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Rafael Martins / SECOM
Pontos de Leitura passam a ter novas publicações, estimulando uma visão mais plural
Publicações que chegam aos Pontos de Cultura e bibliotecas têm servido de subsídio para educadores trabalharem temas em sala de aula
dos projetos do Ponto, conta que as pessoas que participam da iniciativa se utilizam de várias ações simultâneas, pois também são Ponto de Cultura e Cineclube (Cine mais Cul tura), para divulgar o acervo e a própria Sala de Leitura nas escolas. Ela considera que os periódicos são valiosos por sua atualidade, e são também um meio de manter o acervo em constante renovação. “Eles despertam o in teresse dos frequentadores, seja para as lei turas de entretenimento, seja como material de pesquisa”, analisa. Jussara Bohrer Ortiz, diretora da Bibliote ca Pública Municipal Dr. João Minssen, de Ca choeira do Sul (RS), destaca a qualidade das publicações e a importância da iniciativa do MinC, em razão das dificuldades da biblioteca em adquirir periódicos. Já Lucélia de Cássia Clarindo, coordenadora do Ponto de Leitura Bando da Leitura, de Ponta Grossa (PR), res salta a diversidade do conjunto de periódi cos, dirigidos a todas as faixas etárias e aos mais diversos leitores. “A revista Viração é bem procurada por adolescentes e é a mais
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emprestada. Acadêmicos também procuram as revistas para seus trabalhos”, conta. O Ponto de Cultura a Bruxa Tá Solta está localizado no Anauá, segundo maior assen tamento familiar em extensão territorial do Brasil, no município de Rorainópolis, sul do Estado de Roraima. Catarina Ribeiro, gestora de projetos do local, salienta a importância dos materiais para as atividades cotidianas. “Eles têm servido especialmente de subsídio para professores em sala de aula. Os educa dores são parceiros do Ponto, que atua na abordagem territorial por meio de Pontos de Luz, ou seja, pessoas que assumem o pa pel de multiplicadores. Temos distribuído as publicações conforme a área de interesse de cada educador”, explica. O Ponto de Cultura é parceiro da comu nidade indígena Maturuca, das Terras Indí genas Raposa–Serra do Sol. “Muitas edições das revistas Fórum e o Le Monde Diplomatique têm sido utilizados nas aulas de Filosofia do professor Macuxi. Entendo que precisa mos seguir nesta democratização das infor mações, com a diversidade que representa o conjunto das publicações. Somente nessa ação se torna possível levar a consideração das pessoas nas comunidades mais afasta das, outros pontos de vista, outras óticas de mundo”, ressalta Catarina. A rede formada pelos Periódicos de Con teúdo Mais Cultura está articulada em busca de maneiras de dar continuidade à iniciati va. “Estamos começando as primeiras con
versas entre os editores para levantarmos elementos também de qual foi o impacto disso nas comunidades, com mais dados, com aprofundamento do conhecimento do dado e também como divulgar isso para o conjunto da sociedade, demonstrar que foi um dinheiro público bem aplicado, que tem um retorno real. Acho que esse tem que ser o critério fundamental e nós, com certeza, vamos ter elementos para demonstrar isso. E seria muito bom que fizéssemos isso junto ao próprio MinC.” F
Para todos os gostos Conheça os periódicos vencedores do concurso público: Brasileiros Cult Revista Viração Rolling Stone Raça Brasil Piauí Carta na Escola Jornal Rascunho Revista Fórum Le Monde Diplomatique Brasil Caros Amigos Almanaque Brasil de Cultura Popular
música
A sonoridade única do Quinteto Violado A música popular regional sem caricatura ou descaracterização: há 40 anos, essa é a proposta do grupo pernambucano que continua em busca das raízes do país por Pedro Alexandre Sanches
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Os Violados se puseram a reler o cancio eproduzindo um embate que já bonito, um teatro ao ar livre, feito de pedras”, havia ocorrido um ano antes nos lembra o violonista e compositor Marcelo neiro gonzaguiano, substituindo o trio pelo Estados Unidos, com Bob Dylan, Melo, integrante remanescente do Quinteto quinteto e a base sanfona-triângulo-zabumba o Brasil sediou em 1967 uma épi Violado original, que já teve várias formações, por violão, viola, flauta, contrabaixo e bateria. ca guerra pop entre o violão e a mas não cessou as atividades em nenhum “Através da flauta, a gente traduzia a música guitarra. Elis Regina comandou algo gestado momento nos últimos 40 anos. “Quando des dos pífanos dos índios”, descreve Melo. “O vio pela TV Record, que ficaria conhecido como cemos do palco, viemos com nossos violões e lão fazia a harmonia, e procurávamos fazer a passeata contra a guitarra elétrica – a MPB violas, e tinha umas crianças lá embaixo que um trabalho com a viola que desenhava me contra a Jovem Guarda, Geraldo Vandré con gritaram: ‘Lá vem os violados’. Eu e Toinho Al lodias, não era simplesmente aquele instru mento de batida rítmica para os poetas, can tra Roberto Carlos. ves ouvimos, pronto, aqui está o nome.” Edu Lobo venceu o festival de música bra Já naquela primeira aparição, o grupo mos tadores, improvisadores nordestinos. Toinho sileira da Record daquele ano, empunhando trou os arranjos particularíssimos que carac chamava seu contrabaixo de zabumba har um violão enquanto cantava “quem me dera terizariam seu som, para clássicos do repertó mônica. E Luciano Pimentel começou a usar agora eu tivesse a viola pra cantar Ponteio” rio do também pernambucano Luiz Gonzaga a bateira com uma só baqueta, embora fosse ao lado de Marília Medalha. Munida de gui como “Asa Branca” (1947), “Acauã” (1952) e uma bateria normal de jazz. Na outra mão, ele tarras elétricas, a Tropicália de Caetano Ve “Vozes da Seca” (1953). Três décadas antes, tinha um ganzá, e conseguia sintetizar mara loso e Gilberto Gil conquistou colocações Gonzagão havia imposto a música nordestina catu, caboclinho, frevo, xote, baião, xaxado, inferiores, mas pareceu ter vencido defini ao Brasil, consagrando o formato hoje clássico tudo ali naquele instrumento”. Tratava-se de um passo além na evolução tivamente a batalha quando Sérgio Ricardo, do trio de sanfona, triângulo e zabumba. da música brasileira pra egresso da Bossa Nova ticada longe das garras e engajado na MPB de do eixo Rio-São Paulo. protesto, exasperou-se O Quinteto Violado se pôs a reler o cancioneiro gonzaguiano, “Era uma proposta cul diante da vaia e quebrou substituindo o trio pelo quinteto e a base sanfona-triângulo-zatural, com música popu seu próprio violão em bumba por violão, viola, flauta, contrabaixo e bateria. “Através lar regional, sem carica pleno palco. A guitarra da flauta, a gente traduzia a música dos pífanos dos índios”, turar, descaracterizar, havia vencido a peleja. vulgarizar nem empo Havia mesmo? Qua descreve Marcelo Melo brecer. A gente apenas tro anos depois do can estava dando dignidade to de cisne de “Ponteio”, àquela música”, define e exatos 40 anos atrás, um grupo de Pernambuco estreou nos rin A Bossa Nova do baiano João Gilberto Melo. O advento do Quinteto abriria alas gues musicais brasileiros autobatizando-se atirara a sanfona no ostracismo a partir de para que o Brasil dos anos 1970 fosse além Quinteto Violado, porque munido de violas 1958, substituindo a estilização cangaceira do rock baiano de Raul Seixas e assumisse e violões. Chegava apadrinhado pelo mesmo de Gonzagão pelo figurino de iatinhos e sa sua nordestinidade também pelo canto ás Gilberto Gil que quatro anos (e um exílio) an patinhos de salto alto de Tom Jobim, Vinicius pero dos cearenses Fagner, Belchior, Ednar tes havia trocado a passeata de Elis pelo rock de Moraes e patota. Os baianos Caetano, Gil do e Amelinha, dos pernambucanos Alceu de guitarra dos Mutantes. e Gal Costa ensaiavam com a Tropicália uma Valença e Geraldo Azevedo, dos paraibanos “Nossa primeira apresentação para o pú reabilitação de Luiz Gonzaga, mas naqueles Zé Ramalho e Elba Ramalho. “Precisávamos blico foi em 20 de outubro de 1971, em Nova tempos de partida estavam mais interessa de uma atriz cantante para o espetáculo do Jerusalém, onde acontece a Paixão de Cristo, dos no “som universal” que no orgulho baia disco A Feira (1974), fui buscar Elba Ra malho em Campina Grande. Descobrimos e num festival que acontecia num espaço muito no ou, de modo mais amplo, nordestino. novembro de 2011
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No caminho, Vandré
Embora a música do Quinteto emanas se do povo, seus integrantes estavam mais próximos da MPB de extração universitária que das raízes marginalizadas. Melo come çou a fermentar o ideário do grupo na Euro pa, onde foi morar na virada dos anos 1960 para 1970, para se pós-graduar engenheiro agrônomo. Lá, deu aulas de violão para uma estrela nascente da música pop francesa, Françoise Hardy (que, a propósito, lançaria em 1971 um álbum todo feito de parcerias com a compositora paulista Tuca). E lá, o caminho de Melo cruzou também com o de um exilado brasileiro, paraibano, que cau sara comoção no festival da Rede Globo de 1968, com “Pra não dizer que não falei das flores” (“caminhando e cantando e seguindo
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Ádria de Souza / Pref.Olinda
trouxemos Elba pro sul, depois da tempora da ela ficou no Rio, não voltou mais e seguiu a carreira dela”, orgulha-se Melo. Ele se lembra que A Feira gerou descon fiança e hostilidade quando saiu. Exemplar antológico e esquecido da mais profunda música popular nordestina, o disco profeti zava, com 20 anos de antecedência, o grito tradicionalista-modernizador do manguebeat pernambucano de Chico Science e Fred Zero Quatro, colocando lado a lado, em ver sões pungentes, populares-eruditas, o “As sum Preto” (1950) e o “Pau de Arara” (1952) de Luiz Gonzaga, a “Disparada” (1966) de Geraldo Vandré, a “Procissão” (1967) de Gil e a “Ave Maria” (1968) de Caetano. A guitarra não tinha vez entre os Viola dos, mas o músico que se encarregava da vio la, Fernando Filizola, era guitarrista de ori gem. “Ele tinha um grupo de rock chamado Silver Jets. Hoje mora em Natal, está fazendo doutorado em música, é professor na univer sidade”, conta Melo. Filizola e Pimentel (já falecido) saíram do grupo em 1983. O contrabaixista e compositor Toinho morreu em 2007, mas legou ao Quinteto seu filho Dudu, introdutor dos teclados no grupo, e seus sobrinhos Ciano, flautista, e Roberto, percussionista, também integran tes da formação que aniversaria as quatro décadas. O precoce e virtuoso Sando John son, primeiro flautista dos Violados, apare ceu só nos dois primeiros discos do grupo, Quinteto Violado (1972) e Berra-Boi (1973). “Era um menino de uma família de músicos eruditos. Tinha o domínio da flauta que ad quiriu com o exercício da musicalidade de Debussy, Vivaldi, Bach. Saiu porque a famí lia acabou influenciando pra ele voltar pra música erudita”, diz Melo.
a canção/ somos todos iguais, braços dados ou não”): Geraldo Vandré. Ainda amador, Melo gravou o derradeiro disco de Vandré antes do abandono total da música comercial, Das terras de Benvirá, que só seria lançado em 1973. “Ele tinha recebido uma ajuda do [maestro francês] Paul Mauriat,
Embora a música do Quinteto emanasse do povo, seus integrantes estavam mais próximos da MPB de extração universitária que das raízes marginalizadas. Melo começou a fermentar o ideário do grupo na Europa, onde foi morar na virada dos anos 1960 para 1970
mas, muito desestruturado emocionalmente, não conseguia ordenar um trabalho. Mesmo assim, conseguimos ir pra um estúdio, e gra vamos o disco”, evoca Melo. “Aí fomos fazer um show na Bélgica, e na fronteira encontra ram no porta-luvas do carro cinco gramas de haxixe. Vandré não assumiu que era dele, eu estava dirigindo o carro. Enfim, todo mundo foi expulso da França.” Melo perdeu a chance de obter a bolsa de estudos que pleiteava ou mesmo de perma necer na Europa. Voltou para o Brasil e aban donou a agronomia em favor da música. Em parte graças ao episódio com Vandré, existe o Quinteto Violado, que em 1997 conseguiria o feito inédito de gravar um Quinteto canta Vandré, só com temas do para sempre inde cifrável herói das esquerdas brasileiras orto doxas dos anos 1960. “Tivemos momentos de sentar com Van dré num palco, num teatro, ele no banquinho e no violão, a gente com um gravadorzinho,
tanto que no começo diziam que o Quinte to Violado estava retomando o caminho do Quarteto Novo. Mas o Quarteto era muito jazzístico. O Quinteto tinha elementos mais rústicos, mais enraizados na temática e na ambiência sertaneja, da caatinga, do agreste, do litoral nordestino”. O interesse primordial pelas raízes po pulares diferenciava a frente violada do movimento conduzido a mão de ferro pelo conterrâneo Ariano Suassuna, na Orquestra Armorial e no Quinteto Armorial. “Ariano achava que ia ‘lançar a viola’, era uma pre tensão danada. Ficou meio incomodado por que o Quinteto fazia um sucesso nacional, as primeiras reações que teve foram de desqua lificar a gente. Mas hoje ele reconhece a im portância, tem se referido ao Quinteto com muito respeito”, afirma Melo.
A bênção de Gonzagão
ele cantando músicas inéditas. Foi de onde surgiu ‘República Brasileira’, uma versão que meu pai cantava, meio espanhol, meio portu guês”, orgulha-se Dudu Alves. Os Violados devem mais que isso a Van dré. É evidente em sua música a impressão digital do Quarteto Novo, grupo formado em 1966 para acompanhar Jair Rodrigues no festival da Record, enviesando para veredas sertanejas a “Disparada” de Vandré e Théo de Barros. Munida de instrumentos como uma queixada de burro, a toada acabaria empatada com a infanto-juvenil “A Banda”, de Chico Buarque, defendida por uma futura entusiasta do Quinteto Violado, Nara Leão. “O Quarteto Novo fez apenas um disco. Era integrado por Hermeto Pascoal, alagoa no, Heraldo do Monte, pernambucano, Airto Moreira, carioca (na verdade, é catarinense), e Théo de Barros, carioca”, diz Melo. “Esse quarteto conseguiu trabalhar a música nor destina com uma dimensão bem grande,
O disco A Feira, mais uma vez, sinteti za com precisão as ambições estéticas dos Violados. “A capa é uma feira na cidade de Olinda, mas se reportava a Campina Gran de, Caruaru, Limoeiro, Juazeiro, a qualquer feira livre do Nordeste. Ali tem o folheteiro, o homem de remédio de raiz, o cantador, a religiosidade, o povo do interior que vem pra feira trazer seus produtos e ali marcar seu casamento e seu batizado, os violeiros, os repentistas, os romances populares, a litera tura de cordel”, enumera Melo. “A música nordestina é muito dramá tica, e tem elementos cênicos muito ricos, dos autos populares, os pastoris, o reisado, o bumba-meu-boi, a chegança, a vaquejada, a nau catarineta”, lista elementos que aparece riam, um a um, nos discos do grupo. “Roda de Ciranda”, “Marcha Nativa dos Índios Quiriris” (1972), “Vaquejada”, “Cavalo Marinho” (1973) e “Folguedo” (1974) seriam os títulos de algu mas das composições próprias do grupo.
Além do livro biográfico Lá vêm os Violados, atualmente em preparo pelo jornalista pernambucano José Teles, o Quinteto prepara novas homenagens, para o ano que vem, ao maranhense João do Vale e a Luiz Gonzaga, em seu centenário. Gonzagão é o artista mais reverenciado pelo grupo, seja em discos ou na estrada
Adiante, o conjunto ampliaria o arco de referências, como no álbum ... Até a Amazônia?! (1978), na versão pop-nordestina de 1986 para a ópera O Guarani (1870), do paulista Carlos Gomes, ou, mais recen temente, na homenagem simultânea a um sambista paulista e a um coquista paraiba no, em Quinteto Violado canta Adoniran Barbosa & Jackson do Pandeiro (2010). “Dentro da história do Quinteto, sempre tivemos essa preocupação de homenagear grandes ícones brasileiros, como Vandré e o próprio Luiz Gonzaga”, explica Dudu. Além do livro biográfico Lá vêm os Violados, atualmente em preparo pelo jornalista pernambucano José Teles, os Violados pre param novas homenagens, para o ano que vem, ao maranhense João do Vale e a Luiz Gonzaga, em seu centenário. Gonzagão é, disparado, o artista mais reverenciado pelo grupo, seja em discos ou na estrada. Logo no início, cumpriram os chamados circuitos universitários ao lado do mestre, de seu filho carioca Gonzaguinha e de seu afilhado per nambucano Dominguinhos. Deste, os Viola dos aprenderiam, naquela primeira turnê, o “Forró do Dominguinhos”, que gravariam no segundo LP e explodiria logo depois na voz de Gilberto Gil, em versão com letra e rebati zada “Eu só quero um xodó” (1973). “Quando começo a falar de Luiz Gonzaga eu me emociono muito”, avisa Melo. “Uma vez levaram pra ele ouvir o primeiro arran jo que a gente fez de ‘Asa Branca’, e ele disse que era a leitura mais bonita que já tinha escutado da música.” Gonzagão acertara o alvo, como de costume: com seis épicos minutos de duração na abertura do primei ro LP do Quinteto, a versão violada de sua obra-prima com Humberto Teixeira é nada menos que colossal. “Gonzaga criou a estrutura básica de sanfona, triângulo e zabumba e saiu mam bembando pelo Brasil. Circulava este país todo, mas os locais onde tocava eram os re dutos nordestinos. Saiu antes do Nordeste, e andava pelo Brasil matando a saudade dos nordestinos”, derrama-se Melo. “Trabalhava pra todo aquele exército de nordestinos que construíram Brasília e boa parte da urbani dade do Sudeste, e também para os nordesti nos que se incorporaram ao exército da bor racha, no Norte.” O papel do “rei do baião”, aqui resumido pelo discípulo (mas não imitador) Marcelo Melo, explica em grande medida o DNA gon zaguiano do próprio Quinteto Violado – e, de quebra, o da música brasileira que vê e ouve além do umbigão carioca-paulista-baiano. F novembro de 2011
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Handala e a tragédia palestina Uma criança na Palestina Naji Al-Ali Martins Fontes, 112 págs. O confronto entre Israel e Palestina talvez seja o maior exemplo de tratamento unilateral de um assunto por parte da mídia mundial. É raro encontrar, em meio ao mar de opiniões que validam a ocupação dos territórios palestinos pelos israelenses, uma simples menção à visão das vítimas dessa invasão: as pessoas que construíram suas vidas na região da Palestina antes do ano de 1948, quando as Nações Unidas determinaram a criação do Estado israelense. Nessa aridez, o recém-lançado Uma Criança na Palestina – Os cartuns de Naji al-Ali se torna uma esperança nas prateleiras das livrarias. Traduzido por Rogério Bettoni, o livro traz uma coletânea do trabalho do cartunista palestino e apresenta Handala, seu principal personagem. Uma história narrada na introdução do livro pelo quadrinista Joe Sacco, autor da HQ-reportagem Palestina – Uma Nação Ocupada, mostra a importância de al-Ali para os palestinos. Ele conta que, ao chegar aos territórios ocupados pela primeira vez, no início dos anos 1990, tinha receio de como seria recebida sua proposta de utilizar quadrinhos para contar a história daquele povo. Não devia ter se preocupado. “Ao revelar o segredo de minha abor-dagem, uma expressão de entendimento geralmente se estampava naqueles rostos. Claro! Nós tivemos o nosso cartunista! Naji al-Ali!” Nascido em 1936 num vilarejo palestino chamado Ash Shajara, o cartunista tinha 12 anos quando, em 1948, a criação do Estado de Israel expulsou milhares de palestinos de suas terras, e ele e sua família foram forçados a viver em campos de refugiados no Líbano. Foi ali que, na década de 1950, al-Ali descobriu o talento para o desenho, que utilizou pelo resto de sua vida como arma política na luta pelo direito de retorno dos exilados palestinos. É essa experiência que al-Ali quer deixar clara ao criar o personagem Handala, um menino palestino refugiado, que observa as cenas de horror da invasão e expulsão de sua família e povo. Ele se mostra quase sempre de costas, com os braços cruzados atrás do corpo, como um observador impassível. O que ele vê é o sonho do retorno dos palestinos para suas terras barrado por Israel, pelos interesses das grandes potências, pelo descaso das elites árabes. O livro é precioso por trazer aos brasileiros um autor fundamental de uma região do mundo que hoje, cada vez mais, entra em nosso radar, como mostram as mudanças proporcionadas pela Primavera Árabe. Mas sofre com problemas comuns às coletâneas de charges políticas, no entanto. Como se trata de uma linguagem que busca ser sintética ao extremo e sempre ligada aos acontecimentos cotidianos, ocorre que as charges se tornam difíceis de compreender fora do momento em que são publicadas. Isso se torna mais verdade no trabalho de al-Ali, que utiliza simbolismos com grande frequência. Os organizadores do livro enfrentam esse problema com textos de apresentação e legendas que, na verdade, explicam as charges e acabam limitando as interpretações possíveis para os leitores. Nada
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grave, porém, considerando que seria talvez impossível explicar o contexto de cada desenho. A obra de Naji al-Ali, assassinado em 1987, nas ruas de Londres, se mantém fundamental para quem quiser compreender um pouco mais uma das histórias mais tristes de nossos tempos, que será lembrada com pesar pelos historiadores do futuro. Que Handala os ajude a enxergar o lado dos mais fracos. (Nicolau Soares)
Incertezas em série Depois do sucesso retumbante do romance O Filho Eterno, de 2007, a obra seguinte do escritor catarinense Cristóvão Tezza era aguardada com ansiedade nos círculos literários. Criou-se uma grande expectativa sobre o que sairia da verve do escritor depois de amealhar grande parte dos prêmios de literatura em língua portuguesa como o Jabuti, São Paulo, APCA e Portugal Telecom. Embora o caráter autobiográfico de O Filho tenha sido abandonado, Tezza brinca com a própria situação ao criar, em Um Erro Emocional, um escritor que um dia fez sucesso, mas que passa por dificuldades em manter a qualidade da produção. A trama do livro se passa em uma noite. Não há, por assim dizer, ação, mas diálogos entrecortados por pensamentos e digressões. A história começa com Paulo, o escritor decadente, batendo à porta de Beatriz, fã de sua literatura, que havia conhecido na noite anterior. Assim que passa à porta, Paulo declara que “cometeu um erro emocional” ao se apaixonar por ela. O rumo da conversa, no entanto, não é romântico. Depois do arroubo, o escritor afirma que está lá para que Beatriz revise os manuscritos de sua nova obra. O que se segue são diálogos que não se desenvolvem por conta da insegurança que atinge ambas as partes. Mais velho que a sua leitora, Paulo se vê intimidado como um adolescente apaixonado, enquanto a revisora não consegue ultrapassar a barreira entre fã e ídolo. O que importa em Um Erro Emocional, no entanto, é aquilo que não é dito. A cada frase reticente de parte a parte segue-se uma longa digressão, seja sobre a estranha situação dos dois naquela noite, as expectativas sobre a vida ou, principalmente, sobre o passado, que teima em marcar presença na relação entre os dois. Durante a noite, ambos vão tentando acertar contas com histórias pretéritas que ainda os perturbam, na maior parte das vezes, sem sucesso. Nada é dito, mas tudo influencia o próximo passo. Com habilidade, Tezza constrói um cenário verdadeiro, sem que qualquer conflito seja supervalorizado. A escrita é comedida, mas o resultado é verdadeiro e convincente. (Thalita Pires)
Um erro emocional Cristovão Tezza Editora Record, 191 págs.
O fim do Café da Rua 8, em Brasília EM BRASÍLIA, EM MEADOS DE SETEMBRO, FECHOU AS SUAS PORTAS DE VEZ O CAFÉ DA RUA 8. O nome é esse por conta da sua localização. O dito ficava na quadra 408 norte, num daqueles endereços da capital que só quem passa uns tempos por lá entende como é. Eva, a proprietária, é de São Vicente. Viveu, amou e morou na Baixada Santista, estudou no Ginásio Independência, que também já não existe mais, e daí se mandou. Foi para o Planalto Central, se não falha a memória, na década de 1970. Virou local. Como milhares de outros brasileiros, ela se apaixonou por Brasília. Mais do que isso, ajudou a fazer da cidade o que ela é hoje. Tatuou na pele o traço do Plano Piloto de Lúcio Costa – o que lhe rendeu as costas mais fotografadas do Distrito Federal – e abriu por lá uma catedral da música e da cultura. Destes cinquenta e tantos anos de existência da capital, quase 30 contaram com o Café da Rua 8. A cidade quase não sabe ser o que é sem ele. O local sempre foi o ponto preferido dos artistas, poetas, pintores e, sobretudo, músicos de Brasília. Foi o Quartel-General do lendário grupo Liga Tripa, uma trupe de rua que, com seus instrumentos e cantores, corriam (e correm ainda) as superquadras residenciais e comerciais a cantar canções inesquecíveis entre as mesas e cadeiras, sem equipamento nenhum. Uma dessas canções, a “Travessia do Eixão”, de Nonato Veras e Nicolas Behr, foi gravada pelo também saudoso Legião Urbana. Outra, a “Juriti” (Meu coração tem um desejo imenso de ver o dia nascer pelo avesso), de Aldo Justo e Paulo Tovar, é uma espécie de hino
daquela Brasília que nunca aparece nos postais. No triste dia da morte de Tovar, o Café parou para homenageá-lo. Amigos vários, naquela noite, choraram versos em uníssono, quase prevendo uma época de bambas que se esvaía. E sempre foi assim, de dias comuns e datas extraordinárias que foi feito o dia a dia do Café. Em algumas noites com poucos amigos, uma mesa aqui e outra ali, a conversa ao pé do ouvido, e em outras memoráveis, explodindo de gente. Como nos vários lançamentos do samba do bloco pacotão; na apresentação do enredo da Escola de Samba Unidos da Asa Norte; na semana do 7 de Setembro, quando era fechada a rua com a memorável festa Salve a Pátria; na comemoração dos 50 anos da revolução cubana – quando Eva vestiu a sua casa com as cores de Ogum e São Jorge –, enfim, como tantas e tantas outras. Muitas das pessoas que conhecem a capital de passagem cometem a injustiça da estranheza, a repulsa ao concreto e à frieza. Brasília, de fato, não é dessas que se entregam num primeiro encontro. É preciso cortejá-la, explorá-la com cuidado e carinho. Só assim, depois de muitas flores e jantares, nos é permitida a paixão, a sem razão de suas esquinas, os seus segredos. E um desses segredos mais encantadores sempre foi o Café da Rua 8. Ele próprio, para surpresa dos incautos, situado numa das inúmeras quase esquinas do Plano Piloto. Ele próprio, um desses lugares que humanizam e nos predispõem à cidade. Lá nos foi dado conhecer um tanto da história e da glória que se transformou no sonho mais inusitado de Dom Bosco. Nele, onde os deputados viravam gente e onde, certa noite, vimos um ministro cantar um samba, aprendemos que grande cidade é esta outra Brasília. E é um pouco desta outra cidade, alegre e efusiva, comovida, criativa e um tanto barulhenta que hoje fecha as suas portas. Deixa de existir por causa da outra, aquela que gosta do silêncio e age em silêncio.
A APROXIMAÇÃO CULTURAL ORIENTE-OCIDENTE NÃO É EXATAMENTE NOVA. Vários artistas de diversas partes do mundo ocidental foram buscar respostas do outro lado do mundo, para longe da espiritualidade judaico-cristã. Dentre as inúmeras manifestações difundidas através da antena da indústria cultural americana, a mais cultuada, sem sombra de dúvidas, é o hinduísmo.
voltas e desarranjos pessoais, o artista finalmente encontrou o seu caminho através da ioga e do Kirtan, espécie de música devocional constituída por pequenas células que se repetem com o objetivo da meditação.
O hinduísmo é a terceira maior religião do planeta em número de praticantes. O Sañata Dharma, como é conhecido por seus adeptos, sofreu uma explosão mundial no Ocidente a partir da conturbada e controversa década de 1960. O exotismo e o bem-estar espiritual, sem sombra de dúvidas, foram fatores determinantes para o encanto dos ocidentais anglo-saxões com a divindade brâmane. Nada, no entanto, foi tão chamativo para esses jovens quanto a música que acompanha e dá suporte às suas práticas.
O Kirtan,, até a chegada de Das à cena, era uma música praticada apenas em pequenas reuniões religiosas por grupos amadores. A pitada da canção folk americana era o ingrediente que faltava para a música ser difundida mundo afora. Krishna Das se tornou, desde então, uma celebridade das academias de ioga de todo o mundo.
Inúmeros cantores e compositores se aproximaram, reverenciaram e reproduziram, à sua maneira, a música da Índia e adjacências. O mais célebre de todos foi o ex-Beatle George Harrison. Mas tanto ele quanto muitos outros, como o guitarrista americano John McLaughlin, conhecido também como Mahavishnu, fizeram um caminho de aproximação e, de certa forma, renovação espiritual, e seguiram seu modo de vida ocidental.
Atualmente, com vários discos gravados, Das vive a divulgar pelo planeta o Kirtan. Com uma voz grave e calma, e canções com melodias curtas e agradáveis, o cantor atinge de cheio o consumidor da prática oriental. É adorado Ocidente afora por hordas de fãs da ioga e dos cultos a Brama.
Um deles, no entanto, foi para ficar. O mais celebrado artista ocidental que se entregou de corpo e alma à música devocional, a ponto de dedicar a sua vida a ela, é KRISHNA DAS. Nascido Jeffrey Cagel, Das foi roqueiro de sucesso nas décadas de1960 e 1970 com a banda de heavy metal Blue Öyster Cult e, a partir de uma viagem à Índia, mudou completamente o rumo da sua vida. Depois de um sem-número de
Toda a história de sua busca e reencontro através da Bhakti Yoga – a ioga da Devoção – está contada e cantada no livro CANTAR PARA VIVER – MINHA BUSCA POR UM CORAÇÃO DE OURO, best-seller mundial, lançado finalmente no Brasil pela editora Realejo. O livro, em edição límpida, agradável e simples – em consonância com o assunto –, traz também um CD com um apanhado de canções devocionais do autor. Uma ótima oportunidade para conhecer Krishna Das, o homem, sua vida e sua música. Um artista mundial de dimensões únicas.
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Carta do Henfil M
eu primeiro contato com o Henfil foi quando a Global Editora quis pu blicar uma versão da revista Mafalda e o Quino exigiu: “Só se a tradução for feita pelo Henfil”. Mas ele era ocupado demais. A solução foi alguém traduzir e o Henfil dar um toque final. Paulo Schilling, que havia voltado do exílio e publicava livros pela Global, me indi cou para ser o tradutor. Assim, um dia nos reunimos: Henfil, Qui no, Zé Carlos e eu, para tratar da tradução. O Henfil convenceu o Quino de que a versão teria que ser meio pro portunhol, pois as tra duções com uma Mafalda italiana, portugue sa, entre outras, não tinham a mesma graça. Mais tarde, para mandar colaborações para o Pasquim, levava até a casa do Henfil, que as mandava para o Rio. Ele se divertia com as minhas bobagens e me chamou para trabalhar como “ator” no programa dele, de um minuto, na TV Abril (horário comprado pela editora na TV Gazeta). Depois, ele me contou que estava mesmo era me preparan do para encarar câmeras e virar ator como guerrilheiro no filme que ele planejava, Deu no New York Times. Mas ele foi para o Rio, e os planos mu daram. Mandei os originais do meu livro de causos Santa Rita Velha Safada, perguntando se ele topava fazer a apresentação, e ele me deu um monte de sugestões, mas bestamen te acabei não fazendo as mudanças que ele propôs. Mesmo assim, quando a Editora Bus ca Vida topou publicar o livro, em 1987, ele fez a apresentação. Mexendo em papéis velhos, achei a carta do Henfil com as sugestões e me emocionei. E resolvi mostrar pra todo mundo. É um mis to de vaidade (sim!) e de reverência ao gran de cara que ele era. Aí vai... Rio, 24/5/85 Mouzar
Putis! Tô aqui + ou – recuperado das hospitalizações. Falta um pouquinho. E o fil me começou a andar. Tamos viajando para achar os lugares onde a ação se passa. Mas, no meio disto tudo, não pude deixar de ler duma vez só a tua literatura. Na medida em que lia, uma ideia comercial ia se formando na minha cabeça. Acho que há uma forma deste livro chegar a muita gente. Assim:
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1) Em vez de editar por uma editora elitista, pegar uma “Melhoramen tos” ou algo assim, destas que penetram em todas as livrarias do interior. 2) Dirigir o livro para um público que ra ramente compra livros, o pessoal com raízes no campo (no interior e nas grandes cida des!). Esse pessoal adora “causos”, se iden tifica com os personagens que se parecem com os da cidade dele. 3) Assim, evitar o palavrão desnecessá rio, para não virar uma linguagem do livro. Só usar o palavrão quando for o fecho da história, como naquela do “buceta para todo mundo”; Cortar tudo o que for só sacana gem. Esse público é moralista e hipócrita. Gosta de vez em quando de uma coisa pican te, mas muito, ele se assusta. 4) Observei que 90% do material que você escreveu conta uma mentira. Assim, para tornar o livro enxuto, cortar tudo que não for “causo de mentira”, primeiramente para honrar o novo título do livro, que po deria ser Mentiras do Sertão! (ou algo assim, desde que aparecesse a palavra “Mentiras”) Acho que, assim, você chamaria a atenção deste leitor com raízes interioranas, que ado ra estes torneios de “causos” ou “mentiras”. Se você achar que é o caso, vai ter que ti rar as historinhas que não honrarem o título. Posso inclusive sugerir cortes. E, se der e quiser, até ajudo a enxugar o texto de algu mas para facilitar o entendimento do leitor do interior. Enfim, meti a colher fundo no livro que é teu. Mas acho muito difícil um tipo de publi cação tão terra chegar ao gosto pasteuriza do do habitual mercado de consumo elitista. Que compra e não lê Cem anos de solidão.
Agora, me diz: quem compra Meu pé de laranja lima? São milhares... Óbvio que, acertado o público receptivo (interior), vamos chamar a atenção dos outros. Bão, vê aí, e eu, na medida em que pare aqui no Rio, vou te dando uma mão. Acho que basta deslocar a sua estrada para oeste (interior do interior e das cidades) e tudo vai funcionar. Só uma editora ampla poderá levar sua antologia... Ei! Olha um bom nome para o livro: Antologia de Mentiras do Sertão... Quem sabe? Mas pode ser só Mouzinas do Sertão. Fala! Abração. Henfil
MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).
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