Sistema financeiro e o desenvolvimento do Brasil

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil do Plano Real Ă crise financeira organizadores

Luiz ClĂĄudio Marcolino Ricardo Carneiro



Sistema financeiro e

desenvolvimento no Brasil do Plano Real Ă crise financeira

organizadores

Luiz ClĂĄudio Marcolino Ricardo Carneiro



Sistema financeiro e

desenvolvimento no Brasil do Plano Real à crise financeira

organizadores

Luiz Cláudio Marcolino Ricardo Carneiro

1a edição São Paulo - 2010


Copyright © 2010 Sindicato dos Bancários de São Paulo

Editor

Renato Rovai Preparação de texto

Anselmo Massad Coordenadora de produção

Ana Tércia Sanches Assessoria

Ana Carolina Tosetti Davanço Capa, projeto gráfico

Carmem Machado Diagramação

Thiago Balbi Revisão

Edméa Neiva e Fernanda de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

S623

Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil : do Plano Real à crise financeira / organizadores Luiz Cláudio Marcolino, Ricardo Carneiro. – 1. ed. – São Paulo : Publisher Brasil e Editora Gráfica Atitude Ltda., 2010.

264 p. : il. ISBN 978-85-85938-64-2

1. Sistema financeiro - Brasil. 2. Reforma monetária. 3. Crise econômica. 4. Mercado de capitais. 5. Crédito bancário. 6. Macroeconomia - Política monetária. 7. Governança coorporativa I. Marcolino, Luiz Cláudio. II. Carneiro, Ricardo.

CDU 336(81)

CDD 332.60981

Índices para catálogo sistemático:

1. Sistema financeiro : Brasil 336(81) (Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

São Paulo, 2010 PUBLISHER BRASIL Rua Bruno Simoni, 170 05424-030 – Pinheiros – São Paulo (SP) Tel/fax: 55 11 3813.1836 livros@publisherbrasil.com.br www.publisherbrasil.com.br

EDITORA GRÁFICA ATITUDE LTDA Rua São Bento, 365, 19º andar, 01011-100 – Centro – São Paulo (SP) Tel: 55 11 3241-0008 www.redebrasilatual.com.br


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil do Plano Real à crise financeira

Prefácio

Luís Nassif

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Apresentação

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Introdução: Perspectivas do sistema financeiro brasileiro

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Capitulo 1

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Luiz Cláudio Marcolino Ricardo Carneiro Luiz Cláudio Marcolino Juvândia Moreira Leite

Dinâmica e crise do capitalismo com dominância financeira Ricardo Carneiro

Capitulo 2

A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

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André Martins Biancareli

Capitulo 3

O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

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Giuliano Contento de Oliveira

Capitulo 4

Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

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Daniela Magalhães Prates

Capitulo 5

Formas alternativas de financiamento: microfinanças

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Juvandia Moreira Leite Ana Carolina Tosetti Davanço

Capitulo 6

Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

177

Maria Cristina Penido de Freitas

Capitulo 7

Os impactos dos derivativos no Brasil

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Maryse Farhi

Capitulo 8

A economia política das holdings financeiras no Brasil

233

Ana Tercia Sanches Ana Carolina Tosetti Davanço

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Prefácio Luís Nassif

Desde o século 19, trava-se uma luta intestina, dentro do capitalismo, entre o capital financeiro e o industrial. A seu modo, ambos cumprem funções complementares. Na economia real vicejam os empreendedores, aqueles que identificam oportunidades de negócio, montam suas empresas e galgam com as próprias pernas os degraus do crescimento, de forma lenta e sistemática. Na economia financeira, os gestores de recursos, trabalhando em geral com capital de terceiros, de capitalistas ou do público, enxergando os negócios exclusivamente sob o prisma do preço. A meta é comprar ativos baratos e vendê-los caros. Em períodos de grandes mudanças tecnológicas, os gestores de recursos ganham importância. A flexibilidade do capital financeiro permite agilizar as reciclagens da economia, irrigar setores dinâmicos, financiar os novos empreendedores. Em economias maduras, através do mercado de capitais, convivem de forma harmoniosa as empresas da economia real e o capital financeiro. Os problemas surgem nos grandes ciclos de financeirização, como ocorreu nas três últimas décadas do século 19 e do século 20. Aí o capital financeiro toma as rédeas nos dentes e deixa de ser funcional. Estabelece-se o embate, um complexo jogo de poder em que teorias econômicas, instituições monetárias, mídia, opinião pública, tudo é mobilizado em uma guerra sem quartel entre o sistema que se convencionou chamar de mercado e os estados nacionais. O Brasil atravessou essa guerra mundial com muitos mortos e feridos. Perdeu crescimento, gerou uma dívida interna monumental, privilegiou as grandes corporações, esmagou cadeias produtivas inteiras e, principalmente, deixou a economia à mercê da maldição do câmbio apreciado. Este livro é importante para se recuperar as origens desse embate, os fundamentos, as características desse capitalismo financeiro que, desde o século 19, gerou teorias contra e a favor. É essencial, por exemplo, entender a maneira como se definem os preços na economia. É o segredo que permite compreender o jogo de poder de lado a lado, da economia real e da financeira. 9


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Com o preço sendo atrelado ao fluxo de resultados futuros, trazidos a valor presente por determinada taxa de juros, basta um aumento na taxa básica da economia para reduzir imediatamente o valor presente do ativo. Controlando a política monetária, a economia financeira controla todo o sistema de preços de ativos. Esses pontos, ainda que essenciais, passaram despercebidos no profundo processo de mudanças patrimoniais que dominou a economia brasileira nos anos 90, através da privatização e das fusões e aquisições. Bastava o avaliador escolher o indexador dos fluxos para determinar o preço. No caso da Ultrafertil, por exemplo, escolheu-se a taxa básica de juros internacional, mais a taxa de riscos para as operações com o Brasil (em plena moratória) e mais a taxa de risco para o setor de fertilizantes. Conseguiu-se, com esses estratagemas, transformar ouro em poeira. Por trás de tudo, a teoria de que criando condições favoráveis ao capital especulativo, o desenvolvimento se faria por si só, com os capitais arbitrando preços, transbordando para os emergentes, auxiliando-os a chegar ao patamar dos desenvolvidos. Durante muitos anos, o bordão da “lição de casa” seguia essa lógica, embora para a opinião pública chegasse na forma de algo enigmático, mágico, religioso, como se o sofrimento dos mais pobres fosse a purgação necessária para se alcançar o paraíso. Muitos mitos foram criados ao longo desses anos de chumbo, alguns resistindo como ectoplasmas ainda não exorcizados. Um deles – que ainda persiste – está baseado na lógica de que o desenvolvimento se daria permitindo a concentração econômica em grandes grupos nacionais – amparados por benevolência no direito econômico e financiamentos do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). Caberia a esses novos supergrupos o papel de aplainar o caminho do desenvolvimento brasileiro. Toda a lógica de financeirização servia a esse propósito. O crédito estava disponível para quem dispunha de acesso às linhas externas. Entrando no país, os dólares eram convertidos em reais. Depois, o BC emitia títulos para absorver o excesso de emissão. O resultado final era que a uma expansão do crédito em dólares correspondia um enxugamento proporcional do crédito doméstico e uma expansão do mesmo tamanho da dívida pública. Não adiantava o bom senso e o estudo dos processos econômicos históricos demonstrarem que o desenvolvimento é algo homogêneo, que ocorre quando se criam condições para o desenvolvimento de um tecido econômico e social abarcando pequenas, médias e grandes empresas. A pobreza do debate e o discurso único de glorificação do mercado impediam qualquer possibilidade de se inverter essa lógica perversa. Nesses anos, plantaram-se as sementes do pensamento questionador. Mas somente com o advento da crise encerra-se o ciclo da financeirização, lentamente, penosamente, como em todos os processos históricos brasileiros. 10


A reconstrução da nova política, a recuperação do papel proativo do Estado e o aproveitamento virtuoso do mercado de capitais exigem uma espécie de exumação do cadáver do neoliberalismo estéril das últimas décadas. Nessa linha, o livro faz, talvez, o melhor apanhado até agora sobre todos os passos dados pelo Brasil, passando de uma economia fechada para uma economia financeira. Será uma obra de referência para futuros estudos desse processo. Através dele, será possível entender o que estava por trás de bordões como “fazer a lição de casa”; porque medidas aparentemente sem nexo – como a ideia de que corte de investimentos públicos ou de despesas essenciais, como saúde e educação, ajudariam o país a crescer – eram, de fato, sem nexo. Mas, principalmente, permitirá uma reflexão cuidadosa sobre as razões que levam tantos, durante tanto tempo, a se iludirem com miragens e a usarem com tanta sem-cerimônia o conceito de interesse nacional para acobertar interesses óbvios do capital especulativo. Lembro-me até hoje a frase clássica de um ex-Ministro da Fazenda para justificar essa benevolência com o capital especulativo: “são como batedores da cavalaria americana. Vêm na frente para saber se o terreno não oferece perigo. Se estiver tudo em ordem, a cavalaria vem atrás”. Na época, olhava para tantas multinacionais do setor produtivo, há décadas instaladas no país, e admitia que uma opinião pública que admitia tal tipo de argumento não estava à altura do país, que se pretendia construir. Hoje em dia, o nível de conhecimento é suficiente para que ao menos lamentemos o tempo perdido.

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Apresentação Luiz Cláudio Marcolino1 Ricardo Carneiro2

A parceria entre o Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região e o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Universidade Estadual de Campinas (Cecon-Unicamp) para realizar estudos sobre o sistema financeiro brasileiro e propostas para a sua transformação, cujo resultado síntese é o livro que ora apresentamos, constituiu uma iniciativa original e muito promissora. Além da qualidade do trabalho, como se poderá atestar pela leitura, há que destacar também, de um lado, a largueza de visão do Sindicato que, por meio de um trabalho conjunto de análise e reflexão, buscou superar os limites imediatos da atividade sindical, procurando um entendimento mais amplo da natureza e funcionamento do sistema financeiro brasileiro. De outro, a natureza inovadora da ação do Cecon que, rompendo os limites estreitos da atividade acadêmica, aceitou realizar um trabalho de cooperação com um organismo vivo e atuante da sociedade. Ao longo dos oito capítulos e da Introdução, o livro realiza uma análise abrangente e variada do sistema financeiro. São abordados temas como a dominância financeira e a sua crise no plano global, a abertura financeira no Brasil, o funcionamento do mercado de capitais, a evolução do crédito bancário, o desenvolvimento das microfinanças, a política macroeconômica e, por fim, o funcionamento das holdings financeiras. Esse conjunto de análises está sintetizado na Introdução, na qual se resume também o conjunto de propostas para reformulação do financiamento do desenvolvimento no Brasil. A elevada importância dessas últimas impõe que elas sejam destacadas nesta Apresentação, o que é feito a seguir. Um dos grandes temas suscitados pela crise financeira foi o da imperiosidade de regular o capitalismo financeirizado. Isto implicaria limitar a securitização e reduzir a liquidez dos títulos emitidos ou, pelo menos, evitar que os emprés1 Economista e Presidente do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região (lcmarcolino@spbancarios.com.br) 2 Professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

timos bancários transformem-se em títulos negociáveis. No plano institucional significaria também recompor a linha divisória nas operações entre instituições bancárias e não bancárias como forma de reduzir o risco sistêmico. A extensão das regras de Basileia, objetivando a diminuição da alavancagem das instituições financeiras não bancárias e a redução da excessiva liquidez de seus passivos, também constituiria um objetivo importante da regulação. Isso permitiria eliminar a lógica do ganho de capital, evitar a bolhas de preços de ativos e a transmissão de seus efeitos instabilizadores sobre a produção e a renda. A regulação do capitalismo no plano doméstico terá uma contrapartida inevitável no âmbito internacional. Ela traduzir-se-á, necessariamente, em uma limitação à mobilidade de capitais e à lógica de investimento de portfólio que a sustenta. Restringida à livre movimentação de capitais, mormente no que tange aos investimentos de portfólio, poderá ser possível diminuir a necessidade de uma moeda reserva internacional que sirva de âncora para a riqueza privada e pública. Assim será viável ampliar o papel de uma moeda pública, nos moldes dos Direitos Especiais de Saque, que sirva de unidade de conta e meio de troca, facilitando o comércio e o investimento produtivo em escala internacional. Apesar de não estar em questão uma reversão total da abertura financeira no Brasil, é imprescindível implementar alguma restrição ao grau de abertura financeira hoje existente, com algum controle e direcionamento dos fluxos de capitais. As justificativas essenciais para isso são: a busca de um maior grau de liberdade ou autonomia da política macroeconômica e sua subordinação ao objetivo do crescimento sustentado; o direcionamento dos fluxos de capitais no sentido de ampliar a capacidade do sistema financeiro de financiar o desenvolvimento. A eficácia de controle de capitais tem sido contestada pelo pensamento conservador. Contudo, a literatura mostra que países de menor grau de abertura ou que de alguma forma instituíram controles temporários possuem não só um histórico de maior estabilidade monetária como também de melhor desempenho econômico. No contexto da redução da vulnerabilidade externa obtida recentemente e da sua continuidade, a introdução dos controles de entrada, por meio de tributação e quarentenas como mecanismo para influenciar a qualidade e a permanência dos capitais entrantes, parece inadiável. Outra dimensão central é da regulação da atuação dos investidores estrangeiros nos mercados de derivativos. A continuidade da expansão do mercado de capitais no Brasil não pode depender preponderantemente de uma base de investidores estrangeiros, cuja motivação responde ao contexto internacional benigno. De outro lado, para ampliar a participação de investidores domésticos requer-se a prevalência de um patamar de taxa de juros real que amplie a atratividade relativa dos investimentos em ações e, ao mesmo tempo, seja compatível com o retorno dos ativos instrumentais adquiridos pelas empresas. Os investidores estrangeiros não deveriam ser descartados, mas a regulação, no sentido do direcionamento da sua participação, poderia ser ampliada. 14


No que tange o mercado de títulos de dívida privados, seu desenvolvimento, além do requisito da baixa taxa de juros, exige medidas que busquem dinamizar os mercados secundários de negociação desses ativos. A superação da indexação financeira é também uma condição necessária para o desenvolvimento desse segmento. A utilização da taxa de juros de curto prazo (CDI) como indexador da maioria dos títulos de longo prazo, embora reduza o prêmio de risco cobrado pelos investidores nesses papéis – especialmente num contexto de volatilidade da taxa básica de juros –, pode refrear o desenvolvimento desse mercado, pela incerteza dos custos desses empréstimos para os tomadores. O ciclo de crédito recente realçou a importância de um sistema bancário com peso significativo do sistema público com presença expressiva de instituições públicas, fundos públicos de origem parafiscal e exigibilidades sobre os bancos privados, todos elementos constitutivos do crédito direcionado. Isso, por três razões distintas: em primeiro lugar, pelo papel anticíclico, mormente nas fases de desaceleração. Em segundo lugar, pelo financiamento de setores e atividades específicas, em consonância com as prioridades da política de desenvolvimento. Em terceiro lugar, pelo papel na regulação dos spreads praticados pelos bancos privados. Este último papel assume particular relevância devido ao patamar elevado das taxas de juros das operações de crédito, decorrentes, em boa medida, dos altos spreads. Para que esse e os demais papéis das instituições públicas mantenham-se, é crucial manter o caráter público das mesmas, evitando a ampliação da participação de acionistas privados no capital do Banco do Brasil e a abertura do capital da Caixa Econômica Federal. A se confirmar a continuidade do ciclo recente de crescimento da economia brasileira com a decorrente ampliação dos investimentos, será necessário que os bancos privados ampliem sua participação no financiamento de longo prazo. Seriam dois os requisitos principais no processo: a redução da taxa de juros básica e a eliminação da indexação financeira. Com base nesses pré-requisitos, poder-seia promover o direcionamento de uma parcela dos depósitos compulsórios para esses financiamentos. Esse esquema poderia ainda ser complementado com um mecanismo especial de redesconto e um fundo garantidor de crédito. Para dinamizar o microcrédito, além das medidas que já foram implementadas, seria necessário garantir a aplicação dos recursos originários do compulsório sobre os depósitos à vista. Para tanto, os montantes dos recursos não emprestados pelos bancos deveriam ser redistribuídos para outras instituições, incluindo as Instituições Microfinanceiras (IMFs), as Sociedades de Crédito ao Microempreendedor (SCMs) e as cooperativas de crédito. É necessário, também, regular o estabelecimento do correspondente bancário pelo Banco Central, condicionando-o ao atendimento à população de baixa renda e sempre associado ao desenvolvimento de uma política de microcrédito “e desenvolvimento local, além de ser restrito a localidades desassistidas de atendimento por agências ou 15


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postos de atendimento bancários (PABs). Como medida geral, seria indispensável uma reorganização institucional do setor de microfinanças, com a criação de uma instituição coordenadora das políticas aplicadas às diferentes entidades que atuam no setor (Oscips, SCMs, ONGs, IFOs, cooperativas de crédito, bancos) e que seja capaz de integrar as ações de políticas públicas para essas entidades. A criação de um ambiente de estabilidade que vá além daquela relativa aos preços, englobando também as variáveis chave da economia – taxa de juros e de câmbio – parece um requisito crucial da mudança pretendida no sistema financeiro. Uma reformulação do regime macroeconômico no Brasil deveria começar pela gestão mais efetiva da taxa de câmbio, evitando seus recorrentes desalinhamentos e volatilidade. Isso suporia trocar o atual regime de flutuação pura por um regime de flutuação suja. A intervenção no mercado de divisas, cujo objetivo seria o de manter uma taxa de câmbio competitiva e pouco volátil, demanda, além da instituição de controles de capitais nos moldes descritos acima, um conjunto de regras e princípios de intervenção do Banco Central do Brasil (BCB), tais como: a) a compra de reservas com objetivo de sustentar cotações; b) limitação a posições especulativas dos bancos por meio de restrições às posições compradas e vendidas; c) realização simultânea de operações no mercado à vista e no mercado futuro; d) regulação das operações com derivativos na BM&F visando encarecer a especulação. O mercado dos derivativos de câmbio é suficientemente importante para merecer medidas adicionais dada a sua relevância na formação da taxa de câmbio do real. Entre essas medidas, caberia destacar: a) introdução de limites para as posições dos investidores não residentes no mercado de derivativos; b) elevação do custo de participação dos investidores não residentes no mercado de derivativos, por meio de elevação da margem de garantia e obrigação de seu pagamento em dinheiro, não em títulos públicos; c) introdução do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF) nas operações de não residentes em derivativos. Com a maior estabilidade da taxa de câmbio, seria possível pensar na manutenção de um regime de metas de inflação que ganharia eficácia, mas exigiria mudanças adicionais. A primeira delas diria respeito à gestão. A definição das metas continuaria a ser ditada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) com uma composição ampliada de modo a incluir um representante dos empresários e um dos trabalhadores. O BCB, por sua vez, deveria deixar de gozar de sua independência de facto. Para tanto, teria de prestar contas periodicamente ao Congresso Nacional a respeito da execução da política. Por fim, o índice a ser objeto do regime poderia se constituir de um core que excluísse os preços indexados. Ou, alternativamente, poder-se-ia realizar um amplo processo de desindexação dos preços e tarifas públicos no Brasil preservando o índice cheio como índice-meta. Além das medidas relativas à nova regulação do sistema financeiro e da ges16


tão macroeconômica, é necessário também avançar na reformulação da operação interna das holdings financeiras. Por um lado, é necessário garantir uma democratização substantiva da gestão dos conglomerados, por meio da participação dos representantes dos trabalhadores nas instâncias de decisão e nos conselhos de administração e fiscalização das instituições financeiras. Por outro lado, consoante o espírito que prevalece hoje no mundo de limitar e reformular a remuneração dos executivos, seria desejável que a remuneração variável dos administradores não fosse superior à remuneração fixa anual, sendo também estipulada com base em resultados sustentáveis, não em performances de curto prazo. No que diz respeito aos trabalhadores do setor bancário, é necessário que os empregados não sejam coagidos pelos gestores a cumprir metas abusivas que levam ao adoecimento e implicam na queda de qualidade de atendimento aos clientes. Por sua vez, é imperioso que a remuneração variável dos empregados obedeça limites que visem a não deterioração do salário fixo e que a busca por resultados não comprometa a ética na comercialização dos produtos financeiros. A esse respeito, é necessário que os empregados possam ser capacitados para orientar os clientes com maior tempo e, assim, garantir uma melhor compreensão sobre os produtos financeiros e as responsabilidades a eles vinculadas. Do ponto de vista da melhor qualificação e remuneração do trabalho, é crucial reverter a precarização das relações de trabalho que ocorrem em processos de terceirização.

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Introdução: Perspectivas do sistema financeiro brasileiro Luiz Cláudio Marcolino1 Juvândia Moreira Leite2

A despeito do expressivo crescimento após 2003, o sistema financeiro brasileiro tem se caracterizado por um fraco desempenho e por uma contribuição pouco significativa ao desenvolvimento econômico do país. Esta última pode ser caracterizada por meio de vários indicadores como, por exemplo, a ainda muito baixa participação do crédito no Produto Interno Bruto (PIB), o peso excessivo dos financiamentos de curto prazo e o seu elevado custo decorrente de uma alta taxa básica de juros, mas também de spreads bancários igualmente altos. Ao longo dos últimos anos, esse desempenho só não foi mais negativo por conta da presença de um sistema público de financiamento, do qual fazem parte instituições de peso como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal; fundos públicos com origem parafiscal, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e as exigibilidades sobre o passivo bancário. Foi esse sistema de direcionamento do crédito que permitiu financiar o investimento, bem como algumas atividades específicas de maior risco ou prazo de maturação como agricultura, habitação, exportações e microcrédito. A confirmação de um novo ciclo de crescimento da economia, em novas bases – vale dizer, com a elevação pronunciada do investimento e a dinamização de setores com prazos de maturação mais longos das inversões, como a infraestrutura – exigirá necessariamente uma disponibilidade de financiamentos numa escala ampliada, acarretando a necessidade de reformas no sistema financeiro. Este saiu-se relativamente bem em 2009 exatamente porque as exigências sobre ele foram relativamente limitadas dado o ainda baixo crescimento do investimento. A experiência histórica da economia brasileira mostra que durante os períodos 1 Economista e Presidente do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região (lcmarcolino@spbancarios.com.br) 2 Bacharel em Direito, Secretária Geral do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região (juvandia@spbancarios.com.br)

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

de aceleração do crescimento o sistema público, em razão de sua base limitada de funding, foi incapaz de dar conta integralmente do seu financiamento. A ausência de um envolvimento mais decisivo do setor financeiro privado acabou gerando uma dependência excessiva da poupança externa, com implicações negativas sobre o balanço de pagamentos e a estabilidade macroeconômica, conduzindo a crises recorrentes ao longo da nossa história. Essas considerações sugerem que, diante de um ciclo sustentado de crescimento, seria desejável contar com uma parcela mais significativa de financiamento interno, mantendo e reforçando o sistema público, mas também mobilizando o setor privado para essa tarefa. O desenvolvimento financeiro recente, o tamanho e a qualidade das instituições bancárias e não bancárias, bem como o clima de maior estabilidade, indicam que esse é um caminho possível. Para tratar da evolução recente do sistema financeiro e avançar algumas propostas capazes de viabilizar a sua operação de um modo mais compatível com o financiamento desse investimento, esta Introdução sintetiza os vários diagnósticos e propostas contidas nos demais capítulos, aprofundando-as em alguns aspectos. No capítulo 1, que trata da “Dinâmica e crise do capitalismo com dominância financeira”, constata-se que, desde a crise do regime de Bretton Woods, nos anos 1970, foi crescente a dominância das finanças nas economias capitalistas, restaurando as características peculiares de um capitalismo desregulado. Essa nova etapa, a despeito do dinamismo limitado e circunscrito a determinadas áreas e países, caracterizou-se por uma maior propensão a crises que ocorreram com maior frequência na periferia do sistema. A eclosão da crise atual, por sua profundidade e caráter sistêmico, permite um melhor entendimento da dinâmica desse padrão de operação do capitalismo contemporâneo e, ao mesmo tempo, torna imperiosa a discussão de uma nova forma de regulação capaz de reduzir sua instabilidade e propensão a crises. As medidas de política econômica levadas a cabo pelos governos dos países desenvolvidos para enfrentar a crise iniciada em 2007 tiveram um caráter defensivo visando, de um lado, evitar a deflação nos preços dos ativos e, de outro, o aprofundamento da recessão. Na primeira dimensão, abrangeu a compra de ativos podres pelos bancos centrais e a recapitalização dos bancos; na segunda, a ampliação dos gastos públicos, como forma de compensar a severa contração dos gastos privados. Pouco se avançou na implementação de uma nova regulação do sistema financeiro, exceto pela discussão quanto à remuneração dos executivos e algumas medidas concretas em relação a isso na França e Reino Unido. Ou seja, a regulação do modelo de negócios composto pelo banco universal – alta alavancagem e baixa liquidez – não foi posta em questão. No âmbito dessa ausência de medidas concretas, já se identificava, após 2009, a emergência, no plano global, de novas bolhas de preços de ativos com epicentro no excesso de liquidez nos países centrais e a fuga do dólar. Em janeiro de 2010, 20


Perspectivas do sistema financeiro brasileiro

o Governo Obama, de certo modo pressionado pelas evidências da retomada do modelo de atuação dos bancos pré-crise – ou seja, de que o sistema financeiro, salvo da bancarrota com o dinheiro público, desenvolvia renovadamente atividades especulativas –, anunciou a disposição de realizar uma nova regulação. Seu desiderato maior é o de reduzir o risco sistêmico por meio da segmentação das atividades, com espírito semelhante ao Glass-Steagall Act, que constituiu o principal marco regulatório do sistema financeiro americano desde os anos 1930, até o início dos anos 1990. Concretamente, a regulação proposta compreenderia a segmentação dos bancos comerciais cortando as suas ligações com hedge funds e fundos de private equity, ou seja, a proibição do uso de depósitos de correntistas para essas operações. Seriam também proibidas as operações de tesouraria com recursos próprios desses bancos (“proprietary trading”). Fica sugerido que os bancos comerciais, que constituem o núcleo do sistema financeiro, retomariam suas funções essenciais de prestação de serviços aos correntistas e realização de empréstimos. O establishment financeiro desqualificou imediatamente a proposta, denominando-a de populista. A substituição do capitalismo financeirizado, por outro, regulado, é tarefa de grande envergadura política e complexidade. Para que se chegasse ao perfil de regulação contida no regime de Bretton Woods, foram necessárias a Grande Depressão e a II Grande Guerra, que alteraram substantivamente a correlação de forças políticas no âmbito doméstico e internacional, resultando daí um enquadramento das finanças. Tomando-se como paradigma o caso norte-americano, realizou-se, por meio do Glass-Steagall Act, uma clara separação de funções dentro do sistema financeiro entre bancos comerciais, de investimento e instituições ligadas ao mercado de capitais. O resultado foi uma compartimentação do risco e uma redução da alavancagem, ou seja, uma limitação da especulação. No plano internacional, o acordo de Bretton Woods restringiu-se severamente à mobilidade de capitais, circunscrita, durante muitos anos, a investimentos diretos, créditos de fornecedores, linhas comerciais e empréstimos de instituições públicas com importância muito reduzida dos investimentos de portfólio e dos empréstimos de curto prazo em moeda. Na análise da crise, mesmo as interpretações mais ortodoxas compartilham o diagnóstico de que, entre seus fatores essenciais estão a securitização disseminada e a alavancagem excessiva. O grande peso dos títulos (securities) como veículos da riqueza financeira – em oposição aos empréstimos bancários – e a existência de mercados secundários profundos, que lhes confere liquidez, constituem uma dimensão basilar do capitalismo com dominância financeira. É por meio deles, associados aos mecanismos da concorrência, da inovação e do mimetismo, que se impõe a lógica mais geral desse regime: a da supremacia dos ganhos de capital face àqueles oriundos dos rendimentos, ou seja, da especulação sobre o investimento. Pelas considerações acima, cabe concluir que regular o capitalismo financeirizado significa, principalmente, limitar a securitização e reduzir a liquidez dos títulos emitidos ou, pelo menos, evitar que os empréstimos transformem-se em títulos 21


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

negociáveis. No plano institucional, significaria, também, recompor a linha divisória nas operações entre instituições bancárias e não bancárias como forma de reduzir o risco sistêmico. A extensão das regras de Basileia objetivando a diminuição da alavancagem das instituições financeiras não bancárias e a redução da excessiva liquidez de seus passivos também constituiria um objetivo importante da reforma. Isto permitiria eliminar a lógica do ganho de capital, evitar bolhas de preços de ativos e a transmissão de seus efeitos sobre a produção e a renda. Poderia conduzir, também, à restauração do papel tradicional do sistema financeiro de criação de crédito e a intermediação de poupanças destinadas a financiar o desenvolvimento, reduzindo seu caráter especulativo. A regulação do capitalismo no plano doméstico terá uma contrapartida inevitável no âmbito internacional. Ela se traduzirá necessariamente numa limitação à mobilidade de capitais e à lógica de investimento de portfólio que a sustenta. Restrita à livre movimentação de capitais, mormente no que tange aos investimentos de portfólio, será possível diminuir a necessidade de uma moeda reserva internacional que sirva de âncora para a riqueza privada e pública. Assim será viável ampliar o papel de uma moeda pública, nos moldes dos Direitos Especiais de Saque, que sirva de unidade de conta e meio de troca, facilitando o comércio e o investimento produtivo em escala internacional. Como assinalado no capítulo 2, intitulado “A abertura financeira e a integração do Brasil: um balanço crítico”, a alta mobilidade internacional do capital constitui uma característica-síntese de uma época histórica na qual processos políticos, em escala nacional e internacional, conduziram a um quadro de supremacia dos interesses dos detentores da riqueza financeira sobre outras forças da sociedade. O aprofundamento da globalização conduz, todavia, a um balanço negativo, mormente quando se considera seu impacto sobre países em desenvolvimento, em razão do caráter especulativo e de oscilações cíclicas que marcam os fluxos de capitais direcionados a esses países. Ademais, isso tem feito com que os argumentos convencionais a favor da abertura financeira, ao depararem com dificuldades renovadas de comprovação dos seus benefícios, sofram um crescente questionamento. Desde o início dos anos 1990, a economia brasileira seguiu o caminho do aprofundamento da abertura financeira, realizando-a, grosso modo, em duas etapas distintas. A primeira, que se refere ao primeiro nível de abertura, relativo à entrada de recursos e investidores externos, ocorreu nos governos Collor e FHC, tendo sido realizada à margem de um amplo debate no Congresso Nacional, fundada em normas e resoluções do Banco Central do Brasil (BCB) e do Conselho Monetário Nacional (CMN). O segundo nível, relativo à ampliação e legalização das saídas de recursos do país, foi ampliado no governo Lula, tendo também por base decisões e marco regulatório definidos pelas duas instituições apontadas acima. Os resultados do processo de abertura financeira, na intensidade e na forma como se deu no Brasil, foram preponderantemente negativos. Em primeiro lugar, 22


Perspectivas do sistema financeiro brasileiro

a inserção internacional, muito mais baseada nas finanças do que no comércio, implicou uma elevada vulnerabilidade externa, apenas mitigada no período recente. As mudanças observadas após 2004, cujo substrato foi a compra mais acentuada de reservas internacionais, reduziram – mas não eliminaram – essa vulnerabilidade. As medidas recentes, por sua vez, foram na direção de aprofundar a abertura, ampliando os vínculos da economia brasileira com os ciclos internacionais de liquidez. O adensamento das relações financeiras da economia brasileira com a economia global se materializa na volatilidade de variáveis macroeconômicas-chave, como câmbio e juros, e na instabilidade dos resultados das contas externas. Mais do que isso, o alto grau de abertura financeira tem tido reflexos negativos no financiamento da economia brasileira, no que tange ao mercado de capitais, em particular, ao mercado de ações, por acentuar seu caráter especulativo e também no que se refere ao mercado de crédito bancário, por transmitir ao custo do empréstimo a volatilidade das variáveis macroeconômicas, por meio dos altos spreads. Apesar dos aspectos negativos, uma reversão total da abertura financeira no Brasil não está em questão. Contudo, é imprescindível abrir espaço nas discussões da política econômica e das medidas daí resultantes para implementar alguma restrição ao grau de abertura financeira hoje existente, com algum controle e direcionamento dos fluxos de capitais. As justificativas essenciais para isto são: a busca de um maior grau de liberdade ou autonomia da política macroeconômica e sua subordinação ao objetivo do crescimento sustentado; o direcionamento dos fluxos de capitais no sentido de ampliar a capacidade do sistema financeiro de financiar o desenvolvimento. A eficácia de controle de capitais tem sido amplamente contestada pelo pensamento conservador. Contudo, a literatura mostra que países de menor grau de abertura ou que de alguma forma instituíram controles temporários possuem não só um histórico de maior estabilidade monetária como também de melhor desempenho econômico. No contexto de redução da vulnerabilidade externa obtida recentemente e da sua continuidade, a introdução dos controles de entrada por meio de tributação e quarentenas como mecanismo para influenciar a qualidade e a permanência dos capitais entrantes parece inadiável. Outra dimensão central é da regulação da atuação dos investidores estrangeiros nos mercados de derivativos. A postura diante dessa questão estratégica deveria se pautar por ações mais ativas, fundadas na compreensão da limitação inerente relativa ao caráter periférico da economia brasileira, submetida às assimetrias do sistema monetário-financeiro internacional, mas considerando, em contraposição, o peso e o potencial dessa economia, além da necessidade de obter-se um financiamento externo menos volátil e mais adequado às necessidades do desenvolvimento nacional. Apesar das medidas recentes tomadas nessa direção, como a instituição do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) de 2% sobre os investimentos de portfólio, não parece clara a orientação da política econômica do atual governo quanto a esse 23


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assunto, que certamente envolve interesses de grupos e atores sociais de grande peso na sociedade. Na análise do capítulo 3, intitulado “O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades”, constatou-se que a perspectiva de crescimento sustentado da economia brasileira em um patamar mais elevado torna imprescindível o desenvolvimento paralelo de uma estrutura de financiamento de longo prazo. A inexistência de uma oferta adequada de funding de longo prazo limita o investimento das empresas e as induz a financiar a sua expansão com uma estrutura de capital apoiada, em grande medida, no autofinanciamento. Este tipo de restrição ao crescimento, via inadequação do financiamento do investimento, se apresenta, com maior ênfase, para as pequenas e médias empresas. Embora o sistema de financiamento da economia brasileira seja predominantemente baseado no crédito, com forte presença de bancos públicos, a ampliação do papel do mercado de capitais no financiamento do investimento seria relevante na medida em que possibilitasse a redução da alavancagem das empresas e diminuísse o custo do capital. Embora tenha se observado uma expansão recente significativa do mercado de capitais brasileiro, ela tem decorrido de fatores preponderantemente conjunturais – e cuja sustentação é discutível –, tais como: o forte ingresso de recursos estrangeiros, notadamente no mercado de ações, e da redução do patamar da taxa básica de juros da economia. O primeiro encontra-se diretamente associado aos ciclos de liquidez e o segundo, indiretamente, na medida em que a queda da inflação que conduziu a essa redução não foi indissociável da forte apreciação do real. A expansão do mercado de capitais tem contribuído apenas marginalmente para o financiamento da ampliação da capacidade produtiva da economia. No que tange ao mercado acionário, além deste se concentrar nas grandes empresas, o número destas empresas com ações negociadas em bolsa é ainda pequeno. Percebe-se ainda uma forte concentração setorial com as empresas produtoras de commodities detendo uma parcela elevada do mercado. Além de uma desproporcional atividade do mercado secundário ante o primário, nota-se, neste último, uma destinação relativamente pequena de recursos captados para a ampliação da capacidade produtiva – em torno de 50%. A composição da demanda por ações, largamente dependente dos investidores estrangeiros, mormente nos mercados primários, torna-a muito instável, já que ela depende, em grande medida, dos ciclos de liquidez internacional. Desta forma, a obtenção de financiamento por esse meio, por parte das empresas, adquire um grau de incerteza elevado, decorrente das frequentes correções de rumo, ou seja, da volatilidade. Em vários momentos ao longo dos últimos 15 anos, como por exemplo no segundo semestre de 2008, não só as cotações despencaram no mercado secundário como também as emissões primárias foram paralisadas. A continuidade da expansão do mercado de capitais no Brasil não pode depender preponderantemente de uma base de investidores cuja motivação 24


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responde ao contexto internacional benigno. De outro lado, para ampliar a participação de investidores domésticos, requer-se a prevalência de um patamar de taxa de juros real que amplie a atratividade relativa dos investimentos em ações e, ao mesmo tempo, seja compatível com o retorno dos ativos instrumentais adquiridos pelas empresas. Os investidores estrangeiros não deveriam ser descartados, mas a regulação, no sentido do direcionamento da sua participação, poderia ser ampliada. No que tange ao mercado de títulos de dívida privados, o seu desenvolvimento, além do requisito da baixa taxa de juros, exige medidas que busquem dinamizar os mercados secundários de negociação desses ativos. A superação da indexação financeira é também uma condição necessária para o desenvolvimento desse segmento. A utilização da taxa de juros de curto prazo (CDI) como indexador da maioria dos títulos longos, embora reduza o prêmio de risco cobrado pelos investidores nesses papéis, especialmente num contexto de volatilidade da taxa básica de juros, pode, por outro lado, refrear o desenvolvimento desse mercado pela incerteza dos custos desses empréstimos para os tomadores. Ao examinar, no capítulo 4, os “Bancos e o ciclo de crédito recente: da estabilidade à crise financeira”, constata-se que, desde o Plano Real, o sistema bancário brasileiro passou por importantes transformações. Essas mudanças foram condicionadas por fatores macroeconômicos, como a estabilização dos preços, cuja implicação foi a eliminação da então principal fonte de rentabilidade, as receitas de floating, e a posterior gestão da política macroeconômica, cuja marca foi a manutenção de elevado patamar da taxa de juros e o frequente desalinhamento da taxa de câmbio. No plano estrutural, essas mudanças foram condicionadas pela ampliação da abertura financeira, o aumento da internacionalização do sistema bancário e a privatização dos bancos públicos. Por fim, no plano regulatório, ocorreu a adoção das regras do Acordo da Basileia. Essas mudanças alteraram as estratégias concorrenciais, por meio da adoção de novas tecnologias, criação de novos produtos, exploração de novos mercados e diversificação de receitas, sobretudo mediante a cobrança por serviços, antes oferecidos gratuitamente. O sentido maior dessas transformações foi a formação de instituições bancárias diversificadas, administradas sob a forma de holdings financeiras. No plano do formato institucional, a abertura financeira e as privatizações resultaram numa dominância do segmento privado nacional, no aumento da participação dos bancos estrangeiros e na redução dos bancos públicos, bem como em um aumento geral no grau de concentração bancária com peso crescente das grandes instituições. Apesar de as mudanças apontadas terem conduzido ao aumento da solidez do sistema, não houve, de 1994 a 2002, alteração expressiva da composição dos ativos dos bancos privados comparativamente aos anos de alta inflação. Exceto por um breve interregno imediatamente após o Plano Real – no qual o crédito 25


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como proporção do PIB aumentou cerca de 6 pontos percentuais –, as instituições bancárias continuaram priorizando as aplicações em títulos públicos ante as operações de crédito. A manutenção dessa estratégia de alocação de portfólio por parte dos bancos está condicionada por dois elementos centrais. De um lado, a elevada volatilidade dos preços macroeconômicos-chave; taxas de juros e de câmbio, característicos da economia brasileira e persistentes a despeito da estabilização de preços. Isso conferiu à atividade de concessão de crédito, cuja natureza essencial é a transformação de prazo, um elevado risco de descasamento de taxas. De outro lado, a permanência de alternativas de aplicação de alta rentabilidade e baixo risco nos títulos públicos indexados à taxa de juros básica também discriminou a concessão de empréstimos. Essa composição do portfólio bancário também se deveu à trajetória da demanda de crédito, pois a economia brasileira, mesmo após a estabilização de preços, continuou sujeita a um padrão de crescimento inconstante (stop and go). Combinado a condicionantes do lado da oferta, como a já referida instabilidade monetária, expressa no alto patamar da taxa de juros, nos desalinhamentos da taxa de câmbio e na volatilidade desses dois preços-chave, restringiu-se a ampliação do crédito. A ampliação expressiva e continuada do crédito só ocorreu a partir de maio de 2003, em função de uma conjunção de fatores. Apesar de as operações de crédito no ativo total dos bancos privados terem aumentado progressivamente desde então e superado àquela dos títulos, elas mantiveram algumas características peculiares, tais como a concentração no curto prazo e os elevados spreads. Isso realça outras características permanentes do sistema bancário brasileiro e que não foram alteradas neste ciclo. A primeira é a histórica divisão de trabalho entre as instituições públicas – especializadas na concessão de empréstimos de longo prazo a partir de recursos direcionados, enquanto as privadas priorizam o crédito de curto prazo, com recursos de tesouraria, para crédito pessoal e aquisição de bens, no caso de pessoas físicas, e para capital de giro no caso das pessoas jurídicas. A segunda, o elevado nível de concentração, ampliado significativamente no passado recente, e que é também – conjuntamente com a instabilidade macroeconômica – responsável pelos elevados spreads, na medida em que implica uma menor concorrência em vários segmentos do mercado. Os spreads elevados ocorrem também em função de determinadas práticas, como as provisões excedentes, que alcançam cerca de 170% dos créditos inadimplentes. Estas provisões que não se transformam efetivamente em despesas terminam por ampliar o lucro. Os bancos privados mantiveram as suas estratégias de somente participar dos empréstimos de maior prazo e risco a partir de repasses de recursos externos e, principalmente, de utilização de repasses de recursos de fundos parafiscais geridos pelos bancos públicos e por meio de recursos relativos às exigibilidades. Em contrapartida, o peso do sistema público no financiamento do longo prazo e de atividades 26


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de maior risco – configurando, ao lado das exigibilidades sobre o passivo bancário e a importância dos fundos públicos de origem parafiscal como o FAT e FGTS, o sistema de crédito direcionado – continuou crucial. O ciclo de crédito que se inicia em 2003, na sua fase expansiva, exceto por sua intensidade, mantém as mesmas características dos ciclos anteriores, tais como: a liderança do segmento de recursos livres, com recursos captados internamente; preeminência dos bancos privados, principalmente nacionais; e concentração, no setor privado e nas famílias. Os empréstimos às empresas só ganham preeminência no início de 2008, quando os investimentos adquirem maior dinamismo. A forte contração da concessão de crédito que ocorre em setembro de 2009, sob o efeito da crise financeira internacional, exacerbou a preferência pela liquidez das instituições bancárias. Esta postura das instituições tem sido recorrente em períodos de instabilidade e é intensificada pelo prazo relativamente curto do crédito e pela existência de títulos públicos líquidos e rentáveis, e de baixo risco, que permitem uma rápida recomposição de suas carteiras, tendo sido agravada por conta da desconfiança detonada pelos prejuízos das empresas com derivativos cambiais. Essa fase descendente do ciclo só foi amenizada em razão das particularidades do sistema financeiro brasileiro, com destaque para o papel do setor público. O peso ainda elevado das instituições públicas nesse sistema permitiu que a concessão de crédito não seguisse estritamente os padrões privados, evitando a forte preferência pela liquidez que o contaminou. No bojo da crise, o sistema público – compreendendo fundos públicos e instituições –, além de atuar como contrapeso à contração do crédito das instituições privadas com recursos livres, ainda ampliou a concorrência em preços por meio da redução dos spreads. Temerosos da perda permanente de market share, os bancos privados abreviaram o período de restrição aos financiamentos, além de buscar a redução de seus custos. O ciclo de crédito recente realçou a importância de um sistema bancário com peso significativo do sistema público com presença expressiva de instituições públicas, fundos públicos de origem parafiscal e exigibilidades sobre os bancos privados – elementos constitutivos do crédito direcionado. E isso por três razões distintas. Em primeiro lugar, pelo papel anticíclico, mormente nas fases de desaceleração. Em segundo lugar, pelo financiamento de setores e atividades específicas, em consonância com as prioridades da política de desenvolvimento. Em terceiro lugar, pelo papel na regulação dos spreads praticados pelos bancos privados. Este último papel assume particular relevância devido ao patamar elevado das taxas de juros das operações de crédito, decorrentes, em boa medida, dos altos spreads. Para que esse e os demais papéis das instituições públicas se mantenham, é crucial manter o caráter público das mesmas, evitando a ampliação da participação de acionistas privados no capital do Banco do Brasil, bem como a abertura do capital da Caixa Econômica Federal. A se confirmar a continuidade do ciclo recente de crescimento da economia 27


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brasileira com a decorrente ampliação dos investimentos, será necessário que os bancos privados ampliem sua participação no financiamento de longo prazo. Isso teria dois requisitos principais: a redução da taxa de juros básica e a eliminação da indexação financeira. Com base nesses pré-requisitos, poder-se- ia promover o direcionamento de uma parcela dos depósitos compulsórios para esses financiamentos. Esse esquema poderia ainda ser complementado com um mecanismo especial de redesconto e um fundo garantidor de crédito. Um aspecto importante do financiamento e que tem ganhado destaque no Brasil contemporâneo diz respeito às novas formas do crédito a populações de baixa renda tratadas no capítulo 5, “Formas alternativas de financiamento: microfinanças”. Após a estabilização de preços, a inclusão de uma grande massa de pessoas no sistema financeiro nacional passou a ser a tônica principal das políticas públicas por meio de três iniciativas: o microcrédito produtivo, o crédito para o consumo e a bancarização. Isso porque a simples expansão do crédito pessoal em bases tradicionais tomará muito tempo para incluir os pobres no circuito dos serviços bancários e de acesso ao crédito. Para que haja a inclusão, são necessárias políticas públicas integradas de crédito dedicadas à produção, de caráter solidário em rede e de natureza associativa e comunitária, voltadas para a reorganização das economias locais com a perspectiva da geração de trabalho e renda. Contudo, quando se verifica a oferta de microcrédito, o resultado é desanimador, mesmo com o crescimento expressivo do número de entidades operadoras pós-Real e a flexibilização da regulamentação. Foi justamente com a intenção de incentivar estas operações que, no governo Lula, foram editadas a lei e a medida provisória que estabelecem que 2% dos depósitos à vista captados pelas instituições financeiras sejam obrigatoriamente destinados ao microcrédito. Entretanto, a pré-definição dos valores e prazos de parcelamentos dos créditos a serem concedidos e que tem como funding esse recolhimento compulsório, além da definição de um teto para as taxas de juros praticadas, são argumentos comumente utilizados pelas instituições financeiras para explicar ou justificar a falta de interesse no mercado de microcrédito produtivo. As políticas microfinanceiras que despertaram maior interesse dos grandes bancos foram a expansão do correspondente bancário que atua com produtos desenvolvidos para as classes de renda mais baixa a custos operacionais menores quando comparados aos das agências, permitindo maior rentabilidade nas operações, e o crédito consignado, que também foi apoiado pelos grandes bancos interessados na maior garantia de adimplência, já que se destina aos trabalhadores formais e as parcelas são descontadas em folha de pagamento. Para dinamizar o microcrédito, além das medidas já implementadas, seria necessário garantir a aplicação dos recursos originários do compulsório sobre os depósitos à vista. Para tanto, os montantes dos recursos não emprestados pelos bancos deveriam ser redistribuídos para outras instituições, incluindo as Instituições 28


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Microfinanceiras (IMFs), Sociedades de Crédito ao Microempreendedor (SCMs) e as cooperativas de crédito. É necessário, também, regular o estabelecimento do correspondente bancário pelo Banco Central, condicionando-o ao atendimento à população de baixa renda, sempre associado ao desenvolvimento de uma política de microcrédito. Por fim, como medida geral, seria indispensável uma reorganização institucional do setor de microfinanças, com a criação de uma instituição coordenadora das políticas aplicadas às diferentes entidades que atuam no setor (Oscips, SCMs, ONGs, IFOs, cooperativas de crédito, bancos) e que seja capaz de integrar as ações de políticas públicas para essas entidades. O conjunto de análises apresentadas nesse livro tem em comum a ideia de que é necessário modificar a regulação do sistema financeiro brasileiro para torná-lo mais compatível com o financiamento do desenvolvimento econômico. Mas, essas mudanças vão além da regulação financeira em estrito senso, exigindo também mudanças significativas no padrão de gestão da política macroeconômica. A criação de um ambiente de estabilidade que vá além daquela relativa aos preços, englobando também variáveis-chave da economia – taxa de juros e de câmbio – parece um requisito crucial da mudança pretendida. Inicia-se por tratar desse assunto no capítulo 6, relativo ao “Banco Central e política macroeconômica no Brasil: o regime de metas de inflação”. Parte-se da constatação de que as metas de inflação constituem o regime de política econômica mais utilizado pelos bancos centrais de países desenvolvidos e periféricos desde o início dos anos 1990. Sua adoção e ampla disseminação refletem, como apontado no capítulo 1, a sensibilidade do capitalismo financeirizado a taxas de inflação mais altas e voláteis pela ameaça que representam ao valor da riqueza financeira e à sua precificação. O compromisso com uma meta de inflação muito baixa significa a eleição de uma prioridade central à qual todas as outras estão subordinadas, e também a opção por um regime de política monetária que opera por regras, em contraposição aos regimes discricionários, tornando-o, portanto, mais rígido. Tem sido frequentemente ressaltado pela literatura ortodoxa que essa quase generalização do regime de metas de inflação se fez acompanhar, nos países onde foi adotado, de uma redução do patamar e volatilidade da mesma, bem como de uma trajetória mais firme do crescimento. A tese é controversa na medida em que, embora verdadeira, a tendência esteve vinculada a outras transformações como, por exemplo, o papel deflacionário exercido pela incorporação da China à economia global como grande fornecedora de produtos manufaturados. Nessa mesma direção, não há também comprovação de que os países que não adotaram esse regime tenham tido, do ponto de vista da inflação, um desempenho pior do que os que o adotaram. Quando se trata dos países da periferia do sistema capitalista, naqueles que possuem moedas mais frágeis ou inconversíveis, o regime de metas de inflação combinado com o de câmbio flutuante produziu resultados mais controversos. 29


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Há indicações de que esse regime, num contexto de moeda inconversível e de vulnerabilidade externa, tenha conduzido a uma significativa oposição entre crescimento econômico e inflação. Ademais, mesmo em países sem grande vulnerabilidade externa, os ciclos de liquidez internacionais e seus efeitos sobre a taxa de câmbio criaram um constrangimento essencial sobre a operação da política monetária, não raro obrigando-a a abandonar os objetivos domésticos e centrar-se sobre a gestão da inserção externa. No caso do Brasil, o regime de metas de inflação foi adotado pelo Banco Central em 1999, no bojo da crise do regime de âncora cambial do Plano Real. Desde então, a política macroeconômica sob gestão do BCB compreende a combinação do regime de metas com o de câmbio flutuante. A despeito do relativo sucesso em manter a inflação em baixos patamares, há claras indicações de que, no caso brasileiro, isso foi conseguido concomitantemente ao aumento da instabilidade macroeconômica, ao alto patamar de taxas de juros e ao desalinhamento recorrente da taxa de câmbio, acompanhadas de alta volatilidade em ambos os preços-chave. O conjunto terminou por constituir um viés anticrescimento. Estes resultados da política macroeconômica decorreram tanto das características estruturais da economia brasileira, quanto da rigidez do regime de metas implantado no Brasil no que tange ao seu formato e operação. Na primeira dimensão, temos a inconversibilidade monetária típica de economias periféricas, acompanhada da elevada vulnerabilidade externa resultante da abertura financeira. Por conta dessa vulnerabilidade, que transformou os ativos financeiros do Brasil em investimentos de alto risco, o impacto dos ciclos de liquidez internacional foram mais significativos na nossa economia, resultando num padrão de flutuação da taxa de câmbio do real muito acentuada, como reflexo da maior volatilidade dos fluxos de capitais. Como se sabe, em economias periféricas, sem moeda conversível, a flutuação da taxa de câmbio se faz acompanhar de um elevado coeficiente de passagem (passthrough) para os preços. Nos períodos de entrada de capitais, a apreciação da moeda favoreceu o controle da inflação. Já nos momentos de saída, obrigou a elevação dos juros para controlar a depreciação da moeda nacional e assim, indiretamente, a inflação, sem considerações a respeito da trajetória da economia. Ou seja, os ciclos de liquidez e seus impactos sobre a taxa de câmbio e inflação, e não o ritmo de crescimento da demanda agregada ante o produto potencial, tornam-se os principais condicionantes do manejo da política monetária. Se esses ciclos coincidem com a trajetória do crescimento doméstico, a política monetária torna-se coerente. Se não, a política monetária adquire uma postura anticrescimento. Ou seja, quando há reversão dos fluxos de capitais, a política monetária torna-se restritiva independentemente do ritmo de crescimento da economia doméstica. Essa última característica da política monetária, e como veremos, da política macroeconômica, foi exacerbada, no caso brasileiro, pelo formato e operação do regime de metas. No primeiro aspecto, a escolha de um índice “cheio”, o Índice 30


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Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), acentuou o coeficiente de passagem das flutuações cambiais. Uma parcela muito significativa desse índice – cerca de um terço – é composta de preços e tarifas públicos, cuja característica é a indexação a outro índice de preços, o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), que reflete com muita proximidade a variação da taxa de câmbio. Isso faz com que, pelo mecanismo descrito acima, intensifique-se o viés anticrescimento da política monetária. De outro lado, em situações de estabilidade cambial, quando é necessário controlar de fato a demanda agregada, a insensibilidade desse conjunto de preços indexados à flutuação dessa última exige uma intensidade maior da elevação dos juros. Tudo isso para permitir que a desaceleração da demanda agregada faça com que a parte do índice de preços, que é sensível à mesma, desacelere o suficiente para permitir o alcance da meta de inflação. O Banco Central do Brasil tem se notabilizado por sua rigidez na operação do regime de metas. Em tese, a manipulação da taxa de juros, a Selic, deveria ocorrer em momentos de crescimento, a taxas divergentes, da demanda agregada e do produto potencial. Quando o ritmo da primeira superasse a segunda, o estreitamento do hiato de produto pediria o aumento da taxa de juros para adequar os ritmos e evitar o aumento da inflação, ocorrendo o contrário na situação inversa. Esse não é, todavia, o padrão de atuação do Banco Central observado no Brasil, principalmente no período 2003-2008. Em vários momentos, o BCB aumentou a taxa de juros ante um aumento de preços derivado de choques de oferta. Como se sabe, esses últimos, se são permanentes, mudam os preços relativos e aumentam temporariamente a inflação. Se não há indexação, essa mudança segue seu curso e a inflação volta ao patamar normal depois de algum tempo. Se os choques não são permanentes, o aumento do nível de preços é exclusivamente temporário, e a inflação volta ao patamar anterior após um pequeno lapso de tempo. Tratar choques de oferta como se fossem de demanda, como fez o BCB, apenas acentuou o viés anticrescimento da política monetária por meio de taxas de juros mais altas e voláteis. Se as características estruturais da economia brasileira, combinadas ao formato do regime de metas e sua operação, conduzem a uma política de juros cujo resultado é a manutenção de taxas mais altas e voláteis, não há como não concluir pelo viés anticrescimento dessa política. Ela discrimina os investimentos produtivos ao elevar o custo de capital e tornar ativos financeiros uma alternativa mais atrativa. O mesmo se pode concluir do regime de câmbio flutuante cujo resultado é o desalinhamento e a volatilidade. Além de contribuir para a manutenção de taxas de juros altas, o regime de câmbio torna incerto o retorno dos investimentos no setor de exportáveis, contribuindo para desestimulá-los. Ademais, nos recorrentes momentos de apreciação da moeda nacional também favorecem as importações, reduzindo a lucratividade de empresas que produzem para o mercado interno. Uma reformulação do regime macroeconômico no Brasil deveria começar pela gestão mais efetiva da taxa de câmbio, evitando seus recorrentes desalinhamentos 31


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e volatilidade. Isso suporia trocar o atual regime de flutuação pura por um regime de flutuação suja. A intervenção no mercado de divisas cujo objetivo seria o de manter uma taxa de câmbio competitiva e pouco volátil suporia, além da instituição de controles de capitais nos moldes descritos no capítulo 2, um conjunto de regras e princípios de intervenção do BCB tais como: a) a compra de reservas com o objetivo de sustentar cotações; b) limitação a posições especulativas dos bancos por meio de restrições às posições compradas e vendidas; c) realização simultânea de operações no mercado à vista e no mercado futuro; e d) regulação das operações com derivativos na BM&F visando encarecer a especulação. Como mostrado no capítulo 7, “Os Impactos dos Mercados de Derivativos na Economia Brasileira”, o mercado dos derivativos de câmbio é suficientemente importante para merecer medidas adicionais, dada sua relevância na formação da taxa de câmbio do Real. Entre as medidas, caberia destacar: a) a introdução de limites para as posições dos investidores não residentes no mercado de derivativos; b) a elevação do custo de participação dos investidores não residentes no mercado de derivativos, por meio do aumento da margem de garantia e obrigação de seu pagamento em dinheiro e não em títulos públicos; e c) a introdução do IOF nas operações de não residentes em derivativos. Com a maior estabilidade da taxa de câmbio seria possível pensar na manutenção de um regime de metas de inflação, que ganharia eficácia mas exigiria mudanças adicionais. A primeira dessas modificações diria respeito à sua gestão. A definição das metas continuaria a ser ditada pelo Conselho Monetário Nacional, que teria de contemplar, em sua definição, objetivos mais amplos, a exemplo de outros bancos centrais, como o FED, que inclui como seus objetivos o crescimento do emprego e a estabilidade financeira. Esta maior abrangência de objetivos da política de metas seria complementada pela ampliação na composição do CMN de modo a incluir um representante dos empresários e um dos trabalhadores. O BCB, por sua vez, deveria deixar de gozar de sua independência de facto. Para tanto, teria que prestar contas periodicamente ao Congresso Nacional da execução da política. Por fim, o índice a ser objeto do regime poderia ser constituído de um core que excluísse os preços indexados. Ou, alternativamente, poder-se-ia realizar um amplo processo de desindexação dos preços e tarifas públicos no Brasil, preservando o índice cheio como índice-meta. Uma reformulação do sistema financeiro brasileiro na direção de torná-lo mais eficaz no financiamento do desenvolvimento não pode excluir mudanças na forma de operação das instituições financeiras, como discutido no capítulo 8, “A Economia Política das Holdings Financeiras no Brasil”. Ou seja, é crucial que essas instituições abandonem a sua postura curto-prazista nas suas relações com acionistas, clientes e trabalhadores. A adoção da nova governança fundada na maximização do valor acionário por parte das holdings financeiras privadas termina por reforçar a aversão dessas 32


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instituições ao financiamento de longo prazo, característico da sua postura histórica no Brasil, priorizando operações de retorno mais rápido e menor risco. Observa-se, ademais, que a mesma lógica que orienta as decisões de maximizar o valor acionário das empresas no curto prazo, com retorno rápido para o acionista, permeia a relação com outras partes diretamente envolvidas na atividade das holdings (empregados, terceirizados e clientes). Os clientes também sofrem na prática as consequências do modelo de governança adotado no sistema financeiro privado brasileiro. Passaram a realizar diretamente as transações bancárias por meio de diversos canais de autoatendimento proporcionados pela evolução tecnológica, contribuindo assim para uma redução significativa dos custos das operações sem contrapartida efetiva, já que têm enfrentado, além de elevadas tarifas e altas taxas de juros nas operações de crédito, problemas derivados da qualidade de atendimento e da insuficiente segurança bancária. Os empregados são submetidos aos processos de trabalho marcados pela baixa autonomia com relação à tomada de decisões e subordinados ao modelo de gestão fortemente centralizado em instâncias superiores, implementado pelos conglomerados e holdings financeiras. O objetivo principal de grande parte dos trabalhadores bancários é o cumprimento de metas de vendas de produtos financeiros com graus diferentes de sofisticação, mas sempre pré-formatados por áreas especializadas e ofertados de maneira ostensiva aos clientes como “soluções financeiras” às suas necessidades. Essas necessidades, entretanto, estão em geral mal avaliadas, já que a prioridade é realizar as vendas em um prazo determinado. As metas delimitam a performance do empregado, são utilizadas na avaliação e justificam demissões, constituindo-se por vezes em uma ameaça ao emprego. Os gestores costumam ter claro que um sistema de administração baseado na cobrança de metas no curto prazo acaba por gerar pressão e causar estresse, elucidando as consequências negativas desta política aos trabalhadores. Na tentativa de manter o estímulo dessas pessoas, as organizações implementam programas de remuneração variável, com o objetivo de convencer o trabalhador de que existe uma recompensa individual que valoriza os mais dedicados merecedores de uma remuneração diferenciada em relação ao grupo. O total de remuneração variável que cada trabalhador pode atingir diferencia-se de acordo com o cargo por ele exercido, sendo mais alto quanto mais elevada a função na hierarquia estabelecida. Segundo as empresas, isso ocorre para contemplar os diferentes graus de responsabilidade na geração do resultado. Por outro lado, estimulam determinados funcionários a assumir para si os riscos do negócio, exercendo uma cobrança mais ostensiva aos seus subordinados. A remuneração variável é muito elevada em determinados segmentos do setor financeiro, sendo, portanto, considerada pelos executivos mais requisitados como um diferencial na análise das propostas de trabalho que lhes são 33


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ofertadas. Estes profissionais, por sua vez, buscam justificar seus elevados bônus assumindo cada vez mais o formato de gestão baseado no curto prazo e nas operações de maior risco nos mercados financeiros. Ao analisar o grupo dos terceirizados, destacado no capítulo 8 como um dos stakeholders, foi possível concluir que essa é uma das partes mais impactadas pelas decisões administrativas derivadas da política de corte de custos. As pessoas desse grupo, marcado pela deterioração das condições de trabalho, principalmente quando comparadas ao patamar dos trabalhadores bancários, mesmo que realizem as mesmas rotinas de trabalho, são submetidas a maiores jornadas de trabalho e menores salários. Em síntese, além das medidas relativas à nova regulação do sistema financeiro e da gestão macroeconômica elencadas ao longo desta Introdução, é necessário também avançar na reformulação da operação interna das holdings financeiras. Por um lado, é necessário garantir uma democratização substantiva da gestão das holdings por meio da participação dos representantes dos trabalhadores nas instâncias de decisão e nos conselhos de administração e fiscalização das instituições financeiras. Por outro lado, consoante o espírito que prevalece hoje no mundo, de limitar e reformular a remuneração dos executivos, seria desejável que a remuneração variável dos administradores não fosse superior à remuneração fixa anual, sendo também estipulada com base em resultados sustentáveis e não em performances de curto prazo. No que diz respeito aos trabalhadores do setor bancário, é necessário que os empregados não sejam coagidos pelos gestores a cumprir metas abusivas que levam ao adoecimento e implicam a queda de qualidade de atendimento dos clientes. Por sua vez, é imperioso que a remuneração variável dos empregados obedeça limites que visem à não deterioração do salário fixo e que a busca por resultados não comprometa a ética na comercialização dos produtos financeiros. A esse respeito, é necessário que os empregados possam ser capacitados para orientar os clientes com maior tempo e assim garantir uma melhor compreensão sobre os produtos financeiros e as responsabilidades a eles vinculadas. Do ponto de vista da melhor qualificação e remuneração do trabalho, é crucial reverter a precarização das relações de trabalho via processos de terceirização. No que tange a iniciativas de ordem geral que interessam a trabalhadores e a clientes, correntistas ou investidores, é essencial que seja feito um esforço para que as informações sobre produtos financeiros sejam acessíveis e de fácil compreensão. É imprescindível, também, que haja a ampliação das políticas de segurança dos bancos, visando garantir mais segurança para clientes e trabalhadores nas agências bancárias e nos acessos remotos.

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Dinâmica e crise do capitalismo com dominância financeira Ricardo Carneiro1

Introdução A desregulação do sistema financeiro ocorrida após a crise do regime de Bretton Woods, nos anos 1970, levou a uma crescente dominância das finanças na economia, restaurando um padrão característico de um capitalismo desregulado, a exemplo do ocorrido durante o padrão ouro. Esse regime, apesar do dinamismo – e circunscrito a determinadas áreas e países, comparativamente ao período anterior –, sempre foi mais propenso a crises que ocorreram principalmente na periferia do sistema. A eclosão da crise atual traz novos elementos para a compreensão da dinâmica e limites desse padrão de funcionamento do capitalismo na medida em que ocorreu em seu centro e teve um caráter sistêmico. A sua profundidade, por sua vez, indica a necessidade de modificações substanciais nesse regime. A natureza e dinâmica dessa nova etapa do desenvolvimento capitalista têm sido objeto de reiteradas controvérsias. A literatura que trata do assunto ora enfatiza o plano internacional mediante a globalização, ora o doméstico, destacando a liberalização financeira. Algumas interpretações se prendem a aspectos institucionais, como o avanço da finança direta, destacando a ampliação do peso dos intermediários financeiros não bancários ante os bancários. Outras enfatizam a securitização como sua expressão geral e a dinamização das transações com títulos de propriedade nos mercados acionários, como aspecto particular. Há também divergência quanto a qual seria o aspecto principal da globalização, se o financeiro ou o produtivo. Todas essas características estão presentes, em maior ou menor grau, a depender do país, no desenvolvimento capitalista após 1980. O essencial é distinguir o conteúdo da forma, ou seja, o avanço geral do capital financeiro como etapa superior e desregulada do capitalismo, das formas concretas que este assume. No plano mais geral e abstrato, o processo observado após 1980 representa a retomada e o aprofundamento da lógica financeira de valorização, abrandada pela 1 Professor Titular do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.

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regulação dos mercados – em particular do financeiro –, realizada pelo Estado no âmbito do regime de Bretton Woods. Quanto à morfologia, referente aos agentes e mercados principais envolvidos nesse processo, e às suas relações, pode-se constatar a disseminação dessa lógica, de busca de ganhos patrimoniais em detrimento daqueles oriundos dos rendimentos, em todos os agentes econômicos: famílias, empresas não financeiras e empresas financeiras. Nessa nova fase, a característica de maior significado para a dinâmica do sistema capitalista é a crescente importância da esfera financeira ante a produtiva, o que, a rigor, não representa uma nova tendência ou uma novidade, mas o aprofundamento dos traços inerentes ao capitalismo desregulado. Dessa perspectiva, pode-se também constatar a ampliação da autonomia relativa da esfera da valorização da riqueza financeira vis à vis aquela da produção ou de geração da renda. Para analisar as questões relativas à dinâmica e crise do capitalismo com dominância financeira, este texto está organizado em três partes. Na primeira, realiza-se uma caracterização do conceito de dominância financeira a partir de autores clássicos, mas recorrendo-se também às análises recentes. Em seguida, examina-se a particular morfologia da dominância financeira na economia contemporânea, destacando a forma de atuação dos principais atores econômicos; os mecanismos que articulam a acumulação financeira à produtiva e o arranjo monetário financeiro internacional correspondente. Na terceira parte, analisa-se a bolha imobiliária nos EUA e o chamado subprime, destacando-se os agentes e instrumentos envolvidos, e os efeitos da crise sobre a dinâmica doméstica e internacional. Nas conclusões, apontam-se as linhas gerais da discussão ainda bastante incipiente e limitada sobre a nova regulação do sistema capitalista. 1. Dominância financeira: uma caracterização A caracterização do capitalismo com dominância financeira ou, ainda, a financeirização do capitalismo, não é isenta de controvérsia. Esta última resulta, em boa medida, das várias abordagens teóricas sobre o assunto e também dos vários planos de abstração nos quais o tema é tratado. Para considerar o tema na sua complexidade, optou-se por tratá-lo inicialmente a partir das abordagens clássicas de Marx e Keynes. Em seguida, com o intuito de caracterizar como esse tema é tratado na literatura contemporânea, recuperam-se os principais aspectos da financeirização destacados por autores representativos dessas correntes. A ideia, nesse caso, não é fazer uma resenha convencional, mas sublinhar aquelas características mais relevantes para compreender a dinâmica desse capitalismo.

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Dinâmica e crise do capitalismo com dominância financeira

1.1. As abordagens clássicas2 Ao formular o conceito de capital financeiro, Marx (1974) distingue a forma geral do capital (D-D’) da sua forma particular (D-M-D’). A primeira é uma relação de propriedade amparada numa estrutura jurídica e formas variadas de contratos, por meio das quais o proprietário da mercadoria capital cede temporariamente seu valor de uso a terceiros. A forma por excelência da remuneração do capital propriedade é o juro, definido em cada momento de modo arbitrário ou, mais propriamente, pela correlação de forças entre prestamistas e prestatários. Diante dessa definição, não seria exagero afirmar que o capital a juros, sinônimo de capital financeiro, tem a sua remuneração estabelecida num processo político-jurídico. O nível de abstração no qual trabalha, nos capítulos iniciais da seção V do Livro III, e as limitações do grau de desenvolvimento das instituições financeiras da época, levam Marx (1974) a analisar o processo de formação da taxa de juros sem a inclusão de instituições relevantes como, por exemplo, o Banco Central. Essa é, de fato, uma limitação, pois o Banco Central pode alterar a correlação de forças entre prestamistas e prestatários. Todavia, há um elemento crucial nessa concepção da formação da taxa de juros que deve ser resgatado, e que se refere ao fato de ela ser determinada na esfera da circulação do capital e não da produção, ou seja, a taxa de juros se forma de maneira independente da taxa de lucro. A forma particular do capital (D-M-D’) é o chamado capital em função ou em processo. Como assevera sua denominação, ela tem a sua existência associada aos processos concretos de produção e valorização. Sua remuneração é o lucro, obtido a partir de processos produtivos, os quais se apropriam de tecnologias determinadas e extraem da força de trabalho a mais-valia. Esses capitais são submetidos às leis imanentes da concorrência, cujo motor é a busca do lucro máximo. Nesse processo, cuja suposição é a mobilidade das várias frações do capital total – os capitais privados individuais – entre diferentes ramos produtivos, há subjacente a busca, jamais alcançada, do nivelamento da taxa de lucros. Daí decorre certa regularidade e objetividade na formação desta última. Para Marx, com o desenvolvimento capitalista, ganha autonomia o capital propriedade, a forma geral do capital, que na origem é apenas uma duplicação ou espelho, na esfera jurídica ou contratual, do capital em processo. Isso porque, com este desenvolvimento e ampliação da massa de riqueza financeira, a remuneração do capital em geral, o juro, se impõe como parâmetro geral de remuneração do capital, definindo o custo de oportunidade do capital sob a forma líquida ou a remuneração mínima das suas formas concretas de aplicação. A fluidez desse capital e as relações contratuais que lhes são próprias sustentam sua utilização 2 A análise das abordagens clássicas do capital financeiro está baseada em trabalho anterior do autor, Carneiro (2007), de circulação restrita e do qual se utilizam alguns extratos.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

como parâmetro. Ou seja, o juro constitui a remuneração do modo mais geral do capital e, portanto, um padrão para as demais formas. As relações entre as duas formas do capital são complexas e contraditórias. A relação geral – o capital financeiro – seria, em um momento inicial, um espelho ou uma duplicação do capital em função. Contudo, a afirmação do juro como padrão geral de remuneração, e sua consolidação, sustenta a existência de divergência sistemática entre o valor do capital em função e do capital propriedade. Mais que isso, possibilita que o valor do capital propriedade flutue de maneira significativa ao sabor das variações da taxa de juros. Dito de outra maneira, como o juro é remuneração do capital em geral, sendo passível de ser obtido por qualquer massa de riqueza líquida, esta última passa a ter um valor fictício que depende, em cada momento específico, dos rendimentos esperados e da taxa de juros corrente. A rigor, como afirma Marx, qualquer forma de propriedade capaz de produzir um fluxo de renda, sendo ou não produto do trabalho humano – como a terra, por exemplo –, é capitalizada à taxa de juros corrente possuindo portanto um valor fictício enquanto capital. Com base nesses princípios, conclui-se que a igualdade entre capital em função e capital financeiro na dinâmica capitalista é fortuita. A essência da possibilidade de divergência do valor do capital, nas suas duas formas, reside nos processos particulares de valorização. Quando o capital financeiro sob a forma monetária é repassado para o capitalista produtivo para ser empregado na produção, ele, enquanto capital produtivo, segue uma trajetória particular de valorização, submetido a uma norma, por assim dizer, técnica: sua rotação. Em cada momento ele é composto de capital em operação, fundo de depreciação e mais-valia acumulada. Ao se considerar a possibilidade de progresso técnico, a parcela do capital em operação sob a forma de capital constante pode também sofrer alteração de valor devido ao seu barateamento ou obsolescência tecnológica. A parte duplicada ou o capital financeiro, uma vez cedida ao capitalista produtivo, assume a forma de títulos ou direitos sobre a produção futura, com remuneração fixa (títulos de dívida) ou variável (ações). Em cada momento, o valor variável dessa massa de capital é calculado por meio da capitalização dos rendimentos à taxa de juros corrente. Esse valor nocional, por sua vez, ganha concretude quando da sua negociação nos mercados secundários. A existência destes últimos permite a concretização da divergência entre o valor original e o corrente do capital financeiro. Essa divergência assume caráter ampliado com a introdução do crédito monetário, ex nihilo, criado pelos bancos e direcionado para a compra dos títulos representativos do capital. Expectativas de variações dos rendimentos dos títulos de propriedade (ações), ou das taxas de juros correntes, são sancionadas por compra ou venda nos mercados secundários, ampliando ou reduzindo o valor fictício do capital. Os ciclos de preços desses ativos, na sua fase ascendente – como demonstrado por Marx (1974) nos capítulos finais da seção V, ou ainda por Hilferding (1973), ao ana38


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lisar a operação da Bolsa de Valores – exigem a ampliação do crédito monetário direcionado para esses mercados para dar liquidez ao valor ampliado dos títulos. As fases descendentes dos ciclos de preços, por sua vez, além de não produzir os ganhos esperados geram um espectro de dívidas não pagas. As análises das relações entre a acumulação financeira e a produtiva são marcadas por determinações muito genéricas na teoria marxista e, como veremos também, na teoria keynesiana. Autores clássicos do marxismo como Lenin (1970) e Hilferding (1973), embora reconheçam a autonomia da esfera do capital fictício ante a dimensão produtiva, terminam por admitir a preeminência dessa última na determinação das crises. Para os autores supracitados, a dimensão financeira permite escapar – de modo temporário, mas não permanente – da crise cuja manifestação crucial é a superacumulação de capital. Sua expressão concreta seria o excesso de capacidade produtiva, tradução do declínio prospectivo da taxa de lucro e do estancamento ou, ao menos, da desaceleração da acumulação de capital. A esfera financeira, através da centralização de capitais e da reconcentração da propriedade a ela subjacente, permitiria aos grandes capitais adiar ou dirimir a redução das taxas de lucro, por meio dos ganhos patrimoniais. A centralização permite novas condutas na esfera da concorrência como, por exemplo, práticas de preços oligopolistas ou a subcontratação, auxiliando a preservação da rentabilidade dos grandes capitais, dando elasticidade ao processo de acumulação na esfera produtiva. A discussão da dominância financeira pode também ser encontrada no paradigma keynesiano, que examina a dinâmica do capitalismo contemporâneo por meio das relações particulares entre riqueza e renda como, por exemplo, em Keynes (1983) e mais recentemente em Minsky (1986). A despeito das diferenças com a teoria marxista há pontos em comum de grande relevância entre as teorias. A noção de teoria monetária da produção desenvolvida por Keynes (1983) implica considerar a moeda um elemento fundador da ordem econômica capitalista. Decorrem daí várias implicações, dentre as quais a autonomia relativa da esfera financeira ante a produtiva fundada, como em Marx, na autonomia da taxa de juros ante a taxa de lucro. Com o desenvolvimento capitalista, a razão entre riqueza e renda é crescente ao longo do tempo. O ponto central a sublinhar é a subordinação da segunda à primeira. É a trajetória da riqueza, a escolha por parte dos seus detentores das formas nas quais será mantida e valorizada, que define o comportamento da renda. Numa economia dominada pela lógica D-D’, ou seja, hegemonizada pelo capital financeiro, o aprofundamento da dominância da esfera financeira conduz a um comportamento dos agentes no qual todos buscam obter ganhos de capital. Tal qual proposto por Minsky (1986), a decisão de compra de um ativo de capital decorre da comparação e da diferença entre preços de oferta e de demanda do mesmo. Quando esta é positiva, e possibilita um ganho de capital, o ativo será adquirido. 39


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A escolha do objeto desse ganho de capital definirá a trajetória da renda. Como já assinalado, não é indiferente para essa trajetória e para a sustentação da valorização da riqueza o tipo de ativo a ser escolhido como objeto do investimento. A distinção essencial, nesse caso, é entre ativos de emissão primária e aqueles de negociação secundária. Os primeiros dão origem a um fluxo de renda adicional por implicarem a utilização de recursos na ampliação da produção; os segundos são transacionados nos mercados secundários e a sua aquisição pode aumentar seu valor, mas não tem implicações imediatas sobre a geração de renda. Como salientado acima, o componente estrutural ou de escolha de ativos a serem objeto da acumulação confere maior ou menor amplitude ao ciclo de expansão, pois no caso de essa escolha recair sobre ativos novos, a serem produzidos, inicia-se o circuito gasto-renda, sancionando as apostas iniciais. Se a decisão de alocação da riqueza englobar basicamente ativos velhos ou já produzidos, a não ativação do circuito gasto-renda reduz essa amplitude, pois aumenta as possibilidades de não validação das apostas ao não aumentar os rendimentos esperados. Neste último caso, a continuidade de valorização da riqueza financeira patenteia a bolha de preços. Do ponto de vista microeconômico, a bolha de preços é representada por um descolamento do preço do ativo de seu valor fundamental, ou seja, a divergência do preço ao qual é transacionado daquele representado pelo valor dos rendimentos capitalizados à taxa de juros corrente. A autonomia da valorização da riqueza financeira ante a acumulação produtiva, ou o grau de seu descolamento dos fundamentos, constitui um aspecto peculiar da miopia dos mercados e de sua incapacidade em avaliar corretamente os ativos. É possível determinar com algum grau de precisão e por meio de critérios objetivos o desvio do preço corrente de um ativo ante o seu valor fundamental. Alguns desses critérios são: as diferenças entre valor de mercado e custo de reposição para ativos instrumentais, ou entre valor corrente e valor de face para os ativos financeiros, ou ainda entre valor corrente e valor patrimonial para ações. Contudo, o mercado mostra-se, em muitas ocasiões, sob o impacto das convenções, incapaz de determinar o valor correto desses ativos e de evitar que ele se descole de maneira mais intensa do valor fundamental.

1.2. As abordagens contemporâneas

Nas análises contemporâneas do capitalismo com dominância financeira, devem-se levar em conta duas dimensões distintas, aquela referente à dinâmica propriamente dita, que diz respeito às relações entre acumulação financeira e produtiva, e a relativa à morfologia, que analisa o plano dos agentes e das instituições e suas interrelações. Apresentam-se a seguir algumas das principais contribuições ao tema. Autores como Chesnais (2004) identificam na dominância financeira duas características básicas: a centralização das poupanças financeiras de famílias e 40


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empresas por meio dos investidores institucionais, e a modificação do padrão de governança das empresas. No âmbito da centralização das poupanças e de seu controle pelos grandes gestores de carteira, há uma série de mudanças correlatas no funcionamento dos mercados financeiros, tais como a retomada da finança direta (securitização) e a crescente liquidez dos mercados secundários nos quais esses títulos são negociados. Essas transformações significaram, para o mercado de títulos de propriedade (ações), o estabelecimento de uma norma de rentabilidade e liquidez que induziu às mudanças na governança corporativa. Ou seja, a dinâmica dos mercados financeiros constituiu uma norma de desempenho que se impôs ao mundo produtivo. De uma perspectiva mais geral, o novo regime que o autor denomina de patrimonial, para realçar os ganhos com a valorização dos ativos, supõe uma forma superior de acumulação, a financeira (de títulos de dívida e de propriedade), que comanda o processo de acumulação produtiva. Essa forma de acumulação impõe uma nova forma de organização e valorização do capital produtivo, pois a sua função objetiva passa a ser a maximização do valor bursátil das empresas, acompanhado de uma busca de maior liquidez dos investimentos em ativos instrumentais e a especialização no core business. Essas características se impõem como forma de assemelhar o investimento produtivo ao financeiro, reduzindo-o a um fluxo de caixa peculiar. Mais ainda, transmitem da esfera financeira para a produtiva um padrão de rentabilidade que nem sempre pode ser satisfeito, induzindo à busca de rentabilidade fictícia. O regime encerraria duas contradições mais importantes, a primeira delas, relativa ao descompasso entre a acumulação produtiva e a financeira, que se expressa empiricamente no crescimento da relação valor da riqueza financeira/Produto Interno Bruto (PIB). Isso significa que os direitos sobre a renda estão crescendo mais rapidamente do que a mesma. A segunda, um tanto polêmica, referese à contradição entre o processo de valorização financeira no plano da firma, que exige liquidez, e a inovação tecnológica que demanda iliquidez e maior prazo de maturação. Como é notório, embora o dinamismo tecnológico das empresas e os ganhos de produtividade na etapa da financeirização tenham sido inferiores ao do regime de Bretton Woods, eles foram significativos. Nesta última perspectiva, Chesnais (2004) sugere que a ampliação do espectro de ativos velhos ou não reprodutíveis que concorrem com ativos novos ou reprodutíveis constitui um filtro capaz de atenuar os impactos da dinâmica da acumulação financeira sobre a produtiva ou, dito de outra maneira, sobre a criação da renda. Se adicionarmos a isso o fato de que a taxa de juros, enquanto remuneração básica da riqueza financeira, se faz cada vez mais presente como custo de oportunidade geral e que seu patamar e volatilidade tendem a aumentar em ambientes institucionais desregulados, pode-se concluir que há um menor dinamismo da acumulação produtiva ante a financeira. 41


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Ao analisar a dinâmica do capitalismo contemporâneo, Aglietta (2001) chama a atenção para a hegemonia da esfera financeira e sua preeminência na determinação dessa dinâmica e na eclosão das crises. Todavia, alerta para o fato de a esfera real constituir um critério de última instância para validar o ocorrido na primeira. Mostra que o decisivo na nova dinâmica são as decisões atinentes à valorização patrimonial. Todos os agentes, sem exceção, estão prioritariamente preocupados em ampliar a sua riqueza, nas mais variadas formas, inclusive a financeira, por meio de ganhos de capital. Eles buscam financiar essa ampliação da maneira mais adequada e, agregaria Minsky (1986), com alavancagem crescente. As crises decorrem de uma insustentável valorização dos ativos, acompanhada da deterioração das condições de financiamento. A questão essencial não diz respeito apenas às formas de aquisição e financiamento da riqueza, vale dizer, à sua dinâmica patrimonial. Essas estruturas patrimoniais podem se revelar adequadas, do ponto de vista financeiro, enquanto a taxa de valorização dos ativos subjacentes exceder a taxa de juros à qual os agentes se financiam. Isso, porém, pode não satisfazer o critério de segunda ordem relativo às variáveis reais, ou seja, produção ou renda. Por exemplo, a compra de ações por meio de empréstimos pode determinar uma operação lucrativa quando a valorização das ações for maior do que a taxa de juros. A sustentação dessa valorização, por sua vez, não é independente dos lucros efetivos dessa mesma ação, ou seja, ela não pode ser sustentada permanentemente em bases psicológicas. Dito de outra maneira, e recorrendo à abordagem de balanço minskyana, são os fluxos de rendimentos das ações que devem ser utilizados para pagar os encargos financeiros dos financiamentos utilizados para a sua compra. Na discussão dos mecanismos de transmissão, vale dizer, das relações entre acumulação financeira e produtiva, a contribuição de Aglietta (2001) é muito esclarecedora. Para ele, a questão essencial é a dependência do ciclo econômico tradicional, do ciclo de preços dos ativos, esse último intimamente dependente da expansão do crédito direcionado à especulação3. Essa interação se daria por meio do gasto das famílias e empresas, cujo comportamento é pró-cíclico ante a variação dos preços dos ativos. A variável-chave da decisão de gasto desses agentes seria o equilíbrio patrimonial. Assim, as famílias decidiriam gastar mais em função da riqueza e não da renda. Da mesma forma, as empresas decidem ampliar seus investimentos em razão do acréscimo de seu patrimônio, não dos lucros. As famílias, possuidoras de ativos, diante do aumento dos seus preços, ampliam o consumo por dois mecanismos básicos: diminuem a parcela poupada da renda e expandem o endividamento. Este último, na medida em que se faz acompanhar da valorização dos ativos, não deteriora o balanço patrimonial. Quando o ciclo de preços dos ativos se reverte, a contração do gasto das famílias é muito 3 A palavra especulação, nesse caso, é utilizada no sentido kaldoriano, vale dizer a compra de um ativo com o intuito de obter um ganho patrimonial pela variação de seu preço.

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severa, pois visa restaurar o equilíbrio patrimonial. Assim, o objetivo crucial passa a ser reduzir o endividamento por meio da elevação da fração poupada de renda. O mesmo mecanismo opera nas empresas. Estas, como já foi apontado acima, maximizam o valor acionário baseando-se numa política clara de ampliação da distribuição de dividendos para ampliar seu valor em Bolsa. A sua expansão passa a depender da capacidade de endividamento. Na fase ascendente do ciclo de ativos, esse aumento de endividamento é viabilizado pela ampliação do valor dos títulos dados em colateral. A reversão do ciclo de ativos expõe o excesso de endividamento, e também leva as empresas a definir como prioridade a sua redução. Da análise do comportamento tanto das famílias quanto das empresas, Aglietta (2001) deduz como característica essencial desse tipo de capitalismo a propensão ao aumento da alavancagem. O estudo de Froud et al (2002), que sistematiza as ideias da corrente do coupon pool capitalism, propõe a existência de dois tipos básicos de capitalismo: o produtivista, no qual a atividade financeira se constitui da intermediação de fundos entre agentes deficitários e superavitários, e o coupon pool, no qual a atividade financeira molda o comportamento dos agentes econômicos, em particular das empresas e famílias. Ou seja, a atividade financeira ainda se constituiria num mecanismo de intermediação de poupanças, mas esta esfera adquiriria tal importância e autonomia que induziria estratégias e a conduta dos demais agentes. O coupon pool é identificado como o mercado no qual se transaciona a propriedade, portanto, o mercado de ações, no qual interagem empresas e famílias. As primeiras mudam com o tempo a sua governança, abandonando os objetivos de maximização do investimento e trocando-os pela maximização do valor acionário. Este consiste em adotar procedimentos que maximizem, a curto prazo, o valor acionário da empresa por meio da distribuição máxima de dividendos. Na outra ponta, os investidores, no caso as famílias, incorporam nas suas decisões esse comportamento empresarial e passam a pautar os seus gastos em consumo, cada vez mais, em função da sua riqueza e não da renda. A operação desse mercado induz ao estabelecimento de normas de rentabilidade que têm de ser cumpridas a todo custo pelas empresas sob pena de suas ações sofrerem perdas significativas nas cotações em Bolsa. Isso dá origem a várias práticas de engenharias financeiras, incluindo fusões e aquisições, para ampliar a rentabilidade e evitar a queda de preços. No plano das famílias, a atividade financeira, além de promover o descolamento entre gasto e renda, amplia a desigualdade por ampliar a parte dos rendimentos advinda da propriedade. A discussão da mudança na governança das empresas é um tema recorrente e crucial da financeirização. Como destaca Plihon (2004), altera-se a forma de controle da propriedade em razão da maior pulverização do capital. Isto significa uma rotatividade ampliada desse controle, resultando numa intensificação da liquidez do investimento produtivo, dando ensejo à dinamização das formas de valorização 43


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patrimonial como Fusões e Aquisições e Compras Alavancadas. Como foi apontado, essa maior liquidez dos ativos produtivos também termina por modificar a governança das empresas, pois seu principal objetivo passa a ser a maximização do valor acionário que resulta da coerção que a concorrência exerce sobre as mesmas. Por exemplo, a não observância da norma com a retenção de lucros não distribuídos põe a empresa sob o risco da aquisição hostil, forçando-a a seguir o padrão. Há também mudanças substantivas na operação da atividade produtiva propriamente dita. A exacerbação do parâmetro de remuneração da riqueza em geral, a taxa de juros, transforma-o em benchmarking imediato para o retorno da atividade produtiva. O que era um objetivo mediato ou estratégico das empresas – a obtenção de uma taxa de lucro superior à de juros – passa a ser um critério decisivo para a operação das mesmas, pois a sua não consecução reduz o valor acionário cotado nas Bolsas de Valores. A necessidade de atingir esses objetivos conduz a uma especialização da empresa no core produtivo, em geral aquele de maior conteúdo tecnológico e rentabilidade, e a distribuição das demais atividades para fornecedores sob regime de subcontratação. Segundo Nolan (2002), essa nova governança implica a intensificação do regime de subcontratação e redivisão dos lucros da cadeia produtiva com a sua concentração na empresa controladora do core, formando uma rígida hierarquia das taxas de lucro. Para ele, o core é um mecanismo de coordenação sobre uma ampla rede de fornecedores e revendedores que define, em detalhe, as especificações para a produção de partes e peças, desde locais de produção até gastos com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Em resumo, nessa nova forma de governança, o controle do core permite potencializar o controle sobre os processos produtivos para além daquele decorrente da concentração da propriedade. Autores como Palley (2008) destacam questões que vão além dos aspectos relativos à operação dos mercados financeiros ou às condições que permitem uma maior alavancagem, bem como aqueles que se referem ao comportamento das empresas (maximização do valor acionário), como característicos da financeirização. Enfatizando mudanças na política econômica, o autor agrega alguns pontos relevantes ao delinear esse novo perfil que denomina de “caixa neoliberal” (neo liberal box). O primeiro aspecto desse novo perfil de política seriam as políticas de suporte à globalização: livre comércio, mobilidade de capitais e facilitação do global sourcing das empresas, todos na linha da desregulação no plano internacional e doméstico. O segundo, a reformulação do papel do Estado, compreendendo a privatização, redução de impostos e reforma do sistema de previdência, sempre direcionados ao desmonte do Estado de bem-estar. Fariam parte do conjunto, as políticas de flexibilização do mercado de trabalho como abandono da política de salário mínimo, a redução dos benefícios da política de desemprego e o rebaixamento dos direitos do trabalho em geral. Por fim, mas não menos importante, o abandono da política de pleno emprego enquanto objetivo da política macro44


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econômica, substituída pelo compromisso radical da baixa inflação na forma de metas de inflação acompanhada, em geral, da independência do Banco Central. Em relação a essa última mudança na política econômica, é crucial entender que a alteração de foco em direção exclusiva à baixa inflação está relacionada à hegemonia dos interesses financeiros e seu baixo grau de tolerância à inflação. Isso por duas razões principais: taxas de inflação maiores ameaçam diretamente o valor da riqueza financeira e sua volatilidade dificulta a correta precificação desta última. Um outro ponto que deve ser considerado na análise do autor refere-se ao papel dos trabalhadores nesse novo regime. Embora de fato as políticas tenham sido dirigidas para flexibilizar o mercado de trabalho e retirar direitos sociais, é necessário discutir os mecanismos de legitimação do novo regime. A despeito da piora na distribuição da renda e do desempenho medíocre dos salários, a cooptação se exerceu pelos mecanismos patrimoniais. Vale dizer, o acesso à propriedade – mobiliária, por meio dos fundos de pensão, e imobiliária – e a ampliação de seu valor substituíram os ganhos salariais e o Estado do bem-estar, instrumentos de legitimação típicos do regime fordista. Nas análises destacadas até aqui, deu-se ênfase às transformações ocorridas no comportamento econômico das famílias e das empresas. Mas é necessário também destacar aquelas pelas quais passaram o sistema financeiro propriamente dito. De acordo com Guttmann (2009), um dos principais aspectos da mudança nesse aspecto foi a transformação da atividade bancária por meio da formação dos conglomerados financeiros. Essas transformações conduziram um sistema financeiro regulado de base doméstica, no qual prevalecia o banco comercial, a um sistema autorregulado de base global e com prevalência do banco de investimento. O processo tem raízes históricas na implosão do sistema de taxas fixas de câmbio e na liberalização das taxas de juros do final do regime de Bretton Woods. O aumento dos juros, pela concorrência que impôs ao sistema de bancos comerciais com crescimento dos custos de captação, empurrou-o para a diversificação de atividades. Houve assim a combinação de fatores macroeconômicos com determinantes microeconômicos consubstanciados na mudança do perfil da concorrência – em grande medida fundado na desregulação. Os conglomerados, além das atividades tradicionais de empréstimos e captação de depósitos, passam a oferecer uma ampla gama de serviços – venda de seguros, emissão de ações e títulos, assessoramento em fusões e aquisições – nos quais recebem corretagem ou pagamento por serviços prestados. Mas o seu papel não é passivo porque em boa parte dessas operações atuam como market makers. As tranformações no sistema bancário podem ser abordadas de outra ótica. No âmbito dos bancos, conforme fica sugerido pela análise pioneira de Chick (1994), ocorreu uma financeirização dos balanços. Nas operações passivas, amplia-se a participação dos depósitos que pagam juros, com perda de importância 45


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dos depósitos à vista ou não remunerados. O seu primeiro efeito prático é a elevação do custo do passivo bancário que se deve à extensão da remuneração para a parcela do dinheiro referente aos saldos de caixa. A segunda implicação é a de ampliar a autonomia do dinheiro bancário ante o dinheiro estatal, ou seja, tornar o passivo bancário mais autônomo ante a base de reservas, pois isso permite recorrer com maior intensidade às reservas disponíveis no sistema, transformando saldos de caixa, na forma de dinheiro em poder do público, em depósito remunerado. Na dimensão ativa do balanço, ocorre uma ampliação da liquidez dos haveres pela securitização dos empréstimos. Essa mudança é de suma relevância, pois implica uma reavaliação permanente dos ativos em função das variações das taxas de juros. Nesse contexto de ampliação de liquidez dos ativos e acesso ampliado a passivos remunerados, a questão bancária chave deixa de ser a gestão de liquidez e passa a ser a gestão da solvência. Fica também sugerido, por essa análise, que a questão da solvência não está vinculada apenas à qualidade dos ativos e custo dos passivos, mas a um risco de preço ampliado. Ou seja, as variações das taxas de juros afetam mais imediata e intensamente o valor de ativos e passivos bancários. Apesar dessas mudanças ocorridas na organização dos bancos, a sua função de criação de moeda de crédito continua inalterada. Como ressaltado por Aglietta (2001), este é o elemento estratégico na definição do alcance do ciclo de preços dos ativos, vale dizer, seu grau de exposição a determinados tomadores ou mercados determina a intensidade da elevação de preços. Do mesmo modo, quando se deteriora a qualidade dos empréstimos, a intensidade da contração do crédito é o fator central da trajetória dos preços dos ativos. Mais ainda, a disposição dos bancos em voltar a emprestar, e a forma como o fazem, é a variável crucial no processo de recuperação de seus preços. Outro aspecto decisivo da transformação dos sistemas financeiros diz respeito às mudanças nas atividades não bancárias cujo destaque está na crescente importância dos investidores institucionais, conforme assinalado por Sauviat (2004). Essa relevância é decorrente da já aludida ampliação da riqueza financeira e, também, da desregulação, que permite a gestão dessa poupança por critérios de mercado. Nesse sistema, as poupanças de curto e longo prazo (fundos de curto prazo e fundos de pensão) são unificadas num só objetivo de obtenção de ganhos patrimoniais. Os fundos de longo prazo, cuja preocupação deveria ser com os rendimentos, por conta dos seus compromissos atuariais, passam a se pautar por resultados de curto prazo e ganhos de capital, decorrente da imposição de critérios de performance (benchmarking). A concorrência e o mimetismo comandam esse padrão de operação dos fundos. Os investidores institucionais e, em particular, os fundos de investimento de vários tipos, constituem-se como atores estratégicos do capitalismo financeirizado contemporâneo. Em razão das elevadas e crescentes massas de riqueza financeira que administram, bem como do acesso privilegiado ao crédito, tornam-se o locus 46


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por excelência do processo de controle e centralização de capital. A sua ação condiciona a direção e intensidade do processo de acumulação financeira, ou seja, a morfologia e intensidade da valorização fictícia.

1.3. A ordem monetário-financeira internacional

O capitalismo com dominância financeira possui necessariamente uma ordem internacional correspondente, na qual se destacam um particular regime de mobilidade de capitais, caracterizado pela amplitude, abrangência de países e pelo caráter multidirecional, e uma rígida hierarquia monetária. Ou seja, a dominância financeira no plano doméstico das economias centrais reflete-se necessariamente na liberalização no plano internacional, constituindo uma característica indissociável desse regime. Um dos fundamentos da ordem internacional é a globalização, entendida como a liberalização dos fluxos de capitais, e cujo efeito principal é a ampliação e preeminência da integração financeira. Esta última transparece no descolamento dos fluxos de capitais daqueles de mercadorias e serviços. Embora ocorram simultaneamente – mas em intensidade distinta – uma integração financeira e outra produtiva, a primeira possui autonomia relativa ante a segunda e traduz a busca de novas formas e instrumentos de valorização da riqueza financeira. De acordo com Obstfeld e Taylor (2004), a globalização teria como principal característica a diferença entre os fluxos de capitais brutos e líquidos, com um peso desproporcional dos primeiros ante os segundos. Isso revelaria como sua principal motivação a diversificação dos portfólios e não a constituição, por parte dos países centrais, de ativos líquidos no exterior. Observa-se também uma acentuada preponderância das transações entre os países desenvolvidos, com as características já apontadas de diversificação de portfólio e, portanto, com peso decisivo dos capitais de curto prazo e dos investimentos de carteira. Para os países periféricos, a incorporação intensificada após os anos 1990 dá-se de modo muito mais seletivo ou concentrado. Além do predomínio das transações entre países desenvolvidos, da proximidade entre transações brutas e líquidas e da maior importância das operações com títulos ante os empréstimos – todas reflexo da dominância da diversificação de portfólios –, Turner (1994) chama a atenção para a grande expressão do IDE e de suas particularidades. Este último tem uma parcela predominante de operações de fusões e aquisições ante aquela de greenfield. Pode-se assim identificar a centralização do capital, ou a interpenetração patrimonial, ou ainda a diversificação da propriedade como principal determinante do IDE na etapa da globalização. Do ponto de vista da ordem monetária, a necessidade de uma ou mais moedas internacionais decorreria das economias de escala e das reduções de custos de transação daí decorrentes. As candidatas a exercerem essas funções seriam as moedas 47


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capazes de reunir três condições distintas: estabilidade, definida por taxa de inflação doméstica recorrentemente baixa; pequeno risco de perda de capital associado à liquidez e profundidade dos mercados financeiros; e rede de relações (networks) disseminada em razão do tamanho da economia e de suas relações comerciais. O quadro 1 resume as principais características de uma moeda-reserva pensadas a partir de suas funções e do papel que exerce no âmbito público e privado. Numa ordem internacional cuja marca é a liberdade de movimento de capitais, a função de reserva de valor assume um caráter decisivo na definição da moeda-reserva, estando as demais funções a ela subordinadas. Ou seja, das três propriedades elencadas acima como requisitos para a existência de uma moeda internacional, o tamanho e profundidade dos mercados financeiros têm um status diferenciado. Desse ponto de vista, conforme apontado por Tavares (1997), o poderio econômico do dólar residiria principalmente na sua função de lastro da riqueza financeira por meio de seus mercados de ativos. Quadro 1 Funções da Moeda

Dimensão Pública

Dimensão Privada

Unidade de conta

Referencial (âncora)

Preços e contratos

Meio de troca

Intervenção

Veículo

Reserva de valor

Reservas dos BCs

Ativos Privados

Na função de unidade de conta na dimensão pública, a moeda-reserva é usada como âncora (peg) para outras moedas, servindo ainda, no âmbito privado, para a denominação de preços e contratos. Como meio de troca, a moeda-reserva é, na esfera pública, instrumento de intervenção para manter a ancoragem.No âmbito privado, exerce a função de veículo de passagem entre terceiras moedas. A manutenção do valor da riqueza, bem como a redução da volatilidade desse valor, são funções da moeda-reserva, tanto no plano público, ao lastrear as reservas dos Bancos Centrais, quanto no plano privado, ao lastrear a riqueza dos investidores.

Autores como Cohen (2009) fazem uma distinção entre aspectos puramente econômicos, que dão suporte à moeda-reserva, daqueles geopolíticos, que a reforçam e a consolidam (soft power x hard power). Do ponto de vista geopolítico interessa sobretudo a capacidade de manter a estabilidade política doméstica e a projeção de poder no exterior por meio de países subordinados ou alianças militares. Partindo de outro paradigma, Tavares e Belluzzo (2004) discutem a formação das várias ordens internacionais e da hierarquia de países dentro delas, como produto de um duplo movimento: o do capital (economia) e o dos Estados nacionais (política). Esses movimentos não são necessariamente convergentes nem complementares. Mas no período da globalização, sua convergência produziu o domínio americano, fundado no poder político-militar e na superioridade econômico-financeira, traduzido na consolidação do dólar como a moeda-reserva internacional. Um dos problemas recorrentes das ordens monetárias internacionais, também conhecido como dilema de Triffin, diz respeito ao fato de a moeda-reserva 48


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ser ao mesmo tempo nacional e internacional. Nesses casos, a criação de liquidez no plano global depende sempre de um déficit de balanço de pagamentos do país emissor da moeda-reserva, o que poderia ocorrer de duas formas: por um déficit em transações correntes ou na conta de capital. No último caso, o déficit é criado pelo investimento do país emissor, implicando, simultaneamente, o aumento dos ativos desse país no exterior. No primeiro caso, o aumento de liquidez se faz sem essa ampliação, resultando no aumento do passivo externo do país emissor da moeda-reserva. A primeira situação corresponde, grosso modo, à posição dos EUA até meados dos anos 1970 e a segunda, a partir de então. O arranjo monetário que prevaleceu no período da globalização – e que tem no dólar a moeda-reserva, fundado na confiança em sua capacidade de se constituir como reserva de valor – conferiu aos EUA um duplo privilégio: uma grande liberdade de realizar política econômica a partir de objetivos estritamente domésticos. Ou, no dizer de Serrano (2002), a capacidade de fixar unilateralmente a taxa de juros do sistema e a prerrogativa de financiar recorrentes e crescentes déficits em transações correntes.

2. O capitalismo financeirizado e a crise das hipotecas subprime

A crise financeira originária do estouro da bolha imobiliária é uma consequência necessária da operação de um sistema financeiro desregulado. Teses que atribuem a crise à postura da política monetária americana ou ao excesso de poupança global, ou ainda à ganância individual, não se sustentam. A bolha representa uma dissociação entre acumulação produtiva e acumulação financeira associadas à alta alavancagem dos agentes, ou seja, à compra de ativos por meio da criação de crédito e sua dissociação do valor fundamental. O descolamento entre valor de mercado e valor fundamental tem uma implicação essencial, mas que só se revelará quando do estouro da bolha, pois, num primeiro momento, ele não tem importância, dado o interesse na valorização do ativo subjacente. Quando a bolha desinfla, há uma readequação do valor dos ativos aos rendimentos que podem ser gerados. Se o ativo foi adquirido com crédito, há um desequilíbrio patrimonial; se foi adquirido com recursos próprios, explicita-se uma perda de capital. Na análise que faz da disseminação da crise a partir do estouro da bolha imobiliária, o documento da UNCTAD (2009) distingue duas dimensões interconectadas das bolhas a partir dos EUA. Em primeiro lugar, a dimensão doméstica, ou seja, a dimensão do efeito riqueza, que só poderia ser produzido nessa intensidade pela economia americana, dada a extensão e profundidade dos seus mercados financeiros, a disseminação da propriedade em geral e de ativos financeiros em particular. Em segundo lugar, a dimensão internacional fundada na transmissão dos efeitos da bolha em razão do caráter de moeda-reserva do dólar 49


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e da posição da economia americana como principal centro cíclico por meio de seus déficits em transações correntes. A formação da bolha ocorre, como já assinalado, pela ampliação do valor da riqueza financeira ou imobiliária com um duplo efeito sobre o consumo: a redução da propensão a consumir e o aumento do endividamento. No caso do endividamento, ele pode ocorrer com base em financiamento direto para o consumo ou para a realização de ganhos de capital. Neste último caso, ele teve como motivação o refinanciamento da propriedade imobiliária a partir de sua valorização. O grande aumento do consumo americano dá ensejo a uma transmissão para fora do país por meio de elevados déficits em transações correntes. Isso só é possível por duas razões distintas: pela particular posição do dólar como moeda-reserva e por uma estrutura produtiva complementar principalmente entre os EUA e a Ásia. O próprio tamanho e crescimento do déficit em transações correntes como porcentagem do PIB, que expressa os desequilíbrios crescentes, são cruciais para entender a capacidade de propagação da crise, constituindo um mecanismo de transmissão importante. O fundamento último da bolha é a desregulação do sistema financeiro. Isso incentivou a ampliação da securitização e o surgimento dos instrumentos complexos ou estruturados cuja negociação permitiu a obtenção de taxas de retorno fictícias mais elevadas. A busca dessas últimas só pode ser entendida a partir de uma lógica muito particular de concorrência e mimetismo ancoradas na lógica maior da financeirização, mas viabilizada pelo contexto de desregulação que provê os instrumentos para que isso seja possível. Autores de postura mais ortodoxa, como Buiter (2007), apontam a excessiva securitização como fonte primordial da crise. Ela significou a substituição do modelo bancário convencional do originate and hold pelo modelo do originate and distribute, com a transformação de ativos ilíquidos em ativos líquidos. Nas suas palavras, “It made marketeable the non-marketeable; it made liquid the iliquid”. O seu efeito principal teria sido a disseminação do risco e o seu carregamento por agentes não necessariamente mais aptos para isso. De acordo com a UNCTAD (2009), esse processo de securitização teve particularidades expressas no processo de finanças estruturadas (structured finance) que abrangia o fatiamento (tranching) dos títulos a partir de um pool de ativos – que compreendia as hipotecas imobiliárias e outros recebíveis – e do fluxo de caixa subjacente, a reclassificação de risco dessas tranches a partir da prioridade de recebimento. Por esse processo, conseguiu-se elevar a classificação de risco do conjunto das securities num processo denominado por muitos de alquimia financeira4. Para Buiter (2007) a excessiva securitização e os instrumentos das finanças estruturadas implicavam alguns problemas cruciais: a destruição de informações 4 Uma descrição completa dos instrumentos e mecânica das finanças estruturadas pode ser encontrada em IMF (2008).

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Dinâmica e crise do capitalismo com dominância financeira

em razão de o banco originador não ser a instituição que realiza a securitização e a opacidade decorrentes do pooling, pois não se sabia exatamente quais eram os ativos subjacentes aos títulos. Foi importante também o papel negativo desempenhado pelas agências de classificação de risco. Elas, na verdade, sabiam muito pouco e classificavam os títulos com base em modelos (mark to model) em razão da opacidade das securities; o único risco considerado era o de default, deixando de lado o do preço e o da liquidez; havia conflito de interesses, pois eram pagas pelos emissores para classificar títulos e ainda trabalhavam para eles em outros serviços; e ainda mais, dada a opacidade dos produtos em geral, trabalhavam em parceria com os emissores. Essa securitização excessiva, combinada com as finanças estruturadas, ganhou impulso decisivo com a criação de um sistema bancário paralelo – o shadow bank system – cujo intuito maior era permitir aos bancos fugirem do marco regulatório, no caso a limitação da alavancagem determinada pelas regras do Acordo de Basileia. A regulação tradicional centrava-se sobre os bancos comerciais e no requerimento de capital necessário para financiar certo volume de ativos sujeitos à ponderação do risco. Para se evadir a essa regulação, o sistema criou o shadow banking system, com um grau de alavancagem muito maior por não estar sujeito à mesma. De acordo com a UNCTAD (2009), a ausência de preocupação das autoridades reguladoras com estas práticas se ancorava na hipótese de que a atividade dessas instituições não tinha implicações sistêmicas. Mais: presumia-se que, por estarem baseadas na securitização, sua atividade implicava a distribuição do risco, alocado nos agentes mais capazes de suportá-lo. Em contraposição a isso, observou-se uma disseminação do risco em paralelo a seu crescimento, tanto pela alavancagem crescente quanto em razão da forma de avaliação do risco de crédito por modelos estatísticos baseados em scores. Esses modelos probabilísticos eram o principal instrumento utilizado na análise e concessão do crédito e na avaliação das possibilidades de default. Como nota Kregel (2008), a análise do histórico de crédito e a avaliação da capacidade de pagamento de cada mutuário foram abandonadas em favor desses novos métodos. A combinação entre securitização extensiva, as inovações financeiras da finança estruturada e o sistema bancário sombra (shadow banking system) engendrou uma bolha de preços de ativos sem precedentes, por conta da sua intensidade e extensão, mas com elevada fragilidade financeira. Na avaliação de Buiter (2007), como resultado desse processo, chegou-se a dois problemas cruciais: a excessiva e pró-cíclica alavancagem, estimulada pela prática da marcação a mercado5, e a desintermediação excessiva com uma multiplicidade de instituições financeiras carregando títulos e financiando-os a curto prazo (muitas delas a serviço dos bancos para 5 A marcação a mercado (mark to market) consiste em avaliar os ativos pelo seu valor de mercado. Em períodos de aumento de preços, isso acarreta uma redução artificial da alavancagem medida pela relação capital próprio/valor dos ativos, ocorrendo o oposto na deflação.

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contornar restrições regulatórias). Isso levou ao somatório de instrumentos opacos com instituições opacas. A consequência foi a crescente fragilidade financeira. Do ponto de vista da formação da bolha, esses processos permitiram que o sistema incorporasse mutuários numa escala ampliada – chegando aos empréstimos do tipo subprime – contribuindo para a escalada de preços dos imóveis. Esse aumento de preços, conjuntamente com a securitização, que permitia passar adiante o risco, desempenhava também um papel-chave ao relaxar os critérios de avaliação da concessão de crédito por parte dos bancos. A certeza da valorização dos imóveis, que constituem a garantia das hipotecas, além de diminuir a preocupação com a capacidade de pagamento das prestações por parte do mutuário, também deu origem às práticas muito comuns de refinanciamento das hipotecas para antigos mutuários. Isso permitiu a prática de realização de lucros (equity extraction), alimentando o crescimento do consumo. Por outro lado, também estimulou o refinanciamento das hipotecas de mutuários sem capacidade de pagamento, adiando o estouro da bolha. Um elemento-chave na continuidade da bolha, realimentada pelos novos empréstimos, era a disposição dos bancos de continuar realizando-os. A reversão do processo que ocorre em 2007 tem como ingrediente exatamente o início do racionamento do crédito para originar novas hipotecas. Na base da decisão dos bancos esteve certamente a percepção dos riscos crescentes envolvidos no processo e explicitada pela elevação das taxas de juros ocorrida simultaneamente ao aumento da inadimplência. O esgotamento do ciclo leva a um colapso dos preços dos ativos e à consequente insolvência das famílias e do sistema financeiro. Ou seja, ela põe a nu a excessiva alavancagem dos agentes financeiros e não financeiros, e o exagerado endividamento das famílias. Outro elemento-chave para entender o desdobramento da crise é a sua implicação sobre a situação patrimonial de todos os agentes econômicos. A deflação no valor dos ativos cria um desequilíbrio patrimonial, pois ocorre simultaneamente à manutenção do valor das dívidas. Desse ponto de vista, a ação imediata dos Bancos Centrais – a redução das taxas de juros para a fronteira zero a fim estimular carry trades; a política de absorção de ativos duvidosos dos bancos; o socorro direto a bancos por meio das nacionalizações e aumentos de capital – foi crucial para evitar a resolução da crise por meio de um sell-off generalizado. Como nota Lara-Resende (2009), a política posta em prática teve claramente um ingrediente monetário, a expansão da liquidez por meio da compra de ativos podres. Mas o efeito dessa política é duvidoso. Primeiramente, é incerto se terá influência na disposição dos bancos em emprestar. Em segundo lugar, mesmo que isso aconteça, poderá não haver demandantes de crédito. Com base na observação acima, o autor estabelece uma distinção importante entre a crise atual e a de 1929. Nesta última, a deflação de débitos resultante da não intervenção do Banco Central eliminou o excesso de endividamento, com consequências sérias sobre o 52


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nível de produção e emprego, mas facilitou a recuperação ao dar eficácia à ação ulterior do setor público. Na crise atual, a ação imediata do setor público evitou a deflação e o desendividamento, mas perdeu eficácia na indução da retomada. Isso porque nem a política monetária nem a política fiscal serão capazes de estimular a economia enquanto perdurar uma situação de endividamento excessivo. Uma dimensão crucial da crise do capitalismo financeirizado diz respeito ao arranjo do sistema monetário internacional e ao papel do dólar como moeda-reserva. Os recorrentes e crescentes déficits em transações correntes norteamericanos que resultaram em endividamento ampliado geraram um clima de desconfiança em relação ao dólar. De acordo com Cohen (2009), a crise de 2007 explicitou essa desconfiança apesar de no curto prazo ter reforçado o poder do dólar em razão da fuga dos capitais para os ativos negociados no mercado norteamericano, especialmente títulos públicos. O ponto relevante a considerar é: por que o dólar ver-se-ia ameaçado como moeda-reserva no plano internacional? Os déficits em transações correntes acumulados ao longo de mais de duas décadas terminaram por gerar um elevado passivo externo líquido da economia americana. Esse passivo externo tem como contrapartida investimentos públicos e privados de não residentes nos mercados financeiros americanos. Diante disso, a questão central seria a ameaça de uma desvalorização permanente no valor do dólar ante as demais moedas, cujo efeito seria a queda do valor desses ativos. Essa eventual fuga do dólar encontraria justificativa adicional nos efeitos advindos do salvamento do sistema financeiro americano. Para realizar esta operação, o Banco Central norte-americano injetou liquidez no sistema em montante próximo a US$ 2 trilhões. Dada a baixa taxa de juros praticada nos EUA, a possibilidade de essa liquidez buscar investimentos alternativos em outras moedas é inegável e tem acontecido recorrentemente após 2009. Até certo ponto, a desvalorização do dólar é funcional à economia norte-americana, pois permite reduzir o déficit em transações correntes. Mas tanto as baixas taxas de juros quanto a ampliação da desvalorização não podem ser mantidas por longo período sob pena de ameaçar o poderio do dólar. Ao mesmo tempo, para atrair os investimentos de volta aos EUA e revalorizar o dólar, seria necessário aumentar a taxa de juros de curto prazo, o que entraria em contradição com o ainda elevado endividamento dos agentes e com o fraco nível de atividades. Diante desse quadro, a pergunta-chave é: qual moeda-reserva tomaria o lugar do dólar? Para autores como Eichengreen (2009), não haveria possibilidade de tal substituição ocorrer, porque não há outra economia com as qualidades da norte-americana: profundidade dos mercados financeiros, tamanho, dinamismo econômico e extensão das relações econômicas com papel de centro cíclico mundial. Exatamente por não haver alternativa, o sistema monetário internacional deverá caminhar para a fragmentação. As implicações de um sistema fragmentado 53


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são de duas naturezas: as imposições de restrições às políticas de ajustes aos EUA que perdem em parte a prerrogativa da autonomia quase absoluta da política econômica, e a concorrência maior entre as moedas, conduzindo a uma maior instabilidade nos fluxos de capitais, taxas de câmbio e de juros.

Conclusões

A crise financeira que eclodiu em 2007, a primeira com caráter sistêmico do novo padrão e originada no centro do sistema, lança luzes sobre a natureza e contradições do capitalismo com dominância financeira e a necessidade de se buscar, na ausência de um modelo econômico e de sociedade alternativos e com viabilidade política, uma forma regulada de capitalismo. Boa parte da discussão sobre a crise e as medidas de política econômica para enfrentá-las centrou-se em medidas defensivas, vale dizer, nas ações dedicadas a evitar a deflação nos preços dos ativos – compra de ativos podres pelos Bancos Centrais e recapitalização dos bancos – e nos gastos públicos necessários para evitar a recessão. Exceto pela discussão quanto à remuneração de executivos, as propostas de regulação do sistema financeiro em outras bases pouco avançaram. Já se pode inclusive reconhecer, após 2009, a emergência de novas bolhas de ativos que têm como epicentro o excesso de liquidez nos países centrais e a fuga do dólar. A regulação do capitalismo financeirizado não é tarefa trivial. Para que se chegasse ao regime de Bretton Woods foram necessárias a Grande Depressão e a II Grande Guerra. Dessa ordem resultaram as finanças reguladas, tanto no plano doméstico quanto no internacional. Tomando-se como paradigma o caso americano, realizou-se uma clara separação de funções dentro do sistema financeiro entre bancos comerciais, de investimento e instituições ligadas ao mercado de capitais. O resultado foi uma compartimentação do risco e uma redução da alavancagem. No plano internacional, limitou-se severamente a mobilidade de capitais, que ficou restrita durante muitos anos aos investimentos diretos, créditos de fornecedores, linhas comerciais e empréstimos de instituições públicas, com importância muito reduzida dos investimentos de portfólio e dos empréstimos de curto prazo em moeda. Foi apontado acima, no diagnóstico da crise, que mesmo as interpretações mais ortodoxas compartilham o diagnóstico de que, entre seus fatores essenciais, estão a securitização disseminada e a alavancagem excessiva. O grande peso dos títulos como veículos da riqueza financeira – em oposição aos empréstimos bancários – e a existência de mercados secundários profundos, que lhes conferem liquidez, constitui uma dimensão basilar do capitalismo com dominância financeira. É por meio deles, associados aos mecanismos da concorrência, da inovação e do mimetismo, que se impõe a lógica mais geral desse regime: a da supremacia dos ganhos de capital face àqueles oriundos dos rendimentos. Pelas considerações acima, cabe concluir que regular o capitalismo financeiri54


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zado significa, sobretudo, limitar a securitização e reduzir a liquidez dos títulos emitidos. Isso permitiria mitigar a lógica do ganho de capital, evitar as bolhas de preços de ativos e a transmissão de seus efeitos sobre a produção e a renda. Poderia conduzir também à restauração do papel tradicional do sistema financeiro de criação de crédito e intermediação de poupanças destinadas a financiar o desenvolvimento. A eventual regulação no plano doméstico terá uma contrapartida inevitável no âmbito internacional. Ela se traduzirá necessariamente numa limitação à mobilidade de capitais e à lógica de investimento de portfólio que a orienta. Restringida a livre movimentação de capitais, mormente dos investimentos de portfólio, será possível diminuir a necessidade de uma moeda-reserva internacional que sirva de âncora para a riqueza privada e pública. Assim, será viável ampliar o papel de uma moeda pública, nos moldes dos Direitos Especiais de Saque, que sirva de unidade de conta e meio de troca, facilitando o comércio e o investimento produtivo em escala internacional.

Bibliografia

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A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico André Martins Biancareli1

I. Introdução

Em 20 de outubro de 2009, o governo brasileiro adotou uma medida causadora de certa polêmica nos meios econômicos e financeiros: impôs a cobrança de uma alíquota de 2% de Imposto sobre Operações Financeiras sobre os fluxos de recursos estrangeiros ingressantes no país para aplicação em ações e títulos de renda fixa. A iniciativa e também as reações a ela – muitas das quais claramente hostis a qualquer forma de intervenção estatal nas relações financeiras internacionais – trouxeram de volta à tona discussões e argumentos que envolvem a abertura financeira. É este processo, julgado aqui fundamental, que o presente capítulo procura discutir. Como motivação geral, a ideia é a de que a abertura financeira é uma das frentes mais importantes das reformas liberalizantes levadas a cabo pelo Brasil durante os anos 1990 e aprofundadas nos anos 2000. Seus impactos influenciam diretamente não apenas as variáveis macroeconômicas fundamentais – como câmbio e juros –, mas também as possibilidades de funcionamento do sistema financeiro doméstico. E, portanto, condicionam a sua atuação e sua contribuição para o desenvolvimento do país. Para empreender tal discussão, optou-se por uma abordagem ampla que, antes de descrever a abertura financeira no Brasil e seus impactos, apresenta as definições relevantes para o tema e o contexto histórico em que se dá o processo, e fornece um panorama geral das controvérsias existentes sobre o tema na literatura econômica. Entende-se, ainda como ponto de partida, que o processo de abertura financeira no Brasil foi marcado pela falta de um debate mais aprofundado e da participação mais relevante de outros atores que não apenas determinados setores da burocracia estatal (leia-se Banco Central), no contexto da hegemonia dos interesses financeiros. Em outras palavras, o grau de discussão sobre o processo foi muito inferior à importância das medidas e de seus impactos. Em uma conjuntura na qual a economia brasileira parece vislumbrar mudanças importantes nas 1 Professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da mesma instituição. Email: andremb@eco.unicamp.br

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

suas condições históricas de vulnerabilidade externa – e na sequência de uma crise financeira internacional, na qual os defeitos e insuficiências da ordem financeira globalizada foram, mais uma vez, explicitados –, rediscutir esse tema parece bastante oportuno. Não apenas procurando alertar para a não repetição de erros do passado recente, mas também para que novos erros, decorrentes de um novo ambiente mais favorável, não sejam cometidos. E que, também desse ponto de vista, as relações financeiras externas e domésticas possam ser encaradas da perspectiva do desenvolvimento autônomo e socialmente justo do país. O capítulo está dividido em mais seis seções além dessa breve introdução. Na segunda, define-se a abertura financeira e a mobilidade internacional do capital, e recupera-se brevemente a evolução histórica destes parâmetros na economia internacional, bem como suas grandes motivações. Na terceira seção, resume-se a discussão teórica e as evidências empíricas sobre os benefícios e riscos da abertura financeira, tanto do ponto de vista convencional como em uma visão mais crítica dos processos. Na quarta, o objetivo é descrever o processo de abertura financeira no Brasil, recuperando o processo de alterações na legislação desde o início dos anos 1990 até recentemente, bem como os contornos institucionais e o debate sobre essas reformas. Na quinta, são apresentados e discutidos os resultados gerais do processo de abertura no caso brasileiro, tanto de um ponto de vista estrutural (perfil de inserção financeira externa) quanto mais conjuntural (efeitos das oscilações cíclicas sobre as contas externas brasileiras, suas variáveis macroeconômicas e suas relações financeiras domésticas). Por fim, a sexta seção resume as evidências e os argumentos, e levanta vários pontos de discussão para a proposição de caminhos alternativos no futuro.

II. Definições, características e contexto histórico

A primeira dificuldade envolvida na discussão da abertura financeira refere-se à própria definição do fenômeno. O conceito em si, seus níveis e variantes, bem como a sua forma de mensuração, não são consensuais na literatura (ou, pelo menos, dão origem a diferentes interpretações) e merecem esclarecimentos logo de partida. O termo “abertura financeira” é entendido aqui como a eliminação progressiva de restrições à livre movimentação dos fluxos financeiros por entre as fronteiras nacionais, e parece mais adequado do que outras denominações como “liberalização financeira” – que pode conter um forte componente doméstico de ampliação da liberdade de atuação dos mercados nas relações financeiras. “Mobilidade internacional do capital” - o resultado global do processo de alterações no plano nacional - também é outra denominação que aqui se utiliza para descrever (e comparar ao longo do tempo) as configurações quanto ao aspecto em análise. Em termos mais detalhados, segue-se principalmente a organização proposta por Akyüz (1993), que divide as transformações institucionais definidoras da 58


A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

abertura financeira em três níveis: i. inward transactions; ii. outward transactions e iii. conversibilidade da moeda. O primeiro nível se refere ao ingresso de recursos externos no país, compreendendo a captação de recursos no exterior pelos residentes e a entrada de não residentes no mercado financeiro doméstico. O segundo, no sentido oposto, se refere à posse de ativos externos e às transferências de capital ao exterior por parte de residentes, e também às emissões de passivos e o endividamento de não residentes no mercado doméstico. Por fim, o terceiro nível é o da conversibilidade interna da moeda, relativo à posse e às relações de débito e crédito em moeda estrangeira entre residentes no país. Trata-se, portanto, de alterações institucionais nas relações financeiras de uma economia com as outras. Este tipo de fenômeno não é facilmente mensurável, especialmente se o objetivo for realizar comparações internacionais ou testar causalidades e correlações por meio de técnicas estatísticas. Diante desse problema, a literatura empírica costuma trabalhar com dois grandes grupos de indicadores de integração financeira: por um lado, analisa-se e atribuem-se índices à legislação específica de cada país relativa ao tema (são os chamados indicadores de jure); por outro, os indicadores de facto concentram-se no quanto efetivamente os países recebem, enviam e conservam de riqueza financeira nas relações internacionais (ou seja, são medidas baseadas em fluxos e estoques de capital internacionais). Haveria, ainda, um terceiro tipo, na realidade um subgrupo das medidas de facto: os indicadores de preço, que procuram medir a abertura financeira (ou a integração financeira, no mesmo sentido da ausência de barreiras ao livre fluxo internacional do capital) por meio das diferenças de preços de ativos financeiros semelhantes ou de níveis de taxas de juros; quanto mais integrados os mercados, menores seriam estas diferenças.2 Seja fazendo uso destas medidas (quando possível), seja por meio da recuperação factual da evolução histórica, praticamente todos os autores dedicados à análise de longo prazo deste aspecto das relações econômicas internacionais concordam com o movimento geral. O período histórico recente, geralmente conhecido como “globalização”, tem na alta mobilidade do capital justamente uma das suas características definidoras, mas não se trata de um fenômeno inédito. Autores como Eichengreen (1996) e Obstfeld & Taylor (2004) fornecem farta descrição e documentação do que é conhecido como “curva em U” da mobilidade internacional do capital: alta no período do padrão-ouro (grosso modo entre meados do século XIX e a Primeira Guerra Mundial em 1914), baixa durante e entre as guerras e ao longo de todo o período de Bretton Woods (1944 - início dos anos 1970) e novamente alta na globalização (a partir dos anos 1980). Vale a pena recuperar brevemente os contornos da evolução mais recente. 2 Além das dificuldades técnicas inerentes aos outros tipos de medidas, essa última tem um problema teórico: ela decorre da chamada “lei do preço único”, um conceito não consensual em economia, que supõe entre outros aspectos a vigência da eficiência dos mercados livres. Aqui será tratada, também por isso, como menos relevante. Para mais detalhes dos procedimentos metodológicos e do debate empírico sobre esse tema (que será retomado na seção seguinte), ver entre outros Prasad et al (2003), Kose et al (2006) e Eichengreen (2001).

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Em uma visão “convencional”, esta elevação da mobilidade seria consequência natural de processos em curso a partir dos anos 1970, centrados na recuperação da confiança dos investidores internacionais, na concorrência entre as grandes instituições financeiras e na evolução tecnológica, principalmente no setor de tecnologia da informação. Não são fatores irrelevantes, mas estão ausentes elementos fundamentais, apontados por autores como Strange (1986) e Helleiner (1994), de um lado, e Eichengreen (1996), de outro, para a compreensão das origens da alta mobilidade. Os dois primeiros enfatizam a atuação decisiva dos Estados nacionais mais importantes (nos Estados Unidos, Japão e Europa) para a “re-emergência das finanças globais”. Na formulação de Helleiner (1994), por meio de ações (as medidas de liberalização propriamente ditas e a prevenção de crises financeiras, atuando como emprestador de última instância) e de “não-ações” (a recusa em impor controles de capital como estava previsto nas regras de Bretton Woods), a postura estatal não pode ser desprezada. Plihon (1998), em linha paralela, detalha a responsabilidade das políticas econômicas no centro, a partir da “guinada liberal” nos anos 1980. Já a contribuição de Eichengreen (1996) enfatiza outra face da dimensão política: a dos conflitos de interesse - entre trabalhadores organizados, Estado e as forças de mercado - envolvidos na escolha da combinação entre regimes cambiais, graus de mobilidade do capital e autonomia da política econômica doméstica. Mas não são apenas a alta mobilidade internacional do capital e o câmbio flutuante que marcam a época da globalização; outras características devem ser levadas em conta. A começar do padrão monetário internacional, marcado pela hegemonia do dólar americano em novas bases: ele seguiu sendo moeda reserva internacional, mas depois de 1971/73 é, na formulação sintética de Prates (2002), flexível (já que sua taxa de câmbio não é mais fixa), financeiro (dado que o fundamento de sua posição de moeda reserva é o sistema financeiro americano) e fiduciário (baseado apenas na confiança). Como resultado, um exercício muito mais livre e desimpedido da política econômica por parte dos Estados Unidos, voltado exclusivamente para objetivos domésticos.3 Outras transformações qualitativas características do período se dão no plano financeiro, e já foram discutidas em maior detalhe no Capítulo 1: i) o processo de securitização – ou o ganho de importância das relações financeiras por meio de títulos negociáveis em mercados secundários; ii) o desenvolvimento e a disseminação de instrumentos derivativos; iii) a emergência de investidores institucionais como fundos de pensão e outros (ou a “institucionalização das poupanças”); e iv) a tendência à universalização dos bancos. É a esse estado de coisas que o Brasil vai se integrar, a partir do início dos 3 Há uma vasta discussão teórica - cujo detalhamento foge aos limites deste trabalho - sobre as origens, contornos e implicações desse padrão monetário internacional, vigente desde o fim de Bretton Woods, reafirmado em 1979 e que estaria, para um número crescente de analistas, sendo questionado no período mais recente. Algumas das principais referências no debate brasileiro sobre o assunto são Tavares (1985), Serrano (2002) e a boa síntese feita por Metri (2003) acerca do “poder financeiro” do dólar.

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A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

anos 1990, por meio de seu processo de abertura financeira (que já vinha ocorrendo na América Latina e em outras regiões). Antes de detalhar esta trajetória, no entanto, cabem algumas considerações teóricas e empíricas sobre as vantagens e desvantagens do caminho adotado. III. Algumas considerações teóricas De um ponto de vista teórico, a literatura convencional costuma postular a existência de alguns benefícios advindos da abertura financeira e de um mundo com alta mobilidade internacional do capital, especialmente para os países em desenvolvimento. Um dos exemplos mais claros é a argumentação de Fischer (1998), para quem esta linha de reformas seria um processo necessário (quiçá, inevitável) no caminho do desenvolvimento. Os argumentos a sustentar tal posição são bastante conhecidos: a redução das barreiras entre as transações financeiras com o exterior ampliaria as opções para compartilhamento e diversificação internacional de riscos; possibilitaria o financiamento de desequilíbrios passageiros de balanço de pagamentos e o acesso à poupança externa para o financiamento do investimento (fundamental para os países em que o capital é escasso); e, não menos importante, imporia disciplina sobre as políticas econômicas domésticas (inter allia, Obstfeld & Taylor, 2004). Sabe-se, no entanto, que este conjunto de argumentos vem sofrendo uma série de desafios mesmo no interior do chamado mainstream economics – na voz, por exemplo, de Stiglitz (2000) e Rodrik (1998). Tentativas mais recentes de revisão, como a abordagem proposta em Kose et al. (2006), postulam a existência de “benefícios colaterais” da integração (desenvolvimento institucional e do sistema financeiro, além da disciplina macroeconômica), que seriam mais importantes do que os canais diretos. Recentemente, o próprio FMI reavaliou sua postura incondicional a favor da abertura financeira e passou a defender, oficialmente, o uso de controles de capital em determinadas circunstâncias (Ostry et al., 2010). Antes disso, vários autores muito respeitados nos círculos acadêmicos e políticos já vinham chamando a atenção para especificidades importantes dos países em desenvolvimento, quase sempre ignoradas nas abordagens convencionais. Tais economias teriam limites muito mais baixos de “tolerância ao endividamento externo” por conta de suas debilidades institucionais e de política econômica (Reinhart, Rogoff & Savastano, 2003); teriam tendência crônica ao “descasamento de moedas” em seus ativos e passivos, tornando suas empresas, famílias e Estados nacionais muito vulneráveis a flutuações na taxa de câmbio (Goldstein & Turner, 2004); ou, na interpretação mais sofisticada, sofreriam do “pecado original”, a incapacidade de emitir dívida externa nas suas próprias moedas, no que estaria a origem dos problemas apontados pelos autores anteriormente citados (Eichengreen & Hausmann, (eds., 2005)). Esta última visão 61


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

avança bastante não só ao trazer para o primeiro plano da análise da inserção de tais economias na globalização a questão da diferença entre as moedas nacionais, mas também ao atribuir tal “defeito” às insuficiências do sistema monetário e financeiro internacional, e não apenas a erros de política econômica doméstica. Aproxima-se, neste sentido e ainda que com importantes limites, a uma visão crítica como a que será resumida na sequência.4 Tais mudanças envolvendo a teoria favorável à abertura financeira são indissociáveis de dois processos recentes importantes. O primeiro deles, mais nítido, foi a sucessão de crises cambiais e financeiras nos chamados “mercados emergentes”: México em 1994/95; várias economias asiáticas em 1997; Rússia em 1998; Brasil em 1998/99; Turquia em 2001 e Argentina em 2001/02. Como em todos os casos, vários dos elementos de crise se repetiram e se vinculavam aos processos recentes de abertura financeira, os riscos daquela opção se explicitavam. Por outro lado, mais acadêmico, verifica-se uma séria dificuldade de comprovar empiricamente os seus supostos efeitos favoráveis. Conforme atestam vários estudos – entre eles a ampla revisão feita por Damasceno (2008) – o resultado da busca por evidências robustas das vantagens da abertura financeira é bastante decepcionante (de uma perspectiva favorável a essa reforma). Em outras palavras, por mais que as técnicas econométricas, os indicadores, as amostras e os períodos cobertos sejam modificados, não é possível afirmar com segurança que haja relação entre abertura financeira e crescimento econômico, ou os outros efeitos positivos sustentados pela teoria. Particularmente, a postulação de que haja uma tendência natural do capital fluir de onde ele é abundante para onde é escasso – que sustenta a ideia da “contribuição da poupança externa” ensejada pela abertura financeira – não se comprova de nenhuma maneira, na época da globalização ou mesmo durante o padrão-ouro (como também atestam, com farta documentação, Obstfeld & Taylor, 2004). Tais considerações são de extrema importância para o processo que aqui se quer discutir, e nem sempre são lembradas quando as questões relativas às relações financeiras externas vêm à tona: a abertura financeira, no Brasil e em vários outros países em desenvolvimento, foi levada a cabo sem que estivessem suficientemente estabelecidos, na literatura econômica, os seus benefícios. Mas não há dúvida que os interesses em torno dela estavam claros. Por outro lado, os riscos associados a ela não tardaram a se manifestar nas crises cambiais. Como será detalhado na seção seguinte, uma abordagem “pragmática” e de abertura voluntária, sempre preocupada em “aproveitar as oportunidades existentes” em nome dos argumentos teóricos abstratos, foi predominante na experiência brasileira desde o início dos anos 1990. E também era absoluta, até pouco tempo atrás, nos posicionamentos de instituições multilaterais como o Banco Mundial e o FMI. 4 Para as mudanças recentes na visão convencional sobre abertura financeira, ver Biancareli (2008a).

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A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

O balanço aqui feito sobre a experiência brasileira está informado por outras concepções e pressupostos teóricos, bastante distintos dos argumentos convencionais e das versões mais recentes da defesa da abertura. Seguindo a organização apresentada em Biancareli (2008b), o que poderia ser chamado de “visão crítica” se divide em três planos de análise: um “histórico” (que enfatiza as raízes políticas e sociais da globalização financeira, já resumido na seção II); um “estrutural” (que analisa as implicações das finanças liberalizadas num plano global); e, finalmente, um “específico” (que examina com mais detalhe as limitações decorrentes da posição ocupada pelas economias em desenvolvimento neste quadro). A ideia-chave desta visão crítica, no plano estrutural, é a de que as finanças globalizadas são marcadas por um caráter instável e especulativo. Principalmente por conta de duas das mudanças citadas acima e discutidas no Capítulo I – o predomínio da securitização nas relações financeiras e a institucionalização das poupanças –, o padrão de comportamento de um amplo espectro de agentes econômicos (bancos, empresas, famílias) teria se tornado especulativo, no sentido keynesiano do termo: a tentativa de derivar ganhos de curto prazo da posse de ativos e de antecipar as tendências do mercado. No plano internacional, as possibilidades ampliadas de aplicação do capital (ensejadas pelos processos nacionais de abertura) deram origem a vários tipos de fluxos carregados desta natureza primordialmente especulativa. Empréstimos bancários internacionais (devidamente securitizados), investimentos em ações (quase sempre por meio de fundos de pensão, de hedge ou outras formas de aplicação) e mesmo de investimento direto, dado o elevado peso que se verifica atualmente das operações de fusões e aquisições (comandadas pelo objetivo primordial da maximização do valor acionário) em detrimento das operações de greenfield. Quando o sistema monetário atual é levado em conta, o espaço para especulação parece se ampliar. A natureza financeira, flexível e fiduciária da moeda reserva internacional (o dólar norte-americano) faz com que se ampliem tanto o espaço para contradições entre os objetivos domésticos da economia central e as necessidades do resto do mundo, quanto as incertezas em relação ao comportamento futuro de variáveis-chave como câmbio e juros. E, quanto maior a incerteza, maiores as possibilidades para especulação e volatilidade, em um espaço de aplicação ampliado. Portanto, para essa visão, as recorrentes crises financeiras que marcam as últimas décadas não são manifestações ad hoc de falhas de mercado isoladas; a mudança súbita de opinião dos investidores, o espírito de manada e os grandes estragos decorrentes seriam intrínsecos às finanças contemporâneas. Indo além, a suposição é a de que a posição dos países em desenvolvimento neste quadro é ainda pior, devido à existência de três assimetrias. Este é o segundo nível de análise, específico da periferia.5 5 O conceito de assimetrias é proposto por Prates (2005), baseado principalmente nas ideias de Ocampo (2001).

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

A primeira assimetria é a financeira e consiste no fato de que os países em desenvolvimento, cada um e como um grupo, representam parcela marginal dos mercados financeiros globais: para os principais aplicadores globais, tais destinos são, em geral, vistos como exóticos e apenas uma pequena parcela da riqueza administrada é alocada neles. Como resultado, se verifica não apenas uma das maiores inconsistências da argumentação clássica sobre a alocação internacional de recursos (o capital não flui dos ricos para os pobres!), mas também uma posição frágil destes destinos. Sendo parcela reduzida e menos importante das carteiras, os ativos alocados na periferia são os primeiros candidatos à liquidação nos momentos de aumento da aversão global ao risco e/ou de grandes perdas em outros mercados. Por outro lado, dada a pequena dimensão destes mercados de destino, mesmo tais parcelas marginais possibilitam a formação de bolhas de preços de maior frequência e intensidade. Ao mesmo tempo, existe uma assimetria macroeconômica, isto é, há um grau menor de liberdade na condução das políticas econômicas no mundo em desenvolvimento. Especificamente, tais economias são submetidas a uma rígida regra de determinação das taxas de juros: mesmo com câmbio flutuante, a política monetária não é totalmente livre das influências externas – o que também quer dizer que a ideia da “trindade impossível” não se aplica inteiramente nestes casos. Mas a terceira desvantagem, ou a assimetria monetária, seria a mais importante de todas: as profundas diferenças qualitativas entre as moedas nacionais estariam na origem das duas outras assimetrias. Não sendo capazes de desempenhar de maneira importante no plano internacional nenhuma das suas três funções básicas (unidade de conta, meio de pagamento e, especialmente, reserva de valor), as moedas periféricas são vistas como denominadores provisórios da riqueza, ou “inconversíveis” no sentido discutido por Carneiro (2008). Na linguagem keynesiana, estas não seriam moedas que “acalmariam a inquietude” dos investidores globais. Em suma, em um ambiente financeiro global que é intrinsecamente instável, a posição inferior de algumas economias é agravada por estas três assimetrias que marcam o sistema monetário-financeiro internacional e tipificam um país em desenvolvimento. Consequentemente, os momentos de massivos fluxos de capital privados para tais economias, não emissoras de moedas conversíveis, são sempre consequência de uma redução na preferência pela liquidez no plano internacional (ou, dito de outra forma, são produto de momentos de baixa aversão ao risco). Nesses momentos, se assiste à fase ascendente do ciclo de liquidez internacional para essas economias, outra das características essenciais da inserção periférica na globalização. Em um movimento análogo ao ciclo minskyano – um período de euforia, no qual as expectativas sobre os rendimentos futuros ampliam a concessão de crédito e outros contratos financeiros para “regiões” cada vez mais arriscadas – fases otimistas também se verificam nesse movimento internacional de capi64


A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

tais, geralmente baseadas em percepções generalizadas sobre tais destinos para as aplicações, seus riscos e oportunidades futuras. Na formulação original de Minsky (1982), a crescente fragilidade financeira se transforma em crise diante de um choque de expectativas, uma drástica reversão do otimismo que provoca uma súbita elevação na preferência pela liquidez. No caso em tela, qualquer evento que induza a uma reavaliação das combinações de risco/retorno dos ativos denominados em moedas inconversíveis é capaz de detonar uma “fuga para a qualidade”, ou uma alta da aversão ao risco ou da preferência pela liquidez nesse sentido internacional. Tanto na fase otimista quanto na pessimista, tais mudanças de convenções podem dar origem a movimentos de prazo mais longo – as fases de “alta” e “baixa” na liquidez internacional – ou configurar apenas breves momentos de melhora ou piora passageira no ânimo dos aplicadores, os “mini-ciclos” (incapazes de interromper a tendência mais geral).6 Pelo fato de os fluxos de capital contemporâneo serem, como discutido anteriormente, essencialmente instáveis e especulativos, não apenas as grandes fases do ciclo tendem a ser mais curtas, mas também os mini-ciclos mais frequentes. Na época aqui julgada mais relevante para analisar a inserção dos países em desenvolvimento na globalização (a partir do início da década passada), observa-se a ocorrência de dois grandes ciclos de liquidez: o primeiro de 1990 a 2002, e o segundo a partir de 2003, como pode ser verificado no Gráfico 1, construído a partir dos dados de fluxos privados de capital para os países em desenvolvimento. Estão ali explicitadas, também, as duas fases em cada ciclo: a de “cheia” entre 1990 e o início das crises cambiais e financeiras nos mercados emergentes em 1997/98; a de “seca” entre 1998 e 2002 (em que às sucessivas crises se somaram problemas como as fraudes contábeis nos Estados Unidos e mesmo as fortes incertezas geopolíticas a partir de 2001); e a nova ascensão, para patamares muito acima dos máximos anteriormente atingidos, a partir de 2003 e até 2007 – quando atinge um ápice histórico próximo aos US$ 700 bilhões. Mas tão expressiva como essa elevação é a queda projetada (no caso, pelo FMI) para esses fluxos de capital para os anos de 2009 e 2010, que devem ficar no terreno negativo em 2009 e voltar aos patamares dos piores anos da fase “de seca” do ciclo anterior.

6 Boom and burst, feast and famine, ou mesmo sudden stops são outras expressões comuns na literatura para caracterizar as fases do ciclo.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 1. Fluxos de capital privado para países em desenvolvimento (líq.), US$ bilhões, 1990-2010

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Ressalte-se o fato de que os acontecimentos mais recentes tornaram tais previsões um tanto quanto pessimistas, pelo menos para uma parte dos destinos dos fluxos. Se não parece haver muita dúvida de que a fase de cheia do segundo ciclo foi revertida em 2008, as condições financeiras ao longo da segunda metade de 2009 melhoraram para o mundo em desenvolvimento em geral e para alguns países como o Brasil em particular. Daí a impressão de que possa mesmo estar ocorrendo uma maior diferenciação entre esses destinos. Uma dimensão adicional, mas não menos importante, diz respeito aos processos econômicos que, para além dos fatores psicológicos, pautam a oscilação de expectativas, preferência pela liquidez e graus de aversão ao risco que marcam as distintas fases do ciclo. Uma questão teórica presente em qualquer discussão como essa é a atinente à endogeneidade ou exogeneidade dos mecanismos que explicam a fase ascendente e, principalmente, a reversão. Na problemática em tela, ela toma a forma da oposição entre fatores externos e internos às economias receptoras dos fluxos – ou, na denominação comum na literatura internacional, entre pull e push factors. A concepção de fundo aqui é a de que, por mais que haja uma interação com os fatores domésticos, são as condições vigentes nas economias com moedas conversíveis que pautam o ciclo. Particularmente, como a própria expressão já deixa claro, a busca por rendimento em papéis mais arriscados é um desdobramento da queda da remuneração nos ativos lá negociados. Assim, para além de outras variáveis externas – como a taxa de crescimento da economia global – são principalmente as 66


A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

condições monetárias no centro e o grau de propensão a se engajar em operações arriscadas por parte dos aplicadores globais que definem, antes de tudo, a maior ou menor disponibilidade de financiamento para economias como a brasileira. Como explicitado no Gráfico 2, a aversão ao risco – medida pelo VIX, um título negociado nos mercados de derivativos de Chicago e que expressa a volatilidade do índice S&P 500 do mercado acionário americano – acompanha, de maneira simétrica e invertida, a oscilação dos fluxos de capital mostrada na figura anterior.7 A primeira fase de cheia é montada em um ambiente de queda nessa aversão até meados de 1997. Nos quatro anos seguintes (fase de seca do primeiro ciclo), tal oscilação se dá em torno de patamares muito mais elevados, até começar um forte e prolongado movimento de redução até os patamares mínimos históricos atingidos nos primeiros dias de 2007 – e que correspondem aos níveis também recordes de fluxos de capital para países em desenvolvimento, como visto acima. Porém, a crise financeira detonada a partir da inadimplência das hipotecas suprime nos Estados Unidos ainda no final daquele ano, e que atinge seu ápice em setembro, leva o VIX para valores nunca antes imaginados, superiores a 80 pontos – e que expressam uma aversão total ao risco ou uma preferência absoluta pela liquidez. Gráfico 2. Aversão ao risco: Índice de Volatilidade Implícita (VIX), valores diários de fechamento e média móvel 3 meses, 1990-2009

Fonte: Chicago Board Options Exchange (CBOE). Elaboração própria.

O significado mais profundo destas considerações sobre os determinantes do ciclo deve ser enfatizado: por mais que os “fundamentos” domésticos pos7 Para mais detalhes sobre o VIX e sua utilização como proxy da aversão ao risco, ver Pinheiro et al. (2006) e as referências lá citadas.

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sam reforçar uma ou outra direção, as condições gerais de acesso ao mercado financeiro internacional e aos seus supostos benefícios são definidas, essencialmente, por políticas e processos alheios ao controle (ou, até, à capacidade de influência) local. Dessa maneira, informada por uma visão crítica sobre a inserção periférica na globalização financeira e pelas outras considerações históricas e teóricas acima resumidas, a apresentação do processo de abertura financeira no Brasil e de seus resultados pode ser feita nas seções que se seguem. IV. O processo de abertura financeira no Brasil O caminho de abertura financeira no Brasil pode ser descrito sob diferentes ângulos. Uma forma de acompanhar a trajetória é apresentar – de maneira resumida e sem se perder nos detalhes jurídicos – as mudanças na legislação, seguindo a divisão da abertura em três níveis já discutida no início.8 Assim, do ponto de vista do primeiro nível de abertura (as inward transactions), há um nítido movimento, desde o início do governo Collor, de liberalização das possibilidades e condições de endividamento externo: diversificação dos instrumentos (commercial papers, bônus e notes)9, ampliação das possibilidades de repasse interno dos recursos captados10 e a regulamentação do lançamento de papéis em bolsas estrangeiras (DRs).11 Junto com outras vantagens tributárias concedidas para facilitar a emissão de todos esses instrumentos no exterior, o caminho de liberalização prossegue, em meados da década, com a ampliação para o setor agropecuário das possibilidades de repasse das captações regidas pela Resolução 63 (configurando a chamada “63 caipira”), posteriormente estendida também para o setor imobiliário.12 É um movimento que se acentua ainda no primeiro governo FHC, quando as categorias disponíveis para captação com fins de financiamento ou repasse internos são ampliadas (as empresas exportadoras também passam a ser candidatas aos repasses) e a aplicação dos recursos ainda não repassados em depósitos não remunerados é revogada, permitindo-se que sejam aplicados em contas de depósito do Banco Central no exterior. Por fim, amplia-se 8 Essa recuperação é feita baseada em alguns trabalhos que descrevem com mais detalhe o processo do ponto de vista legislativo: Biancareli (2003); Freitas & Prates (2001); Margarido (1997); e Prates (1997e 2006) entre outros. As medidas mais recentes estão documentadas e apresentadas pelo Banco Central do Brasil por meio de uma série de documentos disponíveis em http://www.bcb.gov.br/?CAMBIOLEG. 9 Os instrumentos jurídicos para tal alteração foram as Resoluções do BCB 1734, de 01/08/1990, e 1853, de 01/08/1991. 10 Os recursos captados e ainda não repassados internamente poderiam ser aplicados em NTN-Ds, eliminando assim o risco cambial da operação. Tais mecanismos de proteção diziam respeito também aos outros instrumentos de captação por empresas brasileiras, não destinados ao repasse, regulamentados entre 1991 e 92: a securitização de exportações, os títulos conversíveis em ações e os certificados de depósito. Tais medidas foram implementadas pela Res. 1834, de 26/06/1991; Circ. 1969 (07/06/91) e n. 1809 (27/03/91). 11 Res. 1948, de 01/08/1991. 12 Respectivamente, Res. 2148 (de 16/03/95) e Res. 2170 (de 30/06/95).

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para as instituições financeiras com sede no país a possibilidade do lançamento de Depositary Receipts (DRs) em Bolsas do exterior.13 O aprofundamento de medidas estruturais de liberalização nesse nível (captação de recursos no exterior) é retomado após a mudança do regime cambial em janeiro de 1999. Coincidindo com a nova gestão na presidência do Banco Central, avança-se decisivamente na direção da abertura total, deixando o espaço aberto apenas para o controle indireto, através da tributação. As instituições financeiras são autorizadas a captar recursos no exterior para livre aplicação no mercado doméstico14 e, finalmente, são consolidadas todas as mudanças pela Resolução 2770 (de 30/08/2000), que revoga todos os instrumentos normativos que disciplinavam (exigências de autorização, direcionamento etc.) as emissões de títulos de renda fixa no exterior, e elimina a distinção entre investidor residente e não residente.15 Já pelo outro lado das inward transactions, o da entrada dos investidores estrangeiros no mercado financeiro local, as medidas iniciais e decisivas também foram tomadas no governo Collor. A principal delas é a criação do Anexo IV à lei 1401, de 1975, e à sua modificação na lei 1986, de 1982.16 Estabeleciam-se assim as Carteiras de Investidores Institucionais Estrangeiros, marco do processo de adaptação do Brasil aos novos tempos de globalização financeira. Ao contrário dos canais anteriores, o Anexo IV permitia a aplicação no mercado brasileiro a partir de carteiras próprias, eliminava as exigências de prazos de permanência e não continha critérios de diversificação das aplicações, além de ser isento de tributação sobre os ganhos de capital. Já no segundo governo FHC,17 depois de consolidados o novo regime de flutuação cambial e a nova diretoria do Banco Central, são adotadas, à semelhança do ocorrido para os empréstimos externos, medidas que aprofundam e levam a um ponto final a liberalização da entrada dos investidores estrangeiros no mercado local. Em 06 de agosto de 1999, a Resolução 2628 liberaliza a aplicação dos recursos dos anexos I a IV em instrumentos de renda fixa, e a Resolução 2689 (26/01/2000) extingue as diferentes modalidades de aplicação, mantendo apenas 13 Respectivamente, Res. 2266, de 29/03/96 ; 2312, de 05/09/96; e Res. 2345 (de 19/12/1996). 14 Res. 2625 (de 29/07/1999). Tal liberdade foi estendida às entidades de arrendamento mercantil pela Resolução 2683 (de 29/12). 15 As operações de repasse interfinanceiro dos recursos captados já tinham, aliás, sido autorizadas pela Resolução 2721 (de 24/04/00). 16 Res. 1832 (de 31/05/1991). Antes disso, a Resolução 1289, de 1987, havia regulamentado os canais para investimento estrangeiro no mercado local (os Anexos I, II e III): as Sociedades de Investimento Capital Estrangeiro (SICE), os Fundos de Investimento Capital Estrangeiro (FICE) e as Carteiras de Títulos de Valores Mobiliários Capital Estrangeiro (CTVM). Tanto a legislação original quanto a sua modificação, e mesmo os seus três primeiros anexos, resultaram em poucas entradas de investidores, dadas as condições macroeconômicas dos anos 1980. 17 Durante o primeiro mandato, as únicas alterações nesse campo com alguma relevância foram a regulamentação dos Fundos Mútuos de Investimento em Empresas Emergentes e Fundos de Investimento Imobiliário, e a permissão para a aplicação dos recursos ingressantes pelos anexos I a IV em ações (sem direito a voto) de instituições financeiras brasileiras. Respectivamente, Res. 2247 e 2248, de 08/02/1996, e Res. 2344, de 19/12/96.

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as particularidades do Anexo III, de fundos fechados. Os investimentos no país passam a ser permitidos também para pessoas físicas (não mais apenas para investidores institucionais) e os estrangeiros passam a ter acesso às mesmas opções de aplicação disponíveis aos residentes. Estava completa, assim, a liberalização do primeiro nível de abertura financeira – no qual o país mais avançou nos governos Collor e FHC. Chegava-se, em relação à captação de recursos no exterior e à entrada de investidores no mercado local, a uma situação de abertura consolidada, com a abolição de controles diretos, vinculações de aplicação e prazos mínimos. Mas preservou-se o espaço para manipulações conjunturais nos controles indiretos, principalmente pela via da tributação dos recursos ingressantes. Esse espaço foi utilizado várias vezes ao longo da trajetória – e é exatamente este o caso da alíquota de IOF imposta em outubro de 2009 sobre os fluxos de recursos estrangeiros ingressantes no país para aplicação em ações e títulos de renda fixa. Durante os anos de 1993 e 94, a forte entrada de recursos também ensejou medidas defensivas em relação à captação de recursos no exterior, mas com um leque maior de instrumentos: suspensão da autorização automática para a emissão de papéis de renda fixa no exterior; a extensão do prazo mínimo (de 1 para 2 anos) para o pagamento antecipado de exportações, com posterior suspensão por tempo indeterminado; a ampliação de 90 para 540 dias no prazo mínimo de repasse dos recursos captados via Resolução 63. O IOF sobre os empréstimos em moeda estrangeira, naquela conjuntura, chegou a ser elevado de 3% para 7%. O mesmo se dava para as entradas de investidores nos mercados locais, com a preocupação inicial de limitar as aplicações em renda fixa dos recursos ingressantes pelo Anexo IV (teoricamente dirigidos para ações). Numa sequência de restrição das opções e descoberta de novas brechas pelos investidores, vão sendo fechadas as oportunidades: fundos de commodities, de títulos do Tesouro e do Banco Central, de debêntures e de derivativos que fugissem aos objetivos de hedge, passam a ser vetados para os estrangeiros. Com esse mesmo objetivo, em paralelo, é aberto em 1993 um novo canal para a internalização de recursos: os Fundos de Renda Fixa Capital Estrangeiro (Res. 2028, de 25/11) – que procuravam atrair justamente os aplicadores de mais curto prazo, interessados diretamente no diferencial de juros. A tributação elevada (IOF inicialmente de 5%, mas que passou a 9% em outubro de 94, mais Imposto de Renda) reduzia os ganhos especulativos e procurava ampliar as aplicações em renda variável.18 Na medida em que iam se alternando períodos de abundância ou escassez 18 Esta experiência com controles de entrada no Brasil foi objeto de uma série de investigações empíricas por parte de autores mais ortodoxos, que acabaram por constatar a ineficácia ou “endogeneidade” dos instrumentos, o que não recomendaria sua utilização. O primeiro exemplo é o estudo de Cardoso & Goldfajn (1997). Carvalho & Garcia (2006) fazem um balanço dessa literatura empírica contrária aos controles, à qual Franco (2006), um dos principais condutores da política na época e defensor das medidas, responde duramente, em um interessante debate dentro do campo liberal.

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de recursos ingressantes, estas medidas iam sendo relaxadas ou reforçadas, num movimento pendular que perdura até a consolidação das mudanças estruturais em 1999, que reservam apenas ao IOF e outros tributos esse papel de “calibrar” as entradas quando necessário. É esse instrumento que foi utilizado posteriormente: tanto para atrair investidores estrangeiros para o mercado de dívida pública e fundos de capital de risco (isenção ou redução progressiva com o tempo do IR e da CPMF, em fevereiro de 2006), como para moderar sua entrada para renda fixa e títulos públicos (IOF de 1,5% em março de 2008), posteriormente retirado diante da crise financeira e reaplicado em outubro de 2009, agora também englobando aplicações em renda variável. No que se refere à posse de ativos externos, à transferência de capital e ao endividamento interno de não residentes – o segundo nível de abertura, outward transactions –, os progressos até o fim dos anos 1990 foram mais rápidos e mais limitados em sua abrangência. É esse o campo em que o governo Lula vai implementar mudanças mais significativas, aprofundando a partir de 2005 o caminho iniciado anteriormente. Uma primeira frente de avanço nessa direção se dá no mercado de câmbio. Ainda durante o governo Sarney é criado o mercado de taxas flutuantes, inicialmente restrito para as transações relativas a viagens internacionais19 e ao qual outras despesas (com educação e saúde, uso ampliado do cartão de crédito internacional e transferências unilaterais) foram sendo progressivamente incorporadas durante o governo Collor. Mais tarde, permitiu-se a venda de divisas nesse segmento sem a identificação do ofertante, o que contribuiu para o nivelamento com o câmbio paralelo por incentivar a repatriação de divisas obtidas por meios ilegais. Já em 1996, no contexto de forte entrada de recursos externos, nova desregulamentação no mercado flutuante eliminou a exigência de registros para diversas operações de remessa, permanecendo a notificação apenas para valores superiores a US$ 10.000. Mas a trajetória de liberalização das outward transactions também envolveu medidas em outras frentes, nas primeiras etapas. As remessas de divisas ao exterior através do mercado flutuante foram sendo incentivadas, primeiro pela redução de impostos e outras facilidades burocráticas sobre a remessa de lucros e dividendos entre matrizes e filiais. Ao mesmo tempo, procurou-se fomentar o investimento brasileiro no exterior: entre 1990 e 92, investimentos inferiores a US$ 1 milhão foram sendo liberados da compensação cambial, até que esta fosse extinta. Em 1994, já numa conjuntura de ingresso excessivo de divisas, esse limite passou para US$ 5 milhões, complementando as tentativas de moderar os efeitos das entradas com incentivos à saída. Também com esse objetivo é que foram criados, pela Resolução 2111 (de 22/09/1994), os Fundos de Investimento no Exterior, por meio dos quais os residentes poderiam investir em títulos de dívida negociados no exterior – respei19 Res. 1552 (22/12./1988), regulamentada pela Circ. 1402 (02/02/1989).

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tado um limite mínimo de 60% de aplicação em papéis brasileiros. E a Resolução 2318 (de 26/09/1996) expande esse canal para as aplicações de renda variável, com a regulamentação dos investimentos em ações no exterior através dos BDRs. Por fim, merecem destaque ainda nesse segundo nível as alterações referentes às contas de não residentes no sistema financeiro doméstico, em moeda nacional, criadas pela Carta Circular n. 5, de 1969, outro tema marcante no debate pesquisado. A Resolução 1946 (de 29/06/1992) permitiu que recursos dessas contas – que podem ter titulares brasileiros “domiciliados” em paraísos fiscais – fossem negociados no mercado flutuante, ampliando as possibilidades de ingresso e remessa para o exterior. Este era o quadro até o final do governo FHC neste segundo nível de abertura. Até que, já no governo Lula, os dois segmentos do mercado cambial foram unificados: as pessoas físicas e jurídicas passam a poder comprar e vender moeda estrangeira para fins de aplicação no exterior, sem limitação de valor, diretamente da rede bancária. A Resolução 3265 do Conselho Monetário Nacional (04/03/2005) é o passo decisivo, segundo o próprio Banco Central, para uma “nova filosofia cambial no país”, já que “todas as operações de câmbio passaram a ser permitidas, desde que observada a legalidade da transação, tendo como base a fundamentação econômica das operações e as responsabilidades definidas na respectiva documentação”.20 Pela resolução, além de serem extintas as contas CC-5, também foram eliminadas a obrigatoriedade de retorno dos recursos associados à venda de investimento no exterior (os recursos podem ser reaplicados no exterior livremente), e a necessidade de envio ao Banco Central de documentação específica comprobatória nas operações relacionadas a investimento direto no exterior.21 O caminho é reforçado pela Resolução 3412, de 2006, que liberaliza totalmente as aplicações de pessoas físicas e jurídicas em mercados de capitais no exterior. Na mesma direção, foram sendo tomados passos decisivos em relação à liberdade de alocação das receitas de exportação no exterior (que, anteriormente, deveriam ser integralmente internalizadas). Primeiro com a própria Resolução 3265 (que aumenta o prazo para manutenção destas no exterior por até 210 dias após o embarque), posteriormente com a Lei 11.371 de 200622 – que transfere ao CMN o poder de decidir sobre essa cobertura cambial. Assim sendo, a Resolução 3389 deste Conselho isentou da necessidade 30% das receitas, e posteriormente a Resolução 3548, já em 12/03/2008, permite que a integralidade destes recursos seja mantida fora do país.23 20 Trechos extraídos de documentos oficiais da autoridade monetária brasileira (BCB, 2009a e b). 21 Outros instrumentos aprofundaram o caminho, como a Res. 3568 (de 29/05/2009), que entre outras providências liberaliza as condições para as instituições e operações de câmbio referentes a transferências unilaterais e facilita o acesso do público a elas, amplia as possibilidades dos agentes deste mercado realizarem operações de câmbio no exterior e dispensa documentos para operações até US$ 3 mil. 22 Resultado da conversão da Medida Provisória 315, de agosto do mesmo ano. 23 De acordo com estimativas divulgadas recentemente por Emílio Garófalo (assessor especial do Ministério

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Por fim, de acordo com informações da imprensa, estes provavelmente não terão sido os últimos passos na direção de mais abertura no segundo nível. Consta estarem sendo estudadas, no interior do Banco Central, medidas adicionais para a facilitação de investimentos brasileiros no exterior, tais como a abertura de uma “conta investimento” com esse fim, a ampliação de 30% para 100% do teto que os fundos de investimentos nacionais têm para investir em ativos no exterior, a simplificação das regras para negociação com Brazilian Deposit Receipts (BDRs) e novas simplificações operacionais no mercado de câmbio. Isso tudo além do objetivo, várias vezes reiterado, de consolidar as mudanças com a superação da Lei 4.131.24 O sentido de todas estas medidas, implementadas e estudadas, de facilitação da saída de recursos é – inclusive segundo as justificativas oficiais – neutralizar parte da pressão de entrada de divisas sobre a taxa de câmbio, intensa durante quase todo o governo Lula e que corresponde ao segundo ciclo de liquidez para países em desenvolvimento. Repete-se, assim, a mesma postura verificada em parte do governo FHC, quando o movimento geral dos fluxos de capital era o mesmo: privilegia-se a facilitação da saída em relação ao controle, mesmo que temporário, das entradas (que, aliás, durante o início do Plano Real foi feito com muito mais abrangência, como visto). Trata-se, em primeiro lugar, de providências com eficácia questionável no curto prazo: se a pressão é toda de entrada (por diferencial de juros, de crescimento, atratividade da Bolsa ou qualquer outro motivo), por que investidores e exportadores optariam por manter os recursos no exterior? Pensando mais a longo prazo, trata-se novamente de postura imprudente, que altera a situação estrutural com base em uma situação conjuntural, ampliando os riscos de fuga de capitais em momentos de reversão do ciclo externo.25 De qualquer modo, se antes era possível afirmar, como fazem entre outros Freitas & Prates (2001), que o processo de abertura no Brasil havia destoado do padrão argentino e mexicano por ter avançado muito mais no primeiro do que no segundo e terceiro níveis, os últimos anos alteraram tal situação. A consolidação do segundo nível de abertura, em outras palavras, se deu no governo Lula, e aparentemente não chegou ao fim, dadas as intenções de mudanças adicionais na mesma direção. Já em relação ao terceiro nível da abertura – a conversibilidade da moeda, aqui entendida simplesmente como “a posse e relações de débito e crédito em moeda estrangeira entre residentes no país”26 – de fato as mudanças no Brasil continuam sendo bastante tímidas em relação a outras experiências em países em desenvolvida Fazenda), existiriam em novembro de 2009 cerca de US$ 11 bilhões em receitas brasileiras de exportação depositados no exterior. Ver Chiarini (2009). 24 Ver Fernandes (2009), Cruz & D’Amorin (2009) e “Governo prepara...” (2009). 25 Nesta direção, e tratando de parte das medidas adotadas mais recentemente, ver Sicsú (2006) e Ghinis (2006). 26 Não confundir com o conceito de “inconversibilidade monetária” definido em Carneiro (2008) e já comentado, que se refere à incapacidade de desempenhar as funções da moeda no plano internacional.

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mento. Para alguns setores muito específicos, há algum grau de ampliação dessas possibilidades, como os bancos atuantes no mercado de câmbio (por meio de suas posições nos mercados futuros) ou algumas empresas de prestação de serviços de energia, petróleo e gás em processo de privatização (que foram autorizadas a manter contas em moeda estrangeira no sistema financeiro doméstico em condições bastante específicas). Porém, segundo as mesmas fontes de imprensa, entre as medidas em estudo pelo Banco Central para aprofundar o caminho da abertura, estaria a “liberação da abertura de contas correntes em moeda estrangeira dentro do país”.27 Tal providência, polêmica principalmente diante de experiências traumáticas como a argentina, deve ser observada com atenção. Todo o processo de alterações legislativas resumido acima foi marcado, para além do sentido específico de cada medida, por algumas características comuns: a concentração das discussões e decisões em uma parte muito restrita da burocracia estatal, a falta de maior debate sobre as mudanças e seus impactos, e a falta de consolidação jurídica do rumo adotado, há muitos anos. Esse é um outro ângulo para se levar em conta na análise da abertura financeira. Uma expressão muito concreta destes traços pode ser visualizada nas várias notas de rodapé acrescentadas ao longo da seção anterior: a maioria absoluta das medidas foi implementada por meio de Resoluções e Cartas-Circulares do Banco Central do Brasil e do Conselho Monetário Nacional, ou por Medidas Provisórias. Isso significa não só que alguns altos e passageiros funcionários do Banco Central – com sua notória vinculação a determinados interesses e setores do sistema financeiro – praticamente conduziram sozinhos tais reformas, mas também que não houve, ao longo de todo o processo, uma revisão completa na Lei n. 4.131, ainda de 1961, que regulamenta os capitais estrangeiros no país. Portanto, o Poder Legislativo ficou, na prática, alijado das decisões e discussões. E mais ainda: ficou a sociedade como um todo. Reforça esse ponto o fato de, mesmo na comunidade acadêmica brasileira, o debate mais rigoroso sobre a abertura financeira ter sido muito escasso, pelo menos durante o período em que as medidas mais importantes foram tomadas (até meados da década de 1990). Como discutido em Biancareli (2003), as posturas que definem uma “visão liberal” e uma “visão crítica” sobre o tema vão mudando ao longo do período. A visão “liberal” – que orienta as medidas práticas adotadas – no início dos anos 1990 ressaltava as possibilidades de uma nova era nas relações financeiras internacionais, que diminuía a importância do tema da dívida externa, prometia dinamizar os mercados de crédito e de capitais, e colocava em um horizonte próximo a possibilidade de se implementar um programa de estabilização sustentado por essa entrada de divisas. A diretriz era a da abertura pragmática, para 27 “Governo prepara...” (2009).

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aproveitar as oportunidades existentes.28 Quando, nos anos seguintes, a estratégia macroeconômica do Plano Real explicitou todas as dificuldades relacionadas aos movimentos de capital, a argumentação nesse campo deslocou-se do campo das promessas e esperanças, e o avanço nas reformas liberalizantes passa a ser visto como a melhor forma de se proteger contra as crises e de garantir o financiamento externo contínuo e progressivamente melhor. Além de serem rejeitados – por ineficácia – instrumentos de controle que pudessem moderar o influxo nos momentos de abundância. Depois de alterado o funcionamento da política econômica, mas mantidas algumas das principais dificuldades no segundo mandato de FHC, recorre-se ao argumento da incompletude das reformas. Em busca de uma maior integração comercial e financeira com a economia mundial, indispensável para a superação dos problemas conjunturais e históricos, localiza-se no formato institucional do mercado de câmbio o passo adicional e definitivo: dar plena conversibilidade à moeda nacional.29 Durante o governo Lula, enquanto a situação de financiamento externo melhorava dramaticamente e as medidas de prosseguimento da abertura eram postas em prática, tais analistas ora reforçavam a argumentação em relação ao “risco jurisdicional”, ora criticavam, também com base nos argumentos da ineficácia e ineficiência, as tentativas de controles de capital.30 Toda a evolução do debate internacional sobre o tema, mesmo dentro do mainstream, parecia ser desconsiderada pelos liberais brasileiros. Já a “visão crítica”, inicialmente preocupada com uma solução definitiva para a renegociação da dívida, encara com subestimação e desconfiança as possibilidades e promessas do novo financiamento externo no início dos anos 1990. Em meio ao ceticismo e às preocupações com os efeitos macroeconômicos de uma entrada excessiva de divisas – mesmo sendo esta uma situação que favorecia o controle da inflação –, o rumo passa a ser criticado. Em seguida, a fase da âncora cambial e da sucessão de crises foi marcada fundamentalmente pelo aprimoramento dos diagnósticos, em relação às novas características da economia internacional, aos primeiros sinais do fracasso das promessas da liberalização, e à ampliação da vulnerabilidade externa que ela ensejava. Depois do abandono da âncora cambial, quando mudam os contornos da operação da política econômica, mas não os seus resultados, as críticas à abertura e à depen28 As palavras de um dos principais expoentes desta visão são bastante claras: “As a result of these developments, the key external financing issues for an important group of Latin American countries now concern the management of the new spontaneous capital flows, rather than dealing with the existing debt. (…)…a country has to start somewhere in his entry process, and the short-term end of the market may be the only part available to it.” Bacha (1993, p. 1-9) 29 Arida (2003a e b) era o principal defensor dessa tese naquele momento. 30 Arida, Bacha & Lara Resende (2004) definem o “risco jurisdicional”, em parte representado pela fragilidade legal da abertura financeira, que resultava em facilidade para a imposição de controles “por um simples ato de vontade”. Tal argumento também surge como crítica à imposição recente do IOF pelo governo brasileiro (por exemplo, Garcia 2009a e b).

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dência excessiva da poupança externa mudam de patamar. Um caminho alternativo esboçado elege os controles de capital (agora melhor definidos) como instrumento primordial para recuar na liberalização financeira e abrir espaço para outra política econômica.31 Tal postura e proposições, mesmo que sem muitos efeitos em termos de medidas efetivas, prosseguem ao longo do governo Lula e têm influência crescente no debate público.32 V. Os resultados da abertura financeira no Brasil A avaliação dos resultados do processo de abertura financeira no Brasil não é tarefa simples, e nem pode ser feita em termos abstratos ou a partir de exercícios contrafactuais. Não faz sentido imaginar que as possibilidades de transações financeiras entre o país e o exterior ficassem estacionadas no estágio em que estavam no final dos anos 1980 – ou seja, que nenhuma das etapas descritas na seção anterior tivesse ocorrido. O contexto doméstico e internacional em muito se transformaram nestas últimas duas décadas, exigindo certamente algum tipo de adaptação na legislação. Portanto, uma apreciação crítica do processo não significa uma oposição a qualquer mudança, nem deixar de considerar alguns efeitos positivos do novo ambiente – a começar do Plano Real, cujo êxito esteve inegavelmente apoiado na abundância de financiamento externo observada em meados dos anos 1990, indissociável do processo de abertura. Pode-se, no entanto, observar a realidade em outros países ou regiões, que diante do mesmo contexto adotaram posturas diferentes, com outros resultados. Este é um plano possível de análise dos resultados do processo no Brasil. Há uma série de autores, em um espectro razoavelmente amplo, que identificam nas experiências asiática e latino-americana dois padrões muito distintos de inserção internacional no período da globalização. Nestas análises, quase sempre a postura adotada em relação à globalização financeira ocupa lugar de destaque. O paralelo feito, cada um à sua maneira, por Palma (2004); Medeiros (1997) e UNCTAD (2003) entre outros, coloca na postura muito mais precavida da Ásia nas questões financeiras externas parte da explicação de seu sucesso, em contraste com a América Latina. No que mais interessa aqui, a postura em geral foi de uma abertura financeira muito mais gradual, sujeita a pré-condições e direcionamentos, mantendo um aparato significativo de controles de capital e defesa das taxas de câmbio competitivas (parte fundamental do modelo asiático exitoso). Esta distinção provavelmente é mais correta para os asiáticos de uma maneira geral até meados dos anos 1990, mas segue sendo válida principalmente para China e 31 Alguns exemplos da argumentação crítica ao longo dessas fases são Coutinho & Belluzzo (1996), Batista Jr. (1996), Bresser-Pereira & Nakano (2003) e Carneiro (2003). Sobre os controles de capital, ver entre outros Carvalho e Sicsú (2004). 32 Como referências, entre outros, Carneiro (org., 2006), Sicsú & Ferrari Filho (orgs., 2005) e Bresser-Pereira (2007).

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Índia, as economias financeiramente menos abertas daquela região (e também as de taxas de crescimento mais altas). Para os outros “tigres” ou “gansos voadores”, a aceleração da abertura financeira no meio daquela década esteve bastante relacionada com as crises que atingiram a região em 1997/98 – como mostram, em detalhes, Jomo (2001) e Medeiros (1998). Seja como for, continuou a predominar na Ásia (ou na parte mais dinâmica dela) o que Carneiro (2007) denominou um padrão “produtivista” de inserção, em contraste com o latino-americano, “financeirizado”. No debate internacional, a tipologia trade account versus capital account proposta por Dooley et al. (2003) capta ideias semelhantes: no primeiro caso, típico dos países asiáticos, predominaria a defesa das taxas de câmbio competitivas, controles de capital, superávits em conta corrente, acumulação de reservas internacionais e a estratégia export-led growth; já no segundo, que também descreveria a periferia latino-americana, a estratégia se basearia na adoção das mesmas políticas para o câmbio (flutuação acentuada) e a conta financeira (abertura total) que as adotadas nos países centrais, com resultados muito inferiores em termos de vulnerabilidade externa. O Brasil apresentou, pelo menos até muito recentemente, um padrão de inserção tipicamente latino-americano, “capital account” ou “financeirizado”. Os dados apresentados nos Gráficos 3 e 4, calculados a partir de dados de estoques de ativos e passivos externos, e detalhados em Biancareli (2008c), explicitam essa condição da economia brasileira. Uma das formas comuns de se medir o grau de integração financeira de um país com o resto do mundo é dividir a soma de seus ativos e passivos externos pelo seu PIB. Tal cálculo, para um conjunto representativo de países asiáticos e latinoamericanos e tomando as médias entre 1990 e 2004, resulta na posição vertical em que aparecem no Gráfico 3: as maiores economias da amostra (Coreia, China, Índia, México, Brasil), por conta do denominador elevado, aparecem como pouco integradas por esse conceito. Quando a conta é feita apenas em relação à parte comercializável do PIB (a soma de exportações e importações de bens e serviços não-fatores, ou a corrente de comércio), o resultado indica de maneira mais precisa a “via preferencial” de integração na globalização, e está representado no eixo horizontal do Gráfico 3. Observa-se que praticamente todos os latino-americanos estão na parte direita da figura, simbolizando que a integração financeira, nestes países, predomina sobre a produtiva/comercial. O Brasil se localiza no segundo quadrante da figura: pouco integrado em relação ao PIB, mas muito em relação à sua corrente de comércio.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 3: Integração financeira/PIB versus integração financeira/corrente de comércio, médias 1990-2004 (esq.); e médias 1990-97 e 1998-2004 (dir.)

Fonte: Lane & Milesi-Ferreti (2006); Banco Mundial, World Development Indicators. Elaboração própria.

Se as características das finanças globalizadas são aquelas que vêm sendo discutidas nas seções anteriores, basear a inserção externa nas relações financeiras, sem um anteparo comercial correspondente, expõe as economias às características negativas dos fluxos de capital da época da globalização, como será visto para o Brasil na sequência.33 Outra ordem de impactos da abertura financeira no Brasil se refere às oscilações conjunturais na disponibilidade de financiamento internacional e seus impactos internos. Ou, de maneira mais precisa, um dos resultados mais claros do processo aqui descrito é a vinculação das contas externas – e também de parte considerável das finanças domésticas – aos ciclos de liquidez típicos da época da globalização. Ciclos que, como discutido ao final da seção II, são comandados essencialmente por fatores exógenos ao país. A primeira maneira de observar essa vinculação é por meio das duas principais contas do Balanço de Pagamentos. No Gráfico 4, tanto as Transações Correntes – que medem a necessidade de financiamento externo do país – quanto a Conta Financeira – o quanto efetivamente o país foi capaz de atrair em fluxos de capital – exprimem as diferentes fases, diretamente relacionadas com os ciclos internacionais de liquidez. Particularmente, a linha que expressa a Conta Financeira sem os valores relativos ao Investimento Direto Estrangeiro 33 Em Biancareli (2008c) outros indicadores mais detalhados – de solvência e liquidez – são calculados e chegam a um resultado geral igualmente negativo: uma piora, até 2004, da qualidade da inserção externa dos latino-americanos em geral e do Brasil em particular, acompanhando seu padrão “financeirizado”. Mas ressalte-se que esses números são prévios ao movimento de forte acúmulo de reservas pelo país.

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e as “operações de regularização” (com o FMI e outros organismos oficiais) é bastante clara ao definir três fases desde 1990.34 Uma primeira, do início da década até 1996/97 – correspondendo à “fase de cheia” do primeiro ciclo mostrado no Gráfico 1 – mostra a volta dos fluxos de capital para o país, e é seguida por uma retração acentuada nos anos seguintes – a “fase de seca” entre 1997/98 e 20002/03. Depois disso, à semelhança do observado para o conjunto das economias em desenvolvimento, o segundo ciclo de liquidez é marcado por uma ascensão sem paralelo dos volumes de capital ingressantes, até o auge em 2007, que é seguido por forte retração em 2008 em meio às consequências da crise financeira internacional. Gráfico 4: Balanço de Pagamentos (Brasil), contas selecionadas, em US$ milhões, 1990-2008

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria. * Conta financeira exclusive IDE e operações de regularização.

Ou seja, as contas externas brasileiras ficam cada vez mais, dado o processo de abertura financeira, vinculadas à flutuação dos humores dos investidores internacionais – que, apesar das importantes mudanças de percepção em relação ao Brasil nos últimos anos, continuam vendo o país como um destino ainda marginal em suas carteiras de aplicação, e o Real como uma “moeda provisória”, sujeita a liquidações em períodos de aversão ao risco. Nesse sentido, vale a comparação do Gráfico 4 não apenas com o Gráfico 1 mas também com o 2 (relativo justamente à percepção de risco predominante no centro financeiro global). 34 A razão para excluir dessa medida tanto o IDE como as operações de regularização é que ambos os tipos de fluxos obedecem a condicionantes bastante distintos do que se define aqui como o comportamento típico dos fluxos de capital na era da globalização. Não se trata de dizer que o IDE é menos importante que o investimento de carteira ou os outros, mas sim que seu comportamento é mais estável ao longo do tempo, e que portanto quem comanda o ciclo são os outros tipos de fluxos.

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Os impactos domésticos desta presença oscilante dos fluxos livres de capital internacionais são, pelo menos, de duas ordens: sobre variáveis macroeconômicas chave para as possibilidades de crescimento sustentável, e sobre as condições de operação do sistema financeiro doméstico (particularmente o mercado de capitais). Do ponto de vista macroeconômico, a alteração no regime monetário-cambial no início de 1999 (ela própria um resultado de um período de forte fuga de capitais) é o divisor de águas de dois sub-períodos a serem observados. Até então, por conta da manutenção do regime de câmbio administrado em um ambiente de elevada mobilidade do capital, a taxa básica de juros da economia tinha, desde o início do Plano Real em 1994, que cumprir as funções de ajuste externo (em adição à diretriz de rígido controle da demanda agregada nos primeiros momentos após o lançamento da nova moeda). Ou seja, era tarefa da política monetária garantir a atração dos capitais necessários para fechar os déficits crescentes em Transações Correntes (ver a trajetória no Gráfico 4, acima). Visto de outro ângulo, em certas circunstâncias o objetivo era mais evitar a fuga de capitais do que atrair novos, dado o elevado estoque já internalizado. Dessa forma, a maior ou menor disponibilidade internacional de capitais, ou a disposição de permanecer no país, era quem determinava o movimento da taxa doméstica de juros. Como resultado – expresso no Gráfico 5 – um patamar em média bastante elevado e alguns saltos (particularmente nos meses finais de 1997 e novamente no fim de 1998) decorrentes de fugas de capital. Note-se na figura que o movimento anterior, até meados de 1997, era de queda dos juros, permitida pela fase de cheia do ciclo internacional de liquidez. Gráfico 5: Taxa de juros nominal - Over / Selic - (% a.a.), agosto/1994-novembro/2009

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

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Após a mudança do regime em janeiro de 1999, teoricamente a taxa doméstica de juros estaria “libertada” do compromisso com o ajuste externo, que passaria a ser responsabilidade da taxa de câmbio, agora flutuante – esse é o resultado do raciocínio teórico resumido na chamada “trindade impossível” já comentada inicialmente. No Brasil, de fato houve a possibilidade de uma forte redução dos juros, mas que não significou a sua manutenção em patamares estáveis nem mesmo razoáveis para o crescimento econômico. Na realidade, o que ocorreu foi que o impacto das entradas e saídas de fluxos financeiros passou a se manifestar inteiramente na taxa de câmbio (cuja trajetória, em termos nominais e efetivos reais, é mostrada no Gráfico 6). O período do regime flutuante foi de fortíssimas oscilações nesse preço chave, com resultante sempre ascendente, até os patamares recordes atingidos no segundo semestre de 2002 – uma crise cambial também compatível com o momento mais crítico da “fase de seca” do primeiro ciclo de liquidez. Neste período, ao contrário do que sustentava a teoria, pelo menos no caso brasileiro a taxa de juros não pôde se ocupar apenas de objetivos domésticos, e foi usada sim para tentar amenizar as flutuações cambiais, inclusive por conta dos impactos destas na taxa de inflação.35 Gráfico 6: Taxa de câmbio, nominal e efetiva real, janeiro/1990-outubro/2009

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

35 Sobre a não verificação das conclusões da “trindade impossível” no caso brasileiro após a flutuação cambial, ver Carneiro (2003) e Sicsú (2002).

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Daquele momento crítico em diante, até que os impactos da crise financeira internacional viessem a encerrar a fase de cheia do segundo ciclo e se manifestar com toda a força sobre o câmbio brasileiro no segundo semestre de 2008, a tendência foi de forte apreciação da moeda nacional. Se, por um lado, isso significou uma ferramenta importante (quiçá a principal) no combate à inflação, por outro representou uma perda progressiva de competitividade das exportações brasileiras, o que ameaça as condições de inserção externa e a estrutura produtiva local (sem contar os impactos sobre emprego industrial, renda etc.). Na realidade, a apreciação cambial já vinha causando estragos nas contas externas brasileiras, que voltam a apresentar déficit em Transações Correntes em 2008 (Gráfico 4). Passado o momento mais crítico da crise, em resposta a um diferencial de juros ainda grande e às perspectivas extremamente favoráveis que se abriram no país, os fluxos financeiros mais voláteis voltam a ser atraídos com muita força para o Brasil a partir de meados de 2009. Nesse contexto, em que a própria aversão ao risco se reduz bastante (ver Gráfico 2), é retomada a trajetória de forte apreciação cambial (em outubro, o patamar pré-crise volta a ser atingido), levando o governo a voltar a aplicar controles seletivos de entrada por meio do IOF. A conclusão é óbvia e conhecida: os patamares e o movimento de duas das variáveis-chave que definem o ambiente macroeconômico acabam, em combinações distintas ao longo desse período, em muito influenciadas pelos movimentos oscilantes dos fluxos de capital típicos da época da globalização, que no Brasil encontram poucos empecilhos para entradas e saídas. Mas os efeitos não se dão apenas sobre câmbio e juros, e destes sobre as decisões cruciais da economia, a começar pelo investimento produtivo. As volumosas e desimpedidas entradas e saídas de investidores e recursos no sistema financeiro local fazem com que as relações financeiras domésticas também fiquem em grande parte vinculadas ao movimento cíclico internacional.36 Em relação a um dos segmentos desse sistema – o mercado de crédito – essa influência tem sido, nos últimos tempos, indireta. Conforme discutido no Capítulo 4, o ciclo recente de crédito bancário no Brasil (desde 2003), para pessoas físicas e jurídicas, esteve profundamente influenciado pelas variáveis macroeconômicas – câmbio e juros – acima descritas como fortemente dependentes do momento do ciclo de liquidez internacional. Dito de outro modo, não há como desvincular a dimensão externa e seus reflexos sobre câmbio e juros (em um país emissor de moeda inconversível, da quantidade e das condições do crédito). E esta relação se mostra até mais importante do que o recurso à captação externa como fonte de funding para as operações domésticas, como era a regra em outros momentos da história das relações financeiras no país (e inclusive se repetiu no primeiro ciclo de liquidez, até 1998). A reversão abrupta do cenário financeiro internacional e a elevação inusitada da aversão internacional ao risco nos últimos meses de 2008 vieram a comprovar 36 Esta é uma das ideias centrais desenvolvidas em Biancareli (2007), trabalho no qual este capítulo está largamente baseado.

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essas ligações com o mercado doméstico de crédito. A virtual paralisação do mercado local de crédito nas semanas seguintes ao auge da crise em setembro se deu muito mais por conta das incertezas trazidas pela disparada da taxa de câmbio – e suas repercussões sobre a situação de bancos e empresas envolvidas com instrumentos derivativos – do que por paralisações nas condições de captação externa. Mas, como também será discutido no próximo Capítulo, a evolução nos meses seguintes acrescentou novos elementos a essa ligação entre finanças domésticas e situação externa, confirmando o raciocínio aqui. Por um lado, com a volta da apreciação cambial e com a forte queda dos juros na sequência da crise, o crédito voltou a ganhar fôlego. Por outro, mais alvissareiro, a forte reação dos bancos públicos – que ampliaram as concessões de financiamento e ganharam espaço em meio ao momento de maior incerteza – sinaliza uma atuação desses agentes menos vinculada às oscilações cíclicas, pelo menos no período mais recente. Assim, se no caso do mercado de crédito predomina essa influência indireta, em relação ao mercado de capitais a ligação entre abertura financeira, ciclos de liquidez e dinamismo das finanças domésticas é indisputável e muito explícita. No Gráfico 7, observa-se como evolui a presença e a atividade dos aplicadores estrangeiros na principal Bolsa de Valores brasileira. Em primeiro lugar, a figura sugere um caráter especulativo crescente destes fluxos para o país, já que os volumes brutos aumentam muito mais do que os líquidos, e indicam intensa e rápida mudança de posições em busca de ganhos de curto prazo. Mas, mais do que isso, o que chama a atenção é o ciclo, coerente com o descrito anteriormente para a liquidez em geral para países em desenvolvimento (ainda que a escala necessária para representar os volumes mais recentes prejudique a visualização dos dados da década anterior). Gráfico 7: Investidores estrangeiros em bolsa, em US$ milhões, janeiro/1995-outubro/2009

Fonte: Bovespa/CVM. Elaboração própria.

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O ponto a destacar é que essa presença oscilante dos estrangeiros é que dá o dinamismo do ainda limitado mercado local de capitais – e contribui decisivamente para alguns dos traços que o tornam pouco funcional ao financiamento do desenvolvimento: instabilidade, especulação acentuada, concentração das operações em poucas empresas. Instabilidade pautada pelos ciclos de liquidez e seus determinantes já discutidos. Especulação facilmente compreendida dada a natureza intrínseca desses fluxos, de acordo com a visão crítica aqui adotada. E, por fim, o fato de os investidores estrangeiros privilegiarem aplicações em ações das maiores e mais conhecidas companhias, o que perpetua a dificuldade de acesso de pequenas e médias empresas a essa fonte de financiamento (apesar de todos os avanços institucionais implementados nos últimos anos). Obviamente, uma dimensão não está desvinculada da outra: a concentração em poucas ações acentua o caráter especulativo, dada a baixa profundidade do mercado secundário para a maioria dos papéis. A participação relativa dos investidores estrangeiros em termos numéricos, que oscila sempre em torno de 35% do mercado secundário e 70% do mercado primário (ver Capítulo 3), é até menos significativa do que essa influência prática, do ciclo internacional para os mercados locais. São eles os condutores dos processos que, há muito tempo, uma parte dos economistas enxerga como riscos e problemas dos mercados de capital: bolhas especulativas, exuberâncias irracionais, espírito de manada tanto na alta quanto na baixa. Como discutido no capítulo 3, se no primeiro ciclo – até meados de 1997 – já houve certa euforia com os negócios da Bovespa, a partir de 2004 vive-se uma febre não apenas de valorização das ações já listadas, mas também de aberturas de capital e captações subsequentes de recursos nesse e em outros segmentos do mercado de capitais. Dois movimentos que, guardadas as devidas proporções, disseminaram a esperança em vários analistas de que esse segmento do sistema financeiro poderia – e deveria – assumir papéis crescentes no financiamento do desenvolvimento do país. Os dados – tanto em relação aos investidores externos quanto da Bovespa em si – do período entre 1998 e 2003 e a brutal queda sofrida a partir de meados de 2008 recomendam manter certo ceticismo. Mesmo tendo sido retomada a tendência altista ao longo de 2009, ela continua se devendo a um interesse, renovado e agora aparentemente mais forte, dos estrangeiros pelo mercado local. A dúvida que persiste é se a manutenção desses vínculos tão estreitos e desimpedidos com os fluxos de capital externo representa o melhor (ou o único) caminho para o financiamento do desenvolvimento. Considerações finais: a abertura financeira e as perspectivas futuras da economia brasileira Este capítulo partiu de uma medida recente de política econômica – a cobrança de 2% de IOF sobre aplicações estrangeiras em renda fixa e variável 84


A abertura financeira no Brasil: um balanço crítico

– e procurou discutir o contexto mais amplo em que ela (e as reações a ela) se situam. Tal cobrança configura uma ação tímida e típica de controle de entrada de capitais, “amigável ao mercado” e até previsível diante de uma forte e surpreendente entrada de fluxos de curto prazo, que exerce forte pressão para a apreciação da taxa de câmbio. Isso muito pouco tempo depois da grave crise financeira internacional, em cujo ápice no ano anterior o país havia voltado a assistir (em alguns momentos) à fuga de capitais tão característica de outros tempos. A recuperação que aqui se fez do processo de abertura financeira no Brasil e de seus contornos permite enquadrar melhor essa iniciativa e refletir sobre a necessidade de passos adicionais na mesma direção. Argumentou-se que a alta mobilidade internacional do capital é característica definidora de uma época histórica em que processos políticos, em escala nacional e internacional, configuraram um quadro de supremacia dos interesses do mercado financeiro sobre outras forças da sociedade. Que, do ponto de vista teórico, não apenas os argumentos convencionais a favor da abertura encontram enorme dificuldade de comprovação empírica, mas também que há um forte movimento dentro do mainstream para rever as posturas favoráveis a ela. Que, a partir de uma visão crítica da globalização financeira, chega-se a um entendimento negativo sobre os fluxos internacionais de capital privado contemporâneos, marcados pelo caráter especulativo e pelas oscilações cíclicas na disponibilidade para países em desenvolvimento. Indo adiante, recuperou-se o processo de mudanças na legislação brasileira que materializaram essa face da abertura. No que se refere ao primeiro nível de abertura, referente à entrada de recursos e investidores externos, os governos Collor e FHC – sempre por meio de decisões restritas a uma parte da burocracia estatal e sem discussão com a sociedade – deram os passos decisivos e estruturais, mantendo o espaço para iniciativas tributárias de administração de entradas de acordo com a conjuntura. Já no segundo nível foi o governo Lula quem deu prosseguimento ao processo de liberalização, sempre no sentido de ampliar as possibilidades de saídas de recursos do país e mantendo o debate e o processo decisório sobre esses temas restritos quase que apenas a alguns altos funcionários do Banco Central. A justificativa – que também aparece em supostas medidas adicionais em estudo no momento em que se conclui este trabalho – é a de que a melhor forma de enfrentar um excesso de entrada de recursos é facilitar a sua saída. Mesmo que pareça fazer pouco sentido e que essa confusão entre uma situação conjuntural e medidas estruturais já tenha sido feita no passado. Quando foram analisados os resultados do processo de abertura financeira do modo como se deu no Brasil, elencaram-se alguns indícios negativos. Em primeiro lugar, um perfil inferior de inserção internacional, muito mais baseado nas finanças do que no comércio e que significou, na maior parte do período aqui analisado, uma ampliação da vulnerabilidade externa. As mudanças observadas desde então – que envolveram uma compra mais agressiva de reservas internacionais – certamente me85


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lhoraram esses resultados, mas não alteraram o quadro de liberdade para os fluxos de capital que a ele parece vinculado. Pelo contrário, todas as medidas estruturais mais recentes foram no sentido de aprofundar a abertura. Em segundo lugar, ressaltou-se o que parece ser a consequência mais visível da abertura financeira: o reforço dos vínculos da economia brasileira com os ciclos internacionais de liquidez. Vínculos que se materializam, mais diretamente, na rápida e intensa oscilação das contas externas e no comportamento errático – e raramente condizente com as necessidades da economia real do país – das variáveis macroeconômicas chave, câmbio e juros à frente. Mais do que isso, foram adiantados alguns dos temas a serem detalhados nos capítulos seguintes, e que envolvem a influência do alto grau de abertura financeira (e, portanto, das oscilações no ambiente financeiro internacional) sobre as finanças domésticas, tanto no mercado de crédito quanto (principalmente) no de capitais. Influência por vezes geradora de fortes ondas otimistas, mas igualmente pouco satisfatória se o ponto de vista privilegiado é o da garantia de um financiamento barato, amplo e sustentado do desenvolvimento do país. Todos esses elementos deveriam fazer parte de uma avaliação dos passos futuros a serem dados em relação a esta matéria no Brasil. Uma reversão total da abertura não está em pauta. Mas parece necessário – e desejável – abrir espaço nas medidas e discussões da política econômica para algum tipo mais efetivo de controle da ampla liberdade de movimentação dos capitais atualmente existentes. Como justificativas, a busca de um maior grau de liberdade no manejo das variáveis macroeconômicas fundamentais para o crescimento sustentado; um funcionamento mais estável do sistema financeiro, condizente com as necessidades estruturais de financiamento do país; a busca por um perfil mais soberano e seguro de inserção internacional. Mas é evidente que não se pode encarar a situação com os olhos de um passado difícil, em que tais providências pareciam mais urgentes, dado o estrangulamento externo. A situação atual e as perspectivas futuras do país de fato sofreram, nos últimos anos, uma reversão muito significativa. A forte acumulação de reservas internacionais, a melhora generalizada nas contas externas (ainda que ameaçadas pela persistente apreciação cambial), o protagonismo dos bancos públicos e a forte expansão do crédito bancário vão acrescentando novos contornos para a discussão. Particularmente, a exploração das reservas de petróleo na camada pré-sal traz perspectivas de altos e persistentes superávits estruturais na balança comercial e mesmo nas transações correntes. Vislumbra-se assim, para um futuro de médio prazo, a superação em bases mais permanentes da vulnerabilidade externa que sempre marcou a história econômica brasileira. Antes que isso se torne uma realidade, no entanto, um fluxo cada vez maior de capitais estrangeiros se dirige ao país, seja para investimentos produtivos, seja para aplicações especulativas para as quais este país tem sido, nos últimos anos, um destino totalmente aberto e rentável. Justamente nesse momento, parece fundamental rediscutir a abertura financeira. Pensar em controles de capital deve levar em conta esse novo quadro projetado, 86


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mas não no sentido de sua inutilidade diante das boas perspectivas, ou de sua ineficácia – que, diga-se de passagem, também carece de melhor comprovação na literatura empírica – diante da complexidade dos mercados financeiros. Alíquotas e abrangência mais elevadas dos controles de entrada; quarentenas e outros mecanismos para influenciar a qualidade e a permanência dos capitais entrantes; a complexa administração da atuação dos investidores estrangeiros nos mercados de derivativos (que tanta influência têm causado sobre o câmbio e os juros). O rol de questões e dificuldades operacionais é grande.37 Mas certamente a questão não é técnica, e esta sempre esteve condicionada a uma determinação de outra natureza. A postura diante dessa delicada questão deveria deixar de ser a do temor reverencial de uma economia vulnerável e extremamente dependente de qualquer fluxo de capital, e passar a ser a de uma nação ainda periférica e consciente das assimetrias do sistema monetário e financeiro internacional, mas muito mais forte e em condições de selecionar melhor o tipo e a quantidade de financiamento externo que deseja. Os riscos não são inéditos na história do país. Se parece mais possível do que nunca superar algumas das debilidades estruturais que nos colocam na posição inferior aqui apresentada, a administração deste momento parece também ser crítica. Em outras palavras, uma certa redução no sentido de urgência das questões relativas ao financiamento externo não deveria dar lugar a uma acomodação. Diante das pressões e estragos que os fluxos de prazo mais curto podem representar para as variáveis macroeconômicas mais relevantes (principalmente o câmbio) e para o próprio funcionamento do sistema financeiro doméstico, a hora parece propícia para selecionar o tipo de financiamento externo mais desejável. Os últimos movimentos da política econômica e algumas declarações de seus condutores fornecem alguns sinais de mudanças na direção aqui julgada desejável, ainda que as medidas práticas tenham sido, até agora, bastante tímidas. Ao mesmo tempo, parecem contraditórios com outras intenções e projetos oficiais, e esbarram em um poder muito bem estabelecido pelos interesses mais beneficiados pelo processo de abertura financeira tal como foi posto em prática no Brasil. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de uma discussão decisiva para a definição do que vai ser feito desse momento favorável que a economia brasileira atravessa. Bibliografia AKIUZ, Y. (1993). On Financial Openness in Developing Countries. Genebra: UNCTAD (mimeo). AKIUZ, Y. (2010). Exchange Rate Management, Growth, and Stability: National and Regional Policy Options in Asia. Colombo: Ásia Pacific Trade and Investment Initiative, UNDP Regional Centre for Ásia Pacific (mimeo). ARIDA, P. (2003a). Por uma moeda plenamente conversível. Revista de Economia 37 Para sugestões e discussões recentes sobre técnicas de controles de capital, particularmente regras para atuação de estrangeiros em mercados de derivativos, ver Akyüz (2009) e Villar (2010).

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades Giuliano Contento de Oliveira1

1. Introdução A estruturação de um sistema financeiro capaz de amparar as decisões empresariais a partir do provimento de recursos com prazos e custos compatíveis com as taxas esperadas de retorno dos projetos empresariais permanece constituindo um dos grandes entraves para o desenvolvimento sustentado da economia brasileira. O fato de a estabilidade de preços ter coexistido com certo grau de estabilidade macroeconômica apenas no período mais recente, sendo a prática de juros reais elevados e o desalinhamento da taxa de câmbio uma constante na história econômica brasileira durante boa parte depois do Plano Real, constituiu barreira importante para a constituição de um sistema de financiamento de longo prazo amplo e profundo no Brasil. Apenas a partir de meados de 2004, o mercado de capitais brasileiro passou a apresentar um crescimento mais significativo. Esse fenômeno resultou da melhoria do ambiente de negócios ocorrida no período mais recente, na esteira de avanços macroeconômicos importantes que, juntamente com um ambiente externo singular, têm permitido a prática de taxas básicas de juros reais menores do que as praticadas num passado não muito longínquo. Contudo, a análise dos mercados de ações e de títulos de dívida privada no Brasil realizada nesse artigo revela uma série de singularidades, particularmente no que diz respeito à sua funcionalidade ao financiamento do desenvolvimento, o que impõe desafios não desprezíveis para que esses mercados possam constituir uma alternativa de financiamento viável e sustentável ao longo do tempo. Sinaliza, pois, que a redução da dívida pública e os avanços no ambiente institucional, embora importantes, não são suficientes para garantir o crescimento sustentado do mercado de capitais no Brasil, tampouco para atribuir uma destinação dos recursos mais funcional ao desenvolvimento. 1 Professor do Instituto de Economia da Unicamp. Contato: giulianoliveira@gmail.com. Agradeço as sugestões de Ricardo Carneiro, isentando-o, evidentemente, de eventuais erros e omissões, de minha inteira responsabilidade.

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Nessa perspectiva, esse artigo tem o objetivo de analisar a evolução recente e algumas das singularidades do mercado de capitais no Brasil. Inicialmente, discute-se a questão do financiamento do desenvolvimento à luz do circuito finance-investimento-poupança-funding. Ao invés de uma exegese, a análise desse circuito busca elucidar a possível funcionalidade do mercado de capitais para o desenvolvimento econômico. A seguir, são realizadas algumas observações sobre a estrutura de capital e o padrão de financiamento das empresas no Brasil, de modo a captar as diferentes fontes de recursos utilizadas e as possíveis restrições para o desenvolvimento/crescimento das empresas. Feito isso, analisa-se o mercado de capitais brasileiro no período recente. Finalmente, à guisa de conclusão, são realizadas algumas considerações finais. 2. Financiamento do desenvolvimento A discussão sobre o financiamento do desenvolvimento ganhou novas perspectivas a partir das contribuições de Keynes (1936; 1937a; 1937b), alterando de forma radical o entendimento do papel dos bancos e do mercado de capitais nas economias capitalistas. O entendimento da taxa de juros enquanto fenômeno monetário2, determinada pela relação entre oferta e demanda por moeda, ao invés de um fenômeno real decorrente da igualdade entre poupança e investimento, ensejou reflexões sobre a possibilidade de a demanda por recursos pelos homens de negócios para a realização de investimentos – motivo finance de demanda por moeda – ser acomodada pelos bancos a partir de um fundo rotativo formado pelo fluxo de rendadepósitos que decorre dos investimentos já realizados. Supondo o crescimento da economia determinado pelo investimento, ou seja, It = (1 + α ).It-1, sendo It o investimento no período t; α o crescimento da renda; e It-1 o investimento realizado no período anterior; tem-se que o fundo rotativo dos bancos decorre do fluxo de rendas proveniente de It-1. Mas se It > It-1, ou seja, quando considerado um estado não-estacionário do sistema, esse fundo rotativo pode se mostrar insuficiente para viabilizar o provimento de recursos para a viabilização do investimento no período corrente (Studart, 1992; 1999; 2 O entendimento da taxa de juros enquanto fenômeno monetário constituiu um dos principais pilares da obra maior de Keynes (1936), lançando as bases para a explicação de crises provocadas por insuficiência de demanda efetiva e, assim, para a recomendação de políticas econômicas fora dos marcos da teoria clássica liberal. Sendo a taxa de juros determinada pela oferta e demanda por moeda, a teoria dos orçamentos equilibrados deixa de fazer qualquer sentido para a superação de crises ocasionadas por insuficiência de demanda efetiva, pois o aumento da poupança ensejada por políticas fiscais contracionistas, num contexto de alto grau de preferência pela liquidez, não implica a redução da taxa de juros e, por extensão, o aumento do investimento. Tende, ao invés disso, a aprofundar a crise, pois a elevação da poupança intensifica a insuficiência de demanda efetiva e, assim, a redução do investimento. Portanto, apoiando-se na Lei de Say, que sugere que o ato de produzir gera a demanda correspondente, bem como no pressuposto dos fundos emprestáveis, do qual decorre o entendimento da taxa de juros enquanto fenômeno real, a teoria clássica liberal não permitia o entendimento da crise dos anos 1930 em sua essência, tampouco uma orientação de política econômica suficiente para a sua superação.

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

Oreiro, 1999). Por isso, Keynes (1937b, p.340) destacou que os bancos ocupam uma “[...] posição-chave na transição de uma escala inferior de atividade para uma mais elevada”. Isso porque essas instituições são capazes de emitir obrigações, que servem como meio de pagamento, contra si mesmas, bem como utilizar o fluxo de recursos decorrente de investimentos já realizados para efeito de concessão de novos empréstimos, o que permite viabilizar o aumento do investimento em relação ao investimento pregresso sem alterações na taxa de juros. Dessa forma, seja mediante a utilização dos recursos desse fundo rotativo, seja a partir da emissão de obrigações contra si próprios (criação de moeda), os bancos permitem a realização do investimento sem a existência de poupança prévia, viabilizando a acomodação da demanda suplementar por moeda requerida pelos homens de negócios para a viabilização de seus projetos de investimentos sem mudanças na taxa de juros. Essa última, pois, decorre da liquidez do sistema, da oferta e da demanda por moeda, e não apenas da liquidez dos bancos – no âmbito estrito do mercado de empréstimos. Um sistema que independe de recursos previamente acumulados para a viabilização do investimento propicia um maior aproveitamento das potencialidades empresariais, embora permita a assunção de maiores riscos pelos atores econômicos. Uma economia dependente da poupança prévia constitui um sistema que, necessariamente, opera aquém de suas potencialidades, reprimindo as decisões empresariais e, por conseguinte, criando obstáculos ao crescimento da renda e do emprego. Nesse sentido, afirma Keynes (1937b, p.340): “[...] O mercado de investimentos pode tornar-se congestionado por causa de falta de dinheiro, mas nunca se congestionará por falta de poupança [...]” Os gastos dos empresários sob a forma de investimento constitui a variávelchave de uma economia empresarial, pois determinam a renda dos demais departamentos da economia. O lucro macroeconômico, conforme demonstrado pelo modelo simplificado de Kalecki (1954), resulta das decisões de investimento da classe capitalista. O modelo apresentado por Kalecki (1954) mostra, ainda, que a aceleração dos lucros requer uma ampliação do gasto capitalista em ritmo superior ao crescimento dos lucros correntes. Não por outra razão, diz Minsky (1986), numa economia capitalista existe uma predisposição inerente ao endividamento. É evidente que, se por um lado, uma estrutura de financiamento/endividamento se mostra imprescindível para liberar as potencialidades de uma economia capitalista das amarras impostas pela poupança prévia, por outro implica o surgimento de riscos adicionais (em verdade, inerentes) ao sistema. A expansão dos negócios no âmbito do circuito industrial, como chamou Keynes (1930), enseja a assunção de posturas financeiras mais arrojadas por parte dos atores econômicos, aumentando o grau de vulnerabilidade financeira do sistema, conforme adverte Minsky (1982; 1986). Isso porque o aumento do investimento enseja a criação de um rastro de dívidas, tornando o sistema suscetível a mudanças bruscas e ines93


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peradas do estado geral de expectativas (Minsky, 1975; Keynes, 1936). As fases de expansão dos negócios, pois, lançam os elementos de sua própria reversão. Por isso, diz Minsky (1975, p.130) “[...] finance sets the pace for the economy”. Mas tão importante quanto o financiamento concedido pelos bancos para viabilizar a transformação do espírito animal do empresário em realidade objetiva de investimento, apresenta-se a consolidação das dívidas assumidas pelos homens de negócios junto às instituições bancárias. Isso porque o atendimento do motivo finance de demanda por moeda pelos bancos não propicia a estruturação de uma posição financeiramente sólida para os atores que captaram recursos junto aos bancos. As empresas financiam um ativo de longo prazo (instrumental) contra um passivo de curto prazo. Os bancos, por seu turno, emitem uma obrigação de curto prazo contra um ativo (empréstimo) que dispõe de um baixo grau de liquidez, em sua atividade de transformar maturidades. Por isso, então, faz-se importante a existência de um arcabouço institucional que propicie a consolidação financeira das dívidas contratadas pelas empresas. Por consolidação financeira, frise-se, entende-se a transformação de dívidas de curto prazo em obrigações de longo prazo (Carvalho, 1992). É nessa perspectiva, pois, que os mercados de ações e de títulos de dívida privada podem cumprir um papel precípuo no processo de financiamento do investimento. O mercado de capitais, sobretudo o acionário, também se mostra estratégico para as empresas pelo fato de reduzir seu grau de alavancagem – ante a ampliação do capital próprio – e, assim, retardar a assunção de riscos crescentes durante as fases de expansão dos negócios3. A Figura 1, abaixo, apresenta o circuito finance-investimento-poupança-funding. Inicialmente, os bancos acomodam a demanda por finance das empresas, seja mediante o fundo rotativo, seja a partir da criação de moeda. As empresas, ao adquirirem ativos instrumentais, viabilizam o processo de multiplicação da renda, parte da qual não será consumida e resultará, por conseguinte, em poupança equivalente ao montante investido passível de viabilizar a consolidação financeira das dívidas empresariais. Vê-se, dessa forma, que se trata de um circuito complementar. Não obstante, o processo de consolidação financeira das obrigações pode ser viabilizado independentemente da poupança induzida pelo investimento corrente, ante a existência de riqueza financeira passível de viabilizar o funding, conforme observado por Meirelles (1998, p.150).

3 Buscando tirar proveito das oportunidades de lucro, os atores econômicos reduzem o grau de liquidez do lado esquerdo de seus balanços ao longo das fases de expansão dos negócios, assumindo posições ativas (e também passivas) mais arriscadas. Aumentam, assim, a razão entre ativos com menores graus de liquidez e ativos com maiores graus de liquidez. Segundo Kalecki (1937, p.442), dois fatores fazem o risco marginal aumentar quando o investimento aumenta: 1. a maior exposição ao risco de insucesso; e 2. o maior o grau de iliquidez assumindo pelos atores econômicos.

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades Figura 1: Circuito Finance-Investimento-Poupança-Funding

Fonte: Baseado em Keynes (1937a; 1937b). Elaboração própria.

A viabilização da transformação dos prazos dos débitos, então, para além do processo de geração de poupança decorrente do investimento e do subsequente efeito multiplicador da renda (e do emprego), depende das decisões dos possuidores de riqueza quanto à alocação dessa riqueza, condição determinada pelo grau de preferência pela liquidez assumido por esses atores em dado momento. Tem-se, de qualquer modo, que a captação de recursos mediante a emissão de dívidas de longo prazo pelas empresas permite a liquidação das obrigações contratadas junto ao sistema bancário, viabilizando a compatibilização de suas estruturas ativas e passivas. Segue, pois, a importância dos bancos e do mercado de capitais para a aceleração do ritmo de acumulação capitalista. O circuito financeinvestimento-poupança-funding oferece uma visão sistêmica e dinâmica do papel dos bancos e do mercado de capitais numa economia empresarial. Permite, ainda, a integração da importância entre fluxo (finance) e estoque (funding) num mesmo sistema, além de contemplar o conjunto de atores que, conforme bem registra Studart (1992), ditam o compasso do ciclo de negócios de uma economia capitalista, a saber: empresas, bancos e possuidores de riqueza. A viabilização do funding se mostra altamente dependente da composição de portfólio dos detentores de riqueza e da existência de um arcabouço institucional que propicie a transferência de recursos dos atores superavitários para os deficitários (Carvalho, 1992). Faz-se importante registrar, ainda, a inexistência de uma espécie de “recomendação” da melhor estrutura institucional para a viabilização de um sistema de financiamento funcional ao desenvolvimento. Diferentes países fizeram uso de distintos arranjos institucionais para o financiamento do desenvolvimento, alguns baseados no crédito, outros no mercado de capitais (Zysman, 1983). 95


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Também o funding pode concorrer no sentido de afetar adversamente as decisões empresariais, ante a introdução de incertezas adicionais no cálculo dos empresários e nas decisões bancárias de concessão de crédito (Ferreira, 1995, p.17). O funding, contudo, não precisa ser necessariamente viabilizado pelo mercado de capitais, podendo sê-lo pelo próprio sistema bancário, baseado no crédito, tal como na Alemanha, França, Japão etc. (Zysman, 1983). A existência de um mercado de capitais, por si só, não significa necessariamente a prevalência de condições adequadas para a consolidação das dívidas. Ao assumirem uma lógica de valorização patrimonial, de natureza eminentemente especulativa, os atores envolvidos nos mercados de ações e de títulos de dívida tendem a reorientar seus portfólios rapidamente e em volumes expressivos, podendo ocasionar oscilações bruscas e inesperadas dos preços dos ativos e das condições de financiamento do sistema. Tais mercados, dessa forma, tendem a assumir um grau maior de sensibilidade em relação à avaliação do risco (Belluzzo, 1995; Carneiro, 2009). Essas circunstâncias tendem a prevalecer ainda mais expressivamente nos países que integram a periferia do sistema capitalista, em que a condição de inconversibilidade monetária, as recorrentes oscilações macroeconômicas e a grande dependência do capital estrangeiro para o aprofundamento desses mercados acabam determinando a assunção de posições financeiras, quando não marcadas por um alto grau de preferência por flexibilidade, altamente suscetíveis às modulações do contexto internacional (Carneiro, 2009; 2008; Prates, 2002). Essas características prevalecentes nos mercados de capitais, sob a predominância de uma lógica patrimonialista de gestão e de valorização da riqueza, acabam possibilitando a ocorrência de movimentos acentuados de valorização e desvalorização de ativos, em que a lógica da especulação se sobrepõe à lógica do financiamento. Comportamentos de manada, condicionados por movimentos autorreferenciais, representam uma possibilidade concreta nesses mercados, transformados em “espaços de valorização ampliada da riqueza”, lançando as bases para a ocorrência de “manias, pânico e crashes”, para utilizar a expressão de Kindleberger (2000). As atividades empresariais, nesses casos, podem ficar simplesmente subordinadas ao “turbilhão especulativo”, conforme destacou Keynes (1936). Ou seja, o sistema de financiamento empresarial pode ficar subjugado à lógica altamente instável de gestão da riqueza prevalecente nos mercados de capitais, radicalizando a instabilidade inerente do sistema. Para disporem da capacidade de captação de recursos diretamente no mercado, as empresas precisam apresentar elevados níveis de rentabilidade e excelentes notas das agências de classificação de risco, tornando o sistema de financiamento direto altamente restrito às grandes corporações4. Sob o regime de governança 4 Regressões realizadas por Moreira e Puga (2000) para o caso brasileiro, por exemplo, apontam que as empresas de menor porte apresentam maiores dificuldades para se financiarem mediante emissão de dívidas.

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

corporativa, os “investidores” passam a influenciar as estratégias de investimento e de geração de resultados das empresas, num esforço contínuo para compatibilizar as diferentes temporalidades de valorização dos ativos prevalecentes nas esferas industrial e financeira (Cintra, 2000; 1997; Braga, 2000; Oliveira, 2009). O debate sobre o melhor padrão de financiamento para o desenvolvimento econômico, contudo, acha-se em curso5. Pode-se afirmar que o ponto relevante diz respeito ao grau de desenvolvimento financeiro de uma economia, o que exige o aprofundamento tanto do mercado de capitais, como do mercado de crédito, tornando-os funcionais ao crescimento das empresas. Ambos os sistemas apresentam vantagens e desvantagens, indicando a necessidade de um arcabouço institucional que busque regular, supervisionar e, em alguns casos, permitir intervenções diretas do Estado, no intento de viabilizar a supressão das fragilidades desses sistemas, tornando-os articulados com um projeto nacional de desenvolvimento6. Segundo o BIS (2009, p.13): “In a modern financial system, bank-based finance and market-based finance should be viewed as complementary rather than as rivals or substitutes.” 3. Estrutura de capital e padrão de financiamento Diversos trabalhos evidenciam a relevância de um sistema de financiamento para dar apoio às necessidades empresariais em seus projetos de investimento e, assim, viabilizar o crescimento econômico7. Segundo a Unctad (2008, p.91): “[...] Para que se realicen inversiones privadas, los empresarios no sólo necesitan tener expectativas de ganancias futuras como incentivo, sino que también deberían poder financiar la adquisición de los bienes de capital necesarios.” Estudos e indicadores apontam, ainda, um grau acanhado de desenvolvimento financeiro da economia brasileira, mesmo em comparação com diversas economias em desenvolvimento, especialmente no âmbito do mercado de ações e de títulos de dívida privada – condição que concorre na direção de reprimir as decisões de investimento e, assim, criar obstáculos ao crescimento sustentado dos níveis de emprego e renda (Biancareli, 2008; Andima, 2001). Os problemas do sistema financeiro brasileiro resultam, ainda que em diferentes intensidades, tanto do finance como do funding. Em relação ao primeiro, a prevalência de spreads bancários elevados e de prazos curtos das operações de crédito acaba restringindo o acesso ao finance por parte das empresas, notadamente 5 Sobre o debate envolvendo os benefícios e malefícios de um sistema de financiamento pautado no mercado de capitais e um sistema baseado em bancos, além de Zysman (1983) e Carneiro (2009), ver Singh e Weisse (1998), Levine (2000) e Stulz (2000). 6 Sobre essa espécie de “terceira via”, a partir da qual se mostra importante o desenvolvimento financeiro em geral, mais do que a prevalência de um ou outro sistema, ver Levine e Zervos (1998) e Beck e Levine (2000), entre outros. 7 Ver, por exemplo, Arestis e Demetriades (1997) e Levine e Zervos (1998). Sobre a discussão teórica, ver, entre outros, Carvalho (1992) e Feijó (2002).

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pequenas e médias, pois as condições oferecidas pelos bancos se mostram, muitas vezes, incompatíveis com o retorno esperado dos investimentos empresariais. No âmbito do funding, por seu turno, faz-se presente um sistema pouco desenvolvido, particularmente no que diz respeito aos mercados de títulos de dívida privada e ações, além de extremamente restrito a grandes empresas. Essas condições acabam determinando um sistema de financiamento pouco funcional ao financiamento do desenvolvimento, o que inviabiliza a ampliação dos investimentos a partir de bases sustentáveis e reduz a competitividade das empresas que acabam tendo que recorrer ao sistema bancário para viabilizar seus projetos. As condições inadequadas de financiamento, portanto, determinam a prevalência de um padrão de financiamento fortemente baseado nos recursos internos, ou seja, no autofinanciamento, viabilizado pela acumulação de lucros retidos em períodos anteriores, o que implica a repressão das potencialidades empresariais. Conforme sinalizado na seção anterior, uma economia que não dispõe de condições adequadas de financiamento conforma um sistema que opera abaixo de sua capacidade de acumulação, vale dizer, de geração de emprego e renda. Não menos importante, contribui para a configuração de uma estrutura empresarial altamente concentradora e excludente, na medida em que apenas as grandes corporações acabam dispondo de acessos a linhas de financiamento compatíveis com o rendimento esperado dos projetos, bem como de uma capacidade de acumulação de lucros capaz de viabilizar a execução de projetos a partir de recursos internos. Diferentemente das conclusões de Modigliani e Miller (1958), que partem da assunção de hipóteses articuladas com a “abordagem dos mercados perfeitos”8, que atribuem irrelevância à estrutura de capital para o crescimento das empresas e, por extensão, para o desempenho macroeconômico dos países, diversas experiências internacionais demonstram a importância das estruturas de financiamento das empresas para o crescimento econômico. O abandono da hipótese dos mercados eficientes torna inevitável a influência das variáveis financeiras na economia, com a estrutura de capital das empresas não sendo neutra em seus efeitos sobre o lado produtivo do sistema. Estudos realizados sobre o padrão de financiamento das empresas de capital aberto no Brasil mostram que o autofinanciamento constitui a principal fonte de financiamento das empresas9. O trabalho de Moreira e Puga (2000), que utilizou os dados de balanço do IRPJ de 4.312 empresas industriais de capital aberto e fechado nos anos de 1995/96/9710 – das quais 3.935 nacionais e 377 estrangeiras –, mostra que as empresas dependem expressivamente do autofinanciamento 8 Tais como distribuição simétrica de informações, informação perfeita, ausência de custos de transação, inexistência de taxação etc. 9 Além dos trabalhos indicados sobre a estrutura de capital das empresas no Brasil, ver ainda: Zonenschain (1998), Rodrigues e Melo (1999), Leal e Prates (2005) e Leal (2008). 10 Os indicadores foram calculados a partir dos dados de balanço do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) para os anos-base de 1995, 1996 e 1997.

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

para financiar o crescimento, 55%, com o restante correspondendo à emissão de dívidas, 25%, e ações, 20%. As empresas de grande porte, que totalizavam 870, sendo 671 nacionais e 199 estrangeiras, registraram uma média menor para o autofinanciamento, 48%, contra 29% de dívidas e 24% de ações11. Os autores assinalam ainda que, a despeito da semelhança com a estrutura de capital das empresas a nível internacional, as empresas no Brasil são financeiramente constrangidas, em vista do baixo grau de endividamento (dívida total/patrimônio líquido) e da modesta relação crédito/PIB. Rodrigues Jr. e Melo (1999), considerando os dados patrimoniais de 20 empresas de capital aberto no período 1987-96 e utilizando outra metodologia de cálculo, reforçam a evidência da importância do autofinanciamento (63,9%) para o crescimento das empresas. Conforme assinalam os autores, no entanto, são diversas as metodologias utilizadas para a medição da estrutura de capital das firmas, condição que limita a comparação dos resultados entre os diversos estudos realizados. Trabalho recente realizado por Almeida et al. (2009), contemplando 153 grandes empresas brasileiras de capital aberto (indústria, comércio e serviços), das quais 104 são grandes empresas industriais, mostrou que 46% do financiamento do conjunto dessas corporações decorreu de lucros retidos, considerando-se a média do interregno 2004/2007. Para o conjunto de empresas industriais, essa participação atingiu 50,9%. O cálculo foi realizado a partir dos balanços patrimoniais e das notas explicativas às demonstrações financeiras das empresas e considerou, ainda, a participação de cada uma das fontes de financiamento no resultado da diferença entre variação do ativo total e a variação do passivo circulante12. Nesse mesmo estudo, ademais, os autores buscaram apurar, a partir da realização de entrevistas com representantes de 24 grandes empresas, as fontes de financiamento que as empresas pretendiam utilizar num futuro próximo. Os autores constata11 Seguindo a metodologia proposta por Singh e Hamid (1992), Moreira e Puga (2000) consideram apenas as dívidas de longo prazo (passivo exigível), além dos recursos próprios, para a decomposição do financiamento do crescimento das empresas, sendo o financiamento externo através de emissão de ações calculado por diferença. Esse procedimento pode ser justificado pelo argumento de que se busca apreender o financiamento de longo prazo das empresas, que ao menos em tese contribui para o crescimento de seus ativos. Contudo, a utilização dessa metodologia praticamente exclui os empréstimos bancários, tipicamente de curto prazo no Brasil, do padrão de financiamento das empresas. Em relação ao crescimento das empresas, por seu turno, Moreira e Puga (2000) realizam a medição a partir da variação do capital de longo prazo das empresas, obtido pela diferença entre a variação do total do ativo e a variação do passivo circulante, também em linha com metodologia utilizada por Singh e Hamid (1992). Deve-se salientar, ainda, que Moreira e Puga (2000, p.18) registram que, em razão do cálculo da participação das ações ser realizado por resíduo, e a amostra também contemplar empresas de capital fechado, estão incluídas nessa fonte de financiamento os aportes diretos de capital realizados pelos donos das empresas e novos acionistas, o que acaba inflando a participação das ações no total das fontes de financiamento do total das corporações consideradas. Finalmente, o cálculo da fonte “emissão de dívida” tomou por base a razão entre a variação do exigível a longo prazo e a variação do capital de longo prazo das firmas. A conta “exigível a longo prazo”, contudo, pode envolver, ainda que residualmente, outros passivos que não necessariamente a emissão de dívidas (debêntures, bônus, etc.), como empréstimos bancários. 12 Os autores também fizeram o cálculo da participação de cada uma das fontes de financiamento na variação do ativo total. Nesse caso, a participação da fonte “lucros retidos” foi de 38,8% para o conjunto das empresas consideradas e de 43% para o conjunto das empresas industriais.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

ram que a geração própria de recursos e os financiamentos obtidos junto ao BNDES representavam, juntos, mais de 70% das fontes de financiamento que essas corporações intencionavam utilizar (Almeida et al., 2009). Outra evidência importante apresentada por Almeida et al. (2009) referese à baixa participação das ações (8%) no financiamento do crescimento do conjunto de empresas contemplado, em contraposição aos resultados obtidos nos trabalhos de Singh (1995)13, e Moreira e Puga (2000) que tomaram como referência dados de períodos e fontes distintos, os quais apontam para a existência de um padrão market-based na economia brasileira – ante o fato de as ações constituírem a principal fonte de financiamento externo das empresas. Almeida et al. (2009), contudo, consideraram as dívidas de curto prazo das empresas de capital aberto selecionadas para o cálculo da estrutura de capital. Os resultados encontrados pelos autores indicam, assim, a existência de um padrão atual de financiamento do conjunto dessas corporações do tipo credit-based, ante a preponderância do crédito nas fontes externas de financiamento, ao invés de market-based (Almeida et al., 2009, p.104). A Tabela 1 apresenta a participação de cada uma das fontes de financiamento do investimento14 das empresas no mundo e em diferentes grupos de países, considerando-se o período 2002-2006 e um conjunto de 32.809 empresas de economias desenvolvidas, “em desenvolvimento” e “em transição”15. São apresentados os dados de todos os países, países desenvolvidos, economias de “mercados emergentes da Europa”, da América Latina e do Caribe e, finalmente, do Brasil. Os dados são do 13 O trabalho de Singh (1995) considerou os dados das 100 maiores empresas de capital aberto para um conjunto de países em desenvolvimento – Coreia, Paquistão, Jordânia, Tailândia, México, Índia, Turquia, Malásia, Zimbábue e Brasil. Nos casos de Jordânia, Tailândia, Turquia e Zimbábue, saliente-se, foram consideradas 38, 67, 45 e 48 empresas, respectivamente. No caso do Brasil, em particular, os indicadores mostram que nada menos do que 36% do total das fontes de financiamento das empresas diziam respeito às ações, considerando-se o interregno 1985/91 (Singh, 1995, p.53). Os recursos internos, por seu turno, respondiam por 56,4%, enquanto as dívidas, por 7,7%. Para o conjunto dos países, Singh (1995) encontrou os seguintes resultados para as fontes de financiamento do crescimento das grandes empresas de capital aberto: 39,3% ações; 38,8% recursos internos; e 20,8% dívida. Segundo o autor, esse resultado aparentemente contraditório, teria resultado, entre outros fatores, notadamente das políticas governamentais de incentivo aos mercados de ações. Moreira e Puga (2000, p.11) ponderam, contudo, que além de Singh (1995) ter considerado apenas as grandes empresas de capital aberto, o que implica um viés de seleção da amostra, a participação das ações foi calculada por diferença, o que aumenta o grau de imperfeição da medida – essa última qualificação também se faz pertinente aos resultados de Moreira e Puga (2000), ante o cálculo da fonte “ações” realizado por resíduo. 14 O trabalho de Mayer (1988), restrito aos países desenvolvidos, também mostra a preponderância do autofinanciamento na estrutura de capital das empresas, ainda que em diferentes intensidades entre os países, bem como a prevalência dos empréstimos bancários no rol de fontes externas de financiamento. Evidências similares foram obtidas por Corbett e Jenkinson (1994). Ambos os trabalhos partem da metodologia de cálculo de “fluxo de fundos”, que permite verificar como as empresas financiam seus investimentos. Os cálculos realizados a partir dos dados de balanço das empresas, por seu turno, permitem verificar como as empresas financiam seu crescimento (Singh e Weisse, 1998). Para um resumo dessas diferentes abordagens, bem como das diferentes perspectivas sobre estrutura de capital, ver Moreira e Puga (2000, p.7-12). 15 A atribuição de aspas às expressões “economias/países em desenvolvimento” se faz pertinente pelo fato de pressupor, ou ao menos indicar, o subdesenvolvimento enquanto uma etapa do desenvolvimento capitalista. Contudo, o subdesenvolvimento deve ser entendido enquanto um tipo específico de capitalismo, enquanto categoria autônoma, ao invés de uma etapa do desenvolvimento capitalista em direção ao desenvolvimento, conforme indicado em inúmeros trabalhos do Prof. Celso Furtado.

100


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

Banco Mundial e foram calculados pela secretaria da Unctad, sendo apresentados em Unctad (2008, p.126-127)16. Observa-se a predominância, em todos os grupos de países considerados, bem como no Brasil, da utilização de fundos internos e lucros retidos no financiamento do investimento das empresas. Embora não constitua uma especificidade brasileira, considerando que tanto em países capitalistas desenvolvidos, como da periferia, a utilização de recursos internos se mostra preponderante na estrutura de capital das empresas, conforme apontado pela Unctad (2008, p.91-135), pode-se conjeturar que condições inadequadas de financiamento externo (empréstimos, títulos e ações) acabam aprofundando a utilização de recursos internos pelas empresas. Ou seja, condições adversas de endividamento podem aguçar a importância do autofinanciamento na hierarquia de preferências das empresas entre as diferentes fontes de financiamento disponíveis17, acometendo mais expressivamente as pequenas e as novas empresas – seja em razão de problemas maiores relacionados à assimetria informacional, seja em função da inexistência de garantias compatíveis com os requisitos estipulados pelos ofertantes de recursos, conforme apontado pela própria Unctad (2008). Essa hipótese pode ser ratificada pela maior importância dos fundos internos no financiamento do investimento nas empresas pequenas vis-à-vis as empresas grandes em todos os grupos de países contemplados no estudo da Unctad (2008, p.126-127), alguns dos quais apresentados na Tabela 1. Diante de condições mais restritivas para a obtenção de linhas externas de financiamento, as pequenas empresas são induzidas a utilizar recursos próprios para viabilizar seus projetos de investimento. No caso específico brasileiro, ademais, cumpre destacar a importância, sobretudo para as grandes empresas, da captação de recursos junto ao BNDES. O financiamento global dos fundos de investimento, dos bancos de desenvolvimento e outros serviços do Estado, que no caso brasileiro tem os empréstimos do BNDES como principal componente, atinge 14,1% da estrutura de capital dessas corporações (Unctad, 2008). As empresas pequenas, por outro lado, têm no crédito comercial e nos bancos comerciais locais e estrangeiros as principais fontes de captação de recursos de terceiros. Essas evidências, além de mais uma vez indicarem a maior dificuldade de captação de recursos externos por parte das empresas menores (as maiores geradoras de emprego e 16 No trabalho da Unctad (2008), são ainda apresentados os dados da África; Ásia; Economias em transição da Europa; economias em transição da Ásia Central; bem como para os seguintes países: China, Egito, Índia e Rússia. 17 Segundo a abordagem da seleção hierárquica da estrutura de capital, as empresas tendem a preferir o financiamento a partir de recursos internos vis-à-vis recursos externos pelo fato de a primeira opção não implicar o vazamento de informações privilegiadas sobre o valor dos ativos existentes, bem como sobre a qualidade das possibilidades de investimento que se apresentam às respectivas empresas. Não menos importante, o financiamento a partir de recursos externos permite evitar os custos de intermediação. Nessa perspectiva, quanto mais expressivos forem esses últimos, maior será a preferência das empresas pelo autofinanciamento. Sobre a abordagem do “pecking order” das finanças, ver Myers (1994). Para um resumo geral dessa abordagem, ver Unctad (2008, p.98).

101


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

renda), se por um lado evidenciam a importância dos bancos públicos de desenvolvimento para o financiamento do investimento no Brasil, por outro demonstram uma concentração das linhas de financiamento estatais nas grandes empresas – que contam com maior capacidade de acumulação interna de recursos. Tabela 1: Fontes de financiamento do investimento – mundo, grupos de países e Brasil 1999-2006 Mundo, grupos de países e Brasil

Número de países

Número de empresas

Fundos internos e lucros nãodistribuídos

Bancos comerciais locais e estrangeiros

Fundos de inversão e do Estado*

Crédito comercial

Emissão de ações

Família e amizades

Outros

Em % Todos os países Todas as empresas

100

32.809

65,5

16,1

1,3

3,2

3,0

3,8

7,1

Empresas pequenas

100

12.388

69,0

12,4

1,1

3,0

3,4

4,7

6,4

Empresas médias

100

11.235

63,1

17,9

1,5

3,4

3,4

3,1

7,7

Empresas grandes

100

9.036

59,7

22,9

2,5

3,4

2,9

1,5

7,1

Países desenvolvidos Todas as empresas

5

2.592

59,3

20,0

0,6

3,0

3,8

1,2

12,0

Empresas pequenas

5

1.618

63,2

18,1

0,3

2,7

3,2

1,7

10,9

Empresas médias

5

575

53,4

22,8

0,8

3,0

5,0

0,4

14,5

Empresas grandes

5

399

50,0

25,5

1,5

3,4

5,0

0,5

14,2

Economias de mercados emergentes da Europa Todas as empresas

8

2.334

59,6

13,9

1,1

2,4

7,4

2,5

13,1

Empresas pequenas

8

1.290

62,8

10,1

0,2

2,8

7,5

4,2

12,3

Empresas médias

8

621

55,3

18,3

1,4

2,4

8,2

0,4

14,0

Empresas grandes

8

423

57,8

18,0

3,0

1,4

6,5

0,1

13,2

América Latina e Caribe Todas as empresas

20

7.845

60,6

20,2

1,5

6,8

1,2

2,7

7,0

Empresas pequenas

20

2.622

62,2

18,6

1,1

6,4

0,8

3,2

7,8

Empresas médias

20

3.265

58,9

21,2

1,1

7,6

1,6

2,8

6,9

Empresas grandes

20

1.938

58,8

24,4

2,8

6,3

1,1

1,3

5,3

Brasil (2003)

102


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades Todas as empresas

-

1.351

56,3

14,3

8,5

8,7

4,3

1,2

6,7

Empresas pequenas

-

226

58,0

10,8

5,7

13,0

3,5

2,2

6,7

Empresas médias

-

736

58,6

14,8

6,4

8,2

3,8

1,4

6,9

Empresas grandes

-

384

51,2

15,0

14,1

7,4

5,7

0,3

6,2

Fonte: Unctad (2008, p.126-127). Nota: Empresas pequenas = menos de 20 empregados; empresas médias = entre 20 e 99 empregados; empresas grandes = mais de 99 empregados. * Financiamento global dos fundos de investimento, dos bancos de desenvolvimento e outros serviços do Estado.

Ainda no que diz respeito ao caso brasileiro, os dados indicam a prevalência de um bank-based finance, ante a participação preponderante do crédito no âmbito dos recursos externos utilizados pelas empresas vis-à-vis a tímida participação da emissão de ações. A captação de recursos junto aos bancos comerciais locais e estrangeiros também representa a maior fonte de terceiros no financiamento das grandes empresas, 15%. Não obstante, as condições de empréstimos destinados a essas corporações costumam ser bem melhores do que as prevalecentes nos empréstimos destinados às pequenas empresas, ante os menores riscos envolvidos e seu maior poder de barganha18. Embora os dados apontem patamares similares da importância do financiamento interno entre os países desenvolvidos e “em desenvolvimento”, essa situação carrega, inerentemente, implicações não desprezíveis. Isso porque as maiores restrições de ordens tecnológicas e produtivas que se apresentam nos “países em desenvolvimento” acabam fazendo com que, frequentemente, os recursos internos das empresas se mostrem insuficientes para financiar o investimento, exigindo uma maior participação das fontes externas (Unctad, 2008, p.99). Tem-se, pois, que os patamares similares de utilização de fontes internas de financiamento entre os países desenvolvidos e “em desenvolvimento” podem indicar uma condição, no caso desses últimos, em que prevalece uma restrição mais intensa de financiamento externo às empresas, notadamente as pequenas e médias. Saliente-se, ainda, que no Brasil a prática de juros e spreads bancários elevados acaba contribuindo para limitar a capacidade de acumulação interna de recursos por parte das firmas, especialmente as pequenas e médias, pois uma maior parcela dos ganhos se destina ao pagamento dos serviços da dívida19. Uma política monetária contracionista, ademais, tende a agravar essa situação, pois amplia ainda mais o custo do crédito. Por isso, nos países da periferia, onde o crédito se mostra preponderante para a complementação do autofinanciamento, ao invés do mercado de capitais, a prática de taxas de juros elevadas tende a exercer impactos 18 Sobre a exclusão financeira das micro e pequenas empresas no Brasil, ver Carvalho e Abramovay (2004). 19 Sobre a discussão dos juros e spreads bancários no Brasil, ver Oliveira (2004), e Oliveira e Carvalho (2007).

103


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

ainda mais adversos sobre a economia. Segundo Carvalho e Abramovay (2004, p.32), em estudo sobre as condições de financiamento das micro e pequenas empresas no Brasil20, as quais representam mais de 90% dos negócios do país: [...] Os empresários que dependem do sistema financeiro formal para financiar seu capital de giro acabam comprometendo seriamente a própria capitalização de suas empresas, diante dos custos elevados que precisam pagar aos bancos. O acesso ao crédito, nestas situações, não é, para o micro e pequeno empresário, a base para consolidar, expandir e inovar seu negócio: é uma espécie de saída última, à qual deve recorrer apenas em situações realmente críticas.

Isso significa, pois, que se a existência de um sistema de financiamento de longo prazo acanhado impõe um conjunto de restrições financeiras às empresas em geral, as médias, pequenas e micro empresas tendem a ser ainda mais prejudicadas, pois as alternativas de financiamento externo, quando disponíveis, acabam implicando um ônus financeiro ainda mais expressivo. De mais a mais, frequentemente a essa restrição se conjuga a prevalência de prazos estreitos das operações de endividamento, tornando-as pouco funcionais aos projetos de expansão das empresas. Tais condições acabam exercendo efeitos micro e macroeconômicos altamente adversos, ante as barreiras financeiras e tecnológicas que se interpõem, sobretudo, ao crescimento das empresas de menor porte. 4. A expansão recente do mercado de capitais no Brasil Conforme discutido nas seções anteriores, o financiamento constitui condição indispensável para o crescimento das empresas, pois permite liberá-las das barreiras impostas pela existência de poupança prévia. Os estudos realizados sobre a estrutura de capital das empresas no Brasil revelam, contudo, a prevalência do autofinanciamento no total de suas fontes de recursos. Isso, num contexto de empréstimos bancários caros e de curto prazo, e de inexistência de um mercado de capitais plenamente desenvolvido, impõe constrangimentos financeiros para o crescimento das empresas no Brasil, tal como salientado por Moreira e Puga (2000, p.27), ante o grau de desenvolvimento financeiro acanhado da economia brasileira no que diz respeito ao financiamento de longo prazo. O mercado de capitais brasileiro, no entanto, passou por uma acentuada expansão entre 2004 e meados de 2008, levando alguns autores a qualificarem esse processo de “revolução”. De acordo com esse entendimento, consequentemente, o movimento recente dos mercados de ações e de títulos de dívida privada tem implicado uma redução do grau de constrangimento financeiro das empresas no Brasil, 20 De acordo com o SEBRAE, microempresa representa o empreendimento industrial com até 19 empregados e, no caso de empreendimento comercial e de serviços, de até 9 empregados. A pequena empresa industrial, por sua vez, conta com 20 a 99 empregados, e a de serviços e comércio, com 10 a 49 empregados.

104


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

ante o maior acesso a recursos de terceiros. Contudo, a análise dos principais fatores condicionantes desse processo, bem como da captação e do destino dos recursos obtidos no mercado de ações e de títulos de dívida privada, revela que a expansão recente do mercado de capitais brasileiro tem sido marcada por peculiaridades que, ao mesmo tempo em que colocam em risco a sua continuidade ao longo do tempo, apontam para a conformação de um sistema menos funcional do que poderia sê-lo ao financiamento do crescimento das empresas e, assim, do desenvolvimento. Para uma melhor sistematização do argumento sustentado nessa seção, inicialmente serão realizadas algumas considerações sobre os dois principais condicionantes do recente ciclo de expansão do mercado de capitais brasileiro, a saber: as condições macroeconômicas internas e o contexto internacional. A seguir, analisa-se mais detidamente o mercado de títulos privados, com atenção às debêntures, ante seu papel de destaque ocupado nesse âmbito. Finalmente, passa-se ao exame do movimento de expansão do mercado de ações, relevando-se as emissões primárias. 4.1 Os condicionantes da expansão recente do mercado de capitais Os indicadores conjunturais da economia brasileira passam a apresentar, a partir de 2004, melhoras expressivas em relação ao período imediatamente anterior, ainda que críticas possam ser feitas sobre as questões mais estruturais desse processo e, consequentemente, a sua continuidade num horizonte de longo prazo. Os índices de solvência externa e do setor público passam, a partir de então, a sinalizar um maior grau de “solidez” da economia brasileira. O acúmulo de reservas internacionais permitiu, ainda que resultante do expressivo influxo de capital estrangeiro e da forte expansão das exportações de commodities, a constituição de uma “blindagem externa” da economia brasileira, o que concorreu para reduzir a suscetibilidade da economia a choques externos. No âmbito fiscal, a política de geração de superávits primários, uma das pernas do tripé de política econômica a partir de 199921, contribuiu para viabilizar a redução do endividamento do setor público em proporção do PIB. Diante disso, os menos céticos sustentam que a expansão recente do mercado de capitais brasileiro teria como maior explicação, quando não a única, o maior grau de “solidez” dos “fundamentos macroeconômicos” da economia brasileira. Esse entendimento, no entanto, não considera que as condições internacionais cumpriram papel decisivo nesse processo, embora o avanço das condições macroeconômicas internas tenha lançado as bases para a constituição de um círculo virtuoso de causalidade bidirecional, mútua, entre o ciclo de expansão da liquidez internacional e os “fundamentos” da economia brasileira. 21 Constituem o tripé básico de política econômica no Brasil a partir de 1999: a) superávits primários; b) câmbio flutuante; e c) regime de metas para a inflação. Sob esse último, frise-se, os demais instrumentos de política econômica ficam subordinados à política monetária. Sobre esse tema, ver Freitas (2006) e Mendonça (2003).

105


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Na esteira do terceiro ciclo de expansão da economia americana (20022008) desde o choque de juros de Volker no final dos anos 197022, e num contexto em que a China passa a se afirmar enquanto “duplo polo” da economia mundial23, mesmo as economias que se inseriram de forma subordinada ao processo de globalização financeira foram beneficiadas pelos ciclos de expansão da economia mundial e da liquidez internacional24. Nessas condições, em países como o Brasil, onde a política monetária se acha exclusivamente orientada para o cumprimento de uma meta para a inflação – condição que, entre outras variantes, assegura o valor de face dos ativos denominados em moeda nacional e garante um elevado diferencial de taxa de juros interna e externa –, o ingresso de capitais via conta financeira do balanço de pagamentos se tornou inevitável diante do ciclo de expansão da liquidez internacional. Ademais, o ciclo de crescimento registrado notadamente nas economias norte-americana e chinesa, ao constituir um mercado comprador altamente dinâmico a nível mundial, implicou um aumento substancial dos preços das commodities, beneficiando diversos países integrantes da periferia. No Brasil, a prevalência de condições externas benignas notadamente entre 2004 e terceiro trimestre de 200825, além disso, propiciou a minimização dos efeitos adversos ocasionados pelas contradições da política econômica. Isso porque, mesmo com a utilização da taxa de câmbio enquanto instrumento de contenção da inflação, a expressiva entrada de capitais estrangeiros, condicionada preponderantemente pelo elevado diferencial de taxa de juros interna e externa e pela forte expansão das exportações de commodities, permitiu a conformação de um contexto altamente peculiar, no qual a prevalência de uma taxa de câmbio sobrevalorizada – funcional para viabilizar o cumprimento da meta para a inflação e para melhorar as contas públicas, ante seu efeito redutor sobre a dívida externa líquida do setor público – não coexistiu com o aumento da vulnerabilidade externa. Conforme se pode observar no Gráfico 1, a despeito da expressiva redução do diferencial de taxa de juros interna e externa no interregno 2003-2009, os títulos públicos brasileiros ainda continuaram atrativos aos olhos dos investidores estrangeiros, considerando o contexto de abundância da liquidez internacional e a expectativa de apreciação da taxa de câmbio, prevalecente antes da eclosão da crise global 22 Sobre os três ciclos de crescimento da economia americana a partir dos anos 1980 (respectivamente, 198390; 1992-2000; e 2002-2008), ver Tavares (2006). 23 De acordo com Medeiros (2006), a China tem cumprido o papel de duplo polo da economia mundial: de um lado, assume-se enquanto exportadora líquida de manufaturados para os países da OCDE, notadamente EUA e Japão; de outro, como importadora líquida para a Ásia (máquinas e equipamentos, tecnologia e matérias-primas), contribuindo para o crescimento regional e para a sua estabilização. 24 Sobre os processos de inserção diferenciada da Ásia e da América Latina, ver Medeiros (1997) e Palma (2004). Para uma discussão geral sobre o processo de inserção das economias periféricas na globalização financeira, ver Carneiro (1999). 25 Em geral, o contexto externo nesse período foi marcado pela lassidão da política monetária nos EUA; pela elevada liquidez internacional, alimentada pelo déficit em transações correntes norte-americanas; e pela redução das taxas de juros internacionais e crescimento mundial.

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

em meados do segundo semestre de 200826. A diminuição do diferencial entre a taxa CDI e a taxa LIBOR de 3 meses (dólar americano) também concorreu para estimular o forte ingresso de investimentos estrangeiros no mercado de ações no Brasil e sua consequente dinamização. Não obstante, a redução do patamar da taxa básica de juros real e nominal da economia brasileira a partir do segundo semestre de 2003 e notadamente a partir de meados de 2005, ao reduzir o custo de captação das empresas – tornando-o inferior à taxa de retorno do investimento – e, assim, ampliar a fronteira de expansão da inversão privada, contribuiu decisivamente para o crescimento do mercado de capitais brasileiro27 (Gráfico 1). A combinação entre condições internas e externas favoráveis, para além da discussão sobre a relação causal envolvida entre elas, propiciou a conformação de um ambiente doméstico altamente promissor para as decisões empresariais, especialmente para os setores voltados para a exportação de commodities e para o mercado interno – ante o desalinhamento da taxa de câmbio. Além do ambiente de alta liquidez internacional, o ingresso de capitais estrangeiros nos mercados de títulos privados respondeu, sobretudo, à melhoria dos “fundamentals” da economia brasileira, dos ganhos de arbitragem propiciados pelo elevado diferencial de taxa de juros interna e externa e pelas expectativas de apreciação cambial. No âmbito do mercado de ações, por sua vez, contribuíram decisivamente para a expressiva entrada de capital estrangeiro as perspectivas de aceleração do ritmo de crescimento econômico e de consequente valorização dos ativos mobiliários, além do contexto externo altamente benigno, da tendência de apreciação da taxa de câmbio e da melhoria dos “fundamentals”28.

26 Sobre as origens, a institucionalidade e os efeitos da crise global, ver Freitas e Cintra (2008) e Farhi e Cintra (2009). 27 Conforme aponta Rocca (2001, p.40-108), a taxa básica de juros constitui o principal componente do custo do capital das empresas no mercado de capitais – custo esse que envolve, ainda, fatores como prêmio de risco das ações, underpricing (deságio entre o preço de emissão da ação e seu preço de mercado) e underwiting (comissão, garantia firme, divulgação, distribuição, etc.). Em 1997, por exemplo, num contexto de juros básicos elevados, levantamento realizado pelo autor junto a 2.500 grandes empresas de capital nacional, a partir das informações de balanço, apontou que o custo de capital de terceiros era bastante superior à taxa de retorno dos ativos das empresas. 28 Em abril de 2008, diante da expressiva melhora dos indicadores macroeconômicos do Brasil, a “economia brasileira” seria alçada à condição de grau de investimento pela agência de classificação de risco Standard & Poor’s.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 1: Diferencial de taxa de juros interna e externa e taxa básica de juros real e nominal no Brasil (jan.2003-out.2009)

FONTE: Banco Central do Brasil. Elaboração do autor. Notas: Taxa CDI acumulada no mês anualizada (base 252 dias) menos taxa de juros sobre depósitos no euromercado (libor), dólar americano (3 meses); Selic real: Taxa Selic descontada a inflação medida pelo IPCA acumulada nos últimos 12 meses encerrados em cada mês respectivo.

O Gráfico 2 mostra a evolução dos saldos em transações correntes e da posição líquida da conta financeira e dos investimentos em portfólio do balanço de pagamentos brasileiro, bem como do nível de reservas internacionais (liquidez internacional), no interregno 2003-2009. Observa-se que o “grande salto” do nível de reservas internacionais aconteceu entre 2006 e 2007, quando ocorre o aumento de US$ 85,84 bilhões para US$ 180,33 bilhões, sob influência decisiva do resultado expressivo da conta financeira em 2007, de US$ 88,33 bilhões, influenciado fortemente pelos investimentos diretos em portfólio, que somaram US$ 48,10 bilhões. Tem-se, assim, que parte expressiva de um dos principais vetores da “blindagem externa” da economia brasileira foi viabilizada pelo ingresso de recursos externos destinados à aquisição de ações e papéis de dívida, notadamente títulos públicos, o que relativiza, ao menos em parte, a elevada solidez da posição externa da economia brasileira, ante a volatilidade desse tipo de capital. O Gráfico 2, que mostra o comportamento do investimento líquido estrangeiro em carteira mensalmente no período indicado, não deixa dúvidas a esse respeito. Conforme será discutido a seguir, o ingresso de recursos externos mediante aplicações em carteira cumpriu papel decisivo para a expansão do mercado de ações brasileiro a partir de 200429, assim como desempenhou papel determinante 29 Não foi apenas o mercado de capitais brasileiro que se beneficiou do contexto de alta liquidez internacional. Conforme mostram Carvalho et al. (2009b), os mercados de ações de diversos países

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O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

para a brusca reversão dos preços das ações em meados do segundo semestre de 2008, quando foi registrada uma expressiva saída de investimentos em portfólio (Gráfico 3) – isso porque a presença do investimento estrangeiro em títulos e valores mobiliários no Brasil se acha fortemente concentrada nos mercados de títulos públicos e ações. Entre o primeiro e o segundo semestre de 2008, o saldo das aplicações em carteira passou de US$ 13,28 bilhões para US$ 14,05 bilhões – um resultado de US$ 766,9 milhões no ano. Gráfico 2: Contas selecionadas do balanço de pagamentos e reservas internacionais no Brasil, 2003-2009

FONTE: Banco Central do Brasil. Elaboração do autor. Nota: O resultado de 2009 refere-se ao acumulado até setembro, no caso das contas de fluxo, e da posição de setembro de 2009, no caso das reservas internacionais.

emergentes (primário e secundário) registram expansão expressiva notadamente entre 2005 e 2007, ainda que sob diferentes intensidades.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 3: Investimento estrangeiro em carteira no Brasil, resultado líquido, jan.2003-set.2009

FONTE: Banco Central do Brasil. Elaboração do autor.

4.2 O mercado de títulos privados no período recente Entre 2003 e 2008, o valor da emissão de títulos privados e valores mobiliários no Brasil, a preços constantes de dezembro de 2008 (IGP-DI Centrado), aumentou de R$ 14,6 bilhões para R$ 132,1 bilhões, depois de atingir R$ 141,5 bilhões em 2007. Esses dados evidenciam o expressivo crescimento do mercado de capitais brasileiro a partir de 2003, especialmente no interregno 2005-2007, bem como a abrupta inversão dessa trajetória de expansão a partir do segundo semestre de 2008, ante os impactos decorrentes da crise internacional. No acumulado entre janeiro e outubro de 2009, diante do quadro de incerteza decorrente da crise global, o total de emissões alcançou apenas R$ 30,5 bilhões, também a preços de dezembro de 2008 (Tabela 2). A Tabela 3 apresenta a participação relativa de cada um dos títulos e valores mobiliários no total das emissões no interregno 2003-2009. Pode-se observar o papel ocupado pelas debêntures no mercado de capitais brasileiro. Entre 2004 e 2006, o valor das emissões de debêntures, sempre a preços de dezembro de 2008, subiu de R$ 12,3 bilhões para R$ 83 bilhões, recuando para R$ 39,9 bilhões em 2008 (Tabela 2). A expressiva redução do valor das emissões de debêntures entre 2007 e 2008, de R$ 52,8 bilhões para R$ 39,9 bilhões, foi determinada preponderantemente pela inversão abrupta das emissões no segundo semestre de 2008, cujo valor alcançou R$ 4,42 bilhões, ante R$ 35,53 bilhões no primeiro semestre de 2008 e R$ 47,2 bilhões no primeiro semestre de 2007. 110


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

Como mostram Sant’anna e Nascimento (2009, p.3), o custo real de captação das debêntures sofre forte aumento a partir do segundo semestre de 2007, atingindo o auge no final de 2008, quanto chega a superar 11%. Esse movimento foi invertido apenas no início de 2009. Nesse contexto de incerteza, as empresas intensificam a emissão de notas promissórias para fazer frente às necessidades imediatas de liquidez, papéis de curto prazo e geralmente utilizados para o financiamento de capital de giro pelas empresas. Esse movimento explica, assim, o expressivo crescimento do volume de notas promissórias entre 2007 e 2008, de R$ 11,1 bilhões para R$ 26,4 bilhões. Tabela 2: Volume de emissões de títulos e valores mobiliários privados no Brasil, 1995-2009, R$ bilhões de dez.2008 Fundos de Investimento Imobiliários

Notas promissórias

CRI

Quotas de FIDC

Quotas de FIP

23,4

-

-

-

-

28,3

25,8

-

-

-

11,3

21,6

-

14,6

-

1998

11,4

26,6

1,7

35,6

1999

6,7

16,4

0,5

19,5

2000

3,1

18,9

0,3

16,5

0,4

2001

2,7

29,6

1,0

10,5

0,4

2002

1,9

23,9

1,7

6,5

0,2

0,3

2003

0,3

7,4

0,4

3,0

0,4

2,2

2004

5,7

12,3

0,4

2,8

0,5

6,5

2005

5,6

50,7

0,0

3,2

2,6

2006

17,1

83,0

0,1

6,3

1,3

2007

37,9

52,8

1,1

11,1

2008

32,7

39,9

0,5 0,5

Período

Ações

Debêntures

1995

6,6

1996 1997

2009 7,8 7,4 (jan./set.) Nota: CVM. Elaboração do autor.

Outros

Total

-

0,1

30,1

-

-

0,5

54,6

-

-

0,8

48,2

-

-

-

0,7

76,0

0,0

-

-

0,4

43,6

-

-

1,2

40,3

-

-

0,8

45,0

-

0,2

34,7

0,2

0,7

14,6

1,8

1,2

31,3

10,5

2,6

0,3

75,5

15,3

5,7

0,2

128,8

1,0

11,4

25,2

0,9

141,5

26,4

1,0

10,2

20,6

0,8

132,1

6,1

1,0

2,3

5,3

0,1

30,5

111


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 3: Participação percentual das emissões de títulos e valores mobiliários privados no Brasil, 1995-2009, R$ bilhões de dez.2008 Período

Ações

Debêntures

Fundos de Investimento Imobiliários

Notas promissórias

1995

21,96

1996

51,85

77,62

-

-

47,20

-

-

1997

23,40

44,76

-

30,22

1998

14,97

35,03

2,24

1999

15,26

37,73

1,26

2000

7,57

46,85

2001

6,04

65,81

2002

5,33

2003

2,22

2004

CRI

Quotas de FIDC

Quotas de FIP

Outros

Total

-

-

-

-

-

0,42

100,00

-

0,95

-

100,00

-

-

1,62

100,00

46,87 44,70

-

-

-

0,89

100,00

0,07

-

-

0,99

100,00

0,69

40,84

2,20

23,31

0,95

-

-

3,08

100,00

0,96

-

-

1,68

100,00

68,70

4,97

51,07

2,68

18,80

0,65

0,85

-

0,69

100,00

20,58

2,79

14,93

1,21

4,54

18,25

39,32

100,00

1,15

8,92

1,65

20,93

5,82

3,95

100,00

2005

7,39

2006

13,26

67,21

0,06

4,27

3,40

13,90

3,42

0,35

100,00

64,40

0,07

4,90

0,99

11,84

4,41

0,13

100,00

2007 2008

26,81

37,32

0,78

7,88

0,70

8,04

17,84

0,64

100,00

24,72

30,24

0,40

19,97

0,72

7,73

15,58

0,63

100,00

2009 (jan./set.)

25,66

24,39

1,66

19,89

3,27

7,49

17,33

0,32

100,00

Nota: CVM. Elaboração do autor.

A análise do mercado de debêntures no período recente revela uma expressiva concentração das emissões. Em 2006, por exemplo, das 36 emissões realizadas, as três maiores emissões responderam por 40% do total captado (Sant’anna, 2008, p.164). Essa concentração, ademais, tem sido encabeçada pelas empresas de arrendamento mercantil, integrantes dos respectivos conglomerados financeiros (Gráfico 4). A partir de suas empresas de leasing e buscando viabilizar a expansão das operações de empréstimos, os bancos “disfarçadamente” passaram a captar recursos a partir da emissão de debêntures para escapar dos recolhimentos compulsórios incidentes sobre as formas usuais de captação de recursos, bem como de contribuições para o Fundo Garantidor de Crédito (FGC)30. A Tabela 4 apresenta o volume de emissão de debêntures por ramo de atividade. Observa-se que entre 2004 e 2008 as empresas de arrendamento mercantil responderam por nada menos que 67% do valor total das emissões de debêntures realizadas no Brasil. Nesse contexto, em janeiro de 2008 o Banco Central passou a impor recolhimento compulsório sobre as debêntures emitidas pelas empresas de leasing, cujos 30 O sistema consistia na emissão de debêntures pelas empresas de leasing. Os papéis eram subscritos pelo banco ou pelos fundos por ele comandados. Os recursos captados, então, retornavam às subsidiárias via depósitos interfinanceiros, liberando recursos para empréstimos. Sobre esse processo, ver ainda Lucchesi e Bautzer (2006).

112


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

recursos eram transferidos aos bancos via depósitos interfinanceiros. Isso, conjugado à intensificação da crise internacional, implicou uma expressiva retração das emissões desses papéis, depois do auge atingido em 200631. Entre 2006 e 2008, as emissões de debêntures recuaram de R$ 83 bilhões para R$ 39,5 bilhões, com o acumulado entre jan./out.2009 atingindo apenas R$ 7,4 bilhões. Gráfico 4: Maiores emissores de debêntures, médias por período (1995/2001 e 2002/2008) – R$ bilhões de dez.2008

Fonte: Sistema Nacional de Debêntures apud Carvalho et al. (2009a, p.89). Deflator: IGP-DI Centrado.

31 Segundo Freitas (2009, p.244): “No que se refere à redução nas emissões de debêntures, muito contribuiu a introdução, pelo Conselho Monetário Nacional, no final de janeiro de 2008, de um recolhimento compulsório gradual de 5%, previsto para atingir 25% em março de 2009, sobre os depósitos bancários das empresas de leasing. Essa medida foi adotada com o objetivo de frear a concessão de crédito bancário, principalmente para pessoas físicas (que vinha crescendo a uma taxa superior a 20% ao ano) e, assim, desestimular a demanda interna e evitar pressões inflacionárias. Isso porque, para escapar do recolhimento de depósitos compulsórios e contribuições para o Fundo Garantidor de Crédito (FGC) que incidem sobre os recursos captados via certificado de depósito bancário (CDB), os bancos utilizaram intensamente suas empresas de leasing para captar recursos via emissão de debêntures no período 2005-2007”. Com a intensificação da crise internacional, contudo, o Banco Central alterou o cronograma de elevação gradual do recolhimento compulsório sobre essas operações, de modo a não agravar as condições adversas de liquidez do sistema (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2008).

113


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 4 - Volume de emissões de debêntures por ramo de atividade, 1995-2008 Ramo de atividades

1995 a 1998

1999 a 2003

2004 a 2008

R$ bilhões

% do total

R$ bilhões

% do total

R$ bilhões

% do total

Arrendamento mercantil

35,64

40,2

13,28

14,4

169,41

67,0

Emp. adm. participações

18,62

21,0

25,20

27,4

26,94

10,7

Energia elétrica

10,85

12,2

16,11

17,5

18,99

7,5

Metalurgia e siderurgia

4,40

5,0

7,38

8,0

4,15

1,6

Serviços de transporte e Logística

1,23

1,4

2,08

2,3

3,05

1,2

Telecomunicações

0,07

0,1

7,37

8,0

6,99

2,8

Outros ramos de atividade

17,92

20,20

20,51

22,31

23,23

9,19

Total

88,73

100,0

91,93

100,0

252,75

100,0

Fonte: Sistema Nacional de Debêntures (http://www.debentures.com.br/) apud Carvalho et al. (2009a, p.77). Deflator: IGP-DI Centrado, preços de dez.2008.

Outras características marcantes do mercado de debêntures brasileiro são a baixa participação dos investidores estrangeiros, o baixo grau de desenvolvimento do mercado secundário (volume e giro) e o pequeno estoque de papéis efetivamente no mercado (Lopes, Antunes e Cardoso, 2007; Silva e Leal, 2008, p.16). O Gráfico 5 mostra a desproporção entre o volume negociado no mercado secundário de ações vis-à-vis o de debêntures, revelando a baixa profundidade desse último. De mais a mais, porém não menos importante, deve-se destacar que parcela majoritária dos papéis emitidos mostra-se indexada à taxa CDI32 (Tabela 5), o que concorre para instabilizar as decisões de inversão e, assim, restringir a captação de recursos pelas empresas produtivas que buscam ampliar sua capacidade produtiva, ante a possibilidade de modulações bruscas e inesperadas dos custos de captação (Carvalho et al., 2009b). Todos esses fatores, num contexto de elevado patamar de taxa básica de juros, concorrem no sentido de reprimir o desenvolvimento do mercado de debêntures no Brasil. Do lado da oferta de debêntures, pois, colocam-se restrições relacionadas ao patamar elevado da taxa Selic, base para o CDI, o que torna elevado o custo de captação de recursos pelas empresas; ao “perfil selicado” das emissões, induzido pela “indexação financeira”, condição que atribui incerteza ao cálculo capitalista ao tornar indefinido o custo de captação de recursos pelas empresas; e à concentração desse mercado nas grandes empresas e nos grandes conglomerados financeiros – nesse último caso, para driblar as restrições impostas pela autoridade monetária. Do lado da demanda, por seu turno, colocam-se constrangimentos que vão desde o baixo grau de desenvolvimento do mercado secundário até a existência de “substitutos mais que perfeitos” para esses papéis, representados pe32 A indexação das debêntures à taxa CDI foi permitida em 1999, mediante a Decisão-Conjunto BC/CVM n.7, de 23/09/1999.

114


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

los títulos públicos indexados à taxa Selic – dispondo de mercado secundário bastante profundo e baixo risco. Ademais, apenas parte dos recursos captados via debêntures tem se destinado à realização de investimentos pelas empresas. Entre 2004 e 2008, a maior parte dos recursos foi destinada para capital de giro (42%), como mostra a Tabela 6. As aquisições de bens para arrendamento, por seu turno, responderam por 19,4% da destinação total dos recursos. O alongamento do perfil de endividamento representou apenas 16,4% do volume de emissões; investimento em imobilizado, 1,1%; investimento ou aquisição de participações societárias, 12,8%. Considerando, ainda, que parcela relevante desses recursos no período recente (20042008) consistiu em “operações bancárias disfarçadas” realizadas pelas empresas de leasing e que a destinação efetiva dos recursos pode ser diferente daquela prevista nos prospectos descritos pelas empresas para a emissão dos papéis, muitas vezes imprecisos33, pode-se concluir que apenas uma fração dos recursos captados mediante emissão de debêntures constituiu funding para as poucas empresas participantes desse mercado no Brasil. Gráfico 5: Volume negociado nos mercados secundários de ações e debêntures, R$ bilhões de dez.2008 (jan.1995/set.2009)

Fonte: CVM (SND e Bovespa). Deflator: IGP-DI Centrado. SND: Sistema Nacional de Debêntures; Bovespa: Bolsa de Valores de São Paulo. Elaboração do autor.

33 Sobre esse ponto, ver o último capítulo do trabalho de Godoy (2004).

115


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 5 – Participação percentual das debêntures emitidas por indexador, 1995-2008 Período Índice de Taxa Preços Anbid

BTN

TR

TJLP

TBF

Dólar Com.

Taxa DI

Sem Correção

1995

46,84

3,8

-

24,67

3,8

-

-

-

20,89

1996

49,78

9,52

-

7,36

1,3

0,87

-

-

31,17

1997

32,76

6,03

-

4,31

1,72

-

-

-

55,18

1998

44,04

9,12

-

6,16

14,14

-

-

1999

20,66

20

-

2,27

-

-

40,25

16,82

2000

17,75

2,06

-

12,52

-

0,05

67,48

-

2001

28,92

-

-

-

2,98

-

-

67,75

0,35

2002

25,22

-

-

-

-

-

-

74,62

0,16

2003

12,6

-

-

-

1,46

-

-

85,84

0,1

2004

25,1

-

-

-

-

-

3,93

70,21

0,76

2005

2,83

-

-

-

0,12

-

4,6

92,45

-

2006

1,91

-

-

-

-

-

2,72

95,37

-

2007

5,37

-

-

-

-

-

0,11

93,37

1,15

2008

0,3

-

-

-

-

-

0,22

99,48

-

0,14

-

26,54

Fonte: Sistema Nacional de Debêntures (http://www.debentures.com.br/) apud Carvalho et al. (2009a, p.64). Deflator: IGP-DI Centrado, preços de dez.2008.

Tabela 6 – Volume de Emissões de Debêntures por Destinação de Recursos (R$ bilhões de dez/2008) Destinação de recursos

1995 a 1998

1999 a 2003

2004 a 2008

R$ bilhões

% do total

R$ bilhões

% do total

R$ bilhões

% do total

Alongamento do perfil de endividamento

6,17

4,1

30,35

34,1

41,81

16,4

Aquisição de bens para arrendamento

27,60

18,3

5,46

6,1

49,31

19,4

Capital de giro

40,22

26,7

14,75

16,6

106,81

42,0

Investimento em imobilizado

48,89

32,5

8,73

9,8

2,85

1,1

Invest. ou aquis. de partic. societárias

5,20

3,5

11,31

12,7

32,69

12,8

Redução de passivo

9,88

6,6

8,71

9,8

7,82

3,1

Outros destinos

12,67

8,4

9,61

10,8

13,29

5,2

Total

150,62

100,0

88,91

100,0

254,58

100,0

Fonte: Sistema Nacional de Debêntures (http://www.debentures.com.br/) apud Carvalho et al. (2009a, p.77). Deflator: IGP-DI Centrado, preços de dez.2008.

A expansão do mercado de capitais brasileiro entre 2004 e meados de 2008 também foi influenciada pelos seguintes instrumentos de securitização: a) Certi-

116


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

ficados de Recebíveis Imobiliários (CRI)34, Lei 9.514/97, com a primeira emissão ocorrendo em setembro de 1999; b) Fundos de Investimento Imobiliário35, cuja primeira emissão foi realizada em janeiro de 1998; c) Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC)36, lastreado em direitos e títulos representativos de crédito, com primeira emissão em dezembro de 2002; e d) Fundos de Investimentos em Participação (FIP)37, como emissão inicial em outubro de 2003. Entre esses instrumentos de securitização, destacam-se os FDIC38 e os FIP, com emissões de R$ 10,2 bilhões e 20,6 bilhões em 2008. Segundo Rocca (2008, p.85), os fundos de venture capital e private equity (FIP) cumpriram papel importante na expansão das IPOs no período recente. No acumulado entre jan./out. de 2009, contudo, o volume de captação mediante esses instrumentos recuou significativamente (Tabela 2). 4.3 O mercado de ações no período recente O dinamismo do mercado de ações brasileiro registrado entre 2004 e meados de 2008 respondeu, diretamente, ao contexto de alta liquidez internacional, que concorreu no sentido de aumentar o grau de preferência por rentabilidade de parte dos investidores estrangeiros e, assim, condicionou uma reorientação de seus portfólios aos ativos de maior risco (Biancareli, 2008; Carvalho et al., 2009b). O Gráfico 6 permite observar a expressiva elevação do Ibovespa, bem como da capitalização da Bovespa em reais constantes de dezembro de 2008 e em dólares correntes. Em janeiro de 2003, o Ibovespa estava em 10.941 pontos. Em maio de 2008, por seu turno, o índice alcançou seu ponto máximo, atingindo 72.593 pontos (fim de período). O crescimento em ritmo mais acelerado do Ibovespa ocorreu a partir do final de 2004, reflexo da intensificação do ingresso líquido de investimento estrangeiro na Bovespa, incentivada pelo ambiente internacional, pelas perspectivas favoráveis da economia brasileira e 34 Instrução CVM n.414 de 2004. Instrumento que possibilita a secutirização de créditos imobiliários, tratando-se de um título de crédito nominativo, de negociação livre, com lastro em créditos imobiliários e promessa de pagamento em dinheiro. Para mais informações, ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ L9514.htm. 35 Instrução CVM n.205 de 1994, alterada pela Instrução n.389 de 2003 e n.418 de 2005 – ver http://www. cvm.gov.br/port/glossario/glossario.asp#07. Destinado à aplicação de empreendimentos imobiliários mediante recursos captados através de valores mobiliários. 36 Instrução CMN n.356 de 2001 e Resolução CVM 2.907 de 2001 (http://www.anbid.com.br/documentos_ download/legislacao/fundos_de_investimento/outros_fundos/resolucoes/resolucao_2907_fidc.pdf ). Fundos destinados majoritariamente à aplicação em direitos creditórios e títulos representativos desses direitos. A mesma resolução, deve-se salientar, autorizou a constituição e o funcionamento dos fundos de aplicação em quotas de fundos de investimentos em direitos creditórios. 37 Instrução CVM n.391 de 2003. Fundos constituídos sob a forma de condomínio fechado, sendo a estratégia de saída e o prazo de duração determinados. Participam de empresas de capital aberto ou fechado, podendo, assim, influenciar as decisões das empresas. Segundo Rocca (2008, p.85): “[...] O acentuado crescimento dos recursos à disposição desses fundos é um indicador antecedente do número de IPOs que se pode esperar com essa origem nos próximos anos, em continuação à evolução recente. [...]”. 38 O FDIC tem constituído importante instrumento de captação de recursos de médio prazo pelas empresas, com um custo de captação bem abaixo das modalidades convencionais de crédito destinadas às pessoas jurídicas.

117


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

pela redução do patamar da taxa básica de juros da economia – processos esses, evidentemente, intimamente relacionados entre si. Gráfico 6: Ibovespa e capitalização da Bovespa, jan.1995/out.2009

Fonte: CVM. Elaboração do autor.

Essa íntima relação entre investimentos estrangeiros e desempenho do mercado acionário brasileiro decorre da preponderância dos investidores estrangeiros nos grupos de investidores da Bovespa (Gráfico 7). Essa elevada participação do capital estrangeiro no mercado de ações brasileiro torna a Bovespa altamente suscetível às modulações dos fluxos internacionais de capitais, tornando-a altamente reflexa e dependente do ingresso de capital internacional. O Gráfico 8 apresenta as variações percentuais mensais do Ibovespa e o fluxo líquido de investimentos estrangeiros em ações. Observa-se que a redução do Ibovespa a partir de meados do segundo semestre de 2008 decorreu dos saldos líquidos negativos desses investimentos. A crescente liberalização financeira da economia brasileira, ademais, tende a intensificar essa relação, impondo limites para esse mercado contribuir de forma sustentada e estável para o financiamento do desenvolvimento. Se, por um lado, nos momentos de abundância de capital internacional, o ingresso líquido de investimentos estrangeiros concorre para dinamizar o mercado de ações, por outro, nos contextos de maior aversão ao risco, o processo de inversão dos fluxos internacionais de capitais acentua o processo de deflação de dívidas e de risco sistêmico. Isso ficou mais uma vez claro no segundo semestre de 2008, quando da eclosão da crise global. Entre a capitalização máxima em reais constantes da Bovespa ocorrida em outubro de 2007, de R$ 2,8 trilhões, e a capitalização mínima atingida em novembro de 2008, de R$ 1,35 trilhão, nada menos que R$ 1,4 trilhão, pouco mais da metade da capitalização máxima, desa118


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

pareceu. Em dólares correntes, por sua vez, a desvalorização patrimonial ocorrida entre maio de 2008 (pico) e novembro de 2008 (vale) foi ainda mais aguda, atingindo 63%, ante a combinação entre depreciação do valor das ações e da taxa de câmbio, acentuando ainda mais os prejuízos. Gráfico 7: Participação percentual dos grandes grupos de investidores na Bovespa, segundo o volume de recursos negociados, em % (2001-2009)

Fonte: Bovespa (Mercado, Informe Técnico). Elaboração do autor.

Gráfico 8: Variação percentual mensal do Ibovespa e saldo líquido de investimentos estrangeiros em ações (jun.2004/set.2009)

Fonte: CVM e Banco Central. Elaboração do autor.

119


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Essa significativa expansão do mercado secundário de ações foi acompanhada pelo aumento da captação de recursos mediante Ofertas Públicas Iniciais de ações (IPO) e emissão adicional (follow-on), mesmo considerando-se a elevada relação entre o volume negociado no mercado secundário e o negociado no mercado primário de ações no Brasil39. A Tabela 7 apresenta o volume total da distribuição, subdividido em IPO e follow-on e emissões primárias e secundárias. Pode-se verificar que o número de IPOs subiu de 7 para 64 entre 2004 e 2007, com o volume de recursos aumentando de R$ 5,6 bilhões para R$ 61,9 bilhões, considerando-se os valores a preços constantes de 2008. Deve-se salientar, contudo, que apenas uma parte desses montantes diz respeito a ofertas primárias de ações. Em 2007, por exemplo, do volume total indicado, R$ 61,9 bilhões, R$ 35,6 bilhões corresponderam às emissões primárias, sendo que o restante, R$ 26,2 bilhões, correspondia a distribuições secundárias de ações. Tem-se, pois, que apenas uma parte do volume total refere-se ao processo de captação de recursos pela empresa, pois na distribuição secundária os recursos são destinados aos controladores40. Tabela 7: Ofertas Públicas e IPOs na Bovespa, 2004-2009* Tipo

2004*

2005

2006

2007

2008

2009*

Total

Número

7

9

26

64

4

5

115

Volume total - 5.645,7 R$ bi de 2008

6.493,2

18.000,6

61.882,1 7.494,9

22.818,7 122.335,3

Primária

2.145,7

3.634,3

10.621,1

35.640,0 7.494,9

13.224,9 72.761,0

Secundária

3.500,0

2.858,9

7.379,5

26.242,0 0,0

9.593,9

49.574,3

12

16

70

IPO

Follow-On Número

8

10

16

8

Volume total - 5.432,5 R$ bi de 2008

10.118,7 17.636,5

16.085,1 26.760,5

20.293,5 96.326,8

Primária

3.349,9

1.538,7

8.313,9

4.635,2

14.378,5 57.189,3

Secundária

2.082,6

8.580,0

9.322,6

11.449,9 1.787,5

24.973,1

5.914,9

39.137,5

39 Segundo Carvalho et al. (2009a, p.85), essa relação, mensurada a partir dos valores em dólares, atingiu 51, considerando-se a média do interregno 2004-2008. Não obstante, a dinamização do mercado secundário, quando articulado com o aumento dos preços das ações, incentiva as emissões primárias pelas empresas. A valorização do mercado de ações do Brasil entre 2004 e meados de 2008, com a consequente ampliação da relação preço/lucro e preço/valor patrimonial das companhias listadas, num contexto de redução da taxa básica de juros, também implicou a redução do custo de capital próprio das empresas, condição que incentivou as operações de follow-on e IPOs (Rocca, 2008, p.87; 92). 40 Prática essa que responde, inclusive, à venda compulsória de ações por parte dos controladores em razão das regras de governança prevalentes no âmbito do Novo Mercado, de modo a preservar os direitos dos acionistas minoritários.

120


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades Total Número

15

Volume total R$ bi de 2008

11.078,2 16.611,9 35.637,1

19

42

77.967,2 34.255,5

43.112,2 218.662,1

Primária

5.495,6

5.173,0

40.275,2 32.468,0

27.603,4 129.950,3

Secundária

5.582,6

11.438,9 16.702,1

37.692,0 1.787,5

15.508,8 88.711,8

18.935,0

76

12

21

185

Fonte: BM&FBOVESPA. *Nota: os dados de 2004 têm início em abril de 2004; os dados de 2009 referem-se ao acumulado até novembro. Deflator: IGP-DI Centrado, média anual (em 2009, média jan./set.). Elaboração do autor.

As operações follow-on, por seu turno, também apresentaram crescimento no período considerado, embora em ritmo menos acelerado e com o auge tendo sido alcançado em 2006, ao invés de 2007 (Tabela 7). Entre 2004 e 2006 o número dessas operações passou de 8 para 16, com o volume total de recursos subindo de R$ 5,4 bilhões para R$ 17,6 bilhões. Também nesse caso, apenas uma parte do volume captado correspondeu às emissões primárias. Desse modo, considerando-se tanto as emissões primárias, como as followon, observa-se um significativo aumento do volume total de ofertas públicas e IPOs, de R$ 11,1 bilhões para R$ 78,0 bilhões, no curto período entre 2004 e 2007. Em 2008, registrou-se uma significativa diminuição dessas operações, tendo atingido R$ 34,3 bilhões, sendo R$ 7,5 bilhões de IPOs e R$ 26,8 bilhões de follow-on, ante o contexto de alta incerteza então prevalecente e, por extensão, condições desfavoráveis de captação de recursos via ações. Em 2009, considerando-se as operações realizadas até meados de novembro, houve uma recuperação em relação ao ano anterior, com o volume total de distribuição tendo atingido R$ 43,1 bilhões e o número total de operações tendo aumentado. Deve-se observar, contudo, que o volume total de distribuição de 2009 acha-se bastante influenciado pela IPO (primária) realizada pelo Banco Santander em outubro, de R$ 13,2 bilhões (valores correntes). Os dados da Tabela 7 referem-se ao volume total da distribuição de ações. Não obstante, em muitos casos, apenas parte desse volume diz respeito à oferta brasileira. A Tabela 8, então, apresenta o volume total da distribuição no interregno 2005-2009, bem como a participação do capital estrangeiro no volume total da distribuição. A fonte de dados, contudo, além de disponibilizar as informações apenas a partir de 2005, não fornece nem a distinção entre IPO e follow-on, tampouco entre primária e secundária. Ademais, diferentemente dos dados da Tabela 7, a periodização da Tabela 8 toma como referência a data da emissão, ao invés da data de precificação – o que explica as diferenças dos valores referentes ao volume total da distribuição nos mesmos anos. A despeito dessas limitações, os dados permitem observar que o expressivo crescimento das IPOs e das ofertas públicas 121


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

de ações entre 2004 e 2007 contou com a expressiva participação do capital estrangeiro – embora um volume bem maior dos investimentos estrangeiros tenha como destino o mercado secundário. Tabela 8: Participação dos estrangeiros nas ofertas públicas de ações no Brasil, 2005-2009 Volume total da distribuição (A)

Volume da oferta brasileira (B)

(A) / (B)

R$ bi de 2008

R$ bi de 2008

%

2005

19,34

15,97

2006

33,37

32,01

2007

72,88

2008

41,09

2009

39,95

Período

Volume estrangeiro na oferta brasileira

Volume estrangeiro na oferta total

R$ bi de 2008

Participação %

R$ bi de 2008

Participação %

82,60

8,27

51,81

11,64

60,19

95,93

21,02

65,66

22,38

67,06

69,74

95,70

51,84

74,3

54,98

75,4

34,15

83,12

12,84

37,6

19,77

48,1

31,86

79,75

18,65

58,5

26,74

66,9

Fonte: BM&FBOVESPA. Nota: os dados de 2009 não consideram as emissões realizadas depois de 26/10/2009. Elaboração do autor.

Tem-se, pois, que além da elevada participação do capital estrangeiro no crescimento das ofertas de ações no período mais recente, parcela representativa das emissões refere-se a ofertas secundárias, pouco ou nada tendo a ver com a utilização dos recursos para a expansão da capacidade produtiva das empresas, uma vez que os recursos são destinados aos controladores. A Tabela 9, elaborada a partir de informações dos prospectos de emissão das empresas participantes de ofertas públicas primárias, mostra que a aquisição de participação societária representou quase 30% do destino dos recursos captados pelo conjunto de empresas considerado, tanto no interregno 1999-2003, como 2004-2008. Os valores, contudo, são influenciados pelas emissões mais representativas, devendo ser analisados com cautela, além das restrições já indicadas. Considerando-se o total do interregno mais recente, 2004-2008, verifica-se que pouco menos da metade dos recursos levantados pelas empresas via emissão de ações destina-se a investimentos e reestruturação de passivos, operações mais articuladas com o conceito de funding. As empresas utilizam parcela não desprezível dos haveres captados para o financiamento de capital de giro. Esses números sugerem, assim, que mesmo quando consideradas apenas as ofertas primárias de ações, que correspondem a uma parcela do volume total da distribuição, somente uma parte dos recursos captados tem como destino as atividades produtivas e/ou operações relacionadas com o financiamento do investimento.

122


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades Tabela 9: Destinação dos recursos captados mediante ofertas públicas primárias de ações, R$ bilhões de 2008 e participação % (1999-2008) Aq. de partic. acionária

Investimento

Reestruturação de passivo

Capital de giro

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

1999

4,5

60,4

1,2

16,0

1,5

20,1

-

-

2000

0,1

2,3

2,5

77,5

0,0

0,3

0,6

19,9

2001

0,1

3,8

1,1

39,6

1,6

56,5

-

-

2002

-

-

0,2

9,5

1,5

74,7

0,2

11,1

2003

-

-

-

-

0,1

34,8

0,2

65,2

Total 1999-2003

4,7

29,8

5,0

31,5

4,7

29,7

1,1

6,8

2004

0,0

0,7

2,5

40,5

1,5

23,9

1,7

26,4

2005

1,2

21,4

1,9

35,0

0,4

7,6

1,2

22,2

2006

1,4

8,6

7,8

47,0

4,9

29,3

1,5

9,0

2007

5,3

14,6

18,5

51,4

3,1

8,7

3,3

9,0

2008

17,6

54,8

3,9

12,3

0,1

0,3

4,0

12,5

Total 2004-2008

25,6

26,4

34,8

36,0

10,0

10,4

11,7

12,1

Total Geral

35,0

-

44,8

-

19,4

-

13,8

-

Período

Fonte: CVM apud Carvalho et al. (2009a, p.95). Nota: Valores calculados a partir dos prospectos de emissão registrados para as ofertas públicas. Deflator: IGP-DI Centrado.

Tabela 9: Continuação Ativos financeiros

Operações de crédito

Outros

Não informados

Total

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

R$ bi

Part. %

1999

-

-

-

-

-

-

0,3

3,4

7,5

100,0

2000

-

-

-

-

-

-

-

-

3,2

100,0

2001

-

-

-

-

-

-

-

-

2,8

100,0

2002

0,1

4,7

-

-

-

-

-

-

2,0

100,0

2003

-

-

-

-

-

-

-

-

0,3

100,0

Total 1999-2003

0,1

0,6

0,0

0,0

0,0

0,0

0,3

1,6

15,9

100,0

2004

-

-

-

-

-

-

0,5

8,4

6,2

100,0

2005

-

-

-

-

-

-

0,8

13,8

5,6

100,0

2006

-

-

-

-

0,0

0,3

1,0

5,9

16,7

100,0

2007

-

-

5,2

14,4

0,5

1,3

0,2

0,5

36,0

100,0

2008

-

-

-

-

6,5

20,2

-

-

32,1

100,0

Total 2004-2008

0,0

0,0

5,2

5,4

7,0

7,3

2,5

2,5

96,7

100,0

Total Geral

0,2

-

5,2

-

7,0

-

3,0

-

128,4 -

Período

Fonte: CVM apud Carvalho et al. (2009a, p.95). Nota: Valores calculados a partir dos prospectos de emissão registrados para as ofertas públicas. Deflator: IGP-DI Centrado.

123


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

O pequeno número de emissões primárias de ações – assim como de debêntures, conforme indicado na seção anterior – revela que o mercado de capitais brasileiro, particularmente o acionário, constitui um mercado altamente seletivo. O caráter restrito desse mercado, ademais, não se circunscreve apenas ao âmbito do mercado primário. Em outubro de 2009, apenas 387 empresas tinham ações negociadas na Bovespa (Tabela 10). No mais, porém não menos importante, além de contar com poucos participantes, o mercado secundário de ações no Brasil se mostra altamente concentrado. As cinco maiores empresas detinham uma participação de 31,9% no volume total negociado em outubro de 2009, tendo atingido 41,2% em dezembro de 2008. As vinte maiores empresas, por sua vez, detinham uma participação de 55% e 46,9% do volume total em dezembro de 2008 e outubro de 2009, respectivamente (Tabela 10). Tabela 10: Mercado de ações no Brasil: concentração e companhias abertas (2001-2009) dez/01

dez/02

dez/03

dez/04

dez/05

dez/06

dez/07

dez/08 out/09

A maior

14,4

15,6

13,0

9,3

9,2

12,3

17,0

19,9

11,0

5 maiores

35,7

39,7

36,6

30,7

31,2

34,7

37,6

41,2

31,9

10 maiores

53,5

55,8

49,8

48,0

44,7

45,6

50,4

55,0

46,9

20 maiores

75,3

76,1

69,9

66,2

62,3

61,0

65,6

69,9

64,5

30 maiores

83,7

85,2

80,6

76,9

73,2

71,5

74,6

77,3

73,6

40 maiores

89,0

90,9

87,1

83,7

80,4

78,4

79,9

82,9

79,6

50 maiores

92,6

94,5

91,6

88,5

85,9

83,5

83,9

87,4

84,3

Indicadores Concentração (%)

Número de Cias. abertas

Total

830

792

718

651

620

624

682

680

660

Com ações negociadas

428

399

369

358

343

350

404

392

387

Fonte: BM&FBOVESPA e CVM. Deflator: IGP-DI Centrado, médias anuais (2009, média entre jan./set.). Elaboração do autor.

5. Conclusão O crescimento sustentado da economia brasileira requer uma estrutura de financiamento de longo prazo. A inexistência desse sistema induz as empresas a conformarem uma estrutura de capital apoiada majoritariamente no autofinanciamento. O limitado grau de desenvolvimento financeiro da economia brasileira impõe, assim, uma situação de constrangimento financeiro para o crescimento das empresas, notadamente as pequenas e médias. A expansão recente do mercado de capitais brasileiro tem decorrido fortemente do ingresso de recursos estrangeiros, notadamente no mercado de ações, e da redução do patamar da taxa básica de juros da economia. Todavia, essa 124


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

expansão tem contribuído apenas timidamente para a ampliação da capacidade produtiva da economia. Além de o mercado de capitais brasileiro ser altamente restrito às grandes empresas, ante sua elevada concentração em termos de número de empresas e setores, apenas uma parte dos recursos captados tem sido destinada a operações articuladas com a ampliação da capacidade produtiva da economia. No caso particular do mercado de ações, ademais, verificou-se que a elevada participação dos investidores estrangeiros torna esse mercado altamente dependente dos ciclos internacionais de liquidez. Os efeitos adversos provocados por esse alto grau de subordinação ao capital estrangeiro foram mais uma vez revelados em meados do segundo semestre de 2008, quando a reversão dos fluxos de capitais ensejada pela crise global implicou uma rápida e expressiva desvalorização dos preços das ações, da riqueza. A despeito de todas as experiências recentes de expansão e retração da liquidez internacional e de seus efeitos sobre a economia brasileira, mais uma vez o “estado de ânimo” ao qual se referiu Galbraith (1972) parece ter influenciado boa parte das análises realizadas sobre o mercado de capitais brasileiro – fundadas basicamente nos fatores internos, não raro micro-institucionais, para explicar a “revolução” desse mercado no período recente. Isso não significa que avanços institucionais e microeconômicos não sejam importantes para a expansão do mercado de capitais no Brasil. Significa, apenas, que os determinantes externos cumprem papel decisivo para explicar os movimentos de expansão e retração de mercado em particular. À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a redução abrupta do Ibovespa e a paralisação das emissões primárias no segundo semestre de 2008 indicam, uma vez mais, a importância dos bancos públicos para o financiamento do desenvolvimento brasileiro. A alta suscetibilidade do mercado acionário aos movimentos de pânicos e manias mostra-se ainda mais latente em economias periféricas, situadas na base da hierarquia do sistema monetário internacional. Essa característica, ainda que passível de atenuação mediante regulação, supervisão e políticas diretas de intervenção, torna as iniciativas destinadas ao aumento do grau de liberalização financeira da economia brasileira, bem como à diminuição do papel dos bancos públicos - incluindo o BNDES -, altamente arriscadas. No âmbito mais geral, além de um contexto internacional benigno, o prosseguimento da expansão do mercado de capitais brasileiro requer, principalmente, a prevalência de um patamar de taxa de juros real compatível com a expansão da fronteira de possibilidade de inversão do setor privado, capaz de estimular as decisões empresariais em direção aos ativos instrumentais. Um patamar baixo de taxa de juros real, ademais, tende a reorientar o portfólio dos investidores institucionais instalados no Brasil em direção ao mercado de títulos e valores mobiliários privados, dinamizando esse mercado. Não menos importante, medidas orientadas para a redução da instabilidade ensejada pelas 125


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

oscilações abruptas e repentinas dos fluxos internacionais de capitais, premiando os capitais de longo prazo e impondo restrições sobre os capitais de curto prazo, podem contribuir nessa mesma direção. No que tange ao mercado de títulos privados, em particular, a análise realizada indica a necessidade de medidas que busquem dinamizar os mercados secundários de negociação desses ativos. Não menos importante, a institucionalidade da indexação financeira, se por um lado pode contribuir para a redução do prêmio de risco cobrado pelos compradores desses papéis, especialmente num contexto de perspectiva de elevações bruscas e inesperadas da taxa básica de juros, por outro, ao induzir a indexação dos títulos privados de longo prazo (debêntures) à taxa de juros de curto prazo, pode reprimir o desenvolvimento desse mercado, ante seus efeitos adversos sobre o cálculo empresarial. Finalmente, faz-se relevante a implementação de medidas orientadas para a democratização do acesso ao capital de longo prazo no Brasil, permitindo a captação de recursos por parte das empresas pequenas e médias, maiores geradoras de emprego e renda e mais dependentes de recursos externos para viabilizar seu crescimento. Nada garante, contudo, uma destinação dos recursos captados para a consolidação de dívidas (funding) e investimentos. Para isso, requer-se a continuidade do crescimento econômico, o que recoloca a necessidade de redução do patamar da taxa básica de juros e, num plano mais geral, de políticas econômicas orientadas para o desenvolvimento. Bibliografia ALMEIDA, J. S. G. de; CINTRA, M. A. M.; AVANIAN, Claudio; NOVAIS, L. F.; FILLETI, J. de P. Padrões de financiamento das empresas não-financeiras no Brasil. In: CARNEIRO, R. de M. (org.). Perspectivas da indústria financeira brasileira e o papel dos bancos públicos. Campinas: Cecon/IE/Unicamp: Rio de Janeiro: BNDES, agosto de 2009. ANDIMA. O Novo Perfil do Sistema Financeiro. 1a ed. Rio de Janeiro: Andima, 2001. ARESTIS, P.; DEMETRIADES, P. (1997). Financial development and economic growth: assessing the evidence. Economic Journal, 107 (442), pp. 783-799. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de inflação. Brasília: Banco Central, dezembro de 2008. Disponível em http://www.bcb.gov.br BECK, T., LEVINE, R. External dependence and industry growth: does financial structure matter? World Bank, 2000. Disponível em: < http://econ.worldbank.org>. Acesso em: 15.11.2009. BELLUZZO, Luiz Gonzaga Mello. O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados ‘globalizados’. Economia e Sociedade, Campinas, n.4, p. 11-20, jun.1995. BIANCARELI, A. M. O sistema financeiro doméstico e os ciclos internacionais de 126


O mercado de capitais brasileiro no período recente: evolução e singularidades

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Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira Daniela Magalhães Prates1

1. Introdução

O papel fundamental da moeda de crédito criada pelo sistema bancário para a dinâmica de acumulação de capital nas economias capitalistas foi destacado tanto por Shumpeter (1911) como por Keynes (1930). Para esses autores (e seus seguidores, dentre os quais se destaca Minsky, 1984), ao contrário da abordagem convencional, a existência de bancos2 emissores de moeda escritural libera os investidores não apenas de qualquer necessidade prévia de poupança, mas também da riqueza acumulada no passado e de sua distribuição. Ou seja, mediante a criação de crédito, os bancos adiantam os recursos necessários para a efetivação das decisões de investir, as quais, se bem-sucedidas, geram a poupança (lucros), que será utilizada para o pagamento do empréstimo. O investimento é, então, financiado no mercado monetário, sem comprometer a auto-sustentação do processo de acumulação. Assim, o fundamental, do ponto de vista keynesiano, é que as decisões de gasto sejam avaliadas e sancionadas pelo sistema bancário. Os bancos avançam o poder de compra, até então inexistente – mediante um fundo rotativo, denominado por Keynes de finance –, a partir da avaliação dos riscos de crédito (sancionando a aposta empresarial na aquisição de novos ativos) e a execução do gasto sanciona a aposta bancária. Em cada momento há um conjunto de empresas que está reali1 Professora-Doutora do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) desta mesma instituição, do CNPq e da Fapesp. Email: daniprates@ eco.unicamp.br 2 Vale mencionar o conceito de banco ou instituição bancária aqui utilizado: intermediários financeiros que captam depósitos à vista e, assim, têm a capacidade de criar moeda-crédito, o principal meio de pagamento e liquidação dos contratos nas economias capitalistas. Nos países onde prevalece a segmentação institucional no sistema financeiro, essa capacidade é exclusiva aos bancos comerciais (que, assim, se tornam sinônimos de banco), enquanto as demais instituições financeiras (bancos de investimento, instituições de poupança, etc) são denominadas de não-bancárias. Já nos países onde prevalece a forma institucional de banco universal ou múltiplo (como no Brasil após 1988), esse tipo de banco, além de atuar no mercado monetário mediante a captação de depósitos à vista e criação de moeda-crédito (por meio de sua carteira comercial), também está presente nos demais segmentos do mercado financeiro (por exemplo, no mercado de capitais atuam como bancos de investimento, dando suporte ao processo de fusão e aquisição, administrando carteiras e realizando a subscrição de emissões de ações e títulos de renda fixa).

131


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

zando o gasto de investimento e já exerceu a demanda de finance. Este conjunto de empresas está realizando um déficit financiado pelos bancos. Ao mesmo tempo, outro conjunto de empresas está colhendo os resultados de suas decisões anteriores de investimento, isto é, realiza um superávit. Esse superávit permite às corporações servir as dívidas do crédito obtido para o financiamento dos ativos que formaram no passado, e acumular fundos que irrigam o sistema bancário como intermediário financeiro para mobilizar recursos. Portanto, “o prosseguimento do processo de aumento do investimento e do endividamento permite servir a dívida no presente para que a dívida passada possa ser honrada. Nesse sentido, o investimento gera um rastro de dívidas” (Belluzzo & Almeida, 2002: p.67). Simultaneamente à materialização das fontes de crédito de curto prazo, as empresas iniciam negociações junto aos bancos de investimento (ou bancos universais com carteira de investimento) e a outras instituições atuantes no mercado de capitais para mobilizar fundos de longo prazo necessários à consolidação financeira do investimento – processo de funding. A consolidação do investimento constitui-se, então, de lançamentos de dívida de longo prazo e/ou de direitos de propriedade nesse mercado. As dívidas podem ser mantidas pelas próprias unidades de dispêndio (mediante a acumulação interna de lucros) ou pelas carteiras dos intermediários financeiros. Nesse caso, uma parcela dos ativos financeiros de longo prazo mantida pelas unidades “poupadoras” adota a forma indireta de depósitos a prazo, cotas de fundos privados de pensão e aposentadoria, apólices de seguro, fundos de ações nos bancos, fundos mútuos de investimento, debêntures e/ou ações em posse dos bancos etc (Cintra, 1999; Carneiro, 20093). Assim como os demais agentes econômicos, a decisão dos bancos de adiantar poder de compra aos empresários mediante a criação de moeda ex nihilo depende das suas expectativas em relação ao futuro em um mundo de incerteza e irreversibilidade, o que confere um caráter prócíclico à evolução do crédito e um potencial instabilizador à atividade bancária, sobretudo se o sistema for essencialmente constituído por instituições privadas com fins lucrativos (Freitas, 2009b). Movidas pela dinâmica concorrencial, essas instituições definem suas estratégias de gestão das fontes de recursos e das aplicações, procurando conciliar rentabilidade e preferência pela liquidez, com o propósito de ampliar os seus lucros. Ao longo dos períodos de expectativas otimistas, elas concedem crédito sem exigir garantias seguras e subestimam os riscos envolvidos, já que a adoção de um comportamento mais prudente vis-à-vis aos seus rivais pode resultar em perda de fatias do mercado. Ademais, introduzem inovações financeiras com o objetivo de burlar as restrições impostas pela regulamentação vigente. Em contrapartida, quando as expectativas se deterioram os bancos tendem a contrair a concessão de crédito, reduzindo linhas e prazos, elevando os juros e as exigências de garantia. 3 Para uma representação analítica do mecanismo de finance-funding, ver: Carneiro (2009).

132


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

Como sintetiza Freitas (2009b:2): “Como a assunção excessiva de risco pelos bancos na fase de auge, quando buscam ampliar suas fatias de mercado, o excesso de prudência na fase de reversão é característica intrínseca das atividades bancárias com fins lucrativos. Contudo, ao contrair o crédito, reduzindo ou não renovando as linhas, os bancos contribuem para a fragilidade financeira dos seus clientes, gerando um ciclo vicioso de aumento de inadimplência. Em certas circunstâncias, os bancos decidem racionar fortemente o crédito, refreando o crescimento econômico ou mesmo conduzindo à regressão da produção e dos investimentos”. A partir deste referencial teórico4, este capítulo pretende analisar a dinâmica do crédito bancário na economia brasileira no período recente (janeiro de 2003 a outubro de 2009). Os argumentos estão organizados em três seções, além desta introdução. A segunda seção apresenta, de forma sintética, as transformações do sistema bancário brasileiro desencadeadas pelo Plano Real, bem como suas características estruturais, que não se alteraram no período em tela. A terceira seção dedica-se à análise do ciclo de crédito que emerge em maio de 2003, nas suas fases ascendente e descendente. Na quarta seção, a título de considerações finais, são apresentadas as conclusões e algumas propostas para o aperfeiçoamento das condições de volume, custo e prazo do crédito bancário no Brasil. 2. Sistema bancário brasileiro: transformações após o Plano Real e características estruturais O Plano Real marcou o início de importantes transformações no sistema bancário brasileiro, várias das quais tiveram continuidade ao longo do ciclo de crédito recente. Um conjunto de fatores condicionou essas transformações, quais sejam: (i) em âmbito macroeconômico, a estabilização dos preços (e a consequente redução da fonte de rentabilidade por excelência dos bancos no período precedente, as receitas de floating e inflacionárias5) e a gestão das políticas monetária e cambial, com destaque para a manutenção da taxa de juros básica num patamar elevado, mesmo após a adoção do regime de câmbio flutuante, em janeiro de 19996; (ii) em âmbito estrutural, a ampliação da abertura financeira, o aumento da internacionalização do sistema bancário e a privatização dos bancos estaduais; (iii) em âmbito regulatório, a convergência da regulamentação prudencial interna aos padrões fixados pelo Bank of International Settlements (BIS), com a adoção das regras do Acordo da Basileia (Freitas, 2007a; Cintra, 2006). 4 Para maiores detalhes, ver: Freitas (1997a, 1997b e 2009), Cintra (1999) e Carneiro (2009). 5 As receitas de floating referem-se ao rendimento adicional gerado pelos recursos não-remunerados ao serem aplicados pelos bancos, mesmo com inflação zero (mas que são ampliadas num contexto de inflação alta e em aceleração). Já as receitas inflacionárias constituem os ganhos derivados da corrosão, pela inflação, dos valores reais de recursos de terceiros depositados nos bancos, sem remuneração ou remunerados abaixo da inflação (Carvalho, 1995). 6 Sobre a gestão da política monetária após 1999, quando foi adotado o regime de metas de inflação, ver capítulo 7 deste livro.

133


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Essas mudanças no ambiente concorrencial desencadearam ações reativas por parte dos bancos privados. Por um lado, essas instituições alteraram suas próprias estratégias, adotando novas tecnologias, criando novos produtos, explorando novos mercados, reduzindo seus custos, aperfeiçoando seus sistemas de controle e avaliação de riscos e diversificando suas receitas, sobretudo mediante a cobrança por serviços, antes oferecidos gratuitamente. Por outro lado, a entrada de grandes bancos estrangeiros – que estimulou a busca de escala e de market share por parte dos bancos privados nacionais varejistas, por meio de fusões e aquisições –, ao lado da privatização dos bancos estaduais (que transparece na forte queda da participação dos demais bancos públicos, de 23,5% em 1996 para 3,1% em 2001 – ver Tabela 1), resultou numa mudança do perfil institucional do sistema bancário brasileiro (com o aumento da participação dos bancos estrangeiros e redução da participação das instituições públicas em seu conjunto) e num aumento do seu grau de concentração (Freitas, 2007a)7. Como mostra a Tabela 1, ao longo do ciclo de crédito recente, os dois movimentos tiveram continuidade. Todavia, nesse período, do ponto de vista da natureza do capital, ao contrário do observado entre 1994 e 2002, observa-se um avanço da participação dos bancos privados nacionais (de 39,7% do ativo total em 2002 para 42,7% em 2007), simultaneamente ao recuo dos bancos estrangeiros (de 29,9% para 22,8% nos mesmos anos), associado à maior agressividade das instituições brasileiras na concessão de empréstimos (ver seção 3). Tabela 1. Evolução da participação dos bancos e cooperativas no ativo total do sistema Natureza do capital

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

(1)

Bancos

99,5

99,3

99,1

98,9

98,8

98,4

98,2

97,9

97,7

97,7

97,3

97,6

Públicos

58,1

52,2

53,2

47,5

39,1

24,8

28,6

32,7

31,3

30,5

38,8

32,0

BB

10,6

11,0

12,1

10,6

11,0

14,5

16,2

20,4

19,4

18,5

24,4

20,3

CEF

24,0

30,9

32,3

28,7

23,0

7,1

7,6

7,9

7,5

8,0

9,9

8,1

Demais(2)

23,5

10,3

8,9

8,1

5,1

3,1

4,8

4,5

4,4

4,1

4,5

3,6

Privados Nacionais

31,9

35,4

31,0

31,7

34,5

42,1

39,7

41,3

41,3

40,8

27,5

42,7

Controle Estrangeiro

9,5

11,7

14,9

19,8

25,2

31,5

29,9

23,8

25,1

26,4

30,9

22,8

Cooperativas

0,5

0,7

0,9

1,1

1,2

1,6

1,8

2,1

2,3

2,3

2,8

2,4

Porte(1)

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

5 maiores

48,7

50,2

50,5

50,7

50,2

47,9

50,7

53,7

53,0

52,6

53,9

54,0

10 maiores

60,1

61,3

62,7

62,7

64,1

62,4

64,1

67,2

68,0

68,8

73,0

73,3

20 maiores

72,0

75,9

75,4

76,5

78,2

77,3

79,7

81,3

83,2

83,8

86,4

87,0

Fonte: Banco Central do Brasil – Relatório da Evolução do Sistema Financeiro Nacional. Vários números. Nota: (1) Inclui bancos múltiplos, comerciais e Caixas Econômicas. Dados de dezembro de cada ano (2) Principalmente, bancos estaduais.

7 Para maiores detalhes, ver: Freitas (2007a) e Cintra (2006).

134


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

A interação entre as mudanças sintetizadas acima e a dinâmica concorrencial das instituições bancárias teve como principais desdobramentos o aumento da solidez do sistema, bem como um avanço do seu grau de sofisticação. De 1994 a 2002, contudo, não houve alteração significativa na preferência pela liquidez dos bancos privados em relação ao padrão dos anos de alta inflação. Com exceção de um curto período de expansão do crédito após o Plano Real – que teve duração de somente oito meses (conduzindo a relação crédito/PIB de 31,7% em junho de 1994 para 36,8% em janeiro de 1995), impulsionado, sobretudo, pela forte redução da sua principal fonte de rentabilidade até aquele momento, como já mencionado8 – essas instituições continuaram priorizando as aplicações em títulos públicos vis-à-vis às operações de crédito, a despeito do diferencial ainda maior de rentabilidade dessas últimas no Brasil em função do altíssimo spread bancário relativamente ao observado nos demais países em desenvolvimento9 – uma das características estruturais do sistema bancário brasileiro que persistiu no ciclo recente, como destacado na próxima seção. Tanto a manutenção dessa estratégia de alocação de portfólio, como o patamar sui generis do spread bancário no Brasil estão associados à existência de uma alternativa de aplicação especialmente atrativa que combina alta rentabilidade e baixíssimo risco: os títulos públicos indexados à taxa de juros básica (que se manteve elevada, como mencionado acima) com garantia de recomposição da carteira em momentos de estresse mediante leilões de troca e resgates antecipados pelo Banco Central do Brasil – BCB (Freitas, 2007a)10. Como assinala Oliveira (2004), esse patamar embute um componente de custo de oportunidade, representado exatamente por essa alternativa de aplicação11. A persistência de um ambiente macroeconômico adverso no período comprometeu, igualmente, tanto a oferta quanto a demanda de crédito. A despeito da estabilização de preços após o Plano Real, a economia brasileira continuou sujeita a um padrão de crescimento inconstante (stop and go) e a uma situação de instabilidade monetária, expressa no alto patamar da taxa de juros, nos desalinhamentos da taxa de câmbio e na volatilidade desses dois preçoschave – associada, até 2002, à persistência da vulnerabilidade externa e, após essa data, à gestão macroeconômica de cunho ortodoxo centrada no binômio “meta de inflação-câmbio flutuante” (Carneiro et al. 2009). 8 Sobre o ciclo de crédito do Plano Real, ver: Braga e Prates (1998) e Freitas (2000). 9 A título de exemplo, segundo dados do World Development Indicators do Banco Mundial, no ano 2000 o spread bancário no Brasil era de 40%, contra 18% na Rússia (que ocupava a segunda posição no ranking), seguidos pela Indonésia e México, com 9%. 10 Como destaca Freitas (2007b), essa estratégia foi estimulada pela elevação do índice de adequação de Basileia a 11% em 1997, o qual favorece as aplicações negociáveis de risco nulo como os títulos federais. 11 Um estudo empírico recente do spread no Brasil confirmou a hipótese de que os bancos incorporam um elevado prêmio de liquidez nas concessões de crédito frente à oportunidade de aplicações em títulos públicos indexados que combinam risco nulo, rentabilidade e liquidez. Em razão dos resultados encontrados, a conclusão dos autores é que “a redução na taxa Selic é condição sine qua non para que se possa obter uma diminuição mais pronunciada e duradoura no spread no Brasil” (Silva e outros, 2007: 218). Para uma discussão detalhada dos determinantes dos altos patamares dos spreads bancários no Brasil, ver: Freitas (2007b).

135


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Os bancos privados só ampliaram a concessão de crédito quando esta se revelou uma estratégia operacional rentável, o que somente ocorreu a partir de maio de 2003, em função de uma conjunção de fatores, como analisado na próxima seção. Todavia, ao longo do ciclo de crédito recente, ainda que a participação das operações de crédito no ativo total desses bancos tenha aumentado progressivamente e superado àquela dos títulos, valores imobiliários e derivativos12, essas operações continuaram concentradas no curto prazo, como mostram Prates & Freitas (2009). Assim, outra característica estrutural do sistema bancário brasileiro que não foi alterada neste ciclo foi a histórica “divisão de trabalho” entre as instituições públicas – especializadas na concessão de empréstimos de longo prazo a partir de recursos direcionados – e privadas – que priorizam o crédito de curto prazo, a partir de recursos de tesouraria, destinado fundamentalmente para crédito pessoal e aquisição de bens no caso de pessoas físicas e para capital de giro no caso das pessoas jurídicas. Os bancos privados somente atuam nas modalidades de maior prazo e risco mais elevado a partir de repasses de recursos externos e, principalmente, de recursos direcionados (repasses do BNDES no caso do crédito à indústria, serviços, infraestrutura e exportação e exigibilidades sobre os depósitos, no caso dos créditos rural e imobiliário) nas fases de otimismo e baixa preferência pela liquidez. Em momentos de crise e alta aversão ao risco, essas instituições contraem, de forma geral, o crédito, inclusive aquele vinculado aos repasses de fundos públicos, nos quais elas também incorrem em risco de crédito, mas não em riscos de descasamento de prazo e de preço (taxa de juros) – o que ocorreria se concedessem crédito de longo prazo a partir de recursos próprios. Assim, a melhora progressiva do contexto macroeconômico a partir de 2003 – subjacente à emergência do ciclo de crédito privado mais prolongado da história da economia brasileira, como detalhado na próxima seção – parece ter sido insuficiente para reduzir esses dois riscos adicionais inerentes ao alongamento de prazos dos empréstimos. Em outras palavras, do ponto de vista dos bancos privados presentes no país (seja brasileiros, seja estrangeiros), a economia brasileira parece não ter alcançado ainda uma situação de estabilidade monetária, ou seja, de estabilidade presente e projetada dos preços-chave, pré-condição para a queda daqueles riscos. Ademais, o peso ainda elevado dos títulos pós-fixados (ou seja, indexados à taxa básica) na composição da dívida pública continua propiciando uma combinação desfavorável para o alongamento do crédito bancário e para a redução do seu custo. Como ressalta Lopreato (2007), a gestão desta dívida no Brasil mantém o mesmo modus operandi do período de inflação elevada, garantindo às instituições bancárias um alto retorno a risco nulo. Ou seja, a consolidação da estabilidade dos 12 A participação das operações de crédito no ativo total dos cinquenta maiores bancos atingiu 33,5% em setembro de 2009, contra 19% dos títulos, valores imobiliários e derivativos, segundo informações obtidas nas estatísticas do sistema financeiro nacional disponíveis no site do Banco Central do Brasil (http://www4. bcb.gov.br/top50/port/top50.asp).

136


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

preços não foi acompanhada pela alteração na forma de atuação do Banco Central e do Tesouro, que preservaram os instrumentos tradicionais de intervenção e integração entre os mercados monetário e de títulos públicos.13 3. O ciclo de crédito recente: condicionantes e características Esta seção dedica-se à análise do ciclo de crédito recente. Para tanto, o item 3.1 discute os condicionantes conjunturais da emergência deste ciclo em maio de 2003 (quando o indicador crédito em % do PIB inicia sua trajetória de expansão)14 e o perfil das operações de crédito na fase ascendente, que se estendeu até agosto de 2008. Setembro de 2008 é considerado um mês de transição: é nele que o mercado de crédito doméstico é atingido pelo efeito-contágio da crise financeira internacional, mas seus impactos somente transparecem (em alguns indicadores) a partir de outubro. O item 3.2, por sua vez, examina este efeito, bem como a evolução do crédito na fase descendente (outubro de 2008 a outubro de 2009), caracterizada pelo movimento de desaceleração do ritmo de crescimento do crédito total, que é atenuada pela ação anticíclica dos bancos públicos15. 3.1. Condicionantes e características da fase ascendente do ciclo Após atingir o piso da série histórica do BCB (que se inicia em junho de 1994), de 21,8% no primeiro trimestre de 2003, a trajetória do indicador crédito em % PIB é de crescimento praticamente ininterrupto até o recorde histórico de 45,9%, atingido em outubro de 2009 (ver Gráfico 1), movimento associado, quase que exclusivamente, ao avanço do crédito ao setor privado (ao contrário do observado no ciclo do Plano Real, quando uma parcela relevante do crédito destinava-se ao setor público16). Num contexto de robustez patrimonial e operacional – propiciado pelo processo de ajuste e reestruturação do período precedente –, a confirmação da garantia de que não haveria alteração na política econômica do novo governo e, principalmente, a melhora progressiva do ambiente macroeconômico, induziram os bancos a redefinirem suas estratégias operacionais e a modificarem a composição de seus portfólios, expandindo de forma ativa os empréstimos aos agentes privados (Freitas, 2007b; Prates e Biancareli, 2009). 13 Além do mecanismo de zeragem automática e do compromisso de recompra pelo Banco Central dos títulos públicos de diferentes espécies e maturidades utilizadas como colateral das operações de controle de liquidez no mercado aberto, os bancos se beneficiam da existência de títulos indexados à Selic. Sobre a gestão da dívida pública e suas interrelações com o mercado monetário no Brasil, ver: Lopreato (2007). 14 Outros trabalhos datam o início do ciclo em janeiro de 2003, se baseando seja na variação nominal, seja na evolução do saldo das operações de crédito. Ver, por exemplo: Cintra (2006) e Freitas (2007b). 15 Apesar de os argumentos seguirem uma ordem cronológica, todos os gráficos apresentados abrangem o período como um todo, o que possibilita a visualização do movimento cíclico. 16 Vale lembrar que a partir de 1998 e, principalmente, após a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, o acesso dos governos estaduais ao crédito bancário foi amplamente restringido.

137


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 1. Evolução do crédito total e para o setor privado – em % do PIB

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

A evolução favorável do ambiente macroeconômico transparece num conjunto de indicadores, apresentados no Gráfico 217. No que se refere à inflação, a reversão da aceleração verificada principalmente no segundo semestre de 2002 é um dos substratos mais importantes para a inflexão da espiral descendente do crédito, já nos primeiros meses de 2003. Se no acumulado em 12 meses do IPCA essa mudança de ambiente só fica clara no segundo semestre daquele ano, os dados mensais e o reforço do aperto monetário logo nas primeiras semanas do governo Lula são capazes de derrubar rapidamente as expectativas inflacionárias: em julho de 2003, a mediana das previsões coletadas pelo BCB para o IPCA acumulado nos 12 meses futuros já voltava para um patamar razoável de 6%, vindo de um ápice de mais de 13% em janeiro. Talvez até de forma mais nítida do que para outras relações macroeconômicas, o comportamento das expectativas futuras é fundamental para a concessão do crédito bancário. Gráfico 2. Ambiente macroeconômico

17 A descrição desse ambiente baseia-se em Prates e Biancareli (2009).

138


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

Fonte: Banco Central do Brasil e Jp Morgan.

A política monetária tem, igualmente, impactos expressivos sobre a oferta de crédito (já que o seu efeito sobre a demanda de crédito foi mitigado pela ampliação progressiva dos prazos dos empréstimos, que reduziu o valor das prestações, como mencionado a seguir). Após elevar a taxa Selic para 26,5% ao ano (a.a.) em fevereiro de 2003, o BCB inicia um primeiro ciclo de cortes em junho do mesmo ano que, até março de 2004, reduziu esta taxa para 16% a.a.. Tal movimento nas metas de política monetária é capaz, pelo menos até o primeiro mês de 2004, de derrubar também as previsões sobre o custo do dinheiro 12 meses à frente. Nesse momento, a mediana destas previsões recua para um patamar pouco abaixo de 14% a. a. para, no segundo semestre, voltar a subir até o patamar de 16% a.a., em torno do qual permanece por longos meses. Tratou-se do início, antecipado pelo mercado, de um período de novos aumentos na taxa Selic que, iniciado em setembro, acaba devolvendo-a ao nível de 19,75% a.a., onde permanece até o segundo semestre de 2005. Este aperto e, sobretudo, seus efeitos sobre as expectativas, parece ter contribuído para um breve arrefecimento da trajetória de alta da relação crédito/PIB (Gráfico 1), que fica estacionada pouco acima dos 23%, voltando a crescer no último trimestre de 2004 . Desde então, eleva-se o ângulo de inclinação da curva ascendente, em paralelo com um longo ciclo de flexibilização monetária, que leva a taxa Selic ao patamar de 11,25% a.a. entre setembro de 2007 e março de 2008. A segunda onda de elevações, que tem início em abril, não teve impactos deletérios sobre a evolução do crédito, que até acelera sua expansão naquele momento. 139


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

O comportamento favorável (na maior parte da fase ascendente) da inflação corrente e projetada, bem como da taxa de juros básica, teve como importante determinante a trajetória de apreciação da moeda doméstica, associada à emergência de uma nova fase de apetite por risco e de abundância de fluxos de capitais para os países em desenvolvimento, que transparece na evolução do risco-país – medido pelo spread do índice EMBI+, calculado pelo J.P. Morgan (ver Gráfico 2). Sem grandes interrupções, o movimento do risco-Brasil é de forte baixa desde o início de 2003 até o segundo semestre de 2007 (à exceção, justamente, do primeiro semestre de 2004, quando a retomada da relação crédito/ PIB é momentaneamente interrompida). Com certo atraso, o ciclo de liquidez18 resulta num superávit crescente da conta financeira do balanço de pagamentos brasileiro que, em paralelo ao aumento do crédito doméstico, atinge um ponto máximo no ano de 2007, iniciando um movimento de retração em 2008 com o aprofundamento da crise financeira internacional. O ambiente de ampla liquidez internacional e, mais especificamente, a disponibilidade de financiamento externo para a economia doméstica, teve dois efeitos sobre o ciclo de crédito doméstico. O primeiro, direto, se materializa nas captações externas dos bancos para o financiamento do comércio exterior e outras formas de repasse. O segundo efeito, indireto e mais relevante no ciclo recente, refere-se exatamente ao impacto deste ambiente sobre a taxa de câmbio. Para uma economia como a brasileira, submetida historicamente a situações de vulnerabilidade externa, a estabilização cambial revela-se fundamental para a configuração de um ambiente mais propício à expansão das operações financeiras. Não apenas como custo em si (de eventuais captações externas), mas também por conta de suas ligações com as outras variáveis já comentadas, notadamente juros e inflação. Neste sentido, o movimento de forte apreciação cambial já a partir do início de 2003 e de maneira quase contínua até agosto de 2008, acompanhado de perto pelas expectativas sobre o valor deste preço-chave 12 meses adiante, é condicionante essencial da mais longa fase de expansão do crédito ao setor privado na história da economia brasileira. Neste contexto, o setor bancário, em resposta à evolução favorável das principais variáveis macroeconômicas que tradicionalmente afetam a oferta de crédito, altera o mix das suas operações ativas, priorizando, de forma crescente, a concessão de crédito (vis-à-vis às aplicações em títulos públicos) ao setor privado e, no âmbito deste, às famílias. As informações sobre as operações de crédito total ao setor privado (com base em recursos livres e direcionados19) por setor de atividade (ver Gráfico 3) mostram que a recuperação do crédito às pessoas físicas inicia-se 18 Sobre os impactos dos ciclos de liquidez internacional sobre a economia brasileira, ver o capítulo 2 deste livro. 19 O crédito com recursos livres corresponde àquele que pode ser alocado a critério do agente financeiro com taxas livremente pactuadas entre as partes. Já o crédito direcionado se refere a operações com base em recursos compulsórios (exigibilidades sobre os depósitos bancários, à vista e de poupança) e nos fundos parafiscais e regionais, cujas taxas ativas são fixadas pelo Conselho Monetário Nacional.

140


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

antes das demais modalidades, ainda em maio de 2003, ou seja, antecede a introdução do crédito consignado20 (uma inovação financeira introduzida pelo governo em janeiro de 2004, que teve um papel fundamental na sua aceleração, como destacado a seguir) e o início da trajetória de elevação da massa de rendimentos (que ocorre somente no final de 2004, como mostra Amitrano, 2006). O dinamismo dos empréstimos às famílias nesse período (que ultrapassa em volume o crédito industrial em setembro de 2004) decorreu, sobretudo, da expansão do crédito com recursos livres. Do lado da oferta de crédito, os bancos – sobretudo os privados e, no âmbito destes, os nacionais (ver Gráfico 4) – identificaram na ampliação desses empréstimos um enorme potencial de ganho, diante das expectativas otimistas quanto à recuperação do emprego e da renda sob o governo Lula (Cintra, 2006; Freitas, 2007a). Gráfico 3. Crédito total ao setor privado por setor de atividade: variação % frente ao mesmo mês do ano anterior

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

20 O crédito consignado, com desconto em folha de pagamento, para trabalhadores ativos e inativos, foi viabilizado pela Lei 10820 de 17 de dezembro de 2003. Trata-se de uma inovação patrocinada pelo governo, com intuito de favorecer a redução do custo dos empréstimos. Os bancos menores souberam aproveitar essa oportunidade e assumiram importantes fatias desse novo segmento (Freitas, 2007a e Cintra, 2006).

141


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 4. Saldo das operações de crédito: por origem de recursos (esquerdo) e por propriedade de capital (direito)- Variação % frente ao mesmo mês do ano anterior

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

Para os bancos em geral (e especialmente para os privados, que são guiados pela busca de lucros, como enfatizado na Introdução), essa modalidade de crédito é muito mais fácil de ser avaliada do que o crédito empresarial, que exige maior conhecimento dos negócios, análise financeira e monitoramento das atividades das empresas (Freitas, 2007b), além de ser mais rentável devido às maiores taxas de juros praticadas no segmento de pessoas físicas, reflexo, por sua vez, não somente da elevada taxa de captação, mas também do patamar dos spreads praticados no sistema bancário brasileiro, que permaneceu elevado ao longo do ciclo de crédito recente (ver Tabela 2), já que seu principal determinante estrutural não foi suprimido (o custo de oportunidade representado pela alternativa de aplicação em títulos públicos federais com alto retorno e baixo risco). Tabela 2. Condições das operações de crédito com recursos livres: taxas de juros, spread, prazo e inadimplência Taxa de juros

Taxa de captação

Spread

Prazo médio

(% a.a.)

(% a.a.)

(p.p.)

(dias corridos)

Inadimplência (%)

PJ

PF

Total

PJ

PF

Total

PJ

PF

Total

PJ

PF

Total

PJ

PF

Total

jan/03

34,8

83,6

54,2

19,9

26,8

22,5

14,9

56,8

31,7

177

308

225

2,1

7,7

4,1

jul/03

37,7

77,9

54,9

23,1

21,5

22,5

14,6

56,4

32,4

175

292

220

2,6

7,8

4,6

dez/03

30,2

66,6

45,8

15,8

15,8

15,8

14,4

50,8

30,0

170

296

220

2,2

7,3

4,2

jan/04

30,1

65,4

45,4

15,8

15,4

15,6

14,3

50,0

29,8

172

296

222

2,2

7,4

4,3

jul/04

29,7

62,0

43,9

16,6

16,7

16,7

13,1

45,3

27,2

196

283

231

1,9

6,5

3,8

dez/04

31,0

60,5

44,6

18,0

17,6

17,8

13,0

42,9

26,8

189

296

233

1,8

6,1

3,6

jan/05

32,2

62,0

46,2

18,3

18,2

18,3

13,9

43,8

27,9

190

294

234

1,8

6,1

3,6

jul/05

33,0

61,3

47,2

19,6

18,2

19,0

13,4

43,1

28,2

202

304

248

1,8

6,1

3,7

dez/05

31,7

59,3

45,9

17,9

16,5

17,3

14,0

42,8

28,8

218

319

264

2,0

6,7

4,2

jan/06

31,3

59,7

46,1

17,0

16,0

16,6

14,3

43,5

29,5

220

318

266

2,2

6,9

4,4

jul/06

28,3

54,3

42,2

14,9

14,6

14,7

13,4

39,7

27,5

218

341

276

2,4

7,5

4,8

142


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira dez/06

26,2

52,1

39,8

12,7

12,5

12,6

13,5

39,6

27,2

234

368

296

2,7

7,6

5,0

jan/07

26,2

52,3

39,9

12,6

12,3

12,5

13,6

40,0

27,4

235

374

301

2,8

7,5

5,0

jul/07

23,0

47,0

35,9

10,9

10,7

10,8

12,1

36,3

25,1

262

407

332

2,4

7,1

4,7

dez/07

22,9

43,9

33,8

11,0

12,0

11,5

11,9

31,9

22,3

275

439

350

2,0

7,0

4,3

jan/08

24,7

48,8

37,3

11,0

12,2

11,6

13,7

36,6

25,7

308

445

371

2,0

7,1

4,4

jul/08

27,5

51,4

39,4

13,0

14,8

13,8

14,5

36,6

25,6

299

470

374

1,7

7,3

4,2

dez/08

30,7

57,9

43,3

12,3

12,9

12,6

18,4

45,0

30,7

302

488

378

1,8

8,0

4,4

jan/09

31,0

55,0

42,4

12,2

11,5

11,9

18,8

43,5

30,5

298

481

374

2,0

8,2

4,6

jul/09

26,7

44,9

36,0

8,8

9,7

9,2

17,9

35,2

26,8

270

497

370

3,8

8,5

5,9

out/09

26,5

44,2

35,6

8,8

10,7

9,6

17,7

33,5

26,0

267

513

377

4,0

8,1

5,8

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

Do lado da demanda de crédito, a maior disposição de contratar empréstimos, mesmo a taxas de juros ainda muito altas, refletiu, por um lado, as expectativas favoráveis dos consumidores em relação ao desempenho futuro da economia e, por outro lado, a necessidade de atualizar a compra de bens duráveis (Cintra, 2006 e Freitas, 2007b). A partir de maio de 2003, antes dos primeiros sinais de recuperação do poder de compra, a participação do crédito às pessoas físicas no estoque total das operações de crédito com recursos livres começou a se elevar, tendência que se reforçou com a elevação da massa de rendimento a partir de 2004. Essa participação, que era de 38% no início do ciclo, atingiu o recorde de 49,3% em julho de 2007 (ou seja, praticamente metade do crédito total com recursos livres). A estratégia das grandes lojas de varejo (mimetizada pelos bancos e suas financeiras) de alongar os prazos das operações de crédito ao consumidor21, também afetou positivamente essa demanda, ao viabilizar a diminuição do valor médio das prestações num contexto de taxas de juros elevadas. Ademais, como ressalta Freitas (2009a), esse movimento também contribuiu para a redução da inadimplência, estimulando, assim, a própria oferta de crédito. A expansão dos empréstimos com recursos livres às pessoas físicas ancorou-se, desde o início do ciclo, nas modalidades de crédito pessoal, aquisição de veículos e cartão de crédito. A participação das duas primeiras modalidades, que já superava os 60% no início do ciclo, avançou ainda mais ao longo da fase ascendente (ver Gráfico 5). Somente o crédito pessoal contribuiu, em média, com quase metade (47,7%) do crescimento dos empréstimos nesta fase. Sua expansão foi impulsionada pelas operações de crédito consignado, que cresceram vertiginosamente, atingindo o volume de R$ 74 bilhões em agosto de 2008 (54,8% do total do crédito pessoal). Em função do desconto automático em folha de pagamento, o risco dessas operações é virtualmente nulo e, com isso, as taxas de juros cobradas 21 O prazo médio das operações com pessoas físicas passou de 308 dias úteis em janeiro de 2003 para 470 dias úteis em julho de 2008 (ver Tabela 1 do Anexo). O aumento dos prazos das operações de aquisições de veículos (que atingiram mais de 70 meses) foi fundamental para esse movimento.

143


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

são bem inferiores às demais modalidades de empréstimos às pessoas físicas. As operações de aquisição de veículos, que oferecem a garantia da alienação fiduciária, também tiveram um papel fundamental na expansão do crédito às famílias (ver Gráfico 5). Por permitir a rápida recuperação dos bens, o risco de crédito dessas operações também é relativamente menor, o que permite a redução da taxa de juros cobrada pelas instituições financeiras (Freitas, 2007b; Cintra, 2006). Gráfico 5. Saldo do crédito à pessoa física – Principais modalidades - em R$ bilhões

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

A própria dinâmica da demanda e da oferta de crédito, contudo, resultou na desaceleração da taxa de crescimento dos empréstimos às famílias, que se acentuou a partir de janeiro de 2008 (ver Gráfico 4). Por um lado, no segmento de bens duráveis, de maior preço unitário, o endividamento para a sua aquisição necessariamente perde ímpeto na medida em que os consumidores repõem o estoque desses bens. Adicionalmente, as instituições bancárias tornam-se mais cautelosas na medida em que a ampliação do crédito passa a depender, cada vez mais, da incorporação de tomadores de pior qualidade na carteira e, com isso, mais vulneráveis a problemas de inadimplência. Por outro lado, a elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) que incide sobre os financiamentos diretos ao consumidor em janeiro de 2008, somada aos aumentos consecutivos da meta da taxa Selic entre abril e setembro deste ano, ao elevarem os custos dos empréstimos para aquisição de bens e do crédito pessoal (sobretudo na modalidade do crédito consignado), resultaram no menor dinamismo dessas modalidades, que vinham liderando a ampliação do crédito para as famílias. No segmento de crédito consignado, também contribuiu para sua desaceleração a redução de 30% para 20% pelo INSS do limite para o desconto em folha dos empréstimos aos aposentados e a revisão das estratégias operacionais de vários bancos, devido às margens mais estreitas em 144


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

razão da elevação da Selic e a problemas com a liquidação antecipada de crédito (Fundap, 2009; Carvalho e Travaglini, 2008). Em contrapartida, operações de crédito com recursos livres no segmento de pessoas jurídicas passaram a crescer a taxas mais expressivas no segundo semestre de 2007 e, sobretudo, entre março e agosto de 2008, quando o crédito nesse segmento torna-se mais dinâmico vis-à-vis ao crédito às pessoas físicas. A taxa de expansão do crédito corporativo ultrapassa aquela do crédito às famílias em março, sendo que o diferencial entre as duas taxas se amplia, de forma significativa, a partir de abril. Em agosto, frente ao mesmo mês do ano anterior, o crédito às empresas cresceu 40,7% e o crédito às famílias, 29,2% (ver Gráfico 4). Ao contrário do segmento de pessoas físicas, cuja base de captação envolve somente recursos domésticos, as operações no segmento de pessoas jurídicas são realizadas a partir de recursos domésticos e externos, os quais tinham maior relevância no início do ciclo (mas, mesmo assim, pequena: 23,8% do total do crédito com recursos livres a pessoas jurídicas em janeiro de 200322). Desde dezembro de 2003, a participação das operações com recursos domésticos no total elevou-se progressivamente (de 69% para 82% em agosto de 2008), simultaneamente à queda da importância relativa das operações com recursos captados no exterior (de 31% para 17,6% no mesmo período). Contudo, assim como no caso das pessoas físicas, o grau de concentração é muito elevado. Duas linhas (capital de giro e conta garantida) respondem pela maior parte das transações (em média, 50,7% na fase ascendente do ciclo). É possível levantar a hipótese de que a predominância de linhas com funding doméstico (aparentemente contraditória com o ambiente de excesso de liquidez internacional vigente até meados de 2007) decorreu da maior cautela dos agentes residentes (bancos e empresas) em relação ao endividamento externo após a crise cambial de 1999 e a adoção do regime de flutuação suja, bem como da própria melhora do ambiente macroeconômico, especialmente, na sua dimensão externa. A estabilização cambial revela-se fundamental não somente para a conformação de um contexto propício à expansão das operações de crédito (como destacado acima), mas também para que essas operações sejam realizadas em (e denominadas em) moeda doméstica, uma vez que aquelas realizadas com funding externo, a despeito de terem um menor custo no momento da sua contratação (devido à taxa de juros mais baixa), envolvem um elevado risco cambial (em função da sua indexação à variação da taxa de câmbio). A dinamização do crédito empresarial nesse período foi resultado de uma conjunção de fatores, que estimularam tanto a demanda quanto a oferta de crédito. Do lado da demanda, a aceleração do ritmo de crescimento da economia brasileira a partir de meados de 2007, ancorado no mercado interno e na expansão 22 Cálculos realizados a partir de informações obtidas nas séries temporais das operações de crédito do Banco Central do Brasil (BCB).

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dos investimentos (Novais, 2009a), estimulou as decisões de produção corrente e de ampliação da capacidade produtiva. As empresas recorreram não somente aos empréstimos concedidos pelo BNDES, mas também ao crédito com recursos livres como fonte de financiamento para o giro dos negócios, para a compra de matérias-primas e para a realização de inversões mais “leves”. Do ponto de vista setorial, a “Indústria” (que também abrange o crédito concedido para empresas dos setores imobiliário e de produção e distribuição de eletricidade, gás e água23) e os “Outros serviços” (que incluem as demais atividades de serviços e infraestrutura, como transportes) lideraram a expansão do crédito empresarial (ver Gráfico 3). No caso da “Indústria” – que absorve a maior parcela deste crédito (cerca de 40% na média da fase ascendente) devido à sua maior intensidade de capital físico frente aos setores terciários24 e às especificidades do crédito à infraestrutura25 – os bancos privados concederam tanto capital de giro (com base em recursos livres, ou seja, de tesouraria) como linhas de repasses do BNDES voltadas para o financiamento do investimento. No caso dos “Outros serviços” a aceleração da oferta de crédito decorreu, sobretudo, dos empréstimos do BNDES (com base em recursos direcionados) aos setores de infraestrutura privilegiados pelas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A procura por crédito bancário interno também foi estimulada pela retração de duas fontes alternativas e mais baratas de financiamento, que recuaram no primeiro semestre de 2008 como reflexo dos dois primeiros mecanismos de transmissão da crise internacional sobre a economia brasileira, quais sejam: (i) a perda de dinamismo do mercado primário de ações devido à maior aversão aos riscos dos investidores estrangeiros (que absorveram a maior parte das emissões primárias em 2007)26; (ii) a contração das linhas de crédito internacionais. Do lado da oferta, movidos pela dinâmica da concorrência bancária, os bancos introduziram (ou ampliaram a utilização de) inovações financeiras, associadas tanto à administração dos passivos, como à gestão dos ativos. No primeiro caso, a instituição no mês de janeiro do recolhimento compulsório sobre os depósitos bancários das empresas de leasing desestimulou a emissão de debêntures por essas empresas (utilizadas, até então, como instrumentos de captação pelos seus con23 Na base de dados do BCB adota-se o conceito de Indústria Total das contas nacionais, que inclui esses dois setores, além da indústria geral (extrativa e de transformação). 24 Embora os setores de comércio e serviços respondam por mais de 65% do valor adicionado na economia brasileira, essas atividades não têm participação proporcional no crédito ao setor privado corporativo devido à sua menor necessidade de financiamento, associada, por sua vez, à maior intensidade de trabalho do que de capital físico, relativamente à indústria. Para maiores detalhes sobre o financiamento da indústria e dos setores terciários no ciclo recente, ver: Prates (2009) e Freitas (2009). 25 Nesse setor, o risco de crédito é mais elevado devido às indivisibilidades, aos altos valores dos empreendimentos e o longo período de maturação. Por isso, o envolvimento dos bancos privados no seu financiamento sempre foi pequeno no Brasil. Para maiores detalhes sobre o financiamento da infraestrutura no ciclo recente, ver: Biancareli (2009). 26 Sobre o comportamento do mercado de capitais brasileiro em 2007 e 2008, ver: Freitas (2009c) e Cardim et al. (2009).

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troladores) e acirrou a concorrência entre os bancos de maior porte pela captação de recursos mediante Certificados de Depósito Bancário (CDBs), os quais, para ampliar a atratividade desses instrumentos, ampliaram as taxas de juros oferecidas e passaram a oferecer, para um número cada vez maior de clientes, liquidez diária para esses instrumentos após o prazo inicial de dois a três meses27. O aumento dos juros dos CDBs, somado à elevação da meta de taxa Selic a partir de abril (que induziu a realocação dos portfólios dos investidores institucionais em prol dos títulos públicos vis-à-vis aos privados) pressionaram, por sua vez, o custo de captação das empresas (mediante títulos de dívida privada) e de bancos de menor porte (Prates e Biancareli, 2009; Freitas, 2009a). Ademais, as condições do crédito bancário corporativo também foram afetadas. Por um lado, as duas medidas de política monetária mencionadas acima pressionaram a taxa de captação, ao lado do aumento das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido dos Bancos (CSLL) em janeiro (para compensar a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira - CPMF). Por outro lado, o aumento da aversão aos riscos em âmbito global ao longo do primeiro semestre contribuiu para a elevação da taxa de aplicação (e, assim, dos spreads) e para a interrupção da trajetória de alongamento dos prazos (ver Tabela 2). Neste contexto de retração e/ou encarecimento das fontes alternativas de financiamento e de deterioração das condições de prazo e custo do crédito bancário, proliferaram os contratos de crédito bancário vinculados a operações com derivativos de câmbio (introduzidos no país pelos bancos estrangeiros em 2007 e rapidamente mimetizados pelos bancos privados nacionais28). Esses contratos, oferecidos a empresas exportadoras e não-exportadoras de diferentes portes, construtoras e mesmo a bancos médios (que se deparavam com dificuldades de obtenção de recursos), garantiam uma redução do custo do crédito enquanto a trajetória do real era de apreciação29 e, com isso, contribuíram para perpetuar a escalada da relação crédito/PIB (ver Gráfico 1) nos oito primeiros meses de 2008. Já para as instituições bancárias, eles forneciam um seguro contra a depreciação cambial (que historicamente resultou em instabilidade macroeconômica, com reflexos negativos sobre o custo da captação e a capacidade de pagamento 27 O CDB com liquidez diária já existia, mas sua utilização foi ampliada de forma significativa no primeiro semestre de 2008 devido aos fatores mencionados. 28 A esse respeito, ver também o capítulo 8 deste livro. 29 Os bancos acoplavam à operação de empréstimo a venda de uma opção de compra de dólares pela empresa, que, assim, pagava ao banco um prêmio. Enquanto a cotação do real ficasse abaixo do preço de exercício da opção (que dependia da cotação do dólar à vista e foi fixado, na maioria dos casos, na faixa de R$1,73 a R$1,90), a empresa se beneficiava de uma redução do custo do empréstimo, que variava de 25% a 50% dos juros do Certificado de Depósito Interfinanceiro (CDI). Esse desconto correspondia, exatamente, ao prêmio da opção (que não era exercida pelo banco). Se a taxa de câmbio ultrapassasse esse preço, a empresa passava a pagar a variação cambial a partir de uma cotação pré-determinada. Para maiores detalhes sobre as operações de empréstimos vinculadas a contratos de derivativos cambiais, ver: Lucchesi et al (2008); Brandimarte et al (2008), Balthazar (2008), Adachi (2008).

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dos devedores), avaliada como cada vez mais provável diante da deterioração (verificada e projetada) da situação macroeconômica doméstica (no que se refere à inflação e à política monetária) e de agravamento da crise financeira internacional. Neste contexto, a única variável que parecia seguir, e mesmo aprofundar, o movimento “favorável” após a explicitação das dificuldades oriundas do setor imobiliário nos Estados Unidos (na segunda metade de 2007) era a taxa nominal de câmbio e suas respectivas expectativas30 (ver Gráfico 2). A trajetória ininterrupta de apreciação do real também levou várias empresas brasileiras, sobretudo as exportadoras, a firmarem complexos contratos de derivativos de balcão, no mercado doméstico e no internacional, pelos quais assumiam uma posição vendida em dólar, que realiza lucros com a apreciação do real. Esses contratos também foram introduzidos no Brasil pelas filiais dos bancos estrangeiros e proporcionavam às empresas não somente hedge de suas receitas em moedas estrangeira (no caso das exportadoras), mas também elevados ganhos especulativos enquanto aquela trajetória se sustentasse (já que o valor do contrato superava essas receitas, na maioria dos casos) – os quais, por sua vez, atuavam como amortecedores da perda de competitividade das exportações neste contexto. Apesar de terem assumido diferentes formas31, eles sempre resultavam na seguinte assimetria: garantiam às empresas maiores lucros do que os contratos convencionais desde que o real continuasse se valorizando; caso contrário, as perdas se duplicavam. Os bancos, por sua vez, incorriam somente em risco de crédito (isto é, de não pagamento pelas empresas das chamadas de margem em caso de prejuízo), já que realizavam operações espelho na BM&F (o mercado organizado de derivativos financeiros no Brasil) ou no mercado internacional, neutralizando o risco cambial. A proliferação dos novos produtos financeiros de alto risco esteve intrinsecamente associada à dinâmica da concorrência bancária, bem como à combinação de preços-chave vigente na economia brasileira (câmbio apreciado e juros elevados). Como ocorre tipicamente na fase ascendente do ciclo de crédito, de acordo com Minsky, essas inovações funcionaram como fatores amortecedores das condições de custo e prazo crescentemente adversas, viabilizando a expansão do crédito corporativo num contexto de aceleração do dinamismo do mercado interno, mas, em contrapartida, de agravamento da aversão aos riscos em âmbito internacional e aperto da política monetária. Seu potencial desestabilizador sobre o mercado de crédito doméstico se manifestou somente em setembro, quando a crise financeira internacional tornou-se sistêmica (após a falência do Banco Lehman Brothers), 30 Uma interação de fatores contribuiu para a persistência do movimento de apreciação do real até julho de 2008, dentre os quais se sobressaem: (i) a elevadíssima taxa básica de juros brasileira, cuja inconteste liderança no ranking mundial foi reforçada pelo aperto da política monetária brasileira a partir de abril de 2008 (num contexto de redução da taxa de juros básica nos Estados Unidos); (ii) a forte alta dos preços das commodities; (iii) a elevação da classificação do risco de crédito soberano do Brasil para “grau de investimento” pela agência internacional de rating Standard & Poors (S&P) seguida pela agência Fitch (Prates e Farhi, 2009). 31 O chamado target forward acoplava uma operação de dólar a termo com uma opção cambial, enquanto o tarn envolvia várias opções de compra e venda de dólar Ver: Lucchesi et al. (2008); Luchesi e Vieira (2008).

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se espraiando para os países emergentes e provocando fortes depreciações de suas moedas, dentre as quais o real, como detalhado na próxima seção. 3.2. O efeito-contágio da crise e a fase descendente do ciclo de crédito A assunção excessiva de riscos na fase ascendente do ciclo – quando as instituições bancárias buscam ampliar suas fatias de mercado – resultou em posições financeiras mais frágeis e potencializou o efeito-contágio do aprofundamento da crise financeira internacional sobre o mercado de crédito brasileiro a partir de setembro32. Neste contexto, dois mecanismos de transmissão entraram em operação, resultando na inversão do ciclo de crédito. Por um lado, a contração das atividades locais das filiais dos bancos estrangeiros. Por outro lado, os prejuízos das empresas nos contratos de derivativos cambiais causados pela depreciação do real (ver Gráfico 2), que se revelou o principal canal de contágio da crise sobre este mercado. Esses mecanismos, detalhados a seguir, se fizeram presentes na economia brasileira em função de duas características do seu sistema financeiro: seu grau elevado de internacionalização (apesar de inferior ao registrado no final dos anos 1990 – ver seção 1); e a existência de mercados de derivativos cambiais profundos e líquidos. Essas características estão relacionadas entre si na medida em que a presença de bancos estrangeiros, com expertise na montagem de operações com instrumentos derivativos, contribuiu para o desenvolvimento desses mercados33. Como já mencionado, foram essas instituições que introduziram no país os complexos contratos de derivativos de balcão, bem como os empréstimos vinculados a derivativos cambiais, produtos que, dada a dinâmica da concorrência bancária, foram rapidamente imitados e difundidos pelos bancos brasileiros. A necessidade de fazer caixa para cobrir os elevados prejuízos nos mercados vinculados às hipotecas subprime levou os bancos internacionais não somente a contrair os créditos interfronteiras, mas também a encolher suas operações ativas domésticas (BIS, 2008). Essa redução – que ocorreu, principalmente, em setembro, com o aprofundamento da crise – envolveu não somente a retração dos empréstimos às pessoas físicas e jurídicas, mas também a liquidação de aplicações financeiras das filiais, com destaque para CDBs de bancos nacionais de médio porte – que tinham sido estimuladas pela maior rentabilidade e pela liquidez diária oferecida por essas instituições que, como explicado acima, buscavam fontes alternativas de funding após a imposição do recolhimento compulsório sobre as operações de leasing. 32 No México e na Coreia, os bancos estrangeiros também introduziram essas inovações financeiras, num contexto macroeconômico semelhante ao brasileiro: apreciação cambial e elevação da taxa de juros básica. A esse respeito, ver: Prates e Cunha (2009). 33 Sobre a relação entre o grau de internacionalização bancária e o desenvolvimento dos mercados de derivativos financeiros no Brasil, ver: Prates, Farhi e Freitas (2005).

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Os bancos médios também foram especialmente afetados pelo segundo e principal mecanismo de contágio da crise sobre o mercado de crédito doméstico, as perdas das empresas com as operações de derivativos cambiais provocadas pela depreciação do real. Além da sua participação direta como contraparte em algumas dessas operações, essas instituições – que dependem da captação de recursos no interbancário e da cessão de crédito para dar continuidade às suas operações ativas – foram as que mais sofreram com a crise de confiança que se instalou no mercado de crédito bancário em função dos crescentes rumores sobre essas perdas, que passaram a ser registradas a partir do dia 9 de setembro, (quando a taxa de câmbio do real ultrapassou R$ 1,74, cotação que era o preço de exercício da opção em vários contratos) e se ampliaram com a intensificação da trajetória de depreciação após a falência do Lehman Brothers (ver Gráfico 2). O clima de incerteza em relação aos volumes e, principalmente, às instituições e empresas envolvidas nas operações de derivativos (várias das quais vinculadas a empréstimos bancários) resultou em uma virtual paralisia dos negócios no interbancário e na forte deterioração das condições de crédito (volumes e custo) às empresas e famílias no segmento de recursos livres34. Ademais, alguns bancos enfrentaram problemas de liquidez devido aos ajustes diários de margem na BM&F e ficaram ameaçados de descumprimento dos contratos de derivativos de balcão (risco de contraparte)35. A fragilidade dos bancos de menor porte foi agravada pela venda dos CDBs pelas empresas que precisavam de recursos para honrar os compromissos desses contratos, bem como pelos grandes aplicadores (empresas, fundos de investimento, fundos de pensão), que resgataram suas aplicações nesses bancos e as transferiram para bancos privados de maior porte e instituições bancárias estatais (Romero, 2008). O excesso de prudência na fase de reversão caracteriza a atividade bancária, como mencionado na Introdução. No caso da economia brasileira, em particular, o aumento da preferência pela liquidez dos bancos privados é um fenômeno recorrente em momentos de instabilidade cambial (como em 1998 e 2002) e seu conservadorismo nas fases de baixa do ciclo é exacerbado pelo prazo relativamente curto do crédito e pela existência de títulos públicos líquidos e rentáveis e de baixo risco, que permitem uma rápida recomposição de suas carteiras, como destacado na seção 1. Mas esses fatores, por si só, não são suficientes para explicar a forte contração do crédito no último trimestre 34 Em outros países, como Coreia do Sul e México, as empresas também realizaram operações com derivativos cambiais num contexto de perda de competitividade das exportações. Todavia, enquanto nesses países, os mercados de derivativos cambiais são deliverable, ou seja, as perdas ou ganhos com as operações são liquidadas em dólares – o que reforça a demanda por moeda estrangeira em momentos de depreciação cambial –, no Brasil a liquidação não é realizada em dólares, mas sim em reais. Essa especificidade atenuou o efeito da desmontagem das operações de derivativos sobre o mercado de câmbio. A esse respeito ver também o capítulo 7 deste livro. 35 De acordo com Romero (2008), os contratos firmados no Brasil somavam cerca de R$ 60,5 bilhões no dia 8/10/2009, dos quais R$ 39,5 bilhões em posições vendidas. Para maiores detalhes, ver capítulo 7.

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de 2008, cuja intensidade inédita decorreu da crise de confiança gerada pelos prejuízos das empresas nos contratos de derivativos cambiais36 (Freitas, 2009a; Prates e Biancareli, 2009). Neste contexto, uma sucessão de medidas foi acionada pelo governo brasileiro para atenuar a restrição de liquidez em moeda doméstica, que atingiu, sobretudo, essas instituições. Dentre essas medidas, destacam-se as primeiras rodadas de redução na alíquota do compulsório sobre os depósitos à vista e a prazo e de aumento do valor da dedução na exigibilidade adicional incidente sobre os depósitos à vista, a prazo e de poupança (que visavam ajudar os bancos pequenos e médios, os quais só estavam conseguindo rolar suas carteiras de créditos por meio da emissão de CDBs a um custo muito elevado) e a ampliação subsequente nas deduções associada à aquisição de ativos de instituições financeiras, com o propósito de estimular as compras de carteiras dessas instituições pelos bancos de grande porte37. A reversão do ciclo transparece na desaceleração da taxa de crescimento (frente ao mesmo mês do ano anterior) do estoque de crédito total e, principalmente, das modalidades que ancoraram o período de alta cíclica. Do ponto de vista da origem de recursos, o ritmo de expansão do crédito com recursos livres recua progressivamente entre outubro de 2009 e outubro de 2010, passando de 37% para somente 9,7% (um recuo de 27,3 p.p). A sua manutenção em patamares ainda elevados no final de 2008 e início de 2009 (ver Gráfico 4) decorreu tanto do efeito expansionista da depreciação do real sobre o estoque das modalidades de crédito com funding externo (que ampliou o valor em reais deste estoque, denominado em dólar), como do processo de reestruturação das dívidas das empresas (sobretudo industriais, como mostram Almeida et al., 2009) que incorreram em prejuízos nos contratos de derivativos de câmbio. Isto é, vários bancos concederam novos empréstimos (ou rolaram empréstimos em vigor em condições de prazo e custo menos favoráveis) para que seus clientes honrassem esses prejuízos. Do ponto de vista da propriedade do capital, os empréstimos concedidos pelas instituições privadas, líderes da fase ascendente, se desaceleraram praticamente no mesmo ritmo: de 33,2% em outubro de 2008 para somente 5,2% em outubro de 2009 (-28 p.p.). Como destaca a Fundap (2009), além da maior aversão ao risco, a elevação da inadimplência (ver Tabela 2) e a reestruturação de dívidas das empresas contribuíram para a retração no crédito pelos bancos privados, já que a regulamentação vigente exige aumento de provisões e da base de capital. Nesses momentos, essas instituições contraem inclusive o crédito vinculado às operações de repasse das modalidades indiretas do BNDES (já que incorrem em risco de crédito nessas operações, mas não em risco de descasamento, o que ocorreria se concedessem crédito de longo prazo a partir de recursos próprios). 36 Segundo estimativas do BIS (2009), as perdas somaram R$ 25 bilhões. 37 Para uma análise detalhada das medidas adotadas para conter o efeito-contágio da crise, ver: Freitas (2009a).

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No âmbito das instituições privadas, somente os bancos estrangeiros, que são braços financeiros das empresas transnacionais produtoras de máquinas e equipamentos (serviços, agronegócio, infraestrutura), não retraíram os repasses na fase descendente do ciclo, pois atuaram no sentido de sustentar a demanda por esses bens e, assim, as receitas de seus controladores (Freitas, 2009b). Essa atuação, ao lado da maior participação dos créditos com funding externo, contribuiu para atenuar a desaceleração da taxa de crescimento do crédito desse grupo no último trimestre de 2008 e no primeiro de 2009, que foram de 4,8 p.p e 6,8 p.p. (ante 6,9 p.p e 8,5 p.p dos privados nacionais). Em contrapartida, com a apreciação do real a partir de abril (que reduziu o valor em reais do estoque desses créditos), a desaceleração das operações de créditos nos bancos privados nacionais passou a ser menor que a observada nos bancos estrangeiros. Em outubro de 2009 (na comparação com o primeiro mês da fase descendente), os percentuais eram, respectivamente, 8% e -0,1% (em função, exatamente, do impacto cambial). Vale mencionar que, desde outubro de 2008, somente nesse mês a taxa de crescimento do crédito dos bancos privados nacionais aumentou frente ao mês anterior (7,3% em setembro). Assim, é possível que o período de desaceleração do crédito concedido por essas instituições tenha se encerrado e que uma nova fase de aceleração terá início, estimulada pelo maior dinamismo da atividade econômica doméstica e pelas perspectivas favoráveis para a economia brasileira em 201038. Já os estoques de crédito total e ao setor privado e o indicador Crédito/PIB – que atingiu 45,9% em outubro de 2009, ou seja, doze meses após a eclosão da crise – mantiveram, de forma ininterrupta, sua trajetória de crescimento devido à inércia que caracteriza este tipo de dado, aos fatores já mencionados (efeito da variação da taxa de câmbio, processo de reestruturação das dívidas e atuação anticíclica de alguns bancos estrangeiros) e, principalmente, ao comportamento anticíclico dos empréstimos com recursos direcionados. O ritmo de expansão desses empréstimos elevou-se de forma praticamente contínua desde 2007, impulsionado pelo maior dinamismo dos investimentos (e consequente demanda sobre os recursos do BNDES) e pelo boom da construção civil (com impacto sobre o crédito imobiliário concedido com recursos da poupança), mas o impulso observado a partir de setembro (ver Gráfico 6) reflete, principalmente, esse comportamento, que tem duas dimensões complementares. De um lado, as exigibilidades sobre os depósitos – que se traduzem em recursos obrigatoriamente destinados ao crédito rural, habitacional e microcrédito –, que produzem certa “inércia” em parte deste segmento, funcionando como uma espécie de estabilizador automático. Em relação a essa parcela dos passivos, os bancos (privados e públicos atuando enquanto bancos comerciais) exercem de maneira muito menos intensa a sua preferência pela liquidez. De outro lado, a política anticíclica propriamente 38 Alguns analistas estimavam, no início de dezembro de 2009, que o indicador Crédito/PIB deve atingir a marca histórica de 53% no final de 2010, impulsionado pela aceleração do crescimento (Travaglini, 2009).

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dita, exercida pelos grandes bancos públicos, que transparece, sobretudo, nas modalidades BNDES direto e habitacional (Prates e Biancareli, 2009). Gráfico 6. Saldo das operações de crédito direcionado: total e principais modalidades Variação % frente ao mesmo mês do ano anterior

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

Assim, a fase descendente caracterizou-se pelo maior dinamismo dos empréstimos com recursos direcionados – cujo ritmo de expansão se acelerou entre outubro de 2008 (28,4%) e agosto de 2009 (33,8%), recuando ligeiramente em setembro e outubro (para 31,7% e 29,1%) – e daqueles ofertados pelas instituições públicas (ver Gráfico 4). Essas instituições, seguindo a orientação do governo federal, atuaram de forma anticíclica a partir de setembro de 2008 para atenuar os efeitos adversos da contração do crédito pelos bancos privados no mercado doméstico. A taxa de crescimento do crédito deste grupo, a despeito de ter sofrido uma desaceleração (reflexo, quase que exclusivamente, da retração da demanda, sobretudo, da indústria, setor que mais sofreu o efeito-contágio da crise internacional39) manteve-se num patamar elevado, superior a 30% entre outubro de 2008 e setembro, recuando para 27,0% em outubro de 2009. Com isso, sua participação no estoque total de crédito avançou de 34,2 para 38,5% entre os meses de outubro de 2008 e 2009. Os três principais bancos federais utilizaram um conjunto de ações e instrumentos para atender a necessidade de financiamento das famílias e das empresas nos diversos setores de atividade, contribuindo para atenuar a retração da demanda interna. A CEF, além de atender a demanda de recursos da Petrobrás em outubro de 2008 (num total de R$ 8 bilhões), criou novas linhas para capital de giro e para o setor de construção com recursos oriundos da caderneta de poupança, adquiriu carteiras de crédito e formalizou acordos operacionais com cinco instituições 39 Sobre o impacto desta crise na atividade industrial no último trimestre de 2008, ver: Novais (2009b).

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financeiras na área de crédito consignado e de middle market (Fundap, 2009). Na realidade, a crise acabou se revelando para CEF uma janela de oportunidade, permitindo a ampliação de sua participação nos demais segmentos de crédito a pessoas físicas e jurídicas (ou seja, exceto o imobiliário, onde essa instituição já era o principal player). Nesse segmento prioritário, a CEF também expandiu de forma agressiva os empréstimos (vinculados ao programa Minha Casa Minha Vida e também não-vinculados40, num contexto de sustentação de demanda dado o elevado déficit habitacional no país e a expansão favorável da renda), o que explica a forte aceleração do crédito habitacional, que passa a crescer num ritmo superior às demais modalidades a partir de abril de 2009 (ver Gráfico 3). O BB, como a CEF, também expandiu os empréstimos com base em recursos livres e direcionados (diretamente ou mediante a compra de carteiras de crédito) e aproveitou o contexto de retração dos bancos privados para ampliar suas fatias de mercado. Contudo, no caso desse banco – uma instituição de capital aberto, com ações negociadas em bolsa, detidas por investidores privados – o governo, utilizando a prerrogativa de acionista majoritário, precisou trocar o presidente da instituição para garantir a sua atuação anticíclica (Prates e Freitas, 2009). Essas duas instituições públicas também reduziram o custo das suas operações ativas, atendendo a orientação governamental de pressionar os bancos privados a reduzirem seus spreads bancários (que, apesar de terem recuado no período analisado, persistem num patamar bastante alto em comparação aos demais países avançados e mesmo periféricos) (Fundap, 2009). Já o BNDES, em função do seu caráter específico – instituição de fomento que não capta recursos do público e, consequentemente, não concorre com os bancos privados por conquista de fatias de mercado, ao contrário da CEF e do BB – não foi utilizado como instrumento de política financeira para baixar os juros bancários, mas melhorou as condições de custo e prazo de suas linhas de crédito41 e desempenhou uma função anticíclica fundamental (a partir, exclusivamente, de recursos direcionados), impulsionando suas operações diretas (sobretudo para os setores industrial e de infraestrutura) num contexto de aumento da preferência pela liquidez dos bancos privados (que afetou, inclusive, as operações de repasses, como já mencionado – ver Gráfico 6). Segundo Sant´Anna, Borça Jr. e Araújo (2009), no último trimestre de 2009 (período mais grave da crise), o BNDES respondeu por cerca de 30% do aumento do crédito (e o total dos bancos públicos por 68%). Para fazer frente à necessidade de recursos das empresas num contexto de es40 Além dos financiamentos no âmbito desse programa, a CEF atendeu a demanda por essa modalidade de crédito pelas construtoras e famílias num contexto de retração dos bancos privados. De janeiro a novembro de 2009, a instituição aprovou R$ 39,3 bilhões de contratos (cifra 93% superior à registrada em 2008), dos quais 28% referem-se a contratos do Minha Casa Minha Vida (Pereira, 2009). 41 O prazo máximo de 18 meses (com cinco meses de carência) foi ampliado para 36 meses (com doze meses de carência), enquanto a taxa de juros foi reduzida de 14,5% para 10,25% ao ano (Lima, 2009).

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cassez de crédito privado, o BNDES também instituiu, de forma articulada com o governo federal, novas linhas de crédito. No início de dezembro de 2008, o Banco lançou o Programa Especial de Crédito (PEC) – cuja vigência inicial do PEC (junho de 2009) foi estendida até o final de 2009 em maio deste ano –, que consiste numa linha de capital de giro de R$ 6 bilhões para as micro, pequenas e médias empresas dos setores da indústria, serviço e comércio, especialmente afetadas pelo empoçamento de liquidez no interbancário, que atingiu, sobretudo, os bancos de menor porte (importantes provedores de recursos a esse segmento empresarial). Ademais, em abril, o BNDES lançou mais três programas de fomento, dois exclusivamente para o setor rural (especialmente afetado pela retração da demanda internacional e pela deflação dos preços das commodities no segundo semestre de 2008): o Programa de Crédito Especial Rural (Procer), o Programa de Apoio ao Setor Sucroalcooleiro (Pass) e o Programa de Capitalização de Cooperativas de Produção (Procap), que teve como foco as cooperativas de produção agropecuária, pesqueira, industrial e mineral, cujas atividades, em particular, as exportadoras, foram, igualmente, muito afetadas pela crise internacional (Fundap, 2009). O avanço dos bancos públicos com carteira comercial (BB e CEF) contribuiu para a reativação do crédito às pessoas físicas, que voltou a crescer a taxas mais elevadas que o crédito às pessoas físicas em 2009 (ver Gráfico 4). Para esse movimento, também foi fundamental o desempoçamento da liquidez, viabilizado, principalmente, pela regulamentação, em março de 2009, do Recibo de Depósito Bancário (RDB) com garantia especial (em até R$ 20 milhões) do Fundo Garantidor de Crédito42. Com isso, os bancos de menor porte, importantes players nos segmentos de crédito consignado e aquisição de veículos, puderam reconstituir sua base de funding e retomar as operações nesses segmentos (Fundap, 2009). Do lado da demanda, a relativa estabilidade do nível de emprego e da massa de rendimentos43, somada à ampliação do limite de comprometimento da renda líquida para o crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS (que em março passou de 20% para 30%), impulsionaram a modalidade de crédito consignado, que foi a principal responsável pela retomada do crédito a pessoas físicas a partir de abril de 2009: sua taxa de crescimento (frente ao mesmo mês do ano anterior) passou de 20,5% em março para 32,4% em outubro (contra 10,5% das demais modalidades de crédito pessoal) e sua par42 Essa medida do Conselho Monetário Nacional (Resolução nº 2.692 de 26 de março de 2009) viabilizou, em mais de quatro meses, a captação de R$ 10 bilhões (Travaglini, 2009). Todavia, para evitar a repetição dos problemas de iliquidez associado ao descasamento de prazo entre as operações ativas e passivas, os resgates antecipados (parciais ou totais) desses recursos foram proibidos no dia 28 de maio (Resolução nº 3.729). Desde então, os investidores em RDB com garantia especial devem manter em carteira essas aplicações até a data de vencimento. 43 O menor efeito-contágio da crise internacional nos setores terciários (sobretudo comércio, que é intensivo em trabalho) e as políticas governamentais (aumento do salário mínimo e o programa de renda mínima) contribuíram para essa estabilidade.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

ticipação no total desse crédito avançou de 54,9% em outubro de 2008 para 59,1% em outubro de 2009 (recorde desde a sua entrada em vigor, em janeiro de 2004). Simultaneamente, a desoneração fiscal de bens de consumo duráveis (como geladeiras, automóveis e alguns produtos de material de construção), contribuiu para a reação do crédito para aquisição de veículos (ver Gráfico 5), que passou a registrar taxas positivas a partir de agosto. Em contraposição, as operações de crédito às pessoas jurídicas mantiveram uma trajetória contínua e progressiva de desaceleração entre outubro de 2008 e outubro de 2009 num ambiente de aumento da inadimplência (que foi maior nesse segmento – ver Tabela 2), arrefecimento do nível da atividade e adiamento dos planos de investimento ante a deterioração das expectativas, que comprometeu tanto a oferta como a demanda de crédito empresarial. A taxa de crescimento do estoque total de crédito com recursos livres às pessoas jurídicas recuou de 45,5% para somente 3,2% nesse período (ver Gráfico 4). Se considerarmos somente as operações com recursos domésticos, o recuo foi menor (de 47,9 para 12,9%). Isso porque a perda de ritmo das operações em moeda estrangeira foi bem mais expressiva (36,2% para uma variação negativa de 32% entre os mesmos meses) em função, num primeiro momento, da forte contração do crédito no mercado internacional e, num segundo momento, da apreciação do real. A despeito do aumento da inadimplência, os spreads bancários recuaram no primeiro semestre, em particular no segmento de pessoas físicas (ver Tabela 2). Além da redução da meta da taxa Selic em 5 pontos percentuais pelo Banco Central entre janeiro e julho (de 13,75% em dezembro para 8,75% - ver Gráfico 2), a queda dos spreads pode significar um ajuste da percepção de risco dos bancos que puxaram excessivamente as taxas de juros ativas no último trimestre, sobretudo nas operações de crédito com pessoas físicas, temendo uma maior elevação da inadimplência do que a realmente verificada no 1º semestre. O corte de juros praticados pelos bancos oficiais também contribuiu para essa queda (Fundap, 2009). 4. Considerações finais As principais características da fase ascendente do ciclo de crédito que emergiu em maio de 2003 foram: no que se refere à origem dos recursos, o segmento de recursos livres liderou a expansão dos empréstimos, a partir, sobretudo, de fontes internas; no que diz respeito à propriedade de capital, os bancos privados, sobretudo, nacionais, lideraram essa expansão; do ponto de vista da distribuição setorial do crédito, o setor privado absorveu praticamente a totalidade dos recursos ofertados pelo sistema financeiro e, no âmbito deste setor, as famílias foram as principais beneficiadas. Somente no início de 2008, num contexto de maior dinamismo dos investimentos, os bancos aumentaram a con156


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cessão de crédito às empresas (de curto prazo a partir de recursos de tesouraria e de prazo mais longo mediante repasses de recursos do BNDES) e, movidos pela dinâmica concorrencial, introduziram (ou ampliaram a utilização) de inovações financeiras, associadas tanto à administração dos passivos, como à gestão dos ativos. Como ocorre tipicamente nos períodos de alta dos ciclos de crédito, essas inovações funcionaram como fatores amortecedores das condições de custo e prazo crescentemente adversas, viabilizando a expansão do crédito corporativo num contexto de aceleração do dinamismo do mercado interno, mas, em contrapartida, de alta da taxa de juros básica e retração das fontes alternativas de financiamento (reflexo da crise financeira internacional). O potencial desestabilizador das estratégias de alto risco sobre o mercado de crédito doméstico se manifestou somente em setembro de 2009, quando a crise financeira internacional tornou-se sistêmica e provocou uma forte depreciação do real. No caso da economia brasileira, o aumento da preferência pela liquidez das instituições bancárias é um fenômeno recorrente em momentos de instabilidade cambial e seu conservadorismo nas fases de baixa do ciclo é exacerbado pelo prazo relativamente curto do crédito e pela existência de títulos públicos líquidos e rentáveis e de baixo risco, que permitem uma rápida recomposição de suas carteiras. Mas a intensidade inédita da contração do crédito com recursos livres no último trimestre de 2008 decorreu da crise de confiança gerada pelos prejuízos das empresas nos contratos de derivativos cambiais. Na fase descendente do ciclo (outubro 2008 a outubro de 2009), mudanças importantes ocorreram na dinâmica do crédito, as quais evitaram a interrupção da trajetória de alta da relação crédito/PIB iniciada em maio de 2003. Neste contexto, o sistema de crédito direcionado e seus principais agentes – as instituições financeiras públicas, como o BNDES, o Banco do Brasil e a CEF – ampliaram o raio de manobra do governo brasileiro na gestão do efeito-contágio da crise internacional sobre a evolução do crédito no país (e, assim, sobre a atividade econômica), possibilitando que a sua expansão compensasse, em grande parte, a desaceleração do segmento de recursos livres – o que não se verificou na maioria dos países emergentes (com exceção da Índia e da China), onde o processo de desregulamentação financeira resultou na desmontagem de sistemas de financiamento público e na privatização dos bancos estatais. Além da atuação anticíclica, os bancos públicos foram utilizados nessa fase como instrumento de política financeira para forçar a redução dos juros bancários cobrados pelos bancos privados. Ademais, ao longo de todo o ciclo recente, essas instituições continuaram desempenhando sua função histórica de financiar alguns setores e/ou atividades considerados estratégicos para o desenvolvimento (como a atividade rural, de infraestrutura, saneamento e habitação de baixa renda), mas que, em função do seu risco elevado e/ou da sua baixa lucratividade, requerem uma fonte de recursos especial. 157


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Assim, a dinâmica do crédito no período em tela mostrou a importância de um sistema bancário misto, tanto do ponto de vista da natureza do capital (bancos públicos e privados), como da origem de recursos (livres e direcionados). Esse sistema deve ser preservado, devido às suas três funções fundamentais acima mencionadas. Em primeiro lugar, seu papel anticíclico nas fases de desaceleração, sustentando a demanda de crédito das empresas num contexto de retração do crédito privado. Em segundo lugar, o financiamento de setores e atividades prioritárias, mas sujeitas a riscos elevados e/ou pequenos, mediante subsistemas especiais de crédito. Em terceiro lugar, a função de pressionar a queda dos spreads praticados pelos bancos privados mediante a ampliação dos empréstimos com custo mais baixo. Esta terceira função assume uma relevância especial no Brasil devido ao patamar muito elevado das taxas de juros do crédito e, assim, dos spreads. Como no setor bancário, que é oligopolizado, o acirramento da concorrência não se traduz, necessariamente, em concorrência via preço, os bancos públicos devem manter ou mesmo aprofundar essa estratégia, que constitui uma real ameaça aos bancos privados, especialmente num contexto de redução da taxa básica de juros, com consequente perda de receita nas aplicações de títulos públicos (que os forçará a expandir as operações de crédito em condições mais favoráveis para defender suas respectivas posições de mercado e assegurar sua lucratividade). Contudo, para que essa função das instituições públicas – que se pode chamar de reguladora, na medida em que afeta a dinâmica concorrencial mediante a influência na formação de preços – continue sendo praticada, é necessário evitar tanto a ampliação da participação de acionistas privados no capital do Banco do Brasil, como a abertura do capital da Caixa Econômica Federal. Adicionalmente, para que os bancos privados ampliem sua participação no financiamento de longo prazo dos investimentos produtivos – ou seja, para que a redução do custo das suas operações de crédito seja acompanhada pela ampliação dos prazos e dos volumes –, além da redução da taxa de juros básica (que requer uma mudança na política macroeconômica no sentido de priorizar a estabilidade monetária e não somente a estabilidade de preços), seria necessário promover uma alteração profunda na gestão da dívida pública, de forma que os bancos não disponham mais da alternativa de aplicação em ativos negociáveis com vantajosa combinação de alta rentabilidade e baixíssimo risco, como sugere Freitas (2007a). Finalmente, vale mencionar que, se essas mudanças de ordem macroeconômica e institucional não ocorrerem, uma alternativa de política para envolver os bancos privados em empréstimos de longo prazo com base em recursos de tesouraria seria o direcionamento de uma parcela dos depósitos compulsórios (ainda muito elevados no Brasil) para esses financiamentos. Como propõem Carneiro et al. (2009): “Para evitar eventuais problemas de liquidez, a utilização dos compulsórios poderia vir acoplada com algum instrumento 158


Bancos e ciclo de crédito: da estabilização à crise financeira

de redesconto. Esse mecanismo permitiria a ampliação da participação dos bancos privados nos financiamentos de longo prazo, sem a utilização dos repasses de fundos públicos, liberando esses últimos para outra destinação”. O risco desses empréstimos poderia ser mitigado por meio da criação de garantias (mediante um seguro de crédito ou a ampliação do Fundo Garantidor de Crédito do BNDES, criado em 2009), que seria especialmente importante para viabilizar a expansão dos empréstimos dos bancos privados para pequenas e médias empresas. Neste contexto, os bancos públicos poderiam priorizar o financiamento de investimentos de maior prazo de implantação e amortização (e, por isso, mais arriscados e/ou com menor retorno). Referências bibliográficas ADACHI, Vanessa. Mais de 300 clientes de “middle market” do Itaú têm derivativos. Valor Econômico, 30 de outubro de 2008. AMITRANO, C.R. O Modelo de crescimento da economia brasileira no período recente: condicionantes, características e limites. In: CARNEIRO, R. (org.) A supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula. São Paulo: Editora Unesp, p. 233-274, 2006. BALTHAZAR, Ricardo. Perda de empresas pode ir a US$ 30 bi. Valor Econômico, 14 de outubro de 2008. BELLUZZO, Luiz G. M. & ALMEIDA, Júlio S. G. Depois da queda: a economia brasileira da crise da dívida aos impasses do Real. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002. BRAGA, José Carlos de Souza; PRATES, D. M. Os Bancos da Era FHC. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre - RS, v. 26, n. 4, p. 167-187, 1998. BRANDIMARTE, Vera; Balarin, Raquel; BAUTZER, Tatiana. Perdas de empresas com derivativos geram temor sobre saúde de bancos, Valor Econômico, 13 de outubro de 2008. CARDIM, F. et al. Relatório II do subprojeto de mercado de capitais. Projeto de Estudos sobre as perspectivas da indústria financeira brasileira e o papel dos bancos públicos, coordenado por Ricardo de M. Carneiro e financiado pelo BNDES. Instituto de Economia/Unicamp, 2009. CARNEIRO, R. O financiamento da acumulação de ativos (um esquema analítico.) Campinas: Instituto de Economia da Unicamp, 2009 (Texto para Discussão n. 166). CARNEIRO, R. et al. Relatório síntese. Projeto de Estudos sobre as perspectivas da indústria financeira brasileira e o papel dos bancos públicos, coordenado por Ricardo de M. Carneiro e financiado pelo BNDES. Instituto de Economia/ Unicamp, 2009. CARVALHO, Carlos Eduardo. Bancos e inflação no Brasil: comentários depois do Plano Real. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Trabalho não-publicado), 1995. CINTRA, M. A. M. A reestruturação patrimonial do sistema bancário brasileiro e os ciclos de crédito entre 1995 e 2005. In: CARNEIRO, R. (org.) A supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula. São Paulo: Editora 159


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Formas alternativas de financiamento: microfinanças Juvandia Moreira Leite1 Ana Carolina Tosetti Davanço2

Introdução De janeiro de 2000 a setembro de 2009, as operações de crédito total do sistema financeiro brasileiro aumentaram 83,53%. Em setembro de 2009, essas operações correspondiam a 44,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Se observados os padrões internacionais, o volume operado no mercado de crédito brasileiro poderia ainda triplicar de tamanho, sobretudo se esse crescimento estiver apoiado em uma redução da taxa básica de juros, que apesar de elevada segue uma trajetória de redução. A gestão das instituições financeiras, nacionais e internacionais está voltada para a mensuração do risco em uma busca constante de controlá-lo e precificá-lo. No Brasil, destacam-se as decisões voltadas para o risco de inadimplência. O risco de inadimplência tem sido a principal justificativa para a cobrança das elevadas taxas de juros. Com esse enfoque e concentrado em praticamente cinco grandes grupos, o sistema financeiro tradicional optou por ofertar crédito de forma bastante seletiva, atribuindo às operações de maior risco elevadas taxas de juros. Com o crescimento das classes de renda D e E e as restrições impostas pelas formas comerciais, o desenvolvimento de formas alternativas de crédito vem angariando adeptos. A partir de 1994, com a estabilização da inflação, o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o Banco Central do Brasil (BCB) intensificaram as medidas regulamentares voltadas para a ampliação da concessão de empréstimos por meio de um sistema alternativo que apresentasse maior capilaridade e efetivamente atendesse aos desbancarizados. Neste sentido, as Resoluções emitidas pelo CMN tiveram o objetivo de disseminar a prestação de serviços microfinanceiros com a construção de um marco regulatório que diz respeito principalmente ao cooperativismo de crédito, ao mi1 Bacharel em Direito, Secretária-geral do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região (juvandia@spbancarios.com.br) 2 Economista da Subseção DIEESE-Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região. (anacarolina@spbancarios.com.br)

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

crocrédito e aos correspondentes bancários considerados atualmente, pelo BCB, como os três pilares das microfinanças. 1. As microfinanças no Brasil Não existe um padrão internacional para o uso dos conceitos de microcrédito e microfinanças. Alguns textos tratam os termos quase como sinônimos. No Brasil, Soares e Sobrinho (2008) sugerem que as microfinanças são serviços financeiros alternativos voltados para os pobres, incluindo depósitos e empréstimos de pequeno montante, independentemente da destinação do valor tomado. Já o microcrédito, atividade tida como a mais importante no âmbito das microfinanças, assume um caráter de política pública de complementação da renda. O microcrédito produtivo orientado é especializado para um determinado segmento da economia: os micros e pequenos empreendimentos, formais e informais. Destina-se a negócios de pequeno porte, gerenciados por pessoas de baixa renda, e não a financiar o consumo. O acesso a essa modalidade creditícia torna-se uma oportunidade para o desenvolvimento dos pequenos negócios, levando à melhoria da capacidade de consumo da comunidade local por meio da geração de renda. Ao longo do tempo, as cooperativas de crédito, as sociedades de crédito ao microempreendedor e o microcrédito reunidos passaram a ser identificados pela sociedade como parte importante da indústria microfinanceira. 1.1. As Cooperativas de Crédito As cooperativas de crédito são associações de pessoas que buscam, por intermédio da ajuda mútua, sem fins lucrativos, administrar melhor seus recursos financeiros. Seu objetivo é prestar assistência creditícia e serviços de natureza bancária a seus associados com condições mais vantajosas. Estas entidades se consolidaram no cenário internacional e desenvolveram uma boa estrutura de atedimento. Em alguns países, esses empreendimentos estão entre as principais instituições do setor, a serviço da comunidade. A França é um exemplo no mundo: 60% dos recursos financeiros do país são movimentados por esse segmento. O Credit Agricole é maior banco cooperativo francês e figura também entre os maiores grupos globais. No Canadá, o Sistema Cooperativo Desjardins possuía, em 2007, mais de seis milhões de sócios com ativos da ordem de 150 bilhões de dólares canadenses, e está presente em todos os municípios de Quebec. No Brasil, as cooperativas de crédito são equiparadas às instituições financeiras por lei (Lei 4.595/1964) e captam recursos de terceiros na forma de depósitos, o que as diferencia das empresas que também atuam no segmento 164


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

das microfinanças. O funcionamento de uma entidade dessa natureza deve ser autorizado e regulado pelo Banco Central. Apesar de reconhecidas na legislação, as cooperativas ocupam um espaço restrito no Sistema Financeiro Nacional (SFN). O estoque de crédito concedido por elas expandiu-se nos últimos anos, mas em setembro de 2009 era de apenas R$ 23,86 bilhões, o que representava 1,77% do total oferecido pelo SFN, como mostra a tabela abaixo: Tabela 1 - Saldo das operações de crédito das Cooperativas comparado ao saldo total de crédito do Sistema Financeiro Nacional (incluindo recursos livres e direcionados) - R$ Milhões Período

Cooperativas de Crédito (1) Financiamentos Rurais

Empréstimos de mútuo

Total Cooperativas

Total (4) SFN

Total Cooperativas / Total SFN

1,72%

Recursos livres (2)

Recursos Total direcionados (3)

Dez 2007

938

3.581

4.519

11.539

16.058

935.973

Set 2009

2.658

3.775

6.432

17.430

23.862

1.348.077 1,77%

(1) Refere-se às cooperativas de crédito rural, mútuo e de livre admissão (2) Refere-se a operações com pessoas físicas (3) Refere-se a operações de crédito com recursos compulsórios ou governamentais (4) Inclui recursos livres e direcionados

Algumas alterações no marco regulatório das cooperativas de crédito tiveram a intenção de incentivar ganhos pela economia de escala por intermédio da concentração, e promover assim o crescimento do setor. A permissão, a partir de 1995, para a criação dos bancos cooperativos é um exemplo disso. Nesse período, dois dos principais sistemas brasileiros da área caminharam na direção autorizada pela legislação: o Sistema Sicredi, com o Bansicredi (criado em 1995) e o Sistema Sicoob, que constituiu em 1996 o Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob). O crescimento desses sistemas ocorreu de forma localizada e se consolidou em algumas regiões. Em certos casos, foi impulsionado pelo processo de privatização de bancos públicos, que levou à extinção de uma rede de agências mais pulverizada e em locais de menor interesse das instituições privadas. No ano 2000, a resolução nº 2.788 equiparou os bancos cooperativos aos demais comerciais, inclusive com previsão de constituição na forma de banco múltiplo e da abertura do capital para outros investidores fora do sistema, mantida a obrigatoriedade de as centrais de crédito deterem, no mínimo, 51% das ações com direito a voto. 165


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Houve, de forma concomitante, incentivos à estruturação do setor em sistemas integrados e supervisionados por centrais de crédito responsáveis pelo controle, auditoria e capacitação técnica permanente dos quadros administrativos das cooperativas singulares filiadas, além do aumento do público-alvo mediante critérios mais flexíveis de admissão de associados e de maiores possibilidades de prestação de serviços a associados e ao público em geral. As ações com direito a voto na organização pertencem às centrais de crédito, cujos “sócios” são as cooperativas singulares. Medidas que buscavam o fortalecimento do setor continuaram ocorrendo. Em 2002 aconteceu a permissão para a formação de empreendimentos do gênero pela associação de pequenos empresários, microempresários e microempreendedores, responsáveis por negócios de natureza industrial, comercial ou de prestação de serviços, incluídas as atividades da área rural, cuja receita bruta anual, por ocasião da associação, seja igual ou inferior ao limite estabelecido pela legislação em vigor para as pequenas empresas. Logo a seguir (2003), foi facultada a possibilidade de criação de novas sociedades cooperativas de livre admissão para áreas com até 100 mil habitantes, constituídas por municípios contínuos e com exigência de capital mínimo de R$ 10 mil. Em relação aos empreendimentos já em funcionamento, constituídos segundo determinado vínculo, foi facultada sua transformação em cooperativas abertas ou a fusão entre os diversos tipos existentes. Posteriormente, houve aumento de 100 mil para 300 mil habitantes no limite populacional para abertura de novas entidades de livre admissão e finalmente, em 2007, ampliou-se esse piso para 2 milhões de habitantes, mantidas a região contínua e a possibilidade de constituição apenas em municípios com até 300 mil habitantes. A prestação dos serviços vinculados ao crédito, que ocorria por meio de Postos de Atendimento Cooperativos (PACs) e de Postos de Atendimento Transitórios (PATs), foi ampliada com a resolução nº 3.156, do CMN, que estendeu a faculdade de contratação de correspondente no país a outras instituições financeiras e demais grupos autorizados a funcionar pelo Banco Central, até então não contempladas naquela regulamentação, tais como cooperativas, companhias hipotecárias, sociedades de crédito ao microempreendedor, à empresa de pequeno porte e às corretoras, além de distribuidoras de títulos e valores mobiliários. Atualmente as entidades de ajuda mútua de crédito podem ser agrupadas de acordo com características estruturais e de gestão. Atualmente existem três blocos principais: Bloco 1 – Organização Vertical: busca centralização e ganhos pela economia de escala e se caracteriza pela estrutura piramidal, com as cooperativas singulares na base, as centrais na zona intermediária e as confederações no topo. Busca eficiência pelo aumento de amplitude operacional por meio dos Postos de Atendimento Cooperativo, melhorando a gestão dos recursos, já que os custos de instalação são inquestionavelmente inferiores aos de uma nova 166


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

instituição. Esse modelo vertical é integrado pelos sistemas Sicoob, Sicredi e Unicred, compostos por 899 cooperativas singulares, 28 centrais e três confederações – dados de junho de 2008. Representam 63% das organizações dessa natureza no Brasil. Bloco 2 – Perfil Horizontal: representa redes de cooperativas, solidárias, urbanas ou rurais, organizadas sob forma radial, com diversas cooperativas singulares vinculadas a uma central ou associação representativa. Representam 19% do número total, com maior presença no setor rural do que no urbano. Bloco 3 – Independentes: composto por cooperativas que possuem apenas estrutura de primeiro nível, com 251 cooperativas singulares e 10 centrais. As cooperativas de crédito foram pioneiras no atendimento como alternativa às instituições financeiras de grande porte ou grandes bancos, inclusive no Brasil. Mantiveram e mantêm relação mais estreita com os interesses da comunidade e com o desenvolvimento local, mas apesar das modificações no marco regulatório com a finalidade de ampliar a participação, sua presença ainda é restrita no Brasil. 1.2 O Microcrédito Considerando que havia dificuldades de captação de recursos por parte das cooperativas e a fragilidade das outras instituições microfinanceiras, as autoridades monetárias criaram a obrigatoriedade de direcionamento de parte dos depósitos à vista ao microcrédito. No Brasil, as instituições microfinanceiras (IMFs) reguladas para a disseminação do microcrédito são as sociedades de crédito ao microempreendedor (SCMs). A Lei nº 9.790/1999 permitiu que as organizações não governamentais voltadas à questão atuassem como organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), promovendo assim a ampliação da capacidade operativa dessas organizações por meio de contratos de parcerias, garantindo que elas tivessem possibilidade de acesso aos recursos públicos de forma menos burocratizada ou mais flexível. As SCMs foram inicialmente regulamentadas pela resolução do CMN nº 2.627/1999, revogada em 26 de julho de 2001 pela nº 2.874, que trouxe os aperfeiçoamentos resumidos a seguir, no quadro 1:

167


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Quadro 1 – Alterações trazidas pela resolução nº 2.874 Resolução nº 2.627 (revogada)

Resolução nº 2.874

Exigência de formação com um mínimo de 50% de ações ordinárias

Revogada

Autorização para transformar Oscip em SCM

Oscip especializada em microcrédito pode controlar SCM

Restringia a atuação a uma região definida em seu estatuto

Revogada

Vedava a transformação em outra instituição integrante do SFN

Revogada

Vedava a participação societária no capital de outras empresas

Veda a participação societária apenas em instituição financeira e demais entidades autorizadas a funcionar pelo BCB

SCM podia instalar postos apenas dentro da área de atuação

Cria posto de atendimento de microcrédito (PAM), que pode ser fixo ou móvel e instalado em qualquer localidade

Fonte: BCB – Microfinanças: O papel do Banco Central do Brasil e a importância do Cooperativismo de Crédito, 2008.

As SCMs, no entanto, representam mais uma entre as demais instituições criadas e incentivadas a atuar com microcrédito no país. As demais formas de organização autorizadas estão listadas abaixo e divididas por modalidade: 1 - Entidades sem fins lucrativos: • Pessoas jurídicas de direito privado (ONG), sujeitas a restrições quanto aos juros praticados (máximo de 12% a.a.); • Fundos públicos estaduais ou municipais (bancos do povo), administrados por autarquias, departamentos ou outras formas previstas em lei, também sujeitos a restrições quanto aos juros (máximo de 12% a.a.); • Oscips, de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, devidamente registradas no Ministério da Justiça, não sujeitas a restrições, com taxas de juros livres; 2 – Entidades com objetivo de lucro: • SCM autorizada pelo Banco Central, controlada por qualquer pessoa física ou jurídica, inclusive instituição financeira privada ou por Oscip. Diretamente, por intermédio de qualquer instituição financeira que trabalhe com oferta de crédito junto ao público, inclusive sob a forma de departamento ou carteira especializada. Alguns dos principais grupos privados do setor criaram SCMs buscando maior atuação no mercado, entretanto obtiveram pouca expressão. As instituições públicas também buscaram ampliar sua participação com iniciativas como o Banco Po168


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

pular do Brasil ou por meio de carteiras especializadas, como é o caso do programa Crediamigo, do Banco do Nordeste, que obteve êxito em âmbito local. Entre as medidas mais relevantes para o setor está a Medida Provisória nº 122 de 25 de junho de 2003, e posteriormente Lei nº 10.735, de 11 de setembro de 2003, que conferiram ao CMN competência para regular as aplicações dos bancos comerciais, dos múltiplos com carteira comercial e caixas econômicas em operações de microfinanças destinadas à população de baixa renda e a microempreendedores, baseadas em parcelas de recursos oriundos dos depósitos à vista. Os pontos que competem ao CMN compreendem a fixação do percentual dos depósitos à vista a ser destinados a tais operações, a definição dos beneficiários, o valor máximo, o prazo mínimo e os encargos, bem como o critério de mobilidade dos recursos e dos créditos entre as instituições financeiras. Com base na medida provisória e na lei, foram editadas as resoluções nº 3.109, 3.310 e por fim a de nº 3.422. Elas estabelecem a aplicação dos recursos correspondentes a 2% dos depósitos à vista captados. Essa medida torna-se um marco na regulação ao definir uma fonte de recursos que servem como funding para as políticas de microcrédito com a fixação de teto para as taxas de juros e controle das demais condições operacionais. Dessa forma, os recursos destinados a essa modalidade de empréstimos passam a ser oriundos também das grandes instituições bancárias do país, criando-se uma política de crédito direcionado e que não está submetida diretamente às condições de mercado. As instituições financeiras sujeitas à resolução nº 3.422 podem utilizar diversos instrumentos para o cumprimento das exigibilidades de aplicações, inclusive o repasse dos recursos para outras IMFs, incluindo as SCMs. A tabela 2 traz os valores correspondentes a 2% dos saldos dos depósitos à vista captados, configurando a exigibilidade legal, em meses selecionados, e os recursos repassados para outras organizações, por meio de depósito interfinanceiro vinculado a operações de microfinanças (DIM), exclusivamente para aplicações em operações de microcrédito. Tabela 2: Disponibilidade no mês para operações de microcrédito e repasses para outras instituições. Exigibilidade

Mês

(2% sobre os Depósitos à Vista) em R$

DIM

DIM / Exigibilidade

Jan 2004

1.207.693.272,36

3.677.053,87

0,30%

Dez 2006

2.157.876.085,87

106.024.345,13

4,91%

Dez 2008

2.907.178.963,32

79.721.446,12

2,74%

Fonte: Banco Central do Brasil

169


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

É possível verificar um aumento dos recursos que deveriam ser destinados ao microcrédito, em função desta obrigatoriedade. Entretanto, os valores demonstram que o repasse para as IMFs é pequeno, e os recursos efetivamente emprestados também são muito inferiores aos exigidos garantidos pela lei. As tabelas 3 e 4 trazem o perfil dessa prática no Brasil. Há um crescimento expressivo no volume de contratos no mês, muito embora o montante das carteiras esteja muito aquém dos recursos disponibilizados, como visto acima. Isso ocorre tanto na modalidade microempreendedor quanto na destinada ao consumo. Tabela 3 – Recursos destinados ao microcrédito (microempreendedor) Microcrédito – Recursos Direcionados – Microempreendedor Mês

Valor contraSaldo Carteira tado no mês (R$ 1.000,00) (R$ 1.000,00)

Quantidade de contratos do mês

Valor médio (R$)

Prazo médio (meses)

Jan 2004

4.560,01

3.161,37

5.382

587,39

3,70

Dez 2006

301.050,13

68.615,84

73.854

929,07

4,10

Dez 2008

509.529,31

155.235,05

121.862

1.273,86

5,18

Fonte: Banco Central do Brasil

Tabela 4 – Recursos destinados ao microcrédito (consumo) Microcrédito – Recursos Direcionados – Consumo Mês

Valor contraSaldo Carteira tado no mês (R$ 1.000,00) (R$ 1.000,00)

Quantidade de contratos do mês

Valor médio (R$)

Prazo médio (meses)

Jan 2004

93.731,43

53.497,05

166.369

321,56

10,04

Dez 2006

830.435,03

57.000,60

735.962

77,45

6,74

Dez 2008

843.262,36

86.792,85

717.087

121,04

11,16

Fonte: Banco Central do Brasil

A regulamentação sobre os valores e prazos de parcelamentos dos empréstimos a serem concedidos, além das taxas de juros fixadas, combinados ao risco da operação são argumentos comumente utilizados pelas instituições financeiras para explicar ou justificar a estagnação do mercado de microcrédito. Por outro lado, o crescimento do volume de empréstimo a setores populares da sociedade pode ser observado na modalidade chamada de crédito consignado. Apesar de existir uma política de teto para as taxas de juros, foi concedida à instituição financeira a possibilidade do desconto das parcelas do empréstimo diretamente na folha de pagamentos por meio de convênio com o empregador, aumentando significativamente a adimplência desta operação. Entre os servidores públicos e aposentados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), essa 170


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

modalidade se mostrou ainda mais exitosa e despertou o interesse dos grandes bancos. Vale ressaltar que esse tipo de crédito está limitado à economia formal, excluindo a grande parte da população, que se encontra na informalidade. A tabela 5 demonstra a evolução do saldo dos empréstimos em consignação. Tabela 5 – Volume, evolução e características das operações de Crédito Consignado em Folha de Pagamento Mês

Saldo Quant. de aplicações contratos (R$ milhões) no mês

Valor médio dos contratos (R$)

Empresas Taxa de juros / entidades (% a.a.) envolvidas

Prazo médio (meses)

Jan 2004

4.071,84

396.670

2.251,61

10.005

34,55

25,13

Dez 2006

24.109,03

1.732.163

3.302,52

39.414

27,15

37,10

Dez 2008

57.983,76

2.265.116

4.255,70

51.734

22,75

48,51

Fonte: Banco Central do Brasil

As taxas médias de juros ao ano apresentaram queda entre 2004 e 2009; isto pode ser atribuído à queda da taxa Selic e também a negociações ocorridas entre bancos de um lado e sindicatos ou ministérios do governo de outro – principalmente no caso de empréstimos aos aposentados. 1.2.1 Programa Nacional do Microcrédito Produtivo O Programa Nacional do Microcrédito Produtivo (PNMPO), criado em 25 de abril de 2005 pela a Lei nº 11.110, foi mais um programa criado com base no compromisso de: Ampliar o acesso ao crédito entre os microempreendedores formais e informais e integrar o microcrédito com as demais políticas de desenvolvimento implementadas pelo Estado e pela sociedade civil, além de fortalecer e ampliar uma rede autônoma e perene de financiamento da economia popular intermediando a interlocução entre os operadores do setor. Apresentação PNMPO. Ministério do Trabalho e Emprego.

A inovação que o PNMPO traz é a de que essas operações passam a ser concedidas mediante utilização de metodologia baseada no relacionamento direto com os empreendedores de atividades produtivas de pequeno porte por meio dos agentes de crédito no local onde é executada a atividade econômica. Busca, assim, dar ao projeto um caráter de amarração na construção do espaço social e desenvolvimento, controlando melhor os riscos dos negócios desenvolvidos pelos empreendedores por intermédio de acompanhamento e orientação metodológica. Foi a resolução nº 3.422, de 31 de novembro de 2006, que consolidou em um único normativo a regulamentação sobre microcrédito, disciplinou a parcela dos recursos de depósito à vista destinados às operações de que trata o PNMPO. 171


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

A norma manteve ainda como limite da taxa de juros para esses empréstimos os 2% a.m. e 4% a.m. nas operações de microcrédito produtivo orientado, sendo aceitos como garantia o aval solidário, a alienação fiduciária e fiança. O teto da taxa de juros em 4% é bastante elevado. Ao buscar tornar o programa mais atrativo às instituições financeiras, pode-se anular a viabilidade dos empreendimentos. As fontes de recursos para o PNMPO foram ampliadas além da parcela de 2% dos depósitos e também passaram a contar com o funding das operações recursos especiais do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Os agentes que operam o PNMPO são: • Instituições Financeiras Operadoras (IFO): entidades oficiais que operam com recursos do FAT e com depósitos à vista. • Instituições de microcrédito produtivo orientado (Impo): cooperativas de crédito singulares, agências de fomento, sociedades de crédito ao microempreendedor e as Oscips – depois de habilitadas junto ao Ministério do Trabalho e Emprego. • Agentes de intermediação (AGI): bancos de desenvolvimento, agências de fomento, bancos cooperativos e as cooperativas centrais de crédito que podem atuar como repassadores dos recursos das IFOs para as Impos. Para coordenar e implementar o programa, foi criado um comitê interministerial composto por representantes dos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Fazenda e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, enfatizando seu caráter social e com objetivo de articular uma política mais abrangente. 1.3 O Correspondente Bancário A primeira vez em que o serviço de correspondente figurou entre os normativos do Conselho Monetário Nacional foi em 15 de outubro de 1973, com a Circular nº 220, que estabeleceu as seguintes condições para que estabelecimentos bancários firmassem contratos com pessoas jurídicas: • permitia a execução de ordens de pagamento, ativas ou passivas, e o desconto de cheques; • vedava expressamente outro tipo de operação (depósitos, empréstimos etc.), exceto quando o contratado pertencia ao Sistema de Distribuição (Lei nº 4.728); • obrigava a comunicação ao Banco Central; e • estava limitado a praças desassistidas de agências bancárias. Em 1979, a resolução nº 562 facultou a realização dos seguintes serviços a serem executados por correspondentes contratados apenas pelas Sociedades de Crédito, Financiamento e Investimentos (SCFI), mais conhecidas como financeiras. 172


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

Essa resolução criou a figura do “correspondente de crédito”, que possibilitou que os mesmos serviços fossem realizados a um custo menor com condições inferiores de trabalho. Os serviços prestados nesses estabelecimentos eram: • encaminhamento de pedidos de financiamento; • análise de crédito e de cadastro; • execução de cobrança amigável; e • outros serviços de controle, inclusive processamento de dados. No que diz respeito à regulamentação, o divisor de águas foi a edição da resolução nº 2.640 (de 30 de março de 2000), que facultou aos bancos múltiplos com carteira comercial, às instituições financeiras comerciais e à Caixa Econômica Federal, a contratação de correspondentes no país para a prestação de uma quantidade muito maior de serviços e sem restrição com relação ao local de atuação. Os serviços prestados passaram a ser: recepção e encaminhamento de propostas de abertura de contas de depósitos à vista, a prazo e de poupança; recebimentos e pagamentos relativos a contas de depósitos à vista, a prazo e de poupança, bem como a aplicações e resgates em fundos de investimento; recebimentos e pagamentos decorrentes de convênios de prestação de serviços mantidos pelo contratante na forma da regulamentação em vigor; execução ativa ou passiva de ordens de pagamento em nome do contratante; recepção e encaminhamento de pedidos de empréstimos e de financiamentos; análise de crédito e cadastro; execução de cobrança de títulos; outros serviços de controle, inclusive processamento de dados, das operações pactuadas; outras atividades, a critério do Banco Central. Em 25 de abril de 2002, o CMN expediu a resolução nº 2.953, que ampliou ainda mais as possibilidades de atuação: • Facultou ao correspondente contratado a tarefa de identificar o cliente no momento da abertura da conta; • permitiu que os serviços notariais e de registro (cartórios) de que trata a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, fossem contratados como correspondentes no país. Posteriormente, a resolução nº 3.110, de 31 de julho de 2003, consolidou as normas até então editadas sobre o assunto, e introduziu a possibilidade de: • contratação de correspondentes por parte de outros tipos de instituição financeira; • subestabelecimento do contrato a terceiros; e • utilização de novos produtos. Finalmente, a resolução nº 3.156, de 17 de dezembro de 2003, permitiu que pudesse também ser contratante de correspondente qualquer instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central. Segundo o BCB, oficialmente existem pelo menos 151 mil correspondentes, 173


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

sendo que 62,12% estão na região Sudeste, a mais desenvolvida do país. Já o número de agências, atualmente cerca de 20 mil, apresentou pequeno crescimento, dado que em 2000 os bancos atuavam através de 16.396 agências. Total de correspondentes sediados em cada unidade da Federação UF

Correspondentes Percentual

Agências

Percentual Total

Acre

268

0,18%

41

15,30%

Alagoas

1.728

1,14%

137

7,93%

Amapá

324

0,21%

37

11,42%

Amazonas

1.147

0,76%

167

14,56%

Bahia

8.039

5,31%

822

10,23%

Ceará

4.561

3,01%

399

8,75%

Distrito Federal

2.234

1,48%

345

15,44%

Espírito Santo

3.292

2,18%

403

12,24%

Goiás

4.794

3,17%

607

12,66%

Maranhão

2485

1,64%

246

9,90%

Mato Grosso

3.143

2,08%

284

9,04%

Mato Grosso do Sul

2.513

1,66%

249

9,91%

Minas Gerais

16.036

10,60%

1.943

12,12%

Pará

1.990

1,31%

334

16,78%

Paraíba

2.469

1,63%

194

7,86%

Paraná

13.315

8,80%

1.357

10,19%

Pernambuco

4.769

3,14%

535

11,27%

Piauí

2.014

1,33%

123

6,11%

Rio de Janeiro

9.805

6,48%

2.019

20,59%

Rio Grande do Norte 2.738

1,81%

165

6,03%

Rio Grande do Sul

11.805

7,80%

1.578

13,37%

Rondônia

1.002

0,66%

101

10,08%

Roraima

201

0,13%

23

11,44%

Santa Catarina

8.667

5,73%

883

10,195

São Paulo

39.549

26,13%

6.789

17,17%

Sergipe

1.253

0,83%

169

13,49%

Tocantins

1.230

0,81%

96

7,80%

Total

151.351

100,%

20.046

13,24%

Fonte: UNICAD/BCB

Esse interesse pelos correspondentes bancários está associado ao crescimento econômico do país que, aliado ao controle da inflação e a políticas, como a de valorização do salário mínimo, provocaram um gradual, mas con174


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

sistente aumento do poder aquisitivo das classes de menor renda, fazendo com que os grupos que tradicionalmente controlam o setor no país vissem vantagem em ofertar serviços financeiros para uma população que antes não era atendida - ainda que de forma mais precária. O instrumento possibilitou que esse atendimento fosse feito com um custo reduzido para o banco, já que se trata de parceria com estabelecimentos de serviços e comércio. A empresa prestadora de serviços (correspondente bancário) constitui unidade econômica e jurídica distinta do contratante, o que significa dizer que os estabelecimentos comerciais admitem, assalariam e dirigem as tarefas atribuídas aos empregados, cujos serviços estão relacionados às atividades essenciais das instituições financeiras. Portanto, é necessário estabelecer parâmetros legais a respeito do enquadramento sindical dos trabalhadores nesses locais, regulamentando assim essa nova “nova função”. Um dos principais motivos do avanço extraordinário do número de empresas associadas tem sido o envolvimento de grupos de grande porte do setor, como a Caixa Econômica Federal, o Bradesco, o Banco do Brasil, entre outros. Do ponto de vista qualitativo, a política de utilização dos correspondentes bancários pelas grandes instituições carece de uma avaliação mais detalhada. Quando observadas de forma minuciosa, essas empresas prestadoras de serviço parecem ter sido criadas como uma solução de baixo custo para simplesmente substituir as agências. O Bradesco, em seus relatórios institucionais, coloca o Banco Postal como integrante de seu projeto de segmentação de clientes, e destina grande parte de seus 22 mil postos dessa natureza para a região Sudeste. Os correspondentes do Bradesco, assim como ocorre em outros conglomerados, estão divididos em duas categorias: o Banco Postal, parceria com os Correios, com 5.946 pontos de atendimento (Relatório Anual 2008) oferecendo grande quantidade de serviços ao correntista, e o Bradesco Expresso, com 16.061 pontos de atendimento em parceria com diversos estabelecimentos comerciais, que se destina mais fortemente aos serviços de recebimento de contas. Outros exemplos são o Lemon Bank, que mantém no país uma única agência bancária e 5.921 correspondentes, e o Itaú, que havia constituído uma empresa subsidiária com as funções de “correspondente de crédito” para não correntistas a elevadíssimas taxas de juros. Este último grupo recuou de seu projeto após a recente crise financeira internacional. Grupos médios como o BMG especializaram-se, por meio de correspondentes, em constituir carteiras de clientes em empréstimos com consignação e vendêlas às instituições maiores. Por fim, a prestação de serviços por esse intermédio provocou forte impacto no mundo do trabalho, seja no âmbito das negociações coletivas, seja na esfera do contrato individual e de suas garantias. A medida não contribuiu 175


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

para o crescimento do crédito em moldes orientados à produção. Na verdade, a maioria dos pontos de correspondentes bancários tem atuação específica nos serviços, pagamento e recebimento de contas. Conclusão Incluir uma grande massa de pessoas no sistema financeiro nacional passou a ser a tônica principal das políticas públicas de acesso ao crédito após o período de estabilização da inflação. Mas ainda é necessário fazer muito pelo microcrédito produtivo e para o consumo, bem como pela bancarização no Brasil. A simples expansão dos empréstimos pessoais incluirá os atuais desassistidos na sociedade de consumo, mas não se traduzirá necessariamente em desenvolvimento econômico e social. Para que haja inclusão, são necessárias políticas públicas integradas de crédito dedicadas à produção, de caráter solidário, em rede e de natureza associativa e comunitária, voltadas para a reorganização das economias locais com a perspectiva da geração de trabalho e renda. Foi justamente com a intenção de incentivar essas operações que foram editadas a lei e a medida provisória que estabelecem que 2% dos depósitos à vista captados pelas instituições financeiras sejam compulsoriamente destinados ao microcrédito. Apesar de as políticas visarem incentivar operações de microcrédito, quando se verifica o volume efetivamente emprestado, o resultado é desanimador, mesmo com o incentivo ao crescimento do número de entidades operadoras e a flexibilização da regulamentação. A política microfinanceira mais apoiada pelos grandes bancos foi a expansão do correspondente bancário, que atua com produtos desenvolvidos para as classes de renda mais baixa a custos mais atrativos do que as agências, permitindo maior rentabilidade nas operações e no crédito consignado que apresenta garantia de adimplência, já que se destina aos trabalhadores formais e as parcelas são descontadas em folha de pagamento. Entretanto, a ampliação do microcrédito produtivo necessita de uma efetiva obrigação em relação aos repasses do compulsório sobre os depósitos à vista, fazendo com que o recolhimento dos montantes não emprestados junto ao banco fossem redistribuídos para outras instituições capazes de fazê-los, incluindo as IMFs, SCMs e as cooperativas de crédito. Haveria, desta forma, uma taxa punitiva sobre o recolhimento para as organizações que captam depósitos à vista reorganizando a política de microfinanças. A criação de um órgão coordenador das políticas aplicadas às diferentes entidades que atuam no setor (Oscips, SCMs, ONGs, IFOs, cooperativas de crédito, bancos), capaz de integrar as ações de políticas públicas para essas entidades, dando sentido comum de ação, também se constitui como fator-chave. 176


Formas alternativas de financiamento: microfinanças

Por fim, é necessária a formulação de uma lei prevendo que o correspondente bancário só possa ser autorizado pelo Banco Central em casos específicos e justificados de atendimento à população de baixa renda. Essas ocorrências devem sempre ser associadas ao desenvolvimento de uma política de microcrédito orientado voltada para o desenvolvimento local. Bibliografia: FORTUNA, E. Mercado Financeiro: produtos e serviços. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2008. MARTINS, P. H. Diagnóstico do Marco Legal das Microfinanças no Brasil, Brasília : MTE, BNDES, BID, 2008. MARTINS, P. H., WINOGRAD, A. e SALLES, R.de Carvalho Manual de regulamentação das Microfinanças: Programa de Desenvolvimento Institucional, Rio de Janeiro: BNDES, 2002. RIBEIRO, C.T. & CARVALHO, C.E. Do Microcrédito às Microfinanças. São Paulo: Editora PUC-SP, 2006. SOARES, M.M. & SOBRINHO, A. D. de M. O papel do Banco Central do Brasil e a importância do Cooperativismo de Crédito, Brasília: BCB, 2008. Sites: www.bcb.gov.br www.mte.gov.br www.bndes.gov.br www.sicredi.com.br www.sicoob.com.br www.lemon.com.br Documentos: - Dossiê Correspondente Bancário, emitido pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, entregue ao BCB em 19 de janeiro de 2005. - Relatório Anual 2008 Bradesco. Emitido pelo Departamento de Relações com Investidores em 30 de janeiro de 2009. - Caderno Especial “Iniciativas Sindicais de Apoio para o Desenvolvimento da Economia solidária: a experiência de Quebec”, publicada pelo Development Solidaire Internacional. Quebec-Canadá, 2008. - Resoluções e Circulares do Conselho Monetário Nacional e Banco Central do Brasil:

• 562 emitida em 30 de agosto de 1979; • 2627 emitida em 02 de agosto de 1999 • 2640 emitida em 25 de agosto de 1999; • 2788 emitida em 30 de novembro de 2000;

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• 2874 emitida em 26 de julho de 2001; • 2953 emitida em 25 de abril de 2002; • 3110 emitida em 31 de julho de 2003; • 3156 emitida em 17 de dezembro de 2003; • 3442 emitida em 28 de fevereiro de 2007.


Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação1 Maria Cristina Penido de Freitas2

Introdução O regime monetário de metas de inflação tornou-se a principal estratégia de política monetária dos bancos centrais de vários países avançados e periféricos a partir do início dos anos 1990. Esse regime se apoia no anúncio prévio de uma meta para a inflação em prazo pré-determinado e no compromisso explícito do Banco Central com o cumprimento da meta fixada. No meio acadêmico, formou-se um amplo consenso entre os economistas da corrente principal de que esse regime é a melhor prática de política monetária. Para os defensores do regime de metas de inflação, a política monetária com o propósito exclusivo de garantir a estabilidade dos preços é a política macroeconômica, por excelência. Todos os demais objetivos de política econômica são subordinados à busca e à manutenção da estabilidade dos preços, desconsiderando suas implicações sobre o nível de atividade econômica e sobre o emprego.3 Desde 1999, o regime de metas inflacionárias tornou-se a principal estratégia do Banco Central do Brasil (BCB) na condução da política monetária. Embora não possua independência legal em relação ao poder executivo, o BCB tem operado a política monetária com total autonomia, com o propósito de assegurar a estabilidade dos preços, mesmo às custas do baixo crescimento ou mesmo da forte desaceleração da atividade econômica. Esse foi o caso, por exemplo, da ação da autoridade monetária no segundo semestre de 2008, quando a economia brasileira sofreu o impacto do agravamento da crise financeira internacional. O objetivo desse artigo é apresentar um quadro geral do regime de metas de inflação no Brasil, a partir da análise dos fundamentos, configuração e limi1 A autora agradece os comentários e sugestões de Ricardo Carneiro, assumindo total responsabilidade pelos erros e omissões remanescentes. 2 Doutora em Economia pela Universidade de Paris XIII (França). Pesquisadora-associada do Cecon-IE-Unicamp. 3 Embora a política monetária seja considerada por muitos economistas a função por excelência dos bancos centrais, essa função só adquiriu importância após a crise de 1929. Durante a vigência do padrão-ouro, a gestão monetária era, sobretudo, passiva, dado que os bancos centrais procuravam ajustar a criação da moeda e do crédito aos movimentos de entrada e saída do ouro. Sobre evolução das funções dos bancos centrais, ver: Freitas (2000).

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tes. Com esse propósito, o artigo se divide em quatro seções, além dessa breve introdução. Na seção 2, são apresentados, em uma perspectiva crítica, os fundamentos teóricos do regime de metas de inflação. Na seção 3, a configuração institucional do regime brasileiro de metas de inflação é descrita e cotejada com algumas experiências internacionais de economias avançadas e periféricas. Na seção 4, é realizado um balanço crítico da política monetária no Brasil, com destaque para o seu forte viés anticrescimento. Na seção 5, são apresentadas as considerações finais. 2. O regime de metas de inflação e a questão da coordenação das políticas macroeconômicas: aspectos teóricos4 Em termos teóricos, os bancos centrais podem se basear na condução da política monetária, em discrição ou em regras. No primeiro caso, os bancos centrais utilizam livremente seus instrumentos levando em consideração a conjuntura econômica e os objetivos de política macroeconômica. No segundo caso, a utilização dos instrumentos está subordinada a uma regra explícita a ser perseguida, sem levar em consideração o ciclo de negócios. 5 A opção pela definição de regras fundamenta-se na crença de que o sistema econômico é autorregulado, basicamente estável e tende para o equilíbrio. Nessa concepção teórica, a moeda é apenas um meio facilitador das trocas, que não têm efeitos permanentes sobre as variáveis “reais” como produção e o emprego. Para a escola monetarista, a adoção das regras também se justifica pelo fato de que o conhecimento teórico e empírico do funcionamento da economia é imperfeito. Milton Friedman, o maior expoente da corrente teórica monetarista, defendia a adoção de um conjunto de regras para a expansão da oferta monetária (agregados monetários), também conhecido como regime de metas monetárias. O regime monetário de metas de inflação se apoia nos desenvolvimentos teóricos da Escola Novo-clássica, que surgiu na década de 1970 como uma vertente crítica do monetarismo.6 A teoria novo-clássica se funda em quatro pilares fundamentais: • Equilíbrio contínuo de mercado, com salários e preços reais flexíveis – esse primeiro pilar indica que a economia estará sempre em seu nível ótimo de equilíbrio, no qual oferta e demanda se igualam, como resultado dos procedimentos de otimização individual dos agentes (trabalhadores, firmas, 4 Essa seção se baseia largamente em Freitas (2006 e 2009). 5 O debate em torno de regras e discrição tem sido recorrente na teoria econômica. Suas raízes remontam ao século XIX, quando os representantes da Currency School e da Banking School defendiam posições opostas em relação ao controle monetário, em resultado de suas distintas visões sobre a natureza da moeda. Reintroduzido por Friedman no final da década de 1950, quando do lançamento da contrarrevolução monetarista à hegemonia do pensamento keynesiano neoclássico no pós-guerra, esse debate foi reacendido na década de 1970 e de 1980 pelos teóricos novo-clássicos. Uma síntese do desenvolvimento teórico do debate regras versus discrição na segunda metade do século XX é apresentada por Argy (1988). 6 Os principais representantes da Escola Novo-clássica são: Robert Lucas, Robert Barro, David Gordon, Thomas Sargent, Finn Kydland e Edward Prescott.

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consumidores). Em caso de choques exógenos, a economia se auto-ajusta, sem a necessidade de intervenção de políticas. • Neutralidade da moeda – O segundo pilar afirma que a variação na quantidade de moeda não produz nenhum efeito permanente sobre o nível de produção e de emprego nem no curto nem no longo prazo. A elevação na quantidade de moeda ofertada só resultaria em aumento do nível de preços. • Hipótese de expectativas racionais – Os agentes econômicos racionais maximizam as informações disponíveis para formar suas expectativas sobre o comportamento futuro das variáveis relevantes, agem como se conhecessem o funcionamento da economia e não cometem erros sistemáticos. O desemprego é sempre voluntário e, na ausência de políticas-surpresa, estará no seu nível natural. • Existência de viés inflacionário na política econômica que gera inconsistência temporal – Esse pilar preconiza a existência de um viés inflacionário na política macroeconômica associada à existência de ciclos político-eleitorais. Para atingir resultados de curto prazo que viabilizem sua permanência no poder em sociedades democráticas, os políticos adotam medidas inconsistentes, como a ampliação da oferta de moeda e/ou redução da taxa de juros para reduzir o desemprego. Com a hipótese de expectativas racionais, a Escola Novo-clássica se diferencia da teoria monetarista, que admite a não-neutralidade da moeda no curto prazo, fruto da ilusão monetária dos trabalhadores, que formam expectativas (adaptativas) com base nos acontecimentos do passado. O agente com expectativa racional não está sujeito à ilusão monetária porque sabe, tal como sugere a Teoria Quantitativa da Moeda, que uma maior oferta monetária provocará inflação. Apenas políticas-surpresas, ao confundir os agentes e provocar distorções transitórias no curto prazo em função dos erros de previsão, provocariam efeitos reais na economia. Porém, esses efeitos seriam efêmeros, pois uma vez compreendido o erro, os agentes racionais reajustariam imediatamente suas posições e a economia retornaria ao seu curso natural7. Os novo-clássicos são contrários à adoção de políticas-surpresas já que, como seus efeitos são imprevisíveis, causam incerteza e dificultam os cálculos econômicos dos agentes racionais. Por essa razão, a Escola Novo-Clássica defende a tese de que o governo não deve utilizar a política monetária de forma discricionária, mas sim adotar uma 7 Na versão de Lucas da curva de Phillips não há trade-off de curto prazo entre a taxa de desemprego e o nível de preço da economia. Os agentes usam de forma racional as informações disponíveis, supostas completas e corretas, para tomar suas decisões, prevendo corretamente as decisões da política econômica e neutralizando os seus efeitos. Como os agentes racionais antecipam corretamente o futuro e não são sistematicamente enganados por mudanças previstas nas políticas de demanda agregada, a Curva de Phillips é vertical, indicando que a taxa de desemprego corrente é sempre igual à taxa de desemprego natural. Políticas não antecipadas pelos agentes racionais provariam um desvio transitório, quase imediatamente corrigido pelos agentes racionais.

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política baseada em regras claras e pré-estabelecidas, com vistas à manutenção da estabilidade dos preços. Assim, para evitar um ambiente de incertezas e desconfianças em relação ao comportamento do governo e a credibilidade da política monetária, o Banco Central deveria ser independente vis-à-vis ao Poder Executivo para formular e executar a política monetária.8 Essa independência se consubstanciaria na total autonomia do Banco Central na utilização dos seus instrumentos para influenciar as expectativas dos agentes e assegurar a estabilidade dos preços mesmo que tal ação contrarie os interesses dos governantes eleitos. Em desenvolvimentos teóricos posteriores, as regras claras e conhecidas assumiram a forma de uma meta de crescimento máximo da inflação (inflation target), à qual todas as demais variáveis macroeconômicas estariam subordinadas. A adoção do mecanismo de meta inflacionária reforçaria a independência operacional do Banco Central. Ao mesmo tempo, o compromisso do Banco Central independente com uma meta explícita de inflação máxima serviria de âncora das expectativas dos agentes racionais.9 O anúncio público das metas de inflação e a transparência na condução da política monetária confeririam credibilidade ainda maior ao Banco Central independente. Além de assegurar um maior comprometimento com a manutenção da estabilidade, o regime de metas teria a vantagem de reduzir o viés inflacionário associado à política econômica (inconsistência temporal ou dinâmica), pois todos os demais objetivos macroeconômicos tornar-se-iam subordinados ao objetivo da política monetária que é a estabilidade de preços. A adesão de economistas neo-keynesianos à hipótese de expectativas racionais levou ao surgimento do chamado “novo consenso” na década de 199010. Tornou-se amplamente aceito, entre os economistas, que a moeda tenha impacto no curto prazo sobre a produção e o emprego, porém, mantém sua neutralidade no longo prazo. Em razão da existência de um viés inflacionário inerente à prática governamental que se traduz em política inconsistente temporalmente, o regime de meta de inflação se afirma como a melhor prática de política monetária, cuja essência residiria “na arte de gerenciar expectativas” (Woodford, 2001). 8 Na vasta literatura em prol da independência do Banco Central destacam-se os trabalhos de Kenneth Rogoff (1985), Alex Cukierman (1992) e Alberto Alesina (1989 e 1993). 9 Cabe ressaltar que nem todos defensores da adoção de regras para a condução da política monetária concordam com a tese da independência do Banco Central sugerida pela Escola Novo-clássica e pelos teóricos do ciclo político. 10 Os novos keynesianos se contrapõem aos novo-clássicos apenas no que se refere à análise do curto prazo. Para essa corrente teórica, no curto prazo, as falhas de mercados podem explicar posições de equilíbrio abaixo do produto de pleno emprego. No longo prazo, entretanto, preços e salários são plenamente flexíveis e os mercados se autoequilibram automaticamente, por isso, vão se concentrar na busca de explicação para a rigidez de preços e salários. Os principais expoentes novos keynesianos que integram o “novo consenso” sobre política monetária são Ben Bernanke, Frederic Mishkin, Michel Woodford e Lars Svensson. Por ironia da história, em 2006, Ben Bernanke tornou-se presidente do Federal Reserve, Banco Central americano, e se viu obrigado, pela gravidade da crise financeira, a atuar de forma absolutamente discricionária na condução da política monetária, enquanto Frederic Mishkin, que integrava o board de diretores, pediu demissão em maio de 2008.

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De acordo com esse “novo consenso”, cada vez mais a arte da política monetária deve se fundar na boa ciência. Nas palavras de Mishkin (2007), “a prática da política monetária tem se baseado de forma crescente em um conjunto-chave de princípios científicos. Embora haja e provavelmente sempre haverá elementos de arte na condução da política monetária (...) quanto mais informada pela boa ciência, mais sucesso terá a política monetária”. De acordo com esse autor, a condução da política monetária atualmente se baseia em nove princípios centrais: 1. A inflação é sempre e em qualquer parte um fenômeno monetário. A política monetária expansionista é sempre a causa fundamental da inflação, entendida esta última como um aumento prolongado no nível geral de preço. 2. A estabilidade dos preços tem vantagens importantes. Na década de 1970, houve um reconhecimento de que a inflação gera inúmeras distorções: compromete a função de meio de troca da moeda ao agir como um imposto; gera incerteza sobre os preços relativos e dificulta a tomada de decisão dos agentes; aumenta o custo do endividamento; e conduz ao sobreinvestimento no sistema financeiro, que oferece proteção contra alguns custos da inflação. 3. Não existe trade-off entre inflação e desemprego no longo prazo. A economia tende ao seu nível natural independentemente do nível da taxa de inflação. 4. As expectativas desempenham um papel crucial na determinação da inflação e na transmissão da política monetária à macroeconomia. As expectativas do público e do mercado em relação às ações da política têm importante efeito em praticamente todos os setores da atividade econômica. O comportamento otimizador do agente racional indica que as expectativas reagirão a toda nova informação fazendo com que o longo prazo seja na verdade bastante curto. Ou seja, as expectativas em relação à política monetária futura desempenham um papel crucial na evolução da atividade econômica. 5. As taxas de juros reais precisam ser elevadas com inflação ascendente, como estabelece a regra de Taylor. Em outras palavras, os bancos centrais reagem elevando a taxa básica de juros quando identificam que a inflação corrente desvia do alvo e o produto desvia do seu nível natural (hiato do produto). A inflação permanecerá sob controle se e somente se a taxa de juros for elevada. 6. A política monetária é sujeita ao problema inconsistência temporal. Esse problema identificado pelos autores novo-clássicos emerge quando a política monetária é conduzida de modo discricionário, levando em consideração o estado corrente da economia. Os políticos são tentados a explorar o trade-off existente no curto prazo entre inflação e desemprego, mas os agentes racionais incorporam esse comportamento 183


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em suas expectativas resultando tão somente em aumento da inflação. O reconhecimento desse problema levou ao desenvolvimento da noção de reputação e credibilidade e de formato institucional ótimo para o Banco Central, que conformam o sétimo princípio. 7. A independência do Banco Central amplia a eficiência da política monetária. A independência vis-à-vis ao Poder Executivo, assegurada pelos mandatos fixos dos seus dirigentes e orçamento próprio, permite que o Banco Central utilize livremente seus instrumentos com objetivo de garantir a estabilidade dos preços. Desse modo, o Banco Central fica livre das pressões para explorar o trade-off de curto prazo entre inflação e desemprego, evitando assim o problema da inconsistência temporal. A defasagem temporal dos efeitos da política monetária sobre a inflação seria uma questão técnica que cabe ao Banco Central resolver, pois requer expertise no entendimento da natureza do processo inflacionário e suas interações com a “atividade real”. 8. O comprometimento com uma âncora nominal é fundamental para o sucesso da política monetária. O compromisso explícito do Banco Central com a estabilidade dos preços encoraja o governo a ter responsabilidade fiscal, o que também contribui para a estabilidade dos preços. 9. As fricções financeiras desempenham um importante papel nos ciclos econômicos. A instabilidade financeira que resulta de fricções associadas ao aumento da assimetria de informação pode conduzir a economia à recessão. Identificado pelo novo consenso como a melhor prática de política monetária, o regime de metas de inflação comporta diferentes configurações institucionais, com distintos graus de flexibilidade ou de rigidez para a ação dos bancos centrais ante as flutuações do crescimento econômico11. A flexibilidade é entendida como importância atribuída à “estabilidade da economia real” (Svensson, 2002). Porém, os elementos fundamentais seriam então: o anúncio prévio de uma meta numérica para inflação em prazo determinado, que serviria de âncora nominal para a coordenação de expectativas; o compromisso institucional com a estabilidade dos preços; a transparência na condução da política monetária, que permitiria o monitoramento e avaliação de desempenho do Banco Central; atribuição de liberdade ao Banco Central para a utilização dos instrumentos com vistas à execução das metas.12 11 Como será visto na seção 3, o formato institucional do regime de metas no Brasil é pouco flexível quando comparado com outros países periféricos. 12 A operacionalização da política monetária no regime de metas de inflação não difere da prática adotada em regimes discricionários. Seu principal instrumento é o anúncio de uma meta para a taxa básica de juros, definida, em geral, por um comitê de política monetária, cujo calendário de reuniões é previamente divulgado e de conhecimento público. As intervenções dos bancos centrais no mercado aberto, mediante compra e venda de títulos públicos, visam garantir que a taxa de juros do mercado interbancário seja mantida em níveis próximos da meta oficial de juros.

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Inúmeros estudos empíricos realizados pelos adeptos do “novo consenso” mostram que nos países que adotaram o regime de metas de inflação, o nível e a volatilidade da inflação e da taxa de juros declinaram após a adoção do regime. Igualmente, além de não ter havido piora na volatilidade do produto, os efeitos do impacto do câmbio (pass-through) sobre os preços e a política monetária teriam sido atenuados. Porém, há igualmente inúmeras evidências de que a redução da inflação, bem como a menor volatilidade dos preços, juros e do produto, foi uma tendência mundial ao longo dos anos 1990 e na presente década. Por essa razão, o sucesso do regime de metas de inflação em conter a inflação com elevação da taxa de juros ainda aguarda comprovação. Além disso, também não há evidências de que os países que adotaram o regime de metas se saíram melhor do que países como os Estados Unidos e a área do Euro, que não introduziram metas para a inflação.13 Nos países periféricos, cujas moedas não possuem conversibilidade14, os ciclos de liquidez internacional condicionam a política monetária, como mostra Farhi (2007), pois os efeitos do impacto do câmbio sobre os preços são muito mais importantes do que nas economias industrializadas. Assim, de um lado, parte do êxito da desinflação nos países que aderiram ao regime de metas pode ser atribuída à apreciação das moedas domésticas, que baratearam o custo dos produtos importados e, no caso dos países exportadores de commodities, isso compensou o efeito interno da elevação dos preços internacionais. De outro lado, em momentos de bruscas reversões dos fluxos de capitais, a maior volatilidade da taxa de câmbio ocasionou surtos inflacionários mediante a transmissão da desvalorização cambial aos preços, comprometendo o alcance da meta de inflação.15 Também em termos teóricos, foram formuladas inúmeras críticas ao novo consenso16. Na economia capitalista, a busca pelos agentes econômicos de uma riqueza ilimitada e sem conteúdo material predefinido, expressa e avaliada em termos monetários, torna a moeda um ativo desejado por si mesmo. A natureza ambivalente da moeda na economia capitalista moderna faz com que seus efeitos sobre a economia real não sejam neutros nem no curto nem no longo prazo. Por essa razão, a política monetária tem efeitos duradouros sob o “lado real” da economia, ou seja, repercute 13 O estudo econométrico realizado por Ball e Sheridan (2003), que avaliou impactos do regime de metas no desempenho econômico de países desenvolvidos, apontou para a inexistência de evidências favoráveis ao regime de metas de inflação na promoção de melhor desempenho das economias no que se refere ao comportamento de três variáveis macroeconômicas: a taxa de inflação, o Produto Interno Bruto e a taxa de juros. No estudo foram comparados sete países membros da OCDE, que adotaram esse instrumento de política monetária no início dos anos 1990 e outros 13 países, também membros da OCDE, que não o fizeram. 14 Como destaca Prates (2003:253), os países em desenvolvimento “não são, de forma geral, capazes de emitir dívida externa denominada na própria moeda. (...), as moedas ‘periféricas’ não são capazes de cumprir o papel de ‘receptáculo’ da incerteza em âmbito mundial. (...) A principal manifestação dessa não-conversibilidade, especificamente no que se refere à função reserva de valor, são os diferentes prêmios de risco atribuídos às moedas, que decorrem da regra de formação das taxas de juros no sistema monetário e financeiro internacional, desfavorável para os países não-emissores da divisa-chave (...)”. 15 Como será visto na seção 4, esse foi o caso do Brasil em 2001 e 2002, quando os ataques especulativos sobre o real tiveram forte impacto sobre os preços, levando o BCB a descumprir a meta de inflação. 16 Ver entre outros, Sicsú (2002), Arestis e Sawyer (2003), e Wray (2007).

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não apenas sobre a inflação, mas também sobre a produção e o emprego. Portanto, não faz sentido reduzir a política monetária ao objetivo exclusivo da estabilidade de preços em detrimento do crescimento. Isso não significa, contudo, que o governo e o Banco Central devam adotar uma postura leniente em relação à inflação, pois se a inflação é injusta, a recessão é inconveniente tanto para empresas como para os trabalhadores e para o governo, na medida em que se traduz em queda de lucro, aumento do desemprego e queda dos impostos. De igual modo, a política monetária não deve ser utilizada de forma independente das demais políticas econômicas. Isso porque, ao contrário do que estabelece o arcabouço teórico do regime de metas, a inflação não é a única variável afetada pela política monetária. A coordenação das políticas é essencial tanto para o planejamento dos objetivos macroeconômicos como para o sucesso das diferentes políticas em atingir esses objetivos17. A política monetária não pode ser isolada das demais sob a responsabilidade de um Banco Central independente, sob pena de gerar custos sociais elevados, caso haja divergências entre o Banco Central e o governo. Em economias abertas, por exemplo, o Banco Central pode optar por manter a taxa de juros elevada para atrair capital externo e assim equilibrar o balanço de pagamentos, à custa do desalinhamento cambial, enquanto o governo pode preferir taxas de juros mais baixas para estimular a produção e o emprego. Se o Banco Central age sem levar em consideração os objetivos gerais da política econômica, o resultado será a estagnação da economia e o aumento do desemprego, sem falar na maior vulnerabilidade que a dependência de recursos externos voláteis representa. Nos países periféricos, que ocupam uma posição absolutamente secundária na hierarquia do sistema monetário e financeiro internacional18, esse problema pode ser ainda mais grave. A adoção da estabilidade dos preços como objetivo único do Banco Central, como previsto no regime de metas de inflação, engessa toda a política econômica, impede a coordenação de políticas e retira do Executivo o poder de formular a política monetária, potencializando os constrangimentos decorrentes da posição internacional periférica. Se as taxas de juros são fixadas abaixo do nível determinado no mercado internacional, o qual embute um prêmio de risco, os países periféricos podem sofrer com fuga de capital doméstico, além de interromper a atração de recursos externos. Nesses países, a elevada taxa de juros doméstica muitas vezes tem resultado incerto sobre a estabilidade dos preços, porém seus efeitos são quase sempre nefastos para os trabalhadores e empresários, na medida em que pode se traduzir na redução dos lucros e, por consequência, em demissões. Além disso, provoca elevação do 17 Na concepção de Keynes, a política econômica consiste “em ações concertadas em múltiplas arenas” (Carvalho, 1997: 41). Nesse sentido, a coordenação macroeconômica das diferentes políticas é essencial e imprescindível. 18 Sobre a natureza assimétrica e hierárquica do sistema monetário e financeiro internacional e suas implicações para os países em desenvolvimento, ver Prates (2002).

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custo financeiro da dívida pública, o que coloca restrições adicionais à política fiscal, reduzindo espaço para ações anticíclicas. Outro aspecto importante a ser considerado na discussão em torno do regime de metas é a questão da instabilidade financeira intrínseca à economia capitalista, fundada na moeda de crédito. O objetivo exclusivo da estabilidade dos preços poderia dificultar uma rápida ação do Banco Central ante a ameaça de instabilidade financeira, dado que há uma evidente contradição entre a função de guardião do valor da moeda e a função de prestamista em última instância para impedir a ocorrência de grave crise financeira.19 Por mais que se reforce a regulamentação prudencial, não é possível eliminar completamente o risco de ocorrência de crises bancárias que, em função da gravidade, redundem em contração abrupta de crédito e falências em cadeia, afetando a atividade produtiva e provocando desvalorizações patrimoniais. Diante de tal cenário, a corrosão do valor da moeda passa necessariamente para o segundo plano. O episódio recente da crise financeira nas economias avançadas, que se transformou em crise sistêmica global a partir da quebra do banco de investimento americano Lehman Brothers em setembro de 2008, colocou em xeque o regime de metas de inflação e, sobretudo, a visão de que os bancos centrais devem ter como objetivo exclusivo a estabilidade dos preços. Mesmo preocupados com a inflação ascendente associada à elevação do preço das commodities, vários bancos centrais que adotam regime de metas de inflação se viram compelidos a realizar uma política monetária expansionista para favorecer a recuperação da atividade econômica. A rapidez da reação condicionou, em certa medida, a profundidade dos impactos da crise20. 3. O marco legal e o formato institucional do regime brasileiro de metas de inflação Desde o início da década de 1990, inúmeros países – centrais e periféricos – adotaram o regime de metas de inflação. Na maioria deles, o regime foi introduzido com alteração no marco legal, o que confere um caráter relativamente permanente ao arcabouço institucional dessa estratégia de política monetária21. 19 Na Inglaterra, o Ato de 1998 (The Bank of England Act 1998), que definiu que o objetivo principal do Banco da Inglaterra é a estabilidade dos preços, manteve o Banco Central como responsável pela estabilidade do sistema financeiro como um todo. Todavia, a função de supervisão das instituições bancárias foi transferida à Financial Service Authority (FSA), responsável pela supervisão de todas as instituições financeiras. O resultado é bem conhecido. Após mais de 100 anos, em setembro de 2007, o Reino Unido voltou a presenciar corrida bancária, que redundou na estatização do Northern Rock Bank no início de 2008. Esse episódio mostrou que, além da ocorrência de problemas de comunicação entre a FSA e o Banco da Inglaterra, este demorou a atuar como prestamista em última instância. 20 Esse ponto será retomado na seção 4. 21 Duas importantes exceções são a Nova Zelândia e o Canadá. Nesses países, o regime de meta faz parte de um compromisso formal renovável entre o Executivo e o presidente do Banco Central, o que permite a repactuação dos seus parâmetros, como o índice de referência, o formato da meta, o horizonte temporal, etc.

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Em vários casos, a lei orgânica do Banco Central foi igualmente alterada para conceder independência ou autonomia em relação ao executivo. Dentre os países industrializados, adotaram o regime de metas a Nova Zelândia, Canadá, Reino Unido, Austrália, Suécia e Noruega (ver Quadro 1, no Anexo). A Espanha e a Finlândia aderiram igualmente a esse regime até o momento da integração monetária na União Europeia em 1998, quando transferiram ao Banco Central Europeu (BCE) a responsabilidade pela formulação da política monetária. Entre os países periféricos, Chile e Israel foram os primeiros a adotar o regime de metas de inflação, respectivamente, em 1991 e 1992. Em relação ao Chile, cabe ressaltar que o Banco Central tornou-se legalmente independente do Executivo em 1990, antes mesmo da introdução formal do regime. Na sequência, foram seguidos por inúmeros outros países, tais como África do Sul, Brasil, Colômbia, Coreia, Hungria, Indonésia, México, Peru, Polônia, República Checa, Tailândia e Turquia, para mencionar apenas aqueles que são considerados economias de mercado emergentes. Em vários países, sobretudo naqueles em desenvolvimento, mas também em alguns países industrializados (casos do Reino Unido e Suécia22), essa estratégia de política monetária foi adotada na sequência de ataques especulativos contra suas moedas, o que os obrigou a adotar o regime de câmbio flutuante. Esse foi também o caso do Brasil, que aderiu ao regime de metas de inflação após um episódio de crise cambial que culminou na adoção do regime de câmbio flutuante. Até então a política monetária vinha sendo conduzida com base no regime monetário de meta cambial, com a taxa de câmbio funcionando como âncora nominal das expectativas dos agentes.23 A base legal para a introdução do regime de metas de inflação foi dada pelo Decreto nº 3.088 de 21 de junho de 1999 e pela Resolução nº 2614 de 30 de junho de 1999 do Conselho Monetário Nacional (CMN). O Decreto estabeleceu o regime de metas de inflação como diretriz para a política monetária e definiu as competências do Conselho Monetário Nacional (CMN) do Banco Central do Brasil (BCB). O CMN, do qual participam os ministros da Fazenda e do Planejamento e o presidente do BCB, recebeu a atribuição pela escolha do índice de preço de referência e a fixação das metas e seus respectivos intervalos, mediante proposta do ministro da Fazenda. Para os anos de 1999, 2000 e 2001, o decreto definiu como prazo para fixação da meta a data de 30 de junho de 1999, e para os anos 2002 e seguintes, a data de 30 de junho de cada dois anos imediatamente anterior. Ao BCB foi atribuída a responsabilidade pela política monetária. O decreto 22 Também o Reino Unido e a Suécia aderiram ao regime de metas de inflação na sequência de movimentos especulativos contra suas moedas no início da década de 1990. No caso da Suécia, a turbulência no mercado de câmbio e a especulação contra a coroa sueca levaram ao abandono do regime de câmbio fixo em relação ao ECU, a moeda escritural da Comunidade Europeia que precedeu o euro. A adesão ao regime de câmbio flutuante em novembro de 1992 foi seguida pela introdução do regime de metas em janeiro de 1993, com horizonte temporal de dois anos para o objetivo fixado para o IPC (3% ao ano, com intervalo de + ou- 1%). 23 Para maiores detalhes sobre a política monetária brasileira sob o regime monetário de metas cambial e a transição para o regime monetário de metas de inflação, ver: Modenesi (2005).

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Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

estabeleceu que sua atuação ocorresse fundamentalmente com a determinação da meta para a taxa básica de juros da economia (taxa Selic), cuja magnitude seria decidida pelo Comitê de Política Monetária (Copom), instância do BCB responsável pela formulação da política monetária desde 1996.24 Também definiu que a meta será considerada cumprida quando a variação acumulada da inflação – medida pelo índice de preços de referência relativa ao período de janeiro a dezembro de cada ano – situar-se na faixa do seu respectivo intervalo de tolerância. Em caso de não cumprir a meta, o BCB deve informar as razões em carta pública ao ministro da Fazenda e definir as medidas de correção para que a inflação retorne ao patamar esperado. Estabeleceu igualmente a obrigatoriedade de divulgação pelo BCB de relatórios trimestrais de inflação, com informações macroeconômicas e justificativas para as medidas adotadas, além das Atas de decisões do Comitê de Política Monetária, relativas à fixação da taxa de juros básica e seu viés (de alta, baixa, neutro). Pela resolução nº 2614, o CMN estabeleceu o Índice de Preço ao Consumidor Ampliado (IPCA) cheio como o indicador do comportamento da inflação e definiu as metas para o crescimento máximo da inflação para os anos de 1999, 2000 e 2001, bem como os seus respectivos intervalos de tolerância. Para 1999, a meta foi fixada em 8%, com intervalo de tolerância de 2% para cima ou para baixo. A meta para 2000 foi fixada em 6,0% e em 4,0% para 2001, com intervalo de confiança de 2% para cima ou para baixo. O índice de preços ao consumidor é o índice de preços de referência mais utilizado nos países que adotam regime de metas de inflação. Todavia, vários adotam metas para a chamada core inflation, excluindo do índice os preços mais voláteis como alimentos, combustíveis e/ou impostos indiretos e/ou preços administrados, como é o caso da Austrália, Canadá, Coreia, Hungria, República Checa, Tailândia; enquanto a África do Sul exclui do índice de preço o custo das hipotecas residenciais. Alguns países em desenvolvimento, em particular os latino-americanos que possuem histórico de inflação mais elevada do que os países em desenvolvimento, evitaram adotar meta para o core inflation para não comprometer a credibilidade do regime de metas de inflação. Isso porque a exclusão de preços mais voláteis poderia ser interpretada pela população como expurgo, a exemplo do que ocorreu no passado em alguns países, desencadeando movimentos defensivos de remarcação de preços. Atualmente, além do Brasil, fixam meta 24 Os membros do Comitê de Política Monetária (Copom) são o presidente e os diretores do BCB. As reuniões do Comitê para a decisão sobre a meta e da Taxa Selic e seu eventual viés ocorrem em dois dias subsequentes. No primeiro dia, participam, além do presidente e dos diretores, que possuem poder de voto, os chefe de vários departamentos do BCB, além do gerente-executivo da Gerência-Executiva de Relacionamento com Investidores (Gerin). No segundo dia, participam da reunião exclusivamente o presidente e diretores do Banco Central e o chefe do Departamento de Estudos e Pesquisas (Depep), este último sem direito a voto. O presidente do BCB tem o voto de qualidade em caso de empate. Após o encerramento da reunião, é divulgado um comunicado da decisão, com indicação do número de votos divergentes, se houver. A Ata sucinta da reunião é divulgada na semana seguinte. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados unidos, a transcrição integral das reuniões do Copom jamais é trazida a público. O funcionamento do Copom é atualmente normatizado pela Circular nº 3.297 de 31 de outubro de 2005.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

para o índice de preços ao consumidor cheio países como Chile, Colômbia, Israel, México, Noruega, Nova Zelândia, Peru, Polônia, Reino Unido e Suécia. O CMN foi muito conservador ao definir metas fortemente decrescentes para a taxa de variação anual do IPCA no período 1999 a 2003. Do ponto central da meta fixado em 8% para o ano de 1999, a meta foi reduzida para 3,5% para 2002 e para 3,25% para o ano de 2003, ambas com o mesmo intervalo de tolerância de 2%25. Essa rápida convergência à inflação internacional se mostrou totalmente irrealista, dado o forte impacto da depreciação cambial sobre os preços e sobre as expectativas de inflação, e o CMN se viu obrigado a rever essa meta posteriormente, como será visto na seção 4. O horizonte temporal para alcançar a meta de inflação definida é um dos principais parâmetros do regime de meta, pois a extensão desse horizonte condiciona a ação da autoridade monetária. Quanto mais curto o horizonte temporal, menor a flexibilidade do regime de metas de inflação para a acomodação das flutuações do produto em decorrência de choques. Nesse aspecto, o Brasil se diferencia da maioria dos países centrais e periféricos que aderiram ao regime de metas de inflação por adotar o ano calendário, ou seja, janeiro a dezembro26. Como a meta para o IPCA é anunciada com dois anos de antecedência, o BCB perde graus de liberdade na execução da política monetária ante a ocorrência de choques, como uma abrupta desvalorização cambial ou forte alta dos preços de alimentos ou crise energética, entre outros. Como o horizonte temporal para o cumprimento da meta é curto, as pressões altistas dos preços acabam se traduzindo na elevação dos juros, a despeito dos seus efeitos deletérios sobre a produção e emprego, porque o Banco Central teme perder a credibilidade e/ou ser acusado de leniente. Ao mesmo tempo, dado o elevado do peso dos preços administrados, fixados pelo governo ou por contratos indexados, na composição do IPCA (cerca de 30%), o aumento da meta da Selic afeta os investimentos, a produção e consumo privado sem, contudo, ter efeitos sobre tais preços, que são insensíveis à taxa de juros. Assim, no Brasil, o regime de meta esteve longe de propiciar a vantagem da desinflação sem comprometimento do produto, como será visto na seção 4. A rigidez do regime brasileiro de metas de inflação foi reconhecida pelo próprio Armínio Fraga, presidente do BCB em 1999, em um artigo, escrito em coautoria com membros da sua diretoria (Fraga e outros, 2003). Os autores admitem que nas economias em desenvolvimento observam-se alta volatilidade de juros e câmbio e maior vulnerabilidade aos choques externos. Assim, o regime de metas deve prever bandas suficientemente largas para evitar que sejam ultrapassadas, e 25 A meta de inflação de 2002 foi estabelecida pela Resolução nº.2744 de 28-06-2000, enquanto a meta de 2003 foi fixada pela Resolução nº 2842 de 28-06-2001. 26 Como pode ser observado no Quadro 1 do Anexo, em apenas dois países, Israel e Indonésia, o horizonte temporal é de um ano, como no Brasil. Nos demais, atualmente, o horizonte temporal varia de médio prazo – Austrália, Canadá, Colômbia, Hungria, Noruega, Nova Zelândia, Peru e Suécia –, a prazo indefinido (África do Sul, Chile, México, Reino Unido, Polônia e Tailândia).

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Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

um horizonte temporal maior do que o ano-calendário para atingir a meta. Deste modo, a reputação e a credibilidade do Banco Central seriam preservadas. Também nesse artigo, os autores admitem que a convivência entre o regime de câmbio flutuante e o regime de metas de inflação tem sido problemática. Como visto na seção 2, as expectativas dos agentes (racionais) ocupam uma posição de destaque no arcabouço teórico do regime de metas de inflação. No formato institucional do regime brasileiro de metas de inflação, as expectativas dos agentes em relação à evolução da taxa de juros, da inflação, taxa de câmbio e de um conjunto de variáveis da “economia real” como PIB, balança comercial, transações correntes, produção industrial, investimento direto estrangeiro, entre outros, vêm sendo apuradas semanalmente, desde 2001, pela Gerência-Executiva de Relacionamento com Investidores (Gerin) mediante a pesquisa de expectativa de mercado. Denominada Focus, essa pesquisa é realizada junto aos analistas de instituições financeiras e consultorias econômicas27. Mensalmente, a Gerin divulga um ranking das cinco instituições que mais acertaram as previsões de curto e médio prazo para o IPCA, o IGP-M, o IGP-DI, a taxa Selic e a taxa de câmbio. O impacto dessa apuração de expectativas junto aos analistas do mercado financeiro tem sido mais do que evidente. Como ressalta Farhi (2004:86) “têm sido raras as vezes em que o Copom toma decisões que contrariem as previsões dos especialistas de bancos e corretoras. Essa tendência do mercado, de prever com regularidade as medidas do Copom, expressa uma incômoda promiscuidade entre a autoridade monetária e as instituições financeiras que, dentre o conjunto dos agentes econômicos, são as que mais têm a ganhar com taxas de juros elevadas”. Para contrabalançar o viés altista do mercado financeiro na apuração das expectativas, tem sido sugerido que o BCB apure as expectativas dos agentes que efetivamente dispõem de poder de formação de preços, consultando entidades patronais da indústria e do comércio, sindicatos dos trabalhadores28. 4. Política monetária e desempenho macroeconômico no Brasil: balanço crítico Favorecido pela liquidez internacional abundante, pela elevação dos fluxos de capitais destinados ao país e pelo baixo dinamismo da atividade econômica, o BCB não teve dificuldades para trazer a inflação para o intervalo definido pelo CMN para 1999 e para 2000 (ver Tabela 1). Após esse sucesso inicial, o BCB não conseguiu cumprir as metas definidas para 2001 e para 2002, o que motivou a divulgação de carta aberta ao ministro da Fazenda em janeiro de 2002 e de 2003. 27 De acordo com informações disponíveis no site do BCB, este ranking é o reconhecimento da excelência de previsão das instituições participantes da pesquisa de expectativas de mercado. 28 Ver Farhi (2004), e também Oreiro e Passos (2005), que apresentam diversas sugestões de aperfeiçoamento da governança da política monetária no Brasil. Ressalte-se que, à semelhança de alguns outros economistas pós-keynesianos (como Lima e Setterfield, 2006), Oreiro defende a compatibilidade do regime de metas de inflação com o referencial teórico pós-keynesiano (Oreiro e outros, 2008).

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 1. Metas de inflação no Brasil, 1999-2009

Ano

IPCA (em %)

Resultado Final

Meta

Ajustada Margem

Limite Superior

Verificado

1999

8,00

-

2,0

10,0

8,94

Cumpriu

2000

6,00

-

2,0

8,00

5,97

Cumpriu

2001

4,00

-

2,0

6,00

7,67

Descumpriu

2002

3,5

-

2,0

5,50

12,53

Descumpriu

2003

4,00

8,50

2,5

6,5

9,30

Descumpriu

2004

3,75

5,50

2,5

8,0(*)

7,60

Cumpriu (*)

2005

4,50

5,10

2,5

7,6 (*)

5,59

Cumpriu (*)

2006

4,50

2,0

6,5

3,14

Cumpriu

2007

4,50

2,0

6,5

4,46

Cumpriu

2008

4,50

2,0

6,5

5,90

Cumpriu

2009

4,50

2,0

6,5

4,25(**)

Cumprirá

Fonte: Banco Central do Brasil - Relatório de inflação e Ata do Copom. Elaboração Grupo de Conjuntura. (*) Se for considerada a meta ajustada, referendada pelo CNM. (**) Estimativa da pesquisa Focus de 27 de novembro de 2009.

Em 2001, as razões para o descumprimento foram: a desaceleração da economia mundial, iniciada com o estouro da bolha especulativa no mercado acionário norte-americano e aprofundada com os ataques de 11 de setembro, a crise da Argentina e o efeito contágio para os demais países da região. Além disso, houve o racionamento de energia, com seus impactos sobre o nível de atividade que se traduziram na forte depreciação cambial (21% na média do ano), a qual se transmitiu aos preços dos serviços de concessão pública, cujos contratos são indexados pelo IGP-DI. Na avaliação da autoridade monetária, “esses choques internos e externos neutralizaram a ação preventiva de elevação contínua na taxa de juros Selic, que passou de 15,75% a.a. em março de 2001 para a 19% a.a. em julho, e foi mantida nesse patamar nominal até janeiro de 2002. Em contexto externo de forte aversão ao risco dos investidores e de baixa liquidez internacional, a economia brasileira enfrentou os impactos de um novo ataque especulativo contra o real em 2002, que se depreciou 44,6% no ano em termos reais médios29. À dificuldade de obtenção de financiamentos externos, com escassez de recursos até mesmo na rolagem dos empréstimos interbancários associados às operações de comércio exterior, se somou a fuga de capitais em razão das incertezas associadas ao processo eleitoral, que comprometeu a rolagem da dí29 A depreciação do real foi se acelerando ao longo de 2002. De acordo com Bevilaqua e Loyo (2005:99-100), a depreciação do real, que era da ordem de 17% em junho, saltou para 45% em setembro e atingiu o auge em outubro (71%), revertendo para 53% em dezembro. A discussão das causas dos ataques especulativos contra o real em 2001 e 2002 está além dos propósitos desse artigo. Sobre esse ponto, ver: Farhi (2004).

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Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

vida pública. A depreciação cambial resultante da instabilidade e volatilidade do câmbio no mercado doméstico contaminou os chamados preços administrados, cujos contratos são indexados ao IGP-DI e IGP-M, provocando a deterioração nas expectativas de inflação. Nem a elevação da meta da taxa Selic de 18,0% em agosto para 25,0% em dezembro de 2002 foi capaz de impedir que o IPCA ultrapassasse o teto da meta em 7,0% (Gráfico 1 e Tabela 1). Como destaca Farhi (2006), os choques subjacentes ao processo inflacionário foram de custo, tornando, portanto, a elevação dos juros ineficaz para conter o aumento da inflação. Gráfico 1. Evolução da Meta Selic nominal (em % ano)

Fonte: Banco Central do Brasil.

Em princípio, não haveria alteração nas metas depois de sua fixação pelo CMN. Porém, um decreto presidencial de 23 de junho de 2002 autorizou o CMN a redefinir a meta de inflação para o ano de 200330. Mediante a Resolução 2.972 de 27-06-02, o CMN elevou para 4% ao ano a meta de 2003, ao mesmo tempo em que subiu o intervalo de tolerância de 2% para 2,5%. Para 2004, foi fixada a meta de 3,75% ao ano. Todavia, o Banco Central decidiu perseguir em 2003 uma trajetória de convergência com a meta definida pelo CMN (4,0% a.a. com intervalo de tolerância de 2,5%), mediante a adoção de uma meta ajustada, fixada em 8,5%, calculada a partir das estimativas dos impactos inerciais da inflação anterior e do efeito primário dos choques dos preços administrados. Para 2004, a meta ajustada do BCB foi fixada em 5,5%31. 30 Na seção de normas do Sistema de Metas de Inflação no site do BCB, esse decreto, assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo ministro Malan, aparece sem número. 31 As metas ajustadas de 8,5% para 2003 e de 5,5% para 2004 foram estabelecidas pelo BCB na Carta Aberta, de 21/01/2003.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

As expectativas de inflação continuaram se deteriorando no início de 2003, o que levou o Copom a elevar a taxa de juros para 25,5% em janeiro e 26,5% em fevereiro, mantendo-a nesse patamar até meados de junho. A partir de junho, em razão da apreciação do real, o ritmo da inflação começou a arrefecer, ocorrendo igualmente uma melhoria nas expectativas, o que levou o Copom a reduzir a meta da Selic em 10 pontos percentuais entre junho e dezembro. Esse corte de juros não foi, contudo, suficiente para neutralizar o efeito restritivo da política ao longo do primeiro semestre e, como resultado, a economia brasileira registrou crescimento bastante modesto, com variação real do PIB da ordem de 1,15%. No final de junho de 2003, novamente autorizado pelo decreto presidencial 4.761 de 23 de junho, o CMN alterou a meta de inflação de 2004, que havia sido fixada em 3,75% no ano anterior. A Resolução nº 3.108 estipulou que a meta para 2004 seria de 5,5 % (ou seja, a meta ajustada proposta pelo BCB) e definiu em 4,5% a meta para 2005, ambas com um intervalo de tolerância de 2,5 pontos. Porém, em meados de setembro de 2004, em sua 100ª reunião, o Copom decidiu estabelecer em 2005 a meta ajustada de 5,1%, adicionando 0,6% a título de acomodação da inércia inflacionária no percentual definido pelo CMN. Considerando a meta ajustada, o BCB conseguiu cumprir a meta em 2004 e 2005 (Tabela 1), mas às custas de uma considerável elevação da meta da taxa Selic, em termos reais, que atingiu o nível recorde de 12,96% a.a. em agosto de 2005 (Gráfico 2), com sérios impactos em termos do produto, do investimento e do emprego. Gráfico2. Evolução da Meta Selic real1 (em % ano)

Fonte: Banco Central do Brasil e IBGE. Nota: 1. Meta da Taxa Selic

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Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

Em junho de 2004, ao fixar a meta de inflação para 2006 em 4,5%, o CMN reduziu o intervalo de tolerância da meta, que retornou a 2% (Resolução nº 3210 de 30/06/04). Desde estão, e pelo menos até 201132, as metas de inflação foram mantidas em 4,5% a. a., com intervalo de tolerância de +/- 2 pontos percentuais. A partir de 2005, beneficiando-se do contexto externo favorável, tanto em termos dos preços das commodities exportadas como do ciclo de alta da liquidez internacional iniciado em 2003, que contribuiu para a trajetória de apreciação do real, o Banco Central teve êxito em manter a inflação sob controle e cumprir as metas fixadas pelo CMN. Ao longo de 2005 e 2006, houve uma rápida convergência da inflação brasileira à inflação mundial (Gráfico 3). Nos meses finais de 2006 e até maio de 2007, a variação do IPCA em doze meses chegou a ficar abaixo da inflação mundial, que foi pressionada pela alta dos preços dos alimentos e do petróleo. Isso permitiu que a meta da Selic fosse reduzida continuamente entre setembro de 2005 e outubro de 2007, passando de 19,75% a.a. para 11,25% a.a. em termos nominais, sendo mantida nesse patamar até abril de 2008, quando um novo ciclo de aperto monetário foi iniciado. Gráfico 3. Evolução da Inflação1 no Brasil e no mundo no período dez/99-set/09 (% em doze meses)

Fonte: IBGE e FMI – International Finance Statistics. Nota:1. Inflação medida pelo Índice de Preço ao Consumidor - IPCA, no caso do Brasil.

32 A Resolução nº 3.748 de 30/6/2009 fixou em 4,5% a meta de inflação para 2011, com intervalo de tolerância de 2,0 p.p para mais ou para menos.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Porém, a conquista da estabilidade dos preços nesses anos sob regime de metas de inflação não foi acompanhada da substancial melhora do desempenho macroeconômico em comparação com os anos de alta inflação. A variação real média do PIB no período 1999 a 2008 é de apenas 3,4% (ante 3,0% nos anos 1980, a chamada década perdida, e de 2,7% no período 1990-98). No período 2005-08, a taxa média de expansão do PIB se elevou para 4,6%; contudo, o crescimento brasileiro ainda é modesto, sobretudo quando comparado com a variação média dos países em desenvolvimento (Gráfico 4) e, em particular, com os demais Brics: China, Índia e Rússia. Isso porque o BCB conduz a política monetária para manter a inflação no centro da meta em vigor, tendo como referência o conceito de PIB potencial, cuja fixação é absolutamente arbitrária, o que introduz no modelo um viés anticrescimento33. Gráfico 4. Crescimento do PIB no Brasil sob regime de metas de inflação (média da variação anual real em %)

Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook Database, October 2009.

Esse viés anticrescimento do regime de metas de inflação foi explicitado na gestão de Henrique Meirelles que, preocupado em firmar reputação de autonomia do BCB ante o Poder Executivo, passou a perseguir o centro da meta, reagindo ao menor sinal de aproximação do IPCA da banda superior do intervalo de tolerância. Em 2004, por exemplo, com um diagnóstico 33 O conceito de produto potencial, tão caro aos economistas da corrente principal, integra o modelo de previsão macroeconômica utilizado pelo Copom. Porém, o próprio BCB reconhece que não existe consenso em torno das técnicas de estimativa e mensuração do produto potencial. Mesmo assim, em meados de 2008, o BCB estimava que o PIB (em torno de 5% ao ano) estava acima do potencial e precisava desacelerar para algo em torno de 4%.

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Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

equivocado de estreitamento do hiato do produto, em razão da elevação da demanda, sancionado pela expansão do crédito às pessoas físicas, o Copom voltou a elevar a meta da taxa Selic em setembro. Com o propósito de desacelerar a atividade econômica para um “ritmo menor e mais condizente com as condições de oferta”, a meta da Selic subiu 3,75 pontos percentuais entre setembro de 2004 e maio de 2005. O BCB só admitiu que a economia brasileira estivesse sendo afetada pela elevação dos preços do petróleo e das commodities metálicas em abril de 2005. Contudo, nem o modesto crescimento do PIB em 2005 (3,15%) levou o BCB a alterar o diagnóstico de que a demanda agregada, impulsionada pelo aumento do crédito e do gasto público, crescia acima da oferta agregada, gerando assim pressão inflacionária, que, portanto, precisava ser combatida com aumento adicional da taxa de juros. Outro exemplo de erro de diagnóstico aconteceu em 2008 quando, a partir da interpretação de que havia “risco relevante para o panorama inflacionário”, em razão do descompasso persistente entre o ritmo da expansão da demanda e o da oferta doméstica, o Copom iniciou uma nova fase de alta da Selic que só seria interrompida em outubro, quando a economia brasileira já havia sido fortemente atingida pelos impactos do aprofundamento da crise global (Gráfico 1). Em quatro reuniões consecutivas, o Copom elevou a meta da Selic, que saltou de 11,25% ao ano no início de abril para 13,75% em 10 de setembro. O último aumento da meta da taxa básica de juros ocorreu em setembro, portanto, em meio à intensificação das turbulências nos mercados financeiros internacionais e ao movimento de intensa deflação nos preços internacionais das commodities agrícolas e do petróleo. A alta da meta da Selic nas vésperas da quebra do Lehman Brothers e da transformação da crise financeira em uma crise global sistêmica suscita algumas dúvidas. Mesmo reconhecendo que os bancos centrais possuem um conjunto de informações não disponíveis aos agentes econômicos privados, o diagnóstico de descompasso entre o ritmo de expansão da demanda interna e da oferta não parece correto à luz de vários indicadores disponíveis em setembro e/ou divulgados nos meses subsequentes. Os resultados do PIB nos dois primeiros trimestres do ano não indicavam aceleração do ritmo do crescimento da economia, desmentindo, portanto, as teses de que estariam sendo criadas as pressões inflacionárias que inviabilizariam o processo de crescimento.34 Até setembro de 2008, quando sofreu o revés do contágio da crise internacional, a economia brasileira vinha registrando crescimento expressivo da formação bruta de capital fixo e da produção industrial. Notava-se a liderança da expansão da produção de bens de capitais e de bens duráveis, que cresciam a 34 O aumento real do PIB no segundo trimestre de 2008 foi de 6,1% em comparação com igual trimestre do ano anterior, variação próxima à registrada nos dois trimestres anteriores: 5,9% no primeiro trimestre e 6,2% no quarto trimestre de 2007.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

taxas de dois dígitos, dada a evolução do consumo das famílias, que estimulava as decisões de investimento produtivo. Se a capacidade de produção da economia, necessária à acomodação do crescimento da demanda, estava em ampliação, qual a razão para a persistência do diagnóstico de que havia um descompasso entre a demanda doméstica e a oferta? A crença na blindagem da economia brasileira, em razão da execução exemplar das “lições de casa do mercado”, parece ser uma explicação plausível para a elevação da meta da Selic, complementar ao diagnóstico de “ritmo acelerado de expansão da demanda”. Assim, tudo indica que o BCB errou duas vezes: uma em insistir no diagnóstico de que a economia brasileira estava crescendo acima do seu potencial e a outra por não vislumbrar a gravidade da desaceleração em curso nas economias avançadas associada ao movimento de desalavancagem do sistema financeiro e de deflação dos ativos. O recuo das expectativas de inflação para 200935, as novas informações sobre a deterioração da economia global e os fortes indícios de rápida desaceleração do nível de atividade econômica doméstica não foram, contudo, suficientes para que o BCB modificasse a estratégia de política monetária. Cioso de sua imagem de guardião da moeda brasileira, o Copom optou pela manutenção da meta da Selic no patamar de 13,75% a.a. nas duas últimas reuniões do ano de 200836. A manutenção da meta da Selic num patamar elevado, enquanto os países centrais e os periféricos reduziam de forma expressiva as suas taxas básicas de juros, buscava, de um lado, evitar os efeitos deletérios do pass-through da desvalorização do real aos preços domésticos e, de outro lado, conter a expansão da demanda interna. Porém, ante a gravidade do impacto da crise global na economia brasileira, o rigor da política monetária não só era desnecessário como desaconselhável. Na situação de elevada aversão ao risco e de “empoçamento” da liquidez nas instituições de maior porte, a manutenção da taxa de juros básica em patamar elevado piorou ainda mais as condições de crédito, tanto para empresas como para bancos de médio e pequeno porte, acelerando o caminho da economia brasileira para a recessão.37 A profunda retração da oferta de crédito 35 No relatório de inflação publicado em dezembro de 2008, as novas projeções de inflação indicavam variação de 6,2% do IPCA em 2008 e de 4,7% em 2009, enquanto as expectativas do mercado coletadas pela Gerência de Relações com os Investidores (Gerin) do BCB no dia 19 de dezembro apontavam para variação do IPCA de 6% em 2008 e de 5% em 2009. Embora acima do centro da meta, essas projeções estavam dentro da margem de tolerância de 2 p.p. estabelecidas pelo CMN. 36 A Ata divulgada no dia 18 de dezembro sugeria o corte dos juros como o próximo movimento do Copom. A redução na meta da Selic já estava, contudo, “precificada” pelos agentes do mercado financeiro. Desde o mês de novembro, nos contratos negociados no mercado de futuros, a taxa Swap DI de 360 dias indicava a mudança das expectativas dos agentes, que passaram a projetar uma queda dos juros. 37 A autoridade monetária também foi inepta na gestão do “empoçamento” da liquidez. A estratégia de redução das alíquotas dos recolhimentos compulsórios adotada pelo BCB se revelou inócua, pois dada a preferência pela liquidez dos bancos e a possibilidade de aplicação, líquida, rentável e de baixíssimo risco, em títulos públicos, os bancos privados simplesmente não ampliaram o crédito. A liquidez só voltou a fluir quando, em

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Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

bancário doméstico e a interrupção de linhas comerciais externas foram mais do que suficientes para reduzir a demanda interna e “ancorar as expectativas de inflação”, pois provocaram uma parada brusca da atividade econômica no último trimestre do ano. A desaceleração da atividade foi tão rápida e intensa que as pressões inflacionárias da forte apreciação do dólar não se confirmaram e o IPCA se desacelerou, fechando o ano em 5,9% (0,6 pontos percentuais abaixo do teto da meta). A rigidez do BCB na condução da política monetária no último trimestre de 2008 contrasta fortemente com a ação dos seus congêneres nas principais economias avançadas e periféricas (Tabela 2). Além de cortar os juros de forma expressiva, vários bancos centrais procuraram reativar o crédito e melhorar as condições de liquidez mediante a ampliação da emissão monetária. Já no Brasil, a adesão irrestrita ao regime monetário de metas de inflação exigia da autoridade monetária a realização de operações compromissadas de títulos da dívida pública com o sistema bancário, para evitar que a Selic efetiva caísse abaixo da meta de 13,75% ao ano. Assim, ao mesmo tempo em que reduzia as exigências de compulsório sobre os depósitos bancários para resolução do problema de iliquidez e de dificuldade de refinanciamento dos bancos menores, o BCB procurava evitar a expansão do volume de moeda em circulação na economia.

março de 2009, o governo decidiu garantir, mediante o Fundo Garantidor de Crédito, os recibos de depósito bancário (RDB) até R$ 20 milhões por aplicador, sem liquidez diária, emitidos com prazo de no mínimo seis meses e no máximo cinco anos, com teto para as captações por instituição financeira no valor máximo de R$ 5 bilhões. Com essa garantia, os bancos menores conseguiram ampliar sua captação, obtendo recursos da ordem de R$ 6 bilhões com a emissão desses depósitos com garantia especial. Para maiores detalhes sobre a gestão do Banco Central do “empoçamento” de liquidez no mercado interbancário, ver Freitas (2009).

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 2 . Reação dos bancos centrais à crise global: juros oficiais em % ao ano Países Selecionados com Regime de Metas de Inflação

Meta da Taxa Básica de Juros ago/08

dez/08

nov/09*

Austrália

7,25

4,25

3,50

Canadá

3,00

1,50

0,25

Nova Zelândia

8,00

5,00

2,50

Noruega

5,75

3,00

1,50

Reino Unido

5,00

2,00

0,50

Suécia

4,50

2,00

0,25

África do Sul

12,00

11,50

7,00

Israel

4,00

2,50

0,75

Coreia

5,25

3,00

2,00

Indonésia

9,00

9,25

6,50

Tailândia

3,75

2,75

1,25

Brasil

13,00

13,75

8,75

Chile

7,75

8,25

0,50

Colômbia

10,0

10,00

4,00

México

8,25

8,25

4,50

Peru

6,25

6,50

1,25

Hungria

8,50

10,00

7,00

Polônia

6,00

5,00

3,50

Rep.Checa

3,50

2,25

1,25

Turquia

16,75

15,0

6,5

Países avançados

Países periféricos

Ásia

América Latina

Europa

Fonte: Site dos Bancos Centrais dos países. Elaboração da autora. Nota: * Posição em 21 de novembro de 2009.

Não obstante as várias evidências de forte e persistente desaceleração da atividade econômica, ao lado da queda da inflação e das expectativas inflacionárias em um cenário externo adverso38, o BCB só começou a afrouxar a política monetária em janeiro de 2009, com o corte de 1,0 ponto percentual na taxa Selic. Contudo, na Ata divulgada no dia 29 de janeiro, a autoridade monetária reafirmou seu conservadorismo na gestão monetária, ressaltando 38 A despeito da considerável depreciação do real frente ao dólar no último trimestre de 2008, a forte deflação dos preços das commodities contribuiu para a queda da inflação brasileira em 2008 e para as estimativas da inflação em 2009.

200


Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

que a situação de forte incerteza exigia cautela e prudência. A Ata do Copom alertava que, se até então, o “efeito líquido da desaceleração global sobre a trajetória da inflação doméstica parece ser predominantemente benigno”, não estavam descartados os efeitos do pass-through cambial nos preços domésticos. A parcimônia do BCB no corte da Selic suscitou inúmeras críticas dos empresários e dos órgãos de representação de classe. Essas críticas aumentaram nas semanas que antecederam a reunião do Copom do dia 10 de março de 2009, que coincidiu com a divulgação pelo IBGE do resultado alarmante do PIB no quarto trimestre de 2008 (queda de 3,6% em relação ao terceiro trimestre), que explicitou a profundidade do impacto da crise global na economia brasileira. Em resposta aos críticos, o Banco Central insistia em seu mandato de guardião da estabilidade, esgrimindo argumentos sobre a lentidão da queda do IPCA comparativamente à queda no nível de atividade39. Todavia, na reunião do dia 10 de março, o Copom decidiu por uma redução de 1,5% da taxa Selic e indicou que havia espaço para a realização de novos cortes na taxa básica, em linha com as novas projeções para o IPCA abaixo do centro da meta em 2009 (4,0%) e em 2010 (3,9%). O corte da meta Selic em 1,5 ponto percentual desencadeou fortes pressões de diferentes setores para que a autoridade monetária adotasse ações mais agressivas para evitar uma recessão prolongada. Porém, em 29 de abril, o Copom realizou um corte menor na meta dos juros, reduzindo a meta da Selic em 1,0 ponto. Esse ritmo foi mantido nas duas reuniões seguintes do Copom, nos meses de junho e julho, e a Selic caiu a 8,25% ao ano, o seu patamar mais baixo desde sua adoção em 1999. O ciclo de cortes da meta da taxa Selic em 2009 foi encerrado em setembro, quando por unamimidade, o Copom decidiu manter a taxa em 8,75% ao ano. No breve comunicado, o Copom justificou a decisão, afirmando que “esse patamar da taxa básica é consistente com um cenário inflacionário benigno, contribuindo para assegurar a manutenção da inflação na trajetória de metas ao longo do horizonte relevante”. A expressão “horizonte relevante” foi interpretada pelos analistas do mercado financeiro como sinal da intenção da autoridade monetária de manter a meta da taxa Selic inalterada nas duas últimas reuniões de 2009, o que efetivamente se confirmou40. Embora tenha sido reduzida em 5 pontos percentuais no ano de 2009, a meta para a taxa básica de juros no Brasil se mantém em patamar muito elevado tanto em termos nominais como reais. Em termos comparativos, o Brasil 39 Além de declarações do presidente do BCB, Henrique Meirelles, defendendo o compromisso exclusivo com a estabilidade dos preços, o diretor de política monetária de BCB se declarava insatisfeito com o lento recuo das expectativas inflacionárias e apontava para a baixa sensibilidade da inflação ao nível de atividade. Ver Ribeiro (2009) e Guimarães (2009). 40 Embora as expectativas de inflação apontem para o IPCA abaixo do centro da meta de 4,5% em 2009 e em 2010, a grande maioria dos analistas do mercado financeiro aposta que a meta da taxa Selic terá de voltar a subir em 2010. Porém, não há consenso sobre quando terá início o ciclo de aperto monetário nem sobre o seu ritmo.

201


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

possui a maior taxa de juros real entre todos os países que adotam regime de metas de inflação aqui analisados (Gráfico 5). Gráfico 5. Patamar dos juros oficiais reais1 em países com regime de meta de inflação (posição em 21 de novembro de 2009, em % ao ano)

Fonte: Site dos Bancos Centrais dos países. Elaboração da autora. Nota: 1. Deflator utilizado: IPC em doze meses terminados em outubro.

A meta da taxa Selic mantida em 8,25% pelo Copom desde a reunião do mês de julho representa em termos reais uma taxa básica de juros de 4,4%, vários pontos percentuais acima da grande maioria dos países com regime de metas de inflação da amostra analisada. Por essa razão, não deveria causar surpresa o fato de a variação do PIB do 3º trimestre de 2009 (1,3% na comparação com o trimestre anterior, com ajuste sazonal) ter sido menor que a projetada pelo BCB, que tem grande dificuldade de reconhecer o impacto da política monetária sobre o produto e pelos analistas do mercado financeiro e das consultorias (2,0%). 5. Conclusão O formato do regime de metas no Brasil é pouco flexível e tem inegável viés anticrescimento. O BCB tende a reagir de forma exagerada sempre que há uma alta no IPCA, elevando a meta da taxa Selic mesmo quando é notório que as pressões inflacionárias decorrem de elevação de custos. O aumento do patamar da taxa Selic impõe pesado ônus à economia, pois tem impacto considerável sobre o produto, os investimentos, o nível de emprego e renda, e a arrecadação tributária. Além disso, a combinação de regime de câmbio flutuante com regime de metas de inflação em uma economia periférica como a brasileira, cuja moeda não 202


Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

possui convertibilidade externa e que, portanto, está sujeita a maior volatilidade da taxa de câmbio, é particularmente problemática. De um lado, o diferencial de juros atrai fluxos de capital de portfólio, que se traduz em apreciação cambial e desfavorece a produção doméstica, com consequência sobre os investimentos, os empregos e a competitividade das exportações brasileiras. De outro lado, como a economia está sujeita à reversão dos fluxos de capital, com a resultante depreciação cambial se traduzindo em pressões sobre os preços dos bens importados e sobre os preços administrados, que respondem por 30% do IPCA, o BCB não pode reduzir a taxa de juros abaixo do que é considerado pelos investidores externos e analistas do mercado financeiro, os juros de equilíbrio. A elevação da meta da taxa básica de juros tem igualmente forte impacto sobre as contas públicas, restringindo o grau de liberdade da política fiscal, pois aumenta o custo financeiro da dívida pública. Esses recursos com as despesas de juros que são absorvidos pelos detentores de títulos poderiam ser destinados ao investimento público em obras de infraestrutura econômica ou ampliação dos programas de inclusão social. A estabilidade de preços é importante, mas não deve ser objetivo exclusivo da política monetária. Por que a política monetária não pode ter objetivos múltiplos, sendo executada de forma discricionária e coordenada com as demais políticas econômicas? O fato de existir um consenso na corrente principal da teoria econômica em torno do regime de metas de inflação como a melhor prática da política monetária não significa, contudo, que não haja alternativa teórica e prática. Para aqueles que acreditam que o regime de metas é, sim, a melhor prática de política monetária, a experiência internacional mostra que esse regime comporta formatos e execução muito mais flexíveis do que o brasileiro. Igualmente, comporta coordenação com a política cambial, seja mediante a flutuação suja, seja mediante a introdução de controle de capital. Referências bibliográficas ARESTIS, Phillip; SAWYER, Malcolm (2003) Inflation targeting: Working Paper, nº.388, Levy Economics Institute of Bard College, September. Disponível na Internet em http://www.levy.org BALL, Laurence; SCHERIDAN, Niamh. Does inflation targeting matter? NBER Working Paper, nº. 9577, March 2003. Disponível em http://www.nber BCB - Banco Central do Brasil. Relatório de inflação, vários números. BARRO, Robert J. Recent developments in the theory of rules versus discretion. Economic Journal, Supplement, p. 23-37, 1985. BARRO, Robert J.; GORDON, David B. Rules, discretion and reputation in a model of monetary policy. Journal of Monetary Economics, vol. 12, nº 1, p. 101-121, July 1983. BERNANKE, Ben et al. Inflation targeting: Lessons from international experiences. Princeton: Princeton University Press. 1999. 203


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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Anexo Quadro 1 - Formato institucional do regime de metas de inflação em países selecionados Países

Data da adoção

Índice de Referência

Responsabilidade pela fixação da Meta

Meta Atual (2009)

Horizonte Temporal

Economias Avançadas Austrália

Setembro de 1994

Núcleo do IPC

Governo em conjunto com o Banco Central

Entre 2 a 3% a. a. em média

Médio prazo (over the business cycle)

Canadá

Fevereiro de 1991

Núcleo do IPC (exclui alimentos, energia e impostos indiretos)

Governo em conjunto com o Banco Central

Entre 1 e 3%

Multi-anual (entre seis e oito trimestres)

Noruega

Março de 2001

IPC cheio

Governo

Aproximadamente 2,5% a. a.

Médio Prazo

Nova Zelândia

Março de 1990

IPC cheio desde 1999

Governo em conjunto com o Banco Central

Entre 1 a 3% a. a.

Reino Unido

Outubro de 1992

Até 2003, Índice de Desde 2004, IPC Preço do Varejo (ex- cheio clui juros das hipotecas residenciais)

Governo

Suécia

Junho de 1993

IPC cheio

Banco Central

2% a. a., com inter- Dois anos valo de tolerância de +/-1%, desde 1995 3 a 6% a. a.

2% a. a.

Economias Periféricas África do Sul

Fevereiro de 2000

IPCX (exclui juros dos financiamentos imobiliários)

Banco Central

Brasil

Junho de 1999

IPCA cheio

Conselho Monetário 4,5% a.a, com Ano-calenNacional, composto intervalo de +/- 2% dário pelo ministro da Fazenda, ministro do Planejamento e presidente do Banco Central

Chile

Janeiro de 1991

IPC cheio

Banco Central, com consulta ao governo

3,0% a.a., com Prazo Inintervalo de +/- 1% definido desde 2001

Colômbia

Setembro de 1999

Núcleo do IPC; exclui preço dos alimentos e alguns preços administrados (transporte, combustível e serviços públicos)

Governo em conjunto com o Banco Central

3,0% a.a., com 24 meses intervalo de +/- 1%

206

Multi-anual


Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

Cláusula de Escape

Meta Operacional da Política Monetária

Composição do Comitê de Política Monetária (CPM)

Nenhuma

Cash rate

Presidente e diretores do Banco Central e seis membros externos

Revisão da meta em caso de circunstâncias excepcionais (desastre natural, choque de petróleo)

Overnight rate

Presidente e diretores do Banco Central

Key policy rate

Diretoria executiva do Banco Central e cinco membros externos

Eventos excepcionais

Official cash rate

Não tem poder decisório1

Nenhuma

Official bank rate

Presidente e diretores do Banco Central, economista chefe e quatro membros externos indicados pelo ministro das Finanças

Nenhuma

Repo rate

Presidente e diretores do Banco Central

Eventos imprevistos fora do controle do Banco Central

Repo rate

Presidente e diretores do Banco Central, economista chefe

Nenhuma

Taxa Selic

Presidente e diretores do Banco Central

Nenhuma

Taxa de política monetária (taxa dos juros interbancários)

Presidente e membros da diretoria do Banco Central. Ministro da Fazenda participa das reuniões, com direito a voz e de suspender a decisão por um prazo de 15 dias

Nenhuma

Taxa de intervenção (taxa de juros das operações de liquidez de curto)

Membros da junta diretiva do Banco Central. O ministro da Fazenda participa com direito a voto

207


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Continuação: Coreia

Janeiro de 1998

IPC cheio até 2000; Governo, com Núcleo do IPC a consulta ao Banco partir de 2000 (exclui Central alimentos e energia)

3,0% a. a., com intervalo de +/-0,5%

3 anos

Hungria

Junho de 2001

Núcleo do IPC (exclui Banco Central alimentos, petróleo e certos preços administrados)

3% a. a., com inter- Médio prazo valo de +/-1%

Indonésia

2004 (introdução efetiva em julho de 2005)

IPC cheio

Governo, com consulta ao Banco Central

4,5% a. a., com in- 1 ano tervalo com +/- 1% para 2009 e 4,5% a. a., com intervalo com +/- 1% para 2010

Israel

Junho de 1992

IPC cheio

Governo, com consulta ao Banco Central

1 a 3% a. a.

Doze meses

México

Janeiro de 1999

IPC cheio

Banco Central

3% a. a.2

Prazo indefinido desde 2002

Peru

Janeiro de 1994 (informal), Janeiro 2002 (formal)

IPC cheio

Banco Central, com consulta ao governo

2% a. a., com intervalo de +/-1% desde 2007

Multi-anual (entre 1 a 2 anos)

Polônia

Outubro de 1998

IPC cheio

Banco Central

2,5% a. a.,com intervalo de +/-1%

Prazo indefinido a partir de 2003

Tailândia

Abril de 2000

Média trimestral do Governo, com Núcleo do IPC (exclui consulta ao Banco alimentos in natura e Central preços de energia)

De 0 a 3,5% a. a.

Prazo indefinido

República Checa4

Janeiro de 1998

Núcleo do IPC (exclui preços administrados e impostos indiretos)

Banco Central

2% a. a., com inter- Longo prazo valo de +/-1% (até 2010)

Turquia

2006

IPC cheio

Governo

4% a. a., com inter- 3 anos valo de +ou-2%

Fonte: Site dos bancos centrais dos países. Elaboração da autora Notas: 1. Na Nova Zelândia, é firmado um contrato entre o governo e o presidente do Banco Central, que é o único responsável pelas decisões de política monetária. 2. O Banco do México adota como meta de inflação permanente 3% do INPC anual. Porém, dada a volatilidade da inflação no curto prazo, admite um intervalo de flutuação de +/-1%, o qual, entretanto, segundo documento oficial da instituição, não é considerado intervalo de tolerância nem de incerteza.

208


Banco Central e política macroeconômica: o regime de metas de inflação

Nenhuma

Taxa básica do Banco Central

Presidente e o vice e mais cinco membros externos nomeados pelo presidente da República

Nenhuma

Taxa básica do Banco Central

Presidente e diretores do Banco Central e quatro membros externos indicados pelo presidente da República

Revisão da meta em caso de circunstâncias excepcionais

Taxa de juros do Banco Central

Presidente e diretores do Banco Central

Nenhuma

Taxa de juros do Banco Central

Presidente e diretores do Banco Central discutem, mas a decisão é do presidente (governor) do Banco Central

Nenhuma

Taxa Objetivo (taxa de juros interbancária) 3

Presidente e diretores do Banco Central

Nenhuma

Taxa de juros de referência

Presidente e diretores do Banco Central

Nenhuma

Taxa de juros de referência

Presidente do Banco Central e nove membros externos, indicados, em igual número pelo presidente da República, Senado e Parlamento

Nenhuma

Policy interest rate

Presidente e diretores do Banco Central e quatro membros externos

Catástrofes naturais, choques globais de matérias-primas, choque de produção agrícola, choque de câmbio não relacionado com os fundamentos da economia doméstica.

Repo rate

Presidente e diretores do Banco Central

Nenhuma

Overnight rate

Presidente e vice-presidentes do Banco Central, um representante da diretoria e um membro indicado pelo presidente do Banco Central. O subsecretário do Tesouro participa das reuniões, mas não tem direito a voto

3. O Banco do México adotou meta para taxa de juros em janeiro de 2008. Até então, a meta operacional utilizada era o “corto”, nível de reservas do sistema bancário. 4. Com a integração monetária com União Europeia prevista para 2011, o Banco Central cederá a responsabilidade pela formulação da política monetária ao Banco Central Europeu.

209



Os impactos dos derivativos no Brasil Maryse Farhi 1

Os derivativos tiveram um imenso papel na crise financeira internacional, oriunda dos empréstimos imobiliários de alto risco (subprime), em particular os derivativos vinculados ao risco de crédito. Em diversas economias emergentes, em particular no Brasil, operações com derivativos de câmbio envolvendo bancos e empresas acabaram representando um importante canal de transmissão da crise. Decerto, esta não foi a primeira vez que os derivativos de câmbio tiveram papel relevante em momentos de instabilidade da economia brasileira, tanto no regime de câmbio administrado quanto no de câmbio flutuante. Após a adoção do câmbio flutuante em janeiro de 1999, os derivativos contribuíram para acentuar a instabilidade financeira tanto nos ataques especulativos contra a taxa de câmbio do real, em 2001/2002 e no segundo semestre de 2008, quanto no processo de acentuada apreciação dessa taxa de câmbio de 2004 em meados de 2008. Derivativos negociados em mercados profundos e líquidos são, com efeito, um instrumento privilegiado das operações especulativas. Eles permitem que, de um lado, os agentes lancem mão da alavancagem em suas operações relativas à divisa sob ataque, independentemente de fatores como acesso a crédito bancário e outros e, de outro lado, pelas características próprias dos derivativos, que os agentes possam vender o que não possuem ou comprar o que não desejam possuir. Nesse texto, pretende-se discutir os impactos na economia brasileira dessas inovações financeiras no regime de câmbio flutuante. Atenção particular será dada ao recente episódio dos derivativos de câmbio entre as empresas e os bancos. O texto está dividido em duas seções, além desta introdução. A primeira seção apresenta as características dos derivativos e dos mercados em que são negociados. Na segunda seção, são abordados o papel desses instrumentos no aprofundamento da crise financeira internacional e as propostas de mudanças em seu funcionamento, destinadas a evitar que acontecimentos seme1 Professora doutora do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do Centro de Estudos da Conjuntura e Política Econômica (Cecon) do mesmo instituto.

211


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

lhantes se reproduzam. A terceira seção trata das configurações desses mercados no Brasil e de seus impactos macroeconômicos após a adoção do regime de câmbio flutuante. O episódio dos derivativos cambiais negociados entre as empresas e os bancos é discutido e são mostrados seus impactos na transmissão da crise internacional na economia. Por fim, são apresentadas as mudanças de regulação no Brasil desses instrumentos. 1. Derivativos e mercados O período posterior à ruptura dos acordos de Bretton Woods e aos dois choques do petróleo condiciona o aparecimento desses mercados, em decorrência da volatilidade das principais variáveis macroeconômicas (taxas de juros e taxas de câmbio). A busca de proteção contra esse ambiente financeiro instável está na base da introdução dos mercados de derivativos financeiros. Eles contam com diversos mecanismos como mercados futuros, opções e swaps. Os derivativos financeiros representam uma resposta de mercado à instabilidade das expectativas e ao acúmulo das incertezas de curto prazo. Surgidos da necessidade de proteção dos agentes econômicos, seu aprofundamento foi extremamente rápido à medida que se revelaram um instrumento privilegiado de especulação. Ademais, o imenso crescimento dos mercados de derivativos resulta tanto da desregulamentação financeira, inicialmente implantada pelos governos Thatcher na Grã-Bretanha e Reagan nos Estados Unidos, quanto da internacionalização dos fluxos financeiros, decorrente da liberalização das contas de capital dos balanços de pagamentos (também, denominada de globalização financeira). Segundo a definição do BIS (1995): Derivativos financeiros são instrumentos construídos sobre valores de referência (os ativos subjacentes), dos quais seus preços “derivam”. Constituem compromissos de compra e de venda assumidos no presente para liquidação num futuro predeterminado e a um preço combinado, no presente, entre os agentes.

Nessa definição, encontra-se explícito um pressuposto de base: todos os derivativos têm, no momento de sua negociação, uma temporalidade mais longa do que a de seu subjacente. É em função desta temporalidade mais longa que eles representam a atual projeção do preço futuro do ativo subjacente. Cada tipo de derivativo exprime esta projeção à sua maneira devido aos diversos mecanismos de negociação. Diferenciam-se, assim, claramente os ativos que são negociados no mercado à vista (o comprador do ativo paga seu montante total cash) e os que são negociados para entrega e liquidação diferidas (no momento da contratação, o comprador do ativo assume o compromisso de pagamento futuro e, eventualmente, paga um “sinal”). São somente esses instrumentos que constituem o universo dos derivativos. 212


Os impactos dos derivativos no Brasil

Os mercados de derivativos constituem um jogo de soma zero, em que as somas perdidas por uns correspondem exatamente às ganhas por outros, se excetuarmos os custos de transação. Eles não criam riqueza, apenas a redistribuem entre os participantes. No agregado, só se pode ganhar, nos mercados de derivativos, os valores perdidos por outros participantes. A única riqueza criada nesses mercados é constituída pelas corretagens e emolumentos às Bolsas pagos por todos os participantes, quer tenham ganhado ou perdido dinheiro em suas operações. Outra característica comum aos derivativos financeiros é que todos eles nascem do encontro de um comprador e de um vendedor, não existindo um estoque predeterminado de títulos emitidos. Um mercado será tão mais líquido quanto mais houver vendedores e compradores. Assim, a liquidez dos mercados de derivativos financeiros depende exclusivamente da divergência de opiniões entre os participantes ou da busca por cobertura de riscos opostos. Basta que, por um evento fortuito, se forme um consenso sobre a direção de preços e a liquidez deixará bruscamente de existir, ocasionando o fim das transações ou sua drástica redução. Assim, os derivativos representam compromissos de compra e venda futura de um ativo, sem que haja entrega obrigatória e sem que seja necessário desembolsar o valor estipulado antes do dia do vencimento. Se, do momento da operação até o vencimento, esse preço subir, o comprador terá lucro e o vendedor, prejuízo. Se o preço cair, o inverso ocorrerá. É possível atribuir a esses instrumentos um caráter “virtual” que se acentua ao negociar ativos subjacentes intangíveis como índices de ações, risco de crédito e outros. Na medida em que esses produtos estão cada vez mais desmaterializados e se afastam por sua tecnicidade dos ativos que representam, tudo parece se passar como para a produção de imagens virtuais (...). Graças aos derivativos que são um pouco o equivalente das técnicas de síntese e de tratamento numérico da imagem, pode-se criar a partir de computadores e de modelos matemáticos produtos-imagem que têm uma qualidade de proteção (ou de rendimento) por vezes superior à do ativo subjacente. Cada tipo de produto serve de ponto de apoio para a passagem para um outro produto (...). Como no tratamento informático de imagens, temos a impressão de poder nos locomover num espaço financeiro artificial.

(Bourguinat 1995, grifos no original)

Em função dessas características dos mercados de derivativos, é possível vender ativos que não se possui e comprar ativos que não se deseja possuir. É por essa razão que eles são capazes de replicar os riscos e os retornos de ativos financeiros. Mas, ao fazê-lo, os derivativos diferenciam-se claramente dos ativos negociados no mercado à vista. Ativos negociados no mercado à vista se limitam a transferir o risco original, já que essa venda só é possível contra a entrega do ativo. Já quando se trata de derivativos, a questão é mais complexa. Só há transferência de riscos quando uma das pontas da operação para liquidação diferida detém uma posição à vista do 213


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

ativo em questão (hedge). Mas, há inúmeros agentes que não detêm tal posição à vista (especuladores e arbitradores). De um lado, eles assumem os riscos transferidos pelas operações de hedge; de outro lado, quando suas operações não são realizadas com quem possui uma posição à vista, novos riscos “virtuais” são criados. Apesar de “virtuais”, esses riscos demandam o pagamento dos prejuízos, o que pode fazer com que, em certas circunstâncias, tenham impacto macroeconômico real. As posições em mercados de derivativos apresentam volumes muito superiores aos das posições à vista. A diferença entre posições para liquidação diferida e as no mercado à vista (saldo das posições especulativas e de arbitragem) corresponde a novos riscos relacionados a um ativo, que se originam da expectativa de replicar seus retornos. A expressão contábil dos derivativos financeiros contribui para distinguir esse instrumento de outras inovações financeiras. Ela variou bastante ao longo do tempo. Inicialmente, partia-se da noção de que o balanço de toda empresa, financeira ou não-financeira, dá no ativo a imagem do que é possuído e no passivo do que é devido. Reflete assim as operações em curso tendo uma incidência no patrimônio. Mas as operações em curso não resumem toda a atividade da empresa, esta também é constituída de promessas e compromissos futuros que ela contraiu ou recebeu de terceiros, que não têm ou só parcialmente têm incidência no patrimônio atual, embora venham a tê-la no futuro. Assim, esses compromissos e promessas futuras não tinham registro contábil no balanço, figurando em contas especiais ditas “fora de balanço”. Com a enorme expansão dos mercados de derivativos financeiros, o volume das contas fora de balanço teve um considerável crescimento nas instituições financeiras e nas grandes empresas. A relação entre o balanço e essas operações fora dele elevou-se de tal maneira que suscitou preocupações dos grandes participantes de mercado, temerosos que balanços aparentemente sadios de clientes e contrapartes pudessem encobrir uma situação próxima à falência em função de posições com prejuízo em derivativos. Diversos organismos representando esses grandes participantes apresentaram recomendações para a gestão de riscos e para as práticas de controle aos intermediários financeiros e aos usuários finais dos mercados de derivativos financeiros. Em julho de 1993, tornou-se público um relatório intitulado “Produtos derivativos: práticas e princípios”, elaborado por um grupo de trinta bancos internacionais, o Group of Thirty (G-30) sediado em Nova Iorque e contendo diversas recomendações destinadas aos intermediários e usuários dos mercados de derivativos2. No que se refere à contabilização das operações, o G-30 recomendava que 2 O traço característico deste relatório é de ter sido elaborado pelas próprias instituições que dominam os mercados de produtos derivativos, uma vez que o comitê encarregado do estudo estava a cargo do presidente do J.P.Morgan e compreendia os presidentes do Bank of Tokyo, Barclay’s Bank, Crédit Suisse, Goldman Sachs, Kredietbank, Société Générale, Bankers Trust, além do tesoureiro do Banco Mundial.

214


Os impactos dos derivativos no Brasil

as carteiras de derivativos fossem avaliadas e registradas em balanço a preços de mercado (mark to market), além de preconizar a definição de critérios contábeis e de exigências de divulgação das operações de derivativos com o objetivo de se obter a harmonização contábil dessas operações em nível internacional. Esta recomendação baseava-se na necessidade de atribuir “valores justos” aos ativos, de forma a garantir a transparência dos balanços Essas medidas oriundas da autoregulação foram mais tarde incluídas nos acordos de Basileia, com as autoridades de supervisão impondo às instituições financeiras a adoção do mark to market de seus ativos e, em particular, dos derivativos. A principal vantagem da avaliação a preços de mercado é que o balanço volta a ser expressão da real situação financeira, isto é, inclui os compromissos futuros de compra e de venda ao preço praticado em mercado, em que seria – teoricamente, ao menos – possível liquidar a posição3. Ressalte-se que são muitos os países em que tal contabilização não se estende às empresas não-financeiras. Mas esta avaliação contábil logo mostrou seus limites, notadamente na avaliação de posições em mercados pouco líquidos e transparentes. Com efeito, ela só pode ser corretamente aplicada aos instrumentos negociados em mercados organizados e nos mercados de balcão que têm um nível de liquidez satisfatório assegurado pela presença praticamente constante de ofertas de compra e de venda. Os ativos que não respondem a esta definição foram, por algum tempo, submetidos a uma marcação a mercado muito mais frágil, envolvendo consultas a outros participantes de mercado. Quando aumentaram as posições em ativos que não dispunham de mercados líquidos, a questão de sua avaliação se fez premente. No final de 2006, o Financial Accounting Standards Board (FASB), que regulamenta as informações contábeis das instituições financeiras americanas, introduziu nova classificação dos ativos financeiros para efeito de apuração de seus preços. O nível 1 compreende os ativos cujos preços são formados em mercados líquidos; o nível 2 inclui os ativos cujos preços dependem de modelos com inputs baseados em preços de ativos negociados em mercados; o nível 3 refere-se a ativos cujos mercados são os menos líquidos e cujos preços só podem ser obtidos usando-se modelos matemáticos. No nível 2, encontra-se boa parte dos derivativos de balcão, enquanto os ativos lastreados em hipotecas ou outros tipos de crédito e investimentos em private equity estão no nível 34. Verificou-se que os ativos de nível 3 Ao avaliar as posições a preços de mercado, a inclusão dos lucros ou perdas, registrados quando se leva em conta os preços de fechamento do mercado no dia do encerramento do exercício fiscal, incide no resultado tributável, impedindo a realização de operações cujo único objetivo era o de transferir impostos de um exercício fiscal para outro. 4 Cf. Blackburn (2008: p.70): “Os melhores ativos – os ‘de nível 1’ – são aqueles cujo preço pode ser obtido simplesmente consultando um terminal de cotações da Bloomberg, onde a cada momento ele aparece. Ativos do ‘nível 2’ têm seus valores baseados num modelo que os relaciona a um índice de ativos similares negociados em mercados. Os valores dos ativos do ‘nível 3’ são simplesmente baseados em modelos nos quais não existem elementos negociados diretamente em mercados, um tipo de trabalho de adivinhação ou, em situações conturbadas, um desejo e uma prece”.

215


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

1 somente representavam algo próximo de 9% dos ativos totais das instituições financeiras americanas, enquanto os de nível 2 e 3 constituíam os 91% restantes. Assim, é difícil negar que essas instituições financeiras detinham ativos pouco líquidos em excesso, que a crise financeira se encarregou de reavaliar em níveis próximos de zero. O investidor Warren Buffett declarou à revista Fortune que elas “estão marcando a modelo ao invés de marcar a mercado. A recente derrocada nos mercados de dívida transformou este processo em uma marcação a mito”. Essas normas contábeis, que deveriam garantir a estabilidade e a transparência do sistema, foram acusadas de contribuir para aumentar sua volatilidade e falta de transparência. As instituições financeiras passaram a apontar o mark-tomarket como parcialmente responsável pelos imensos prejuízos que registraram. Como resultado, elas pressionaram para a adoção de novas regras que dessem maior ênfase à necessidade de estabilidade financeira, ao invés de fornecer informações transparentes. Os planos de resgate de instituições financeiras dos EUA e da área do euro, implementados em meados de outubro de 2008, suspenderam algumas regras de marcação a mercado dos ativos que exigiam que as instituições avaliassem os investimentos pelos preços que eles valeriam caso fossem vendidos imediatamente. As mudanças permitiram que os bancos reclassificassem alguns ativos como investimentos de longo prazo (empréstimos e recebíveis), concedendo-lhes tempo para decidir o valor dos ativos. Em abril de 2009, o FASB passa a permitir, a critério das instituições financeiras, a contabilização dos ativos e derivativos por preços decorrentes de modelos próprios, ao invés de marcá-los a mercado. Poucos dias mais tarde, iniciou-se a temporada de divulgação dos balanços bancários para o primeiro trimestre de 2009. Muitos desses balanços surpreenderam os analistas pela divulgação de lucros bastante superiores às expectativas mais otimistas. Um forte efeito de alavancagem também toma parte deste mundo virtual dos mercados de derivativos financeiros. Através dele, é possível operar grandes somas com um desencaixe inicial relativamente pequeno ou, por vezes, até nulo. O grau de alavancagem varia conforme o tipo específico de derivativo: quanto menor for o montante necessário para assumir e manter uma posição, maior será o grau de alavancagem5. Os resultados percentuais podem ser espetaculares, funcionando como fator suplementar de atração para os especuladores que podem ver seu investimento inicial multiplicar-se várias vezes, o que seria praticamente impossível se operas5 Assim, por exemplo, o site da Bolsa Mercantil e de Futuros informava que, para assumir posição de um contrato no mercado futuro de câmbio num valor de US$ 50.000,00, com vencimento em janeiro de 2010, em 15 de dezembro de 2009, era necessário o depósito de uma margem de garantia máxima equivalente a R$ 9.675,42 em títulos públicos, ações de primeira linha ou outros ativos autorizados . Esse depósito garante a disponibilidade financeira do agente, caso sua operação resulte em prejuízo. Ele é devolvido após o encerramento da operação e o pagamento de um eventual prejuízo. Essas informações estão disponíveis em: http:// www2.bmf.com.br/pages/portal/bmfbovespa/boletim1/MargemTeorica1.asp?pagetype=pop

216


Os impactos dos derivativos no Brasil

sem nos mercados à vista. O reverso da medalha é que os prejuízos potenciais podem ser teoricamente ilimitados em algumas destas operações e nem sempre é possível dimensioná-los ex-ante. Ademais, deve ser sublinhado que boa parte dos riscos de contraparte (equivalentes ao risco de crédito em que o devedor não consegue honrar seus compromissos) presentes nas operações de derivativos, realizadas nos mercados de balcão, decorre do efeito de alavanca já que, ao se realizar uma operação, deve-se levar em conta a capacidade da contraparte em honrar seus compromissos numa conjuntura desfavorável de mercado com prejuízos potenciais impossíveis de serem calculados de antemão. Aumentou muito a importância desse risco na crise financeira, quando diversas instituições financeiras, como a American International Group (AIG) maior seguradora do mundo ou o banco de investimentos Bear Stearns, tiveram prejuízos com derivativos superiores a seu patrimônio, levando a uma inédita intervenção do Federal Reserve. Alguns economistas apontam que o efeito de alavancagem não é exclusivo aos mercados de derivativos financeiros, ele sempre esteve presente em todas as atividades bancárias em que, com um capital próprio relativamente pouco elevado, é possível captar depósitos e conceder créditos ou realizar outras operações de montantes bem superiores (Scheinkman 1995, Miller 1991). Mas esses autores deixam de considerar o fato significativo de que os mercados de derivativos derrubaram as barreiras de acesso anteriormente existentes e permitiram uma ampla generalização do uso dos mecanismos de alavancagem. A “democratização” da possibilidade de utilizar a alavancagem tem diversas consequências. Enquanto estava restrita às atividades bancárias tradicionais, ela era sujeita ao controle dos bancos centrais que, além de regular sua extensão, podiam atuar como emprestadores de última instância, em caso de necessidade. A alavancagem acessível a todos permitiu a difusão das operações especulativas entre os mais diversos participantes dos mercados financeiros: instituições financeiras, empresas, fundos mútuos e de pensão ou simples particulares. Os prolongados períodos de euforia financeira, com sua sucessão de aumentos de preços dos ativos e o laxismo das normas de supervisão e regulação de bancos e outras instituições financeiras levaram a um vertiginoso aumento da alavancagem total do sistema. Esse aumento tornou-se manifesto quando a crise financeira revelou o estado de insolvência de instituições financeiras não-bancárias. Assim, por exemplo, no primeiro caso de relevância, descobriu-se que o Bear Stearns tinha atingido uma alavancagem de 30 para 1. Em outras palavras, o banco de investimento detinha posições de US$ 30 para cada dólar disponível em seu balanço, tornando-o extremamente vulnerável a uma crise de confiança. Os derivativos financeiros são negociados em dois tipos de mercados. Nos mercados organizados, existem normas e os contratos são padronizados definin217


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

do o ativo, o vencimento, a liquidação etc. Só resta ao comprador e ao vendedor concordarem sobre o preço. Nesse mercado, a existência de uma compensação limita o risco de crédito. Já nos mercados de balcão são negociados produtos “sob medida” entre as instituições financeiras e entre essas e seus clientes. As operações nesses mercados, que escapam quase totalmente à supervisão e regulação, acabam por constituir uma teia de créditos e débitos entre instituições financeiras, tão opaca e intricada que nenhum supervisor consegue destrinchá-la. Como mostrado na Tabela 1, no plano internacional, os volumes apurados pelo Bank for International Setlements (BIS) de derivativos negociados nos mercados de balcão predominam largamente sobre os negociados em mercados organizados. A magnitude das posições divulgadas pelo BIS contribuiu em muito para a elevadíssima percepção de riscos dos agentes, no decorrer da crise financeira, sobretudo após a falência do Lehman Brothers. Entretanto, a inexistência de uma compensação das posições no mercado de balcão faz com que posições já cobertas por uma operação de sinal contrário (quem comprou, revende e quem vendeu, recompra) não sejam liquidadas, mas continuem sendo contadas duas vezes até o vencimento. Quanto maior o giro num determinado derivativo de balcão, maior será o dimensionamento desse mercado. Os dados do BIS sobre derivativos de balcão incluem essas múltiplas contagens. 2. Os derivativos na crise financeira No desenrolar da crise financeira iniciada com a elevação da inadimplência e a desvalorização dos imóveis e dos ativos financeiros associados às hipotecas americanas de alto risco (subprime), os derivativos mostraram todo seu potencial de intensificar os impactos de uma crise e de propagá-la internacionalmente. O papel central dos derivativos de crédito na evolução dessa crise deve ser destacado. Esse papel foi evidenciado pela intervenção do Federal Reserve (Fed) no banco de investimentos Bear Stearns, que contava com um volume elevado de posições vendidas nos mercados de derivativos de crédito, organizando sua venda a baixo preço para o JPMorgan em março de 2008. Também foi evidenciado no socorro de US$ 180 bilhões do Fed à maior seguradora do mundo, a AIG, que detinha uma posição vendida em derivativos de crédito estimada em US$ 2,7 trilhões (Dennis, 2009). A acentuada expansão dessa modalidade de derivativo, sobretudo a partir do final da década de 1990, elevou fortemente os riscos agregados presentes nos mercados de balcão (associados à sua opacidade e à inexistência de câmara de compensação), que constituiu o principal palco dessas relações. Utilizando os mecanismos já existentes de swaps, os derivativos de crédito permitiram que os bancos retirassem riscos de seus balanços, ao mesmo tempo em que as instituições 218


Os impactos dos derivativos no Brasil

financeiras não bancárias passaram a ter novas formas de assumir exposição aos riscos e rendimentos do mercado de crédito. Os mais utilizados são os swaps de inadimplência de crédito (credit default swaps, CDS), que transferem o risco de crédito entre um agente que adquire proteção contra o risco de crédito e uma contraparte que aceita vender proteção. Por esse mecanismo, o detentor de uma carteira de crédito compra proteção (paga um prêmio) do vendedor de proteção. Em troca, este assume, por um prazo predeterminado, o compromisso de efetuar o pagamento das somas combinadas nos casos especificados em contrato, que vão de inadimplência ou falência à redução da classificação de crédito ou outros eventos que possam causar queda do valor da carteira. Tabela 1: Estoque de derivativos negociados nos mercados de balcão e organizados – US$ bilhões Valor nocional

Valor bruto de mercado

2007 jun.

2007 dez.

2008 jun.

2008 dez.

2007 jun.

2007 dez.

2008 jun.

2008 dez.

Total mercado de balcão

516.407

595.341

683.726

591.963

11.140

15.813

20.353

33.889

Mercado de Câmbio

48.645

56.238

62.983

49.753

1.345

1.807

2.262

3.917

Merc. de Taxas de Juros

347.312

393.138

458.304

418.678

6.603

7.177

9.263

18.420

Mercado de Ações

8.590

8.469

10.177

6.494

1.116

1.142

1.146

1.113

Mercado de Commodities

7.567

8.455

13.229

4.427

636

1.899

2.209

955

Ouro

426

595

649

395

47

70

68

65

Outras

7.141

7.861

12.580

4.032

589

1.829

2.142

890

Credit Default Swaps

42.581

57.894

57.325

41.868

721

2002

3.172

5.652

Único nome

24.239

32.246

33.334

25.730

406

1.143

1.189

3.695

Multinomes

18.341

25.648

23.991

16.138

315

859

1.283

1.957

Outros

61.713

71.146

81.708

70.742

1.259

1.788

2.301

3.831

79.078

-

57.864

Total mercados organizados

Fonte: BIS, Semiannual OTC derivatives statistics

A crise financeira elevou enormemente os preços desse tipo de proteção, o que resultou num repentino aumento da percepção de riscos de crédito suplementares, numa distribuição e num montante consolidado desconhecidos, e contribuiu para uma virtual paralisação das operações interbancárias, até que as autoridades monetárias passassem a garanti-las. Em função disso, verificou-se uma rara convergência entre os reguladores e os representantes das instituições financeiras para a criação de uma câmara de compensação para os derivativos de crédito que exija margens de garantia dos participantes, para 219


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

minimizar os riscos de contraparte, e traga alguma transparência às posições em aberto e à distribuição de riscos. Algumas empresas privadas estão se “candidatando” para assumir esta função de câmara de compensação. No processo de concorrência entre elas novos dados começaram a emergir, trazendo alguma luz aos opacos mercados de balcão. Uma delas, a Depository Trust & Clearing Corporation (DTCC), começou a divulgar, em novembro de 2008, dados dos valores nocionais líquidos (isto é, após compensação das operações e a liquidação de posições já cobertas por uma operação de sinal contrário, mas que continuavam sendo contadas até o vencimento) que começam a trazer alguma luz aos opacos mercados de balcão. Embora ainda parciais, esses dados apontam que, após essa compensação das posições, as posições líquidas (não liquidadas por meio de uma operação inversa) equivaliam, em final de junho de 2009, a 9% das posições brutas (Tabela 2). Tabela 2: Dados comparados dos derivativos de crédito: BIS e DTCC – US$ bilhões BIS 06/08 Nocional bruto

BIS 12/08 Nocional bruto

DTCC 06/09 Nocional bruto - a

DTCC 06/09 Nocional líquido - b

a/b(%)

CDS Total

57.325

41.868

28.131

2.566

9%

Único nome

33.334

25.730

15.543

1.415

9%

Multinomes

23.991

16.138

12.588

1.151

9%

Fontes: BIS e DTCC

Embora sejam ainda muito recentes, pouco conhecidos e entendidos, os reguladores acreditam que esses dados contribuíram para a acentuada redução da percepção de riscos constatada nos últimos meses. O risco decorrente de um valor nocional líquido de US$ 2,5 trilhões em derivativos de crédito, após compensação das posições já liquidadas por uma posição oposta, não está totalmente fora de alcance de um socorro ou intervenção das autoridades monetárias, o que parece quase impossível quando se raciocina em termos de riscos advindos de um valor nocional bruto de US$ 28 trilhões. No que diz respeito aos derivativos financeiros de balcão que ainda não dispõem de alguma forma de compensação (portanto, todos com a exceção dos derivativos de crédito), não chega a ser uma inferência audaciosa supor que o resultado de sua eventual implantação poderá ser uma redução ainda maior do valor nocional líquido. Os ativos subjacentes com maior volume desses derivativos são taxas de juros e taxas de câmbio. Nesses ativos subjacentes, os mecanismos de formação de preços são muito mais simples e conhecidos, à medida que independem de modelos matemáticos. O que permite deduzir que nesses mercados muito mais maduros, ocorre um giro muito mais elevado de posições, e a liquidação de posições resultante de uma compensação poderá superar a já verificada com os derivativos de crédito. Assim, é lícito supor que, de 220


Os impactos dos derivativos no Brasil

um valor nocional bruto de US$ 592 trilhões apurados pelo BIS em dezembro de 2008, o valor nocional líquido será inferior a US$ 53,28 trilhões. Diante da gravidade da situação constatada na crise, as propostas de nova regulamentação tanto nos EUA quanto na zona do euro estão tentando fazer com que a solução dada aos derivativos de crédito seja também aplicada aos demais contratos de derivativos de balcão, de forma a se poder obter a identificação das partes envolvidas e uma medida mais confiável dos volumes de riscos que elas acumularam. Segundo a revista The Economist de 12 de novembro de 2009, o representante de um dos Bancos Centrais da Europa teria afirmado que essa medida ofereceria “um claro ponto de entrada para as autoridades em busca de salvar o sistema financeiro, na próxima vez, ao invés de tentar esclarecer e lidar com um emaranhado de obrigações recíprocas.” Ademais, o Tesouro americano fez propostas específicas no sentido de transferir o maior volume possível desses derivativos de balcão para os mercados organizados. Para alcançar esse objetivo, os derivativos de balcão estariam sujeitos a reservas de capital mais elevadas do que os contratos negociados em mercados organizados. 3. Derivativos no Brasil O papel dos derivativos na amplificação da crise financeira internacional se fez igualmente presente nas economias emergentes, e em particular no Brasil. Mas, contrariamente às economias desenvolvidas, não foram os derivativos de crédito que estiveram na berlinda, mas os derivativos ligados à taxa de câmbio. Num período de forte instabilidade financeira, os derivativos que provocam maior impacto macroeconômico são sempre os que estão vinculados ao ativo considerado como sendo de maior risco numa economia. Nas economias emergentes, dotadas de moeda inconversível, a instabilidade financeira extremada leva à percepção de riscos elevados que permanecem concentrados na taxa de câmbio. Após a falência do banco de investimento americano Lehman Brothers, isso ocorreu apesar do fato que diversas dessas economias tinham reduzido enormemente sua vulnerabilidade externa e constituído elevadas reservas em divisas. A taxa de câmbio nominal de várias economias emergentes vem sendo fortemente influenciada pelos derivativos de câmbio. A existência de um mercado de derivativos offshore de suas moedas reforça esse papel. Nesse mercado offshore de Real são negociados os chamados Non Deliverable Forwards (NDF)6. Contudo, por ser um mercado de balcão, ele não é transparente e, assim, não existem informações oficiais atualizadas dos volumes negociados7. 6 O NDF é conceitualmente similar a uma simples operação de câmbio a termo em que as partes concordam com um montante principal, uma data e uma taxa de câmbio futura. A diferença é que não há transferência física do principal no vencimento. A liquidação financeira reflete a diferença entre a taxa de câmbio inicial e a constatada na data do vencimento e é feita em US$ ou em outra divisa plenamente conversível. 7 O Federal Reserve divulga informações num relatório quadrianual.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Em países emergentes com um elevado grau de abertura financeira, como o Brasil8, um mercado de derivativos líquido e profundo cria “vasos comunicantes” com o mercado de derivativos offshore de câmbio, ao permitir operações de arbitragem entre praças diferentes. Mas, sobretudo, são as operações de arbitragem no tempo que constituem o principal mecanismo de transmissão entre a taxa do mercado futuro e a taxa de câmbio à vista. Mediante essas operações, os bancos e gestores de fundos procuram obter lucro a partir de diferenças de curtíssimo prazo nas cotações das moedas e nas respectivas taxas de juros. Os mercados de derivativos financeiros desenvolveram-se no Brasil bem antes da entrada maciça dos bancos estrangeiros no sistema financeiro do país. No início da década de 1980, confrontado com uma altíssima inflação e com taxas de câmbio e de juros muito voláteis, o sistema financeiro brasileiro assimilou muito rapidamente os derivativos, inovações financeiras que ofereciam formas de convivência com as incertezas decorrentes da volatilidade macroeconômica, e permitiam que os agentes cobrissem seus riscos e/ou potencializassem suas apostas especulativas em função da alta alavancagem que os caracteriza. A abertura financeira iniciada em 1991 e a introdução do Real, em meados de 1994, acentuaram o interesse pelos derivativos financeiros, em função da entrada de elevados fluxos de capitais e da política cambial que conduziu à sobrevalorização cambial, durante a primeira fase do Plano Real (1994-1998). Nesse contexto, os volumes negociados na BM&F cresceram significativamente e se concentraram nos ativos sobre os quais pairavam as principais incertezas: taxa de juros e taxa de câmbio9. Mas foi, sobretudo, após 1995, com o avanço da presença estrangeira no sistema financeiro doméstico, que o mercado de derivativos no Brasil se ampliou substancialmente. A maior participação estrangeira no sistema financeiro nacional instaurou uma nova dinâmica na gestão das operações de tesouraria dos bancos no Brasil, bem como nos mercados de derivativos, que passaram a estar estreitamente vinculados aos mercados internacionais e às suas avaliações sobre os ativos brasileiros. A maior parte dos grandes bancos estrangeiros que se instalaram no Brasil 8 No que diz respeito aos mercados de derivativos, essa abertura foi consagrada, em 2000, pela Resolução nº 2.689 do Conselho Monetário Nacional (CMN), que autorizou a participação dos investidores estrangeiros na BM&F, sem quaisquer limites (e também flexibilizou as aplicações desses investidores estrangeiros nos mercados de ações e títulos de renda fixa). 9 Como apontado em Prates e Farhi (2009,) existe uma particularidade importante dos derivativos de câmbio negociados no Brasil, seja no mercado organizado, seja no mercado de balcão, seja nas operações de swaps (cambiais ou reversos) realizadas pelo Banco Central do Brasil (BCB). Em função da legislação brasileira, a liquidação desses contratos não envolve a entrega física de divisas. Tal liquidação é sempre feita em reais pela taxa de câmbio de reais por dólar dos Estados Unidos, para entrega pronta, contratada nos termos da Resolução 1690/90 do CMN, definida como a taxa média de venda apurada pelo Banco Central do Brasil (BCB). Nos países em que a liquidação de derivativos de câmbio tem de ser feita por entrega efetiva das divisas, os momentos de crise são acompanhados por procura desmesurada de moeda estrangeira no mercado à vista para honrar ou para liquidar antecipadamente posições vendidas no mercado de derivativos. Essa procura excedente, num período de baixíssima oferta, acaba obrigando os agentes a recorrer ao mercado internacional para obtê-las, qualquer que seja o custo, o que torna a crise ainda mais aguda. No caso brasileiro, derivativos de câmbio non deliverable atenuam parcialmente a pressão de uma procura suplementar elevada, em período de crise, no mercado de câmbio à vista.

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Os impactos dos derivativos no Brasil

adotou um estilo operacional muito mais agressivo do que o anteriormente utilizado pelas instituições financeiras domésticas. Seu acesso muito mais amplo aos mercados internacionais de derivativos levou-os, inicialmente, a enfatizar as operações de arbitragem com ativos e derivativos brasileiros, operando simultaneamente em diversas praças e tirando proveito das eventuais diferenças de preços entre elas. A realização de operações de arbitragem de grande monta está na raiz do estreito vínculo que se formou entre os mercados financeiros internacionais e os nacionais. Desde a adoção do regime de câmbio flutuante, no Brasil, em janeiro de 1999, as bruscas alternâncias de ciclos de liquidez internacional com períodos de forte restrição ou virtual fechamento dos mercados aos países “emergentes” repercutiram nos mercados financeiros sob forma de uma sucessão de períodos de otimismo seguidos por outros de pessimismo, além de dois ataques especulativos contra o real. O pessimismo leva o real a se desvalorizar e os preços dos ativos brasileiros a cair. O otimismo se traduz pela valorização da moeda brasileira e pela alta dos preços de seus ativos. Nos períodos de otimismo, os capitais especulativos internacionais entram no país para comprar ativos baratos e realizar apostas na elevação dos preços desses ativos nos mercados de derivativos. Nos períodos de pessimismo, capitais nacionais e estrangeiros deixavam o país, desvalorizando o real e os demais ativos brasileiros, por vezes de forma muito acentuada e assumindo posições em derivativos visando obter lucro com essa desvalorização. Os ataques especulativos, num regime de taxa de câmbio flutuante, tiveram uma dinâmica distinta dos ocorridos até a crise cambial de 1999, sob taxa de câmbio administrada. Os ataques não eram mais diretamente dirigidos contra as reservas em divisas do país, mas traduziam-se por acentuadas elevações da taxa de câmbio e quedas significativas de preços dos ativos brasileiros. Os movimentos da taxa de câmbio do real assemelharam-se à dinâmica das bolhas especulativas em que a alta dos preços acarreta um aumento no número de compradores dispostos a pagar preços cada vez mais altos porque presumem que a tendência persistirá. A importância da ação dos especuladores é constatada pelo fato de que as pressões contra a taxa de câmbio se acentuavam nos dias em que era apurada a taxa média (PTAX) para a liquidação de contratos futuros ou para o resgate de títulos públicos indexados ao câmbio. Nos mercados financeiros brasileiros, os canais de transmissão da instabilidade financeira internacional se ampliaram ainda mais devido a dois fatores principais. O primeiro diz respeito à atuação dos bancos estrangeiros instalados no país, que passaram a se valer desses ciclos para reforçar suas apostas especulativas com dinheiro captado no mercado nacional. Esses bancos ocupam os lugares mais proeminentes nas operações de tesouraria nos mercados de ações e de câmbio, ultrapassando os principais bancos brasileiros que, apesar de um patrimônio mais elevado, seguem um perfil de operações com menor grau de risco. Nos mercados de câmbio e de seus derivativos, a atuação mais intensa dos bancos estrangeiros se deve, além de sua maior agressividade nas operações de tesouraria, ao fato de eles estarem mais bem 223


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

colocados para realizar operações de arbitragem com os derivativos de taxa de câmbio do real localizados offshore. O segundo fator está relacionado à presença marcante nos mercados de derivativos brasileiros de investidores institucionais não residentes, após a autorização irrestrita dada pela Res. nº 2.689 do CMN. Os dados divulgados pela BM&F só permitem identificar as posições desses últimos, à medida que não diferenciam as posições dos bancos de capital nacional e os bancos de capital estrangeiro. Entre 2004 e meados de 2008, as taxas de juros mantidas extremamente elevadas pelo BCB10, num contexto de alta liquidez internacional e forte queda dos riscos país e cambial, suscitaram generalizadas expectativas de apreciação da taxa de câmbio do real. Essas expectativas resultaram em tomadas de posições de diversos agentes: aplicações externas em títulos de renda fixa denominados em reais no mercado internacional e no doméstico, ampliação das apostas nos mercados de derivativos de valorização do real e de queda da taxa de juros básica da economia por parte dos investidores estrangeiros. Aquelas expectativas se consubstanciaram na formação de posições líquidas vendidas em dólar pelos investidores institucionais estrangeiros na BM&F, que atingiram o volume recorde de US$ 100 bilhões em meados de maio de 2007 (ver Tabela 1). Essas posições pressionaram para baixo a cotação do dólar no mercado futuro, abrindo espaço para operações de arbitragem que consistiam na venda de dólar no mercado à vista e sua compra no futuro. Como destacam Burnside et al (2006), esse tipo de operação de arbitragem envolvendo as taxas de câmbio à vista e futura, é similar à estratégia de carry trade, também aplicada por investidores estrangeiros e pelos bancos estabelecidos no país, consiste em tomar emprestado na moeda com menor taxa de juros e aplicar/emprestar na moeda de maior taxa de juros. Tabela 1: Saldo líquido (1) das posições em contratos futuros de câmbio, por tipo de investidor (Em contratos de US$ 50.000,00)

Data

Bancos

Investidor Institucional Residente

Investidor Institucional não Residente

15/01/2007

105.385

-62.615

-41.046

15/02/2007

171.333

-89.863

-79.585

15/03/2007

145.445

-70.896

-54.460

16/4/2007

165.268

-86.188

-75.645

15/5/2007

333.875

-116.336

-206.641

15/6/2007

305.730

-195.732

-95.176

16/7/2007

156.449

-159.728

30.779

15/8/2007

-1.655

-137.348

172.089

14/9/2007

55.733

-99.434

54.874

10 Em todo esse período, a taxa básica de juros praticada no Brasil manteve-se na posição de campeã mundial em termos reais e disputou, com alguma alternância, a posição de mais elevada do mundo, em termos nominais, com a Turquia.

224


Os impactos dos derivativos no Brasil 15/10/2007

123.710

-159.866

43.644

16/11/2007

122.112

-99.912

-12.374

14/12/2007

-7.189

-44.281

49.025

15/1/2008

56.124

-94.059

33.634

14/2/2008

58.503

-40.388

-20.443

14/3/2008

-152.836

47.270

115.463

15/4/2008

-133.615

95.629

34.032

15/5/2008

-213.526

96.646

100.510

16/6/2008

-182.712

89.792

40.965

15/7/2008

29.310

6.179

-95.769

4/8/2008

22.891

-35.471

-39.185

19/09/2008

-306.286

7.232

208.094

10/10/2008

-449.968

139.922

210.325

30/10/2008

-408.024

71.885

249.545

28/11/2008

-265.426

-3.464

196.443

30/12/2008

-242.041

10.797

157.169

30/01/2009

-286.905

36.370

174.090

27/02/2009

-327.620

76.699

170.471

31/03/2009

-153.374

65.413

43.486

30/04/2009

-64.754

57.985

-1.833

29/05/2009

-21.636

67.670

-61.187

30/06/2009

-107.431

61.375

8.924

31/07/2009

26.979

40.012

-83.887

14/08/2009

-47.379

4.577

12.975

Nota: (1) As posições líquidas de cada tipo de investidores (compradas menos vendidas) são medidas pelo estoque dos contratos em aberto (que se referem exatamente às posições assumidas e não liquidadas). Os valores negativos representam posições líquidas vendidas e os positivos, posições líquidas compradas.

No período inicial da crise financeira internacional originada no mercado americano de hipotecas subprime, a partir de meados de 2007, os ativos e o real prosseguiram sua trajetória de valorização, impulsionados pela elevação da classificação do risco de crédito do Brasil para grau de investimento, concedido por duas das três grandes agências internacionais11, pela desvalorização do dólar americano e pela forte alta dos preços das commodities que refletia tanto essa desvalorização quanto a queda dos juros das economias desenvolvidas. Este movimento atingiu diversas outras economias emergentes exportadoras de matérias-primas e acabou levando a conjecturas sobre um “descolamento” dessas 11 A classificação do risco de crédito soberano do Brasil foi elevado para “grau de investimento” pela agência internacional de rating Standard & Poors (S&P) no dia 30 de abril, seguida pela agência Fitch no dia 29 de maio de 2008).

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

economias em relação às agruras enfrentadas pelos países desenvolvidos. Mas, as economias emergentes com uma pauta de exportações centrada em manufaturados já sentiram os efeitos desta primeira fase da crise, com queda dos preços de seus ativos e desvalorização de sua taxa de câmbio. A crise aprofundou-se e assumiu dimensões sistêmicas após a falência do Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, provocando pânico entre os investidores e forte aumento da aversão aos riscos. Os ativos e as moedas do conjunto das economias emergentes, independentemente de sua inserção financeira internacional (Cintra e Prates, 2009), tornaram-se importantes alvos do movimento de desalavancagem global e de fuga para a qualidade dos investidores. Sua desvalorização foi extremamente acentuada, sobretudo no Brasil. De agosto a fim de outubro de 2008, a desvalorização dos ativos e da taxa de câmbio da moeda brasileira foi tão rápida e intensa que se tornou comparável à sofrida pelas outras economias emergentes ao longo de dezesseis meses, ou seja, desde o início da crise. Foi nesse contexto que as desvalorizações cambiais obrigaram algumas grandes empresas exportadoras de economias emergentes como o Brasil, a China, a Colômbia, a Coreia do Sul e o México12 a divulgar enormes perdas financeiras em operações com os bancos, envolvendo contratos de derivativos de câmbio. As notícias diziam respeito a complexos contratos pelos quais essas empresas tinham assumido uma posição vendida em dólar americano contra suas moedas nacionais, que gerariam lucros em caso de continuidade da apreciação cambial e prejuízos numa desvalorização. Muitas dessas empresas apontaram a responsabilidade dos grandes bancos internacionais, presentes em distintos graus nas economias emergentes, em induzi-las a essas operações. No Brasil, as informações iniciais diziam respeito à Sadia, à Aracruz e à Votorantim. A magnitude desses prejuízos, muito superiores aos volumes das exportações dessas empresas, demonstra claramente que, diante da perda de competitividade das exportações, elas lançaram mão dessas operações de derivativos não somente para cobrir os riscos da variação cambial, mas também para realizar ganhos financeiros, ou seja, para especular (e, assim, atenuar essa perda)13. Rapidamente surgiram na imprensa informações de diversas outras empresas predominantemente industriais que tinham assumido a mesma posição – embora em volumes menores – em troca de taxas de juros mais baixas nas operações de crédito em reais. Contrariamente às grandes empresas exportadoras, essas últimas eram de médio porte, com foco principal no mercado interno. Num ambiente de aversão aos riscos exacerbada, esses anúncios tiveram o 12 Prejuízos semelhantes já tinham sido divulgados desde março de 2008 por empresas da Índia. 13 As empresas mexicanas e coreanas também realizaram operações com derivativos cambiais num contexto de perda de competitividade das exportações. Todavia, ao contrário do mercado brasileiro, os mercados de derivativos cambiais na Coreia do Sul e no México são deliverable, ou seja, as perdas ou ganhos com as operações são liquidadas em dólares, como na maioria dos países – o que reforça a demanda por moeda estrangeira em momentos de depreciação cambial.

226


Os impactos dos derivativos no Brasil

efeito de uma bomba (Farhi e Borgui, 2009). Até aquele momento, os agentes apontavam a redução dos fluxos de entrada de capitais externos, o aumento de sua saída e a deterioração da balança comercial como sendo os principais canais de transmissão da crise internacional para as economias emergentes. As incertezas sobre a solvência das grandes empresas industriais e dos bancos com os quais essas operações de derivativos tinham sido realizadas foram centrais no surgimento de uma crise de confiança semelhante à que se verificava nas economias desenvolvidas. Em decorrência, verificaram-se diversas reações que convergiram para uma brutal freada da economia. Houve um súbito aumento da desvalorização cambial que já refletia os efeitos do aprofundamento da crise internacional. A liquidez nas operações interbancárias evaporou-se e a concessão de crédito às empresas sofreu drástica redução. Um relatório do banco HSBC sobre a América Latina (2009, p.7) aponta para a extensão e profundidade desse impacto: “apenas quando o setor corporativo do México, Brasil e de alguns outros países latino-americanos forçou um enfraquecimento maior das moedas, como resultado de derivativos cambiais altamente alavancados em outubro, foi que nós notamos o quão verdadeiramente global a crise seria, com uma profundidade e alcance muito superior às estimativas prévias”. Numa entrevista (Folha de São Paulo, 2009), o presidente do BCB, Henrique Meirelles, declara que ”grandes empresas brasileiras tinham assinado contratos de derivativos vendendo dólares equivalentes, em alguns casos, a anos de exportação. Elas ficaram insolventes. Eram empresas grandes, não se sabia quantas nem quais. Elas tinham contrato majoritariamente com bancos internacionais. Só que mantinham linhas de crédito com grandes bancos nacionais. Aqui, de novo, não se sabia quantos ou quais”. Adiante, responde à pergunta sobre se havia risco de insolvência, de crise sistêmica dizendo que “sim, começou a haver uma preocupação muito similar à que existia em outros países”. A seguir, afirma que “o prejuízo poderia chegar a proporções monumentais. O mercado estava de tal maneira alavancado que, se o Banco Central não interviesse, geraria perdas extravagantes para bancos brasileiros que tinham crédito com essas companhias”. A grande maioria dessas operações foi realizada, entre final de 2007 e meados de 2008 (gráfico 1), no opaco mercado de balcão. Essa característica faz com que, passado mais de um ano de sua divulgação inicial, elas continuem, em boa parte, envoltas em mistério.

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Gráfico 1: Contrato a termo de moeda sem entrega física Estoque - Dólar dos Estados Unidos Mercado - Cliente

Fonte: Elaboração própria com bases nos dados da Cetip

As poucas informações disponíveis são as divulgadas pela imprensa, sendo que algumas dão os nomes de partes envolvidas, quando alguma delas resolve instaurar um processo judicial. Uma parte desses contratos foi firmada offshore, de forma que não é possível avaliar seu tamanho e extensão. A outra parcela das operações foi efetuada no mercado brasileiro que, apesar de ser um pouco mais transparente, não permite à supervisão financeira (e, menos ainda, ao observador) identificar claramente os agentes e mensurar os riscos envolvidos. Sabe-se que essas operações foram lançadas pelos grandes bancos internacionais e que ela adquiriram, como se descobriu posteriormente, um caráter verdadeiramente internacional, sendo realizadas em diversas economias emergentes. Ao que se sabe no momento, esse processo atingiu, sobretudo, empresas do Brasil, da China, da Coreia do Sul, da Índia e do México. Os argumentos utilizados para arrebanhar interessados se dirigiram, inicialmente, aos agentes que mais vinham sofrendo os impactos da valorização cambial: as grandes empresas exportadoras. Num segundo momento, no contexto de elevação do custo de captação das empresas no mercado de capitais internacional e doméstico, alguns bancos passaram a oferecer crédito nas moedas locais vinculados às operações com derivativos de dólar em condições de custo mais favoráveis para empresas de menor porte e com pouca ou nenhuma participação no comércio internacional. No caso do Brasil, os bancos estrangeiros, rapidamente seguidos pelos bancos privados nacionais, ofereceram recursos às empresas com dupla indexação: taxas de juros entre 50% a 75% da taxa do Depósito Interfinanceiro (CDI) que seriam substituídas pela variação cambial, caso o real se desvalorizasse além de uma cotação predeterminada. A falta de transparência ainda envolve as identidades dos bancos implicados nessas operações, bem como os montantes de sua respectiva exposição. Os nomes que surgiram foram principalmente os dos bancos que tiveram sua 228


Os impactos dos derivativos no Brasil

higidez abalada pelas operações e foram obrigados a uma reestruturação societária. Em outras palavras, são conhecidos os nomes de alguns dos bancos de capital nacional envolvidos nessas operações: Votorantim, Itáu, Unibanco. No que diz respeito aos bancos de capital estrangeiro, um levantamento da Agência Estado (out. 2008) menciona o banco Santander (com sessenta empresas como clientes envolvidos nas operações com derivativos cambiais). Sabe-se que a Sadia realizou uma operação de US$ 1,4 bilhão com o Barclays em 10 de setembro, poucos dias antes da quebra do Lehman (Valor Econômico, abril 2009). Outros nomes de bancos aparecem em disputas judiciais em que empresas alegam que foram enganadas na formulação dos contratos, ainda que suas tesourarias também tenham sido negligentes na identificação dos riscos assumidos, ao crescentemente se aventurarem em operações financeiras “desconhecidas”. Esse é o caso do Merrill Lynch, citado no processo movido pela Vicunha Têxtil. Também é o caso do banco Safra, nomeado no processo de uma empresa fabricante de fios e fibras têxteis sintéticas. Diversos outros bancos internacionais fazem parte deste rol, mas pouco se sabe sobre eles. No que tange às empresas envolvidas nessas operações, a motivação maior das grandes empresas que realizaram essas operações de derivativos sem vinculá-las a novos créditos foi a busca, de um lado, por cobertura de riscos e, de outro lado, por elevados ganhos financeiros. Já para as demais que aceitaram realizá-las em troca de crédito em moeda nacional a juros mais baixos, é possível arguir que sua principal motivação possa ter sido um afã de reduzir seus custos financeiros. Mas é evidente que todas elas o fizeram sem atinar para os riscos (e prejuízos) aos quais se expuseram. É importante sublinhar a diversidade das empresas envolvidas, incluindo exportadoras e não-exportadoras de porte variado, construtoras e mesmo bancos de médio porte. Segundo Freitas (2009), no Brasil, além das grandes empresas, muitas companhias médias também sucumbiram ao apelo dos ganhos financeiros que pareciam ser tão fáceis. Chiarini (2008) assinala que, no final de outubro de 2008, o diretor de Relações com os Participantes da Cetip, Jorge Sant’Anna, informou que havia mais de quinhentas empresas envolvidas nos derivativos de câmbio. Entretanto, a exposição à variação cambial tinha se reduzido, já que, de 30 de setembro a 24 de outubro, as posições das empresas vendidas em dólar passaram de US$ 40 bilhões para US$ 20 bilhões para até noventa dias ulteriores (apud Farhi e Borghi, 2009). De acordo com levantamento da Agência Estado (2008), referente principalmente ao primeiro semestre de 2008, 37 de 50 empresas não-financeiras do Ibovespa mantinham posições abertas com derivativos de câmbio. Mas as empresas envolvidas, além de nem todas serem exportadoras, não são, em sua maioria, de capital aberto. Logo, seus prejuízos apenas são revelados quando elas ingressam com processos judiciais, contestando a legitimidade 229


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

dos contratos de derivativos firmados junto a grandes instituições financeiras. Dois exemplos são o grupo Arantes e a Tok & Stok, cujos casos foram divulgados após recorrerem ao Judiciário. As perdas do grupo Arantes com as operações supracitadas foram estimadas entre R$ 200 milhões e R$ 250 milhões e foram citadas como uma das razões para o pedido de concordata da empresa. Com efeito, as dificuldades em refinanciar dívidas em função das restrições de crédito a impeliram a entrar com pedido de recuperação judicial estimado em aproximadamente R$ 1,5 bilhão (Rocha, jan. 2009). Também levaram a empresa a suspender o pagamento dos juros devidos aos títulos de dívida emitidos no mercado internacional. A Tok & Stok, por sua vez, buscava evitar um prejuízo de até R$ 55 milhões com o Itaú BBA, resultante dos contratos de derivativos cambiais. A empresa alegou que o banco, a partir da concessão de financiamentos totalizando R$ 29,3 milhões, montou operações de derivativos que associavam os empréstimos à redução da cotação do dólar, de tal forma que se esta permanecesse baixa, a empresa pagaria juros inferiores aos do mercado, e caso ultrapassasse um valor próximo de R$ 2 por dólar, teria de pagar um montante muito superior (Agência Estado, jan. 2009). O fato de as operações de derivativos cambiais das empresas terem sido realizadas no mercado de balcão potencializou seu impacto negativo. A impossibilidade de identificar as empresas e os bancos envolvidos provocou imediato empoçamento da liquidez, fortes quedas nos preços das ações e uma desvalorização suplementar da moeda. Da mesma forma, o efeito dos prejuízos causados pelas operações de derivativos de câmbio das empresas ainda está longe de ser totalmente apreendido. Passada a exacerbação da aversão aos riscos e fuga geral para a qualidade dos investidores internacionais após a falência do Lehman, as acentuadas desvalorizações das moedas de economias emergentes cederam lugar, a partir do final do primeiro trimestre de 2009, a novo processo de valorização. O real brasileiro tem, novamente, se destacado com a maior apreciação entre essas moedas. Caso as posições em derivativos das empresas tivessem se mantido estáticas, os prejuízos anteriores teriam sido meramente contábeis e teriam sido, pelo menos em boa parte, revertidos com a nova onda de apreciação cambial. Mas essas posições modificaram-se fortemente nesse período de crise. Alguns contratos de derivativos venceram entre o quarto trimestre de 2008 e o segundo trimestre de 2009. Muitos outros devem ter sido liquidados antes do vencimento pelo receio de prolongamento e/ou intensificação da tendência de depreciação cambial. Essa liquidação antecipada pode ter ocorrido seja pela realização de outro contrato com posições inversas às inicialmente assumidas, seja por via de acordo com os bancos e pela transformação do contrato de derivativo em empréstimo “clássico” em moeda nacional. Nesse caso, os prejuízos foram definitivamente realizados e incorporados aos balanços e devem pesar na vida futura das 230


Os impactos dos derivativos no Brasil

empresas, reduzindo sua capacidade de investimentos em função da elevação de seu endividamento em relação ao patrimônio. Não há informações claras sobre a evolução no período das posições das empresas em derivativos, com exceção das fornecidas pelas companhias de capital aberto. Assim, os balanços da Sadia e da Aracruz do segundo trimestre de 2009 mostram o impacto financeiro positivo da valorização do real frente ao dólar. Enquanto a Sadia informava que ao fim de junho, não havia contratos com derivativos em aberto, a Aracruz sequer mencionava esses instrumentos financeiros. Esse episódio ressalta a importância de se exigir maior transparência das operações, para que as autoridades reguladoras detenham o conhecimento necessário do que está ocorrendo e dos agentes que estão com posições líquidas “compradas” ou “vendidas”. Conforme salienta Lessa (nov. 2008), “todos que tivessem haveres ou deveres em moeda estrangeira deveriam registrá-las no BCB. Não podemos dormir num dia com Sadia, Aracruz, Votorantim e Vicunha em boa situação e descobrir, pela manhã, que nem elas próprias sabem a extensão das suas perdas”. O certo é que, embora no Brasil, já houvesse o registro centralizado de operações com derivativos financeiros negociados em mercados de balcão, a questão dos derivativos cambais das empresas tornou clara a existência de problemas de informação e de controle por parte dos organismos de supervisão e regulação. A necessidade de tornar transparentes as posições consolidadas de cada contraparte nesse tipo de instrumento levou ao projeto de criação de uma central de risco de derivativos, atualmente em discussão com a participação do Banco Central do Brasil, da CVM, da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da Cetip, da Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro (Andima) e de alguns bancos (Pavini e Carvalho, mar. 2009). A Circular 3.474 do Banco Central de 11/11/09 determina o registro obrigatório de derivativos vinculados a recursos captados no exterior. Essa medida vale para qualquer empresa ou banco com derivativos vinculados a captações no exterior. Estimativas feitas pelo próprio BC apontam que cerca de 5% das captações realizadas no exterior tenham essa característica. Por seu lado, o Comitê de Práticas Contábeis (CPC) aprovou mudanças na contabilização dos derivativos, incluindo a obrigatoriedade de reconhecer posições nesses instrumentos nos balanços. Mas só parte dessas mudanças deverá ser implantada pelo CPC em 2009. Mas outras mudanças serão necessárias, em conformidade com as regras de supervisão e regulação que vêm sendo sugeridas em diversos países desenvolvidos para o mercado internacional de derivativos de balcão. Diversas outras medidas podem ser cogitadas para reduzir ao impacto dos derivativos na taxa de câmbio nominal da moeda brasileira, como: • alteração na Res. Nº 2.689 de 26 de janeiro de 2000, introduzindo limites para as posições dos investidores não residentes nos mercados de derivativos; 231


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

• elevação do custo da participação dos investidores estrangeiros nos mercados de derivativos (margem de garantia) e obrigação de que o pagamento seja efetuado em garantia e não mais em títulos públicos federais; • introdução de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre operações de investidores estrangeiros em derivativos. Essa tributação incidiria sobre o valor nocional das operações e constituiria mais um custo de transação que seria cobrado no início da operação junto com as taxas de intermediação e os emolumentos da Bolsa de Mercadorias & Futuros. Bibliografia AGÊNCIA ESTADO. Entenda as operações de derivativos e suas consequências. Agência Estado, São Paulo, 28.10.2008. __________. Tok & Stok é vítima dos derivativos. Agência Estado, São Paulo, 25.1.2009. BIS (1995)- Issues on measurement related to market size and macroprudential risks in derivatives markets. Basileia, Suíça. Disponível em http://www.bis.org/ publ/ecsc05.pdf BIS (2009) – Quarterly Review, junho 2009, Disponível em :http://www.bis.org/ publ/qtrpdf/r_qt0906.pdf?noframes=1 BLACKBURN, Robin. The Subprime crisis, New Left Review, n.50, London, Mar./Apr. 2008, p.63-106. BOURGUINAT, H.: La Tyrannie des marchés : essai sur l’économie virtuelle, Économica, Paris, 1995 BURNSIDE, C.; EICHENBAUM, M.; KLESHCHELSKI, I.; REBELO, S. The returns of currency speculation. Cambridge: National Bureau of Economic Research, aug., 2006 (Working Paper 12489). CINTRA, Marcos Antonio Macedo, PRATES, D. M.; As Repercussões da Crise Financeira sobre os Países em Desenvolvimento. Anais do II Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira, Porto Alegre, 2009. CHIARINI, A. Exposição a derivativos cai à metade: US$ 20 bi. Agência Estado, São Paulo, 29 Oct. 2008 DENNIS, B. A meek ending for mighty unit that gutted A.I.G, The Washington Post, 21/02/2009. Disponível em http://www.washingtonpost.com/wpdyn/ content/article/2009/02/20/AR2009022003304.html FARHI Maryse e BORGHI, Roberto A.Z. Operações com derivativos financeiros das corporações de economias emergentes, Estudos Avançados, Vol. 23, nº 66, pg 169/182, São Paulo, agosto de 2009. FOLHA DE S. PAULO. Juros ao Consumidor devem cair mais rápido. Entrevista com Henrique Meirelles, Folha de S. Paulo, São Paulo, 13/09/2009. Caderno Dinheiro, p.B6. FREITAS, Maria Cristina Penido de. Os efeitos da crise global no Brasil: aversão ao risco e preferência pela liquidez no mercado de crédito. Revista Estudos Avançados 23 (66): 125-45, 2009. São Paulo. GROUP OF THIRTY: Derivative products: practices and principles, New York, 1993. 232


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A economia política das holdings financeiras no Brasil Ana Tercia Sanches1 Ana Carolina Tosetti Davanço2

A economia política das holdings financeiras está associada ao modo como os administradores fazem suas escolhas de gestão em determinado tempo histórico e como isso afeta a dinâmica das relações socialmente estabelecidas. As mudanças ocorridas no sistema financeiro brasileiro, a partir da década de 1980, influenciadas pelo padrão de acumulação capitalista internacional, refletiram decisões e prioridades que se fizeram orientadas sob o princípio da maior criação de valor e retorno aos seus acionistas e investidores. Nesse sentido, o sistema financeiro passou por diversas transformações na sua forma de operar, adotando estratégias vinculadas a segmentação, desenvolvimento tecnológico, expansão de mercados, obtendo ganhos de escala e escopo, realizando fusões e aquisições que se refletiram na tanto na relação com seus investidores e acionistas, bem como impactaram outros grupos sociais como empregados e clientes destas instituições. Este artigo busca indagar sobre alguns aspectos que demarcam a concentração de poder exercido pelos conglomerados e holdings financeiras e como suas políticas pautadas pela lógica do curto prazo perpassam as relações com os stakeholders. Assim, a primeira seção procura resgatar elementos da trajetória recente do setor bancário, as principais estratégias adotadas pelos gestores, enfatizando neste processo a formação dos conglomerados e holdings financeiras. A segunda seção pretende estabelecer nexos entre as políticas de governança corporativa, tão disseminadas na contemporaneidade, e algumas das práticas de gestão analisadas no sistema financeiro brasileiro, como por exemplo, a remuneração de administradores, publicação de informações e transparência diante de conflitos de interesse que emergem na relação das diversas partes envolvidas. A terceira seção busca aprofundar como se dão os impactos das políticas implementadas pelas holdings financeiras em alguns grupos escolhidos – empregados, terceirizados e clientes – diante das relações assimétricas de poder estabelecidas. A última seção apresenta as considerações finais. 1 Mestre em Ciências Sociais e Diretora da Secretaria de Estudos Socioeconômicos do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região.(anatercia@spbancarios.com.br) 2 Economista da Subseção DIEESE-Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região. (anacarolina@spbancarios.com.br)

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Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

1. Trajetória recente do setor bancário 1.1. A segmentação como estratégia O quadro mais amplo em que se inscreve a política econômica dos conglomerados e holdings financeiras no Brasil é moldado pela fase de acumulação do capital pautada pela financeirização das economias em escala global (Chesnais,1998). Nesse cenário, observa-se um movimento de revalorização das práticas voltadas à especulação, com preferência à liquidez em detrimento dos investimentos de longo prazo. Os governos e empresas dos diversos países passam a conviver com as constantes atualizações e revisões no seu jeito de administrar e orientam suas decisões conforme a resposta que “necessitam” dar às exigências desse novo padrão de acumulação. A trajetória do setor bancário desde os anos 1980 no Brasil está marcada pelas novas formas de adaptação ao reordenamento do capitalismo mundial, principalmente a partir da abertura econômica no governo Collor e da implementação das políticas de orientação liberal. Com a abertura financeira, desde 1995 o setor vivencia uma nova onda de reestruturações sendo influenciado pela concentração do capital e pela imposição de uma regulação internacional como a promovida pelo Acordo de Basileia3. A concentração reforçou a atuação dos bancos múltiplos e alterou a relação com os clientes. Também modificou o perfil de contratação dos bancários, implicou a promoção em larga escala da automação e informatização com consequências nas formas de gestão da força de trabalho e dos processos internos. Além disso, desencadeou um processo significativo de fusões e aquisições, parte delas via privatizações com o aumento da participação do capital estrangeiro. Atualmente, os ativos do setor financeiro no Brasil estão concentrados em praticamente seis grandes conglomerados. Durante muitos anos, os bancos obtiveram altos lucros derivados das expressivas taxas de inflação, observados desde a década de 1980 até a implantação do Plano Real em 1994. As mudanças no cenário econômico nacional, mais destacadamente a queda de ganhos financeiros derivados dos altos índices de inflação, impeliram as instituições financeiras a reorganizar suas estruturas operacionais e reformular estratégias comerciais consolidando uma nova fase na gestão de seus ativos. Além de diversificarem o mix de produtos e serviços financeiros ofertados, optaram pelo financiamento da dívida pública concentrando deliberadamente grande volume de seus recursos nas operações de tesouraria em função das atrativas taxas de juros praticadas no país. Nos anos 1990, no cenário de baixos índices inflacionários, os ganhos com a 3 O Acordo de Basileia é um documento internacional que define os princípios fundamentais de supervisão bancária. É uma referência para órgãos supervisores e outras autoridades públicas em todos os países signatários.

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A economia política das holdings financeiras no Brasil

venda de tais produtos conquistaram grande importância nos resultados dos bancos. Progressivamente houve uma série de investimentos voltados para a diversificação e segmentação desses produtos para clientes e posteriormente não-clientes (não-correntistas) das instituições. Este redirecionamento de atuação gerou ganhos de escala e escopo, conforme apresentam Faria, Paula e Marinho (2006). A ampliação e a diversificação da cesta de produtos e serviços proporcionaram a redução do custo administrativo unitário médio por transação e foram responsáveis pela geração de uma nova e potencial fonte de receitas advindas das tarifas bancárias. A dinâmica concorrencial do setor financeiro conduziu à segmentação do atendimento entre pessoas físicas e jurídicas e, ainda, segundo a faixa de rendimentos ou porte da empresa, como mostrado no Gráfico 1 abaixo: Gráfico 1: Exemplo de Segmentação dos Clientes

Fonte: Relatório Anual do Bradesco 2008 e Formulário 20-F Bradesco. Elaboração própria.

Os investimentos em tecnologia, que se iniciaram em função da necessidade dos bancos de operar numa economia com altas taxas de inflação, tiveram continuidade após a estabilização monetária, e levaram o sistema financeiro brasileiro a se tornar vanguarda no plano internacional. Como expressão dessa condição, o Brasil foi sede de diversos Congressos Internacionais de Automação Bancária (Ciabs). Nas agências e centros administrativos bancários refletiam-se os investimen237


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

tos feitos em tecnologia, fundamentais para consolidar os canais alternativos de atendimento (Cardim, 2007). Assim, uma grande quantidade de caixas eletrônicos foi espalhada por todo o território nacional e ao mesmo tempo foram ampliados e consolidados outros canais de atendimento alternativos às agências tradicionais, via telefone, internet e celular. Tabela 1: Canais de Atendimento Bancário

1996

2000

2007

2008

1996/2008

16.484

16.590

18.572

19.142

16,1%

Postos Tradicionais

9.229

9.495

10.555

11.661

26,4%

Postos Eletrônicos

5.762

15.639

34.669

38.710

571,8%

-

13.731

95.849

108.074

687,1%

Agências 1

Correspondentes

2

Fonte: Relatório Social da Febraban. (1) Para o período de 1994 refere-se a PAB e PAP e para os demais PAA, PAB, PAC, PAM, PAP, PCO e Unidades administrativas. (2) A variação sobre correspondentes refere-se a 2000/2008.

Em 1999, contribuiu para a estratégia de segmentação lançada pelas instituições financeiras a autorização do Banco Central para a contratação de empresas de diversos ramos de atividade econômica na figura do chamado correspondente bancário, com o objetivo de expandir o atendimento para a população das classes de renda D e E. O correspondente bancário se espalha com velocidade pelo território nacional desde que o projeto teve início (ver Tabela 1) devido ao seu baixo custo de implantação. A ideia propagada pelo governo federal no lançamento desse projeto foi sustentada por um discurso de cunho social que levaria atendimento bancário aos rincões do país, defendendo assim a inclusão de grande parte da população brasileira sem acesso aos serviços bancários. A proposta foi utilizada pelos bancos para atender à população de baixa renda com menor custo, inclusive como forma de diminuir a sobrecarga imposta às agências bancárias nas regiões mais desenvolvidas e com renda média elevada.

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A economia política das holdings financeiras no Brasil Gráfico 2: Serviços oferecidos pelos correspondentes bancários

Fonte: TNS InterScience

No início do processo de implementação, a função do correspondente bancário permitia a prestação de serviços de recepção e encaminhamento de propostas de aberturas de contas, bem como recebimentos e pagamentos decorrentes de convênios somente para municípios desassistidos de agências bancárias e de postos de atendimento convencionais. Com o passar dos anos, novas resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) foram ampliando os limites de atuação dos correspondentes bancários permitindo, a partir do ano de 2003, o estabelecimento de contrato de prestação de serviços a terceiros, total ou parcialmente, possibilitando uma espécie de “quarteirização”, na medida em que a empresa já subcontratada por determinado banco pode recorrer a outra que, enfim, prestaria os serviços. Nenhuma das duas teria, obrigatoriedade, de integrar o sistema financeiro. Isso fez com que o setor de comércio varejista (mercados, lojas, farmácias etc.) se tornasse parceiro primordial para dar capilaridade ao atendimento bancário nos segmentos de mais baixa renda no país. As agências da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos também assumiram papel relevante: por meio delas se popularizou o Banco Postal, projeto de segmentação para clientes de baixa renda de um grande banco privado nacional. 1.2. Em grupo e com mais poder Ainda entre as estratégias de crescimento e segmentação de produtos financeiros, as instituições bancárias passaram a demonstrar também maior interesse por outras empresas do setor, apostando que alguns segmentos – como seguros, cartões de crédito, capitalização, leasing, administração de consórcios e investimentos – aumentariam significativamente seus lucros. Para diversificar suas atividades por intermédio das empresas subsidiárias e manter o controle da gestão dessas empresas, os bancos passaram a se organizar 239


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

em conglomerados financeiros e holdings trazendo ganhos de sinergia nas estruturas administrativas, maior poder de negociação com fornecedores e passaram a agregar valor à sua imagem com a consolidação da marca mais forte. Essas mudanças na organização foram fortemente favorecidas pelas inovações tecnológicas e pelos processos frequentes de ampliação da terceirização dos serviços bancários e financeiros para as diversas empresas, dentro ou fora dos próprios conglomerados. Destas estratégias deriva a otimização do fluxo produtivo entre empresas, o que trouxe maior retorno ao negócio do setor. Isso ocorre a despeito dos prejuízos remanescentes aos trabalhadores envolvidos – como observaremos na seção 3 deste artigo – e do repasse de partes do trabalho, antes realizado por um bancário para o próprio cliente, tendo este, ainda assim, acrescido para si a cobrança de tarifas derivadas dos usos tecnológicos, entre os quais podemos citar a utilização do caixa eletrônico, atendimento via telefone e internet. A empresa líder de um conglomerado é a responsável pela elaboração e entrega ao Banco Central das demonstrações financeiras consolidadas4 (www.bcb.gov.br/ glossario). A escolha da instituição no comando se dá de acordo com sua importância entre as demais empresas e em geral segue-se a seguinte ordem: 1) banco múltiplo; 2) banco comercial; 3) banco de investimento; 4) sociedade de crédito, financiamento e investimento; 5) sociedade de crédito imobiliário; 6) sociedade de arrendamento mercantil; e 7) sociedade corretora de títulos e valores mobiliários. Existe um outro tipo de conglomerado em que uma empresa é criada exclusivamente para controlar todas as outras: trata-se do modelo holding, mas, mesmo nesse caso, a empresa líder perante o Banco Central continua sendo a mais importante, o banco múltiplo. A holding tem a finalidade de manter o controle da administração e das políticas das empresas que controla. Cabe a ela o planejamento estratégico, financeiro e jurídico dos investimentos do acionista controlador, devendo principalmente prestar serviços que as empresas não puderem executar com eficiência – ver Lodi e Lodi (2004). Uma holding pode ser vista também como o elo entre o empresário, sua família e o seu grupo patrimonial, facilitando soluções referentes a herança, sucessão e outras disposições do acionista controlador. Como exemplo desse tipo de estrutura, segue abaixo uma lista de empresas controladas pela Itaú Unibanco Holding, extraída do “Formulário 20-F” que é enviado à Securities and Exchange Commission (SEC), órgão de regulamentação nos EUA, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários no Brasil.

4 Conforme site do Banco Central do Brasil.

240


A economia política das holdings financeiras no Brasil Tabela 2: Lista de subsidiárias controladas pela Holding (Em Dezembro/2008)

País de Constituição Porcentagem do Capital votante Afinco Américas Madeira, SGPS, Soc. Unipessoal Ltda

Portugal

100,00%

Banco Fiat S.A.

Brasil

99,99%

Banco Itaú Argentina

Argentina

100,00%

Banco Itaú BBA S.A.

Brasil

99,99%

Banco Itaú Chile S.A.

Chile

99,99%

Banco Itaú Europa Luxemburg S.A.

Luxemburgo

99,98%

Banco Itaú Europa S.A.

Portugal

99,99%

Banco Itaú Uruguay S.A.

Uruguai

100,00%

Banco ItauBank S.A.

Brasil

100,00%

Banco Itaucard S.A.

Brasil

99,99%

Banco Itaucred Financiamentos S.A.

Brasil

99,99%

Banco Itauleasing S.A.

Brasil

100,00%

Cia Itaú de Capitalização

Brasil

99,99%

FAI – Financeira Americanas Itaú S.A. Crédito, Financiamento e Investimento

Brasil

50,00%

Fiat Administradora de Consórcios Ltda. Brasil

99,99%

Financeira Itaú CBD S.A. Crédito, Financiamento e Investimento

Brasil

50,00%

Itaú Administradora de Consórcios Ltda. Brasil

99,99%

Itaú Bank Ltda.

Ilhas Cayman

100,00%

Itaú Corretora de Valores S.A.

Brasil

99,99%

Itaú Seguros

Brasil

100,00%

Itaú Unibanco S.A.

Brasil

98,67%

Itaú Vida e Previdência S.A.

Brasil

99,99%

Itaubank Leasing S.A. Arrendamento Mercantil

Brasil

99,99%

Itaúsa Export S.A.

Brasil

100,00%

Oca Casa Financiera S.A.

Uruguay

100,00%

Orbitall Serviços e Processamento de Informações Comerciais S.A.

Brasil

99,99%

Fonte: Formulário 20-F do Itaú Unibanco Holding S.A.

Nos resultados consolidados, pode-se verificar que as receitas obtidas com prestação de serviços refletem a importância dos diversos produtos financeiros

241


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

veiculados pelas empresas subsidiárias. Como pode ser observado na Tabela 3, esta receita já tem até ultrapassado o resultado bruto da intermediação financeira (que engloba o resultado bruto de crédito, as operações com títulos e valores mobiliários, além de outras operações de intermediação) e ganha destaque significativo na composição do lucro. Tabela 3: Receita de Prestação Serviços X Resultado Bruto da Intermediação Financeira (Em reais mil)

Bancos

RPS

Resultado Bruto

Bradesco

11.215.095

15.772.280

Itaú

11.439.279

10.442.021

Santander

5.374.232

6.905.319

HSBC

2.204.608

3.972.424

Banco do Brasil

11.810.793

12.819.393

Fonte: Demonstração dos Resultados dos Bancos 2008.

Nas notas explicativas ao Demonstrativo dos Resultados do Exercício do Itaú Unibanco Holding (Tabela 4), encontra-se a Receita de Prestação de Serviços. Neste exemplo específico destaca-se a renda com atividades relacionadas aos cartões de crédito, que assim como em outras receitas está sob comando de uma subsidiária controlada pela holding. Tabela 4: Receitas de Prestação de Serviços (Em Dezembro/2008)

Em R$ Mil

Em Percentual

Administração de Recursos

1.967.561

22,15%

. Administração de Fundos

1.939.974

21,84%

. Administração de Consórcios

27.587

0,31%

Serviços de Conta Corrente

275.604

3,10%

Cartões de Crédito

3.018.976

33,98%

. Anuidades

723.571

8,14%

. Demais Serviços

2.295.406

25,84%

Relacionamento com Estabelecimentos

1.887.641

21,25%

Processamento de Cartões

407.765

4,59%

Operações de Crédito e Garantias Prestadas

1.243.528

14,00%

. Operações de Crédito

988.662

11,13%

. Garantias Prestadas

254.866

2,87%

Serviços de Recebimento

1.149.193

12,93%

. Serviços de Cobrança

698.066

7,86%

. Serviços de Arrecadações

202.522

2,28%

.Tarifas Interbancárias (títulos, cheques e DOC)

248.605

2,80%

242


A economia política das holdings financeiras no Brasil Outras

1.229.639

13,84%

.Consulta à Serasa

7.438

0,08%

.Serviços de Corretagens e Colocação de Títulos

377.546

4,25%

.Serviços de Custódia e Adm. de Carteiras

150.896

1,70%

.Serviços de Assessoria Econômica e Financeira

172.180

1,94%

.Serviços de Câmbio

72.509

0,82%

.Outros Serviços

449.070

5,05%

Total

8.884.501

100,00%

1

Fonte: Demonstração dos Resultados do Relatório Anual do Banco Itaú Unibanco. * Com exceção das tarifas de conta corrente. Elaboração própria.

2. Tempos de governança corporativa Anteriormente aos processos de privatização, globalização e profissionalização da administração dos negócios, os acionistas também eram gestores. Mais recentemente, seguindo as novas exigências do mercado financeiro internacional, as grandes empresas optaram pela separação entre propriedade e gestão e, assim como a organização em holding, o termo “governança corporativa” passou a ter destaque entre investidores. A governança corporativa compreende uma série de princípios e regras que orientam a gestão com foco no relacionamento entre os diversos grupos que compõem uma empresa, principalmente os acionistas, os auditores independentes e executivos liderados pelo conselho de administração. Os valores centrais atrelados ao termo são: equidade, transparência, responsabilidade pelos resultados (accountability) e obediência às leis do país (compliance). Questões sobre responsabilidade socioambiental ou obrigações de longo prazo com os empregados, fornecedores e clientes também estão relacionados (IBCG, 2009). Conflitos de interesses resultantes da separação entre propriedade e gestão decorrentes da tomada de decisão sobre os retornos de investimentos no curto ou longo prazo foram evidenciados por Grinblatt e Titman (2005). Segundo os autores, os administradores, que devem representar os interesses dos acionistas, são impelidos a buscar resultados no curto prazo em relação ao preço das ações. Assim, deixam de assumir projetos de investimentos de longo prazo que gerem fluxos de caixa ou lucros iniciais baixos. De fato, o contexto econômico de globalização, desregulamentação e crescimento dos mercados financeiros tem levado as empresas a buscar resultados com investimentos em ativos líquidos que apresentem valorização no curto prazo em detrimento de projetos de investimento e expansão de longo prazo. Neste sentido prevalecem decisões de maximizar o valor acionário das empresas com retorno rápido para o acionista, mas sem a mensuração adequada do grau do risco das operações, colocando em segundo plano a sustentabilidade da empresa. Ainda sobre os conflitos de interesses pesam as decisões desagradáveis, impopulares, que são exigidas dos administradores. Entre as ações promovidas estão 243


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

cortes de investimentos, reestruturações e demissões. Coloca-se sobre essa questão o próprio conflito vivido pelo gestor, como alguém que também pode se “alinhar” com as outras partes participantes5. As decisões dos administradores afetam diretamente seus acionistas e demais (stakeholders) no ambiente global por onde se define a atuação da empresa. Assim, observamos uma contradição de outro tipo, aquela que coloca no centro determinados interesses da corporação versus empregados e comunidade envolvida. Os investidores – com o objetivo de manter administradores, executivos e representantes do conselho de administração mais motivados e convencidos dos seus interesses de curto prazo – adotam práticas de remuneração para essas pessoas, atreladas à distribuição de ações e ou pagamento de bônus com base nos resultados do exercício. A expansão desse tipo de remuneração foi tão ostensiva que, nos EUA, a Securities and Exchange Commission (SEC) passou a exigir que as empresas de capital aberto divulgassem o pacote completo da remuneração paga a seus executivos e conselho de administração, vinculando isto à valorização das políticas de boa governança corporativa com apelo pela transparência na gestão. Alguns conglomerados e holdings financeiras brasileiras emitiram ações (ADRs) na Bolsa de Nova York e passaram a divulgar, por meio do Relatório Anual exigido pela SEC, denominado “Formulário 20-F”, informações relativas ao pagamento dos altos executivos. Trata-se de quantias bem expressivas, mas não se pode saber ao certo como são compostas e distribuídas individualmente, haja visto que estas informações detalhadas não têm sido divulgadas. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa no Brasil (IBGC, 2009) ao tratar da remuneração dos administradores orienta a divulgação destas informações ressaltando: • divulgar a remuneração individualmente ou, ao menos, em bloco separado daquele relativo à remuneração da gestão; • caso não haja divulgação dos valores individuais pagos aos conselheiros, a organização deve justificar sua opção de maneira ampla, completa e transparente. Deve, ainda, destacar pelo menos a média dos valores pagos, além do menor e do maior valor com as respectivas justificativas para essa disparidade, se houver; • a divulgação deve incluir todo tipo de remuneração recebida pelos conselheiros, como, por exemplo: 1) salários; 2) bônus; 3) todos os benefícios baseados em valores mobiliários, em especial os baseados em ações; 4) gratificações de incentivo; 5) pagamentos projetados em benefícios pós-emprego, em programas de aposentadoria e de afastamento; e 6) outros benefícios diretos e indiretos, de curto, médio e longo prazos; • devem ser divulgadas as metas e métricas de eventual remuneração variável, que devem ser mensuráveis, passíveis de serem auditadas e publicadas. As regras inerentes às políticas de remuneração e aos benefícios aos adminis5 No jargão administrativo as partes envolvidas são denominadas stakeholders, e incluem empregados, fornecedores, clientes, governos, ONGs e comunidade.

244


A economia política das holdings financeiras no Brasil

tradores, incluindo os eventuais incentivos de longo prazo pagos em ações ou nelas referenciados, devem ser divulgadas e explicadas. As remunerações pagas a executivos dos conglomerados e holdings, sobretudo as vinculadas ao setor financeiro internacional, têm sido questionadas com mais assiduidade após a recente crise que teve como pico a falência de bancos norte-americanos no final de 2008. Diversas instituições financeiras têm sido pressionadas por pagarem altas quantias a seus executivos. Nos EUA, os valores pagos a título de gratificação ou bônus “respondem por 25% a 50% da remuneração total” desses executivos (Valor Online, em 27 de julho de 2009). No Brasil, segundo dados disponibilizados nas notas explicativas da administração às demonstrações financeiras consolidadas, observamos que os pagamentos direcionados aos administradores a título de remuneração fixa e encargos representam entre 39,71% e 57,45% do montante recebido. Tabela 5: Composição da Remuneração Anual dos Administradores (Em Dezembro/2008)

Remuneração Anual

Bradesco1

Itaú2

Remuneração/Proventos

103.782.000

Outros (INSS/FGTS)

75.894.000

Participações nos lucros/ Gratificações

146.636.000 32,41%

120.602.000 20,75%

Planos de aposentadoria

126.133.000 27,88%

24.584.000

Remunerações baseadas em ações Remuneração Total

39,71%

n.d.

-

452.445.000 100,00%

333.892.000 n.d.

57,45%

4,23%

102.088.000 4,23% 581.166.000 100,00%

Fonte: Demonstrações Financeiras das Instituições. Elaboração própria. Notas: (1) O Bradesco possuía 28 administradores, sendo 9 conselheiros e 19 diretores. Um administrador faz parte da diretoria e do conselho de administração concomitantemente. (2) O Itaú possuía 30 administradores, sendo 14 conselheiros e 16 diretores. Três administradores fazem parte da diretoria e do conselho de administração concomitantemente; (n.d.) = Não divulgou.

De forma geral, o movimento de abertura do mercado financeiro acentuou a preocupação dos acionistas em torno das boas práticas de governança corporativa como formas autênticas de controle à distância. Neste escopo são enfatizados aspectos relativos à transparência das informações, com demonstração farta de resultados contábeis e explicitação dos modos administrativos operados para se chegar ao objetivo principal, que é a valorização de suas ações e o consequente retorno financeiro. Em contraposição ao princípio enunciado acima, Grinblatt e Titman (2005) destacam que “os lucros que podem ser tirados facilmente das demonstrações de 245


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

resultados são números contábeis que incluem vários ajustes para os métodos de avaliação de estoque (...) podendo não fornecer uma medida muito confiável do desempenho de uma empresa” (idem, p.540). Uma retrospectiva a respeito de fatos recentes nos mercados leva a crer que, a exemplo do que ocorreu em grandes empresas, como a Enron e Worldcom, a manipulação dos números contábeis de fato existe e pode abalar mercados. Entretanto, para além dessas práticas fraudulentas pode-se perceber que as crises de fato ocorrem porque o conjunto das ações está submetido aos interesses restritos e de curto prazo em detrimento do planejamento de longo prazo. Portanto, restringir o ganho dos executivos ou resgatar os princípios da governança corporativa para coibir decisões arriscadas no curto prazo é importante, mas não suficiente para regular o mercado e estabilizar o sistema financeiro. 2.1. A apuração do lucro em instituições financeiras e a aplicação das regras da governança corporativa A consolidação das demonstrações financeiras tornou ainda mais complexa a análise do lucro e da atuação dos bancos inseridos nos conglomerados e nas holdings financeiras. Isso ocorreu porque os lucros passaram a refletir quantidade maior de participações de resultados advindos de empresas diversas, o que acaba por dificultar ainda mais a interpretação dos dados. As empresas e conglomerados financeiros atuam em duas pontas. Em primeiro lugar incorporaram internamente a forma de gestão descrita acima. Em segundo, mas não menos importante, contribuem diretamente na intermediação dos títulos e ações emitidos ou adquiridos por empresas de todos os segmentos da economia, contribuindo para o funcionamento do mercado financeiro. As instituições financeiras no Brasil, assim como outras empresas, promovem ajustes em seus balanços contábeis e apresentam lucros diferentes buscando contemplar interesses distintos. A divulgação do resultado de um conglomerado financeiro de origem estrangeira serve como exemplo do que tem ocorrido. O lucro líquido desta instituição, publicado e auditado para o terceiro trimestre de 2009, foi de R$ 1,420 bilhão. No mesmo documento em que se auferiu o lucro acima mencionado, preparado de acordo com normas de contabilidade brasileira, encontram-se as informações financeiras denominadas “pró-forma”, segundo as quais a instituição afirma ter encerrado os nove primeiros meses de 2009 com lucro líquido de R$ 2,914 bilhões. Ainda de acordo com a empresa, esse documento estava sendo apresentado “para permitir um melhor entendimento da evolução das informações financeiras do Santander, tendo em vista a integração do Conglomerado Banco Real no conglomerado financeiro e econômico-financeiro Santander... As informações financeiras do Santander Pró-Forma não representam o que poderia ter ocorrido se a operação de 246


A economia política das holdings financeiras no Brasil

incorporação de ações tivesse acontecido anteriormente, bem como não correspondem às demonstrações do Santander e nem necessariamente indicam resultados futuros”6. Isso demonstra o quão relativo podem ser os dados apresentados e em que medida o excesso de informações pode levar a uma dificuldade maior de análise, ao contrário do que se pretende. Entretanto, tempos depois, a empresa publicou um novo Demonstrativo do Resultado do Exercício (DRE), ainda referente ao mesmo período, no qual o lucro líquido apurado foi de R$ 3,917 bilhões, configurando assim a apuração de um terceiro resultado. Segundo os auditores responsáveis isso ocorreu porque “as práticas contábeis adotadas no Brasil diferem, em certos aspectos, das normas internacionais de contabilidade”7. Já nas Demonstrações Consolidadas Condensadas do Fluxo de Caixa não Auditadas um quarto resultado aparece (Tabela 6), publicado no mesmo relatório em que também é divulgado o DRE citado acima, constam ajustes ao lucro no valor de R$ 7,850 bilhões. Para se ter ideia da grandeza dessas alterações, elas representam um montante de duas vezes o último lucro divulgado, que se considerados os ajustes passa a ser de R$ 11,767 bilhões (grifo nosso). Tabela 6: Ajustes ao Lucro Líquido (Em reais mil)

Fluxo de Caixa das Atividades Operacionais

30 de Setembro de 2009

Lucro líquido consolidado do período

3.917.456

Ajustes ao lucro do período

7.850.222

Depreciação do ativo tangível

338.098

Amortização do ativo intangível

495.698

Perdas com outros ativos (líquidas)

860.281

Perdas com empréstimos e recebíveis e provisões (líquidas)

10.983.292

Ganhos/líquidos na alienação do ativo tangível e investimentos

(3.415.538)

Participação no resultado de equivalência patrimonial

(289.640)

Impostos

(1.121.969) 11.767.678

Fonte: Demonstrações Consolidadas Condensadas do Fluxo de Caixa não auditadas dos Períodos Findos em 30 de setembro de 2009 das Demonstrações Financeiras Condensadas Preparadas de acordo com normas de contabilidade internacional IFRS do Banco Santander (Brasil).

Amortizações aceleradas de ágio realizadas de acordo com resoluções emitidas pelo CMN, abertura do capital e venda de ações de empresas que pertenciam 6 Demonstrações Financeiras Consolidadas Preparadas de acordo com normas de contabilidade Brasileiras do Banco Santander (Brasil). Emitida em 30 de setembro de 2009. 7 Demonstrações Financeiras Condensadas Preparadas de acordo com normas de contabilidade Internacional IFRS do Banco Santander (Brasil) S.A. Emitida em 30 de setembro de 2009.

247


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

aos bancos como Redecard, BMF e Bovespa, a mais recente onda de grandes fusões, dentre outros eventos, desencadearam uma série de ajustes nos lucros contábeis de todas as grandes instituições financeiras no Brasil. Observando a Tabela 6, verifica-se que entre os ajustes mais significativos estão as “Perdas com empréstimos, recebíveis e provisões (líquidas)”. São reservas feitas no ato da concessão em função do crédito concedido, para fazer frente a uma estimativa de inadimplência. Portanto, reduzem contabilmente o lucro, mas não afetam o caixa caso a inadimplência não se confirme. O CMN e o Banco Central impõem aos bancos um valor mínimo de provisão a ser cumprida, mas deixam as instituições livres com relação ao teto desses valores. Com tantos ajustes na contabilidade das instituições financeiras, qual dos lucros reflete melhor o resultado da gestão da empresa? Seja qual for o valor utilizado, ao acionista sempre é garantido o pagamento mínimo obrigatório, estabelecido pela Lei das Sociedades Anônimas, de 25% do lucro líquido. Para os trabalhadores, que também possuem parte de sua remuneração com base nos lucros, fica estabelecido na Convenção Coletiva de Trabalho um limite de 15% de distribuição do lucro líquido, o que prejudica os trabalhadores quando os ajustes ao lucro são feitos para baixo. Esse fato tem levado a acirrados conflitos, solucionados algumas vezes por meio de acordos específicos e não solucionados por outras vezes. 3. Stakeholders no terreno da governança corporativa A política de responsabilidade social propagada pelas holdings financeiras diz considerar a totalidade da cadeia de relacionamentos estabelecendo estratégias específicas para todas as partes interessadas captando e atendendo, assim, às necessidades e expectativas dos públicos diversos. Destacaremos a seguir como alguns grupos que interagem no ambiente corporativo são impactados diante dos efeitos da gestão orientada pela lógica de curto prazo. 3.1. Empregados A organização em holding ou conglomerado também se reflete na distribuição dos funcionários. No final de 2008, um grande conglomerado privado nacional tinha 86.622 funcionários, dos quais 69.411 estavam empregados nos bancos e os outros 17.211 estavam distribuídos entre as atividades de seguros (5.217), previdência complementar (1.657), em outros segmentos não especificados (10.337). Embora façam parte do mesmo grupo e contribuam para um resultado consolidado, esses trabalhadores possuem Contratos Coletivos de Trabalho diferentes, pois são representados por vários sindicatos. As garantias mínimas de contratação, portanto, podem destoar no piso, nos benefícios e na remuneração variável em seus valores e no formato de distribuição. 248


A economia política das holdings financeiras no Brasil

O principal canal de distribuição dos produtos e serviços desenvolvidos pelas empresas subsidiárias que compõem o grupo ainda é a rede de agências bancárias. Através delas os empregados ofertam aos clientes: processamento de pagamentos e cobrança, cartões de crédito, gestão de ativos, comercialização de serviços de arrendamento mercantil, serviços de corretagem, consórcio, seguros e previdência. O elevado montante advindo das vendas de produtos e serviços junto com as diversas tarifas compõem a receita de prestação de serviços, já apresentada anteriormente na Tabela 3. Essa proporção revela a mudança no perfil de atuação destas instituições, já que o resultado bruto da intermediação financeira é composto pelo resultado de operações de crédito e intermediações de títulos e valores mobiliários que, no passado, se caracterizavam como as atividades mais importantes deste setor. A venda dos produtos financeiros passou a ter reflexos importantes na rotina do trabalho bancário, em especial para os empregados da rede de agências. Em muitos relatórios da administração, as agências passaram a ser denominadas “pontos de vendas”. 3.1.1. Os Programas de Remuneração Variável As mudanças na estratégia comercial e operacional dos bancos contribuíram para a alteração do perfil dos trabalhadores e também incentivaram a expansão e o aprimoramento dos programas de remuneração variável. Sob a ótica dos objetivos da empresa com a relação à implantação de tais programas pode-se afirmar que não existem diferenças significativas nas práticas das instituições financeiras. Estes programas são baseados na meritocracia e pretendem sobretudo descaracterizar a remuneração do trabalho como uma verba fixa atrelada à jornada e transformá-la em algo que varia segundo o desempenho individual. A remuneração variável leva ao acirramento da competição entre os próprios funcionários, gerando um clima comprovadamente desfavorável à saúde deles. Os reflexos decorrentes da pressão para cumprimento de metas difíceis de serem atingidas são perceptíveis no aumento do número de doenças relacionadas ao esgotamento mental e físico. Os casos mais frequentes são de nível elevado de estresse entre os trabalhadores8. Sobre os pagamentos efetuados a título de remuneração variável não incidem encargos sociais e trabalhistas – associados, desde sua criação, a seguranças mínimas na hipótese de aposentadoria, doença ou demissão. Isso tem representado uma redução dos custos na folha de pagamento para o empregador em torno de 8 Segundo dados do Anuário Estatístico da Previdência Social, os trabalhadores bancários registraram, no período de janeiro a junho de 2009, 3.714 casos de adoecimento somente considerando as doenças relacionadas ao sofrimento mental (CID F) e doenças osteomusculares (LER/DORT-CID M).

249


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

37,5%, incluindo percentuais que incidiriam sobre esses valores, mas não são pagos ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ao Seguro Acidente de Trabalho, entre outros. Os programas de remuneração variável, além de proporcionarem redução nos custos com a folha de pagamento, são instrumentos poderosos para fazer a gestão da força de trabalho. O desempenho de cada funcionário pode ser milimetricamente monitorado por meio deles. A tecnologia da informação é novamente um diferencial fundamental na estratégia dos conglomerados para viabilizar o controle dos processos de trabalho online. É possível medir a produtividade do empregado ou de determinada área a qualquer momento do dia. Os sistemas integrados estendem esse controle a outras empresas prestadoras de serviço – terceirizadas – que, apesar de estarem fora do organograma do grupo, constituem-se como partes essenciais da cadeia produtiva. O potencial de remuneração variável que o funcionário pode atingir está atrelado ao cargo. Quanto mais alto o cargo maior a remuneração potencial, caso cumpra as metas estabelecidas. A definição do que é necessário alcançar está relacionada à hierarquia, já que se entende que o potencial de contribuição para os objetivos gerais da empresa é mais elevado quanto mais alto for o cargo. O programa de remuneração variável de um banco de capital estrangeiro serve como exemplo da promoção da competitividade entre os trabalhadores. Todos os funcionários da rede são classificados e divididos por departamentos conforme a realização das metas estabelecidas. A classificação ocorre de acordo com o desempenho em vendas na unidade de negócios (uma agência, por exemplo). O funcionário é informado diariamente sobre sua posição no ranking. A colocação é dividida em quatro grupos: Ouro, Prata, Bronze e Geral (Ver Tabela 7). Tabela 7: Ranking

Grupo Ouro

20% melhores colocados

Grupo Prata

20% dos que seguem o Grupo Ouro

Grupo Bronze

30% dos que seguem o Grupo Prata

Geral

30% finais

Fonte: Material institucional, Banco Estrangeiro.

Como as metas são definidas e como é feita a avaliação A cada trimestre é divulgada uma lista com produtos que devem ser prioridade nas vendas, o que reflete o dinamismo da área comercial. Esses produtos são foco para a atuação do programa no período. As metas são definidas em um departamento que faz a gestão de informação da rede e são revistas a cada trimestre, podendo ocorrer num curto prazo de tempo o aumento da produtividade. A gestão do Departamento de Recursos Humanos sobre o programa está limitada às determinações da área comercial. 250


A economia política das holdings financeiras no Brasil

Cálculo da remuneração Para o cálculo do valor a ser pago, é considerado o salário. Cada cargo tem um potencial específico definido pelo programa e traduzido em múltiplos do salário-referência podendo ser aumentado de acordo com a classificação no ranking. Um empregado classificado na categoria Ouro pode receber o dobro do potencial estipulado na Tabela 8, na categoria Prata 50% a mais e na Bronze 20% além do que consta na tabela. A Tabela 8 contempla cargos de uma determinada área do conglomerado financeiro analisado. Existem ainda outras trinta e uma subdivisões que contemplam outras áreas e cargos. Tabela 8: Potencial de Pagamentos de Remuneração Variável

Superintendente Comercial Business

Potencial máximo não informado

Superintendente Comercial Pessoa Física

Potencial máximo não informado

Superintendente Administrativo de Rede

Não informado

Superintendente Regional

Não informado

Gerente Comercial Business

7,5 salários

Gerente Comercial Pessoa Física

7,5 salários

Gerente de Recuperação de Crédito Rede

6 salários

Gerente de Negócios Pessoa Física

4,5 salários

Gerente de Negócios Pessoa Jurídica

4,5 salários

Gerente Regional de Atendimento

3,3 salários

Assistentes Regionais

3,3 salários

Analista de Recuperação de Crédito

3 salários

Fonte: Material institucional, Banco Estrangeiro.

3.1.2. A política de crédito e os empregados das agências bancárias A política de crédito dos bancos está voltada para assegurar os níveis de segurança exigidos pelo sistema financeiro internacional e pelo Banco Central do Brasil, minimizando os riscos inerentes às operações, mas, sobretudo, garantindo a rentabilidade nos negócios. Em função dessas questões, as decisões sobre critérios para a fixação de limites operacionais e concessão de créditos passaram a ser mais centralizadas em um tipo de “Comitê de Crédito”, que tem a função de determinar os parâmetros observando as políticas de mercado. Esse comitê, em geral, é composto por poucas pessoas que ocupam cargos de diretoria (como diretor de crédito) ou vice-presidência, além de responsáveis pela área operacional. A diretoria executiva também é responsável por aprovar os sistemas de avaliação que as agências e departamentos utilizam para cada tipo de empréstimo, estabelecendo os limites de alçada definidos de acordo com o porte dessa agência e a garantia oferecida na operação. 251


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

A alçada de crédito da agência é cada vez mais pré-determinada por instâncias superiores. Em um grande banco privado nacional, para clientes pessoa física sem garantias são aprovados, no âmbito das agências de grande porte, somente valores de até R$ 5.000. A Tabela 9 a seguir serve como exemplo do estabelecimento dos limites dentro dos quais os gerentes de agências podem aprovar empréstimos às pessoas físicas, dependendo do valor e do tipo de garantias oferecidas. Tabela 9: Limite de Crédito: autoridade responsável pela decisão (Em R$ 1.000,00)

Sem Garantias Com Garantias Gerente de agência muito pequena

até 5

até 10

Gerente de agência pequena2

até 10

até 20

Gerente de agência média

até 15

até 30

até 20

até 50

1

3

Gerente de agência grande

4

Fonte: Formulário 20-F Bradesco Notas: (1) Agência com captação total até R$ 1.999.999 no ano; (2) Agência com captação total entre R$ 2.000.000 e R$ 5.999.999 no ano; (3) Agência com captação total entre R$ 6.000.000 e R$ 14.999.999 no ano; (4) Agência com captação total igual ou acima de R$ 15.000.000 no ano.

São disponibilizadas para as agências tecnologias que permitem que os em-

pregados analisem o crédito de maneira rápida, eficiente e padronizada com a produção dos correspondentes contratos de empréstimo de forma automatizada. Com tais ferramentas, as agências podem responder rapidamente aos clientes, manter baixos custos sem que percam o poder centralizado sobre o controle de riscos inerentes ao crédito. Se o gerente da agência não estiver autorizado a aprovar o empréstimo solicitado, a decisão é submetida ao Departamento de Crédito e, se necessário, às alçadas superiores. A Tabela 10 estabelece os limites dentro dos quais cada uma das alçadas aprova empréstimos às pessoas físicas acima de R$ 50.000,00 independentemente do tipo de garantia oferecida: Tabela 10: Limite de Crédito: autoridade responsável pela decisão (Em R$ 1.000,00)

Departamento de Crédito

De 5.100 a 8.000

Diretor de Crédito

De 8.001 a 10.000

Comitê Executivo de Crédito (Reunião Diária)

De 10.001 a 35.000

Comitê Executivo de Crédito (Reunião Plenária)

Acima de 35.000

Fonte: Formulário 20-F Bradesco.

Para clientes pessoa jurídica, dependendo da garantia proposta e do porte da agência, apenas empréstimos entre R$ 10.000 e R$ 60.000 são aprovados em 252


A economia política das holdings financeiras no Brasil

nível de agência de pequeno porte. Quando o valor e o tipo da garantia não estiverem dentro das alçadas da agência, a aprovação do empréstimo é submetida às alçadas superiores. A Tabela 11 estabelece os limites dentro dos quais os gerentes de agências podem aprovar empréstimos às pessoas jurídicas, dependendo do valor e do tipo de garantias oferecidas. Tabela 11: Limite de Crédito: autoridade responsável pela decisão

(Em R$ 1.000,00)

Sem Garantias

Com Garantias

Gerente de agência muito pequena

até 10

até 60

Gerente de agência pequena

até 20

até 120

Gerente de agência média3

até 30

até 240

até 50

até 400

até 100

até 400

1

2

Gerente de agência grande

4

Gerente de agência Bradesco Empresa

5

Fonte: Formulário 20-F Bradesco Notas; (1) Agência com captação total até R$ 1.999.999; (2) Agência com captação total entre R$ 2.000.000 e R$ 5.999.999; (3) Agência com captação total entre R$ 6.000.000 e R$ 14.999.999; (4) Agência com captação total igual ou acima de R$ 15.000.000. (5) Agência exclusiva para atendimento de empresas de médio porte (middle market).

Da mesma forma que ocorre no segmento de pessoas físicas, se o gerente da agência não estiver autorizado a aprovar o empréstimo solicitado, a decisão será submetida ao Departamento de Crédito e alçadas superiores. A Tabela 12 estabelece os limites dentro dos quais cada uma das alçadas aprova empréstimos para clientes pessoas jurídicas acima de R$ 400 mil, independentemente do tipo de garantia oferecida: Tabela 12: Limite de Crédito: autoridade responsável pela decisão (Em R$ 1.000,00)

Departamento de Crédito

De 401 a 8.000

Diretor de Crédito

De 8.001 a 10.000

Comitê Executivo de Crédito (Reunião Diária)

De 10.001 a 35.000

Comitê Executivo de Crédito (Reunião Plenária)

Acima de 35.000

Fonte: Formulário 20-F Bradesco.

A automatização do processo de concessão de crédito, assim como a transferência de responsabilidade para alçadas superiores no que diz respeito às definições de limites e garantias transformou o crédito em mais um produto financeiro customizado e pré-formatado. Concomitante a isto, a arquitetura dos programas de remuneração variável fortemente influenciada pela área comercial do banco formata o perfil de vendedor que os empregados das agências deveriam assumir. Em outras palavras, quanto mais vendas forem realizadas, mais pagamentos a título de participação nos resultados os empregados terão. A remuneração pela venda de pacotes de serviços (sofisticados, de conteú253


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

dos implícitos e comercializados na forma de um produto bancário) tem como estratégia o direcionamento do trabalhador para a conquista de patamares cada vez maiores de receitas derivadas dessas políticas. A Associação Nacional dos Bancos de Investimentos (Anbid) instituiu uma certificação profissional com a finalidade de promover o aumento da capacitação dos profissionais que atuam no mercado de capitais ou que têm contato direto com os investidores na comercialização de produtos de investimentos. A Certificação Profissional Anbid Série 10 destina-se aos profissionais alocados nas agências. A principal preocupação é com a comercialização das cotas dos fundos de investimentos: um condomínio que reúne recursos de um conjunto de investidores, com o objetivo de obter ganhos financeiros a partir da aquisição de uma carteira de títulos ou valores mobiliários. A cobrança de maior responsabilidade dos funcionários na comercialização desses produtos financeiros ocorreu em função do risco associado. Nesse sentido, a certificação oferece uma vantagem aos clientes, o que não elimina a necessidade de regulamentação neste segmento. 3.2. Terceirizados Como parte diretamente envolvida na produção e prestação dos serviços dos conglomerados e holdings financeiras, se inserem os empregados terceirizados. Os processos de terceirização envolvem diversas etapas de trabalho necessário ao funcionamento da “indústria financeira” que correlativamente se distribuem nas mais diversas empresas integradas, que se encontram submetidas ao controle das holdings, mas também contam com empresas – as prestadoras de serviço - fundamentais no elo que liga a cadeia produtiva. A estratégia de segmentação de clientes somada à redução de custos operacionais tem, na prática, implementado a própria segmentação dos trabalhadores. Reestruturações produtivas promovidas pelos bancos nas últimas décadas alteraram a forma e o conteúdo do trabalho. As novas formas de gestão da força de trabalho, a padronização e a automação de diversas rotinas possibilitaram o gerenciamento remoto das atividades dos empregados que, mesmo sendo terceirizados e distantes, em outra locação física, podem ser monitorados online a partir dos relatórios detalhados que os sistemas de informação integrados entre empresas disponibilizam. A terceirização possibilitou que formas atípicas de contratação ganhassem espaço na cena produtiva do sistema financeiro, revelando o lado on demand do setor. Nesse sentido, centenas de temporários, diaristas e horistas são recrutados nas empresas prestadoras de serviços, fora das instalações dos bancos, para viabilizarem as mais diversas transações bancárias para os clientes, executando-as em condições mais flexíveis, como, por exemplo, convocados apenas nos dias de pico, estendendo a jornada rotineiramente por mais de onze horas de trabalho ininterrupto e, em alguns casos, descartando o registro em carteira profissional. 254


A economia política das holdings financeiras no Brasil

Trabalhadores terceirizados são reconhecidamente marcados pela alta rotatividade, haja visto as condições precárias que os remetem à busca de oportunidades melhores. Já os empregados efetivos dos grandes conglomerados, aqueles contratados diretamente, como os bancários, possuem condições mais vantajosas em relação á esses, pois possuem organização sindical fortemente estruturada na cena nacional por meio da qual se estrutura o Contrato Coletivo de Trabalho (CCT). Quadro 1: Relações e condições dos trabalhadores bancários e terceirizados que realizam atividades relativas à retaguarda (Dados referentes ao ano de 2008*) BANCÁRIOS efetivados nos bancos

TERCEIRIZADOS efetivados nas empresas terceirizadas

TERCEIRIZADOS trabalhando como temporários

TERCEIRIZADOS trabalhando nos dias de pico (sem registro CP)

Cargos/Funções Equivalentes e Salários

Escriturário: R$ 1.013,64 ou Caixa: R$ 1.416,51

Auxiliar Adm.: mínimo R$ 500 e máximo de R$ 700 (conforme a empresa)

Auxiliar Adm.: mínimo R$ 500 e máximo de R$ 700 (conforme a empresa)

Diarista: Valor/dia trabalhado R$ 13,10

Jornada de Trabalho

6 horas

8 horas e 48 minutos

8 horas e 48 minutos

Média 10 horas

Autenticações por hora trabalhada (média dias de pico)

108

250

250

250

PLR Participação nos Lucros e Resultados

90% salário + valor fixo de R$ 966,00 + Parcela Adicional (vinculada à variação do lucro)

Não tem

Não tem

Não tem

Tíquete Restaurante (vale-refeição)

R$ 15,92 (dias úteis)

(Para empresas que pagam) valor médio é de R$ 6 (dia trabalhado)

(Para empresas que pagam) valor médio é de R$ 6 (dia trabalhado)

(Para empresas que pagam) valor médio é de R$ 6 (dia trabalhado)

Tíquete Alimentação (vale-mercado)

R$ 272,93 (mês)

Para empresas que pagam: R$ 100 (mês)**

Para empresas que pagam: 50% do valor recebido pelos terceirizados efetivos

Para empresas que pagam valor médio é de: R$ 5 (por dia trabalhado)

Auxílio-Creche

R$ 196,18

Não tem

Não tem

Não tem

Convênio Médico

Subsidiado

Subsidiado

Subsidiado

Não tem

Prevenção Doenças Ocupacionais

Em algumas instituições há programas próprios

Não há

Não há

Não há

Qualificação Prof.

Há programa

Não há

Não há

Não há

Treinamento

Há programa

Não há

Não há

Não há

Representante sindical trabalhadores

Há grande representação sindical na maior parte dos bancos e em todos os estados do país

Há casos isolados

Não há

Não há

* Este quadro reflete as informações coletadas por intermédio dos trabalhadores terceirizados no momento do levantamento. É necessário considerar que como o setor é muito dinâmico, as alterações são frequentes. Os dados referentes aos bancários têm como fonte a Convenção Coletiva de Trabalho 2008-2009 e informações divulgadas pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região. ** O direito ao vale alimentação é invalidado se houver uma única falta do funcionário no mês.

255


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

De acordo com o comparativo no Quadro 1, verifica-se que, em vários itens, se configuram reduções ou perdas de direitos para o grupo dos terceirizados. Dessas práticas, resultam ainda as consequências políticas, pois influenciam diretamente na desagregação sindical desses trabalhadores, que passam a ter estatutos sociais distintos, reduzindo sua força social diante de grupos econômicos tão fortemente organizados como são os conglomerados financeiros. A Convenção Coletiva de Trabalho serve como referência legal apenas para aqueles reconhecidos pelo estatuto de bancário. Esse tipo de acordo trabalhista é válido em todo o território nacional e confere ao segmento um “caráter de equidade regional do ponto de vista da distribuição da renda, pois, independentemente das relações de custo entre a força de trabalho local e o custo de vida, geralmente variável de região para região do país, a existência da convenção faz com que os bancos remunerem igualmente a mesma atividade de trabalho e também distribuam a mesma participação nos lucros, não discriminando polos menos rentáveis devido a discrepâncias econômicas das regiões” (Sanches, p.251, 2009). Os empregados terceirizados dão vazão aos fluxos de produção que operacionalizam o funcionamento do sistema financeiro e estão presentes em todas as atividades do setor, sejam elas consideradas meio ou fim. São grandes contingentes atuando nos back offices (retaguarda), no processamento de documentos bancários, na cobrança de títulos, no processamento do crédito, atendendo clientes pelo telefone, ofertando produtos e serviços através dos mais diversos canais de atendimento, autenticando transações financeiras por meio dos milhares de correspondentes bancários9 ou, ainda, dando suporte aos sistemas de informação. Observa-se no setor financeiro a tendência de ampliação desses processos desde a década de 1990, em que pesem as divergências explícitas com os sindicatos e os questionamentos de demais entidades como o Ministério Público do Trabalho10 no sentido de preservar os direitos e os avanços sociais conquistados em uma das categorias profissionais mais organizadas do país. A Tabela 13 demonstra o crescimento das despesas com prestação de serviços de terceiros:

9 Os empregados vinculados aos Correspondentes Bancários têm seu padrão de contratação trabalhista vinculado a categorias diversas: comércio, autônomos, prestadores de serviço, não recebendo, portanto remuneração nem tampouco direitos relativos à categoria dos bancários. 10 No ano de 2006 o Ministério do Trabalho e Emprego fiscalizou diversas empresas terceirizadas prestadoras de serviços bancários. A fiscalização foi feita nas principais capitais dos estados brasileiros e três grandes bancos foram multados (Bradesco, Unibanco e ABN) por praticar a terceirização de forma irregular, recebendo assim, multas de aproximadamente 10 milhões de reais. O Ministério Público do Trabalho, diante de farta documentação comprobatória, entrou com Ação Civil Pública no sentido de proteger os direitos difusos e coletivos.

256


A economia política das holdings financeiras no Brasil Tabela 13: Despesas com prestação de serviços de terceiros (R$ mil) Bancos

1999

2000

2002

2004

2006

2007

2008

1999/2008

Banco do Brasil

132.874

99.187

296.000

404.886

451.735

586.674

774.499

482,88%

106.624

234.086

276.094

383.031

489.740

520.990

388,62%

Caixa Econômica

-

Bradesco

265456

314.673

415.092

847.000

1.232.460

1.635.234

2.128.868

701,97%

Itaú

228.524

222.647

495.687

659.591

1.049.566

1.183.587

1.393.989

510,00%

Santander

79.275

84.100

358.295

568.459

811.388

994.773

723.551

812,71%

Fonte: Notas Explicativas dos balanços anuais dos bancos.

Os administradores repassam para empregados terceirizados que atuam dentro do espaço físico do conglomerado o mesmo Código de Ética encaminhado aos empregados diretos. No material distribuído por um grande banco privado nacional consta o “Termo de Adesão para Terceiros”, que os contratados por prestadoras de serviço assinam, dando ciência das normas de conduta do banco. A extensão do documento a esse grupo revela o quanto as atividades são interligadas e relevantes, considerando as informações a que esses trabalhadores têm acesso. A publicação dos Balanços Sociais ou Relatórios de Administração é citada como referência nas ações de boa governança corporativa. Busca-se, com essa prática, a transparência nas informações. O dado relativo ao número de terceirizados nesses materiais é disperso, ou seja, não é publicado todos os anos e nem por todas as instituições, o que dificulta qualquer análise comparativa. Mas, tampouco o dado, ainda que disponível, pode ser considerado consistente, na medida em que não há padronização sobre como divulgar o índice, de modo que reflete a visão particular de cada administrador. As diretorias dos conglomerados financeiros não apresentam os dados sobre os empregados terceirizados aos sindicatos e afirmam que esta prática de gestão não aceita ingerência externa. Portanto, a transferência de tarefas a prestadoras de serviço não é negociada com as partes envolvidas, mesmo que elas tragam impactos sociais negativos. A justificativa-padrão dos administradores à impossibilidade de diálogo sobre o tema segue calcada no discurso de sua inevitabilidade, sustentada pelo princípio da redução de custos e da necessidade de garantir retorno aos acionistas diante do cenário amplamente competitivo. As expectativas e interesses de grupos tão diversos e assimétricos tem se demonstrado um grande problema para os sindicatos, que representam os trabalhadores. Por um lado, a resposta dos administradores foi a de buscar um outro patamar de gastos com força de trabalho. Por outro, esses grupos demarcados por um padrão precário de direitos e de condições de trabalho questionam a responsabilidade social das holdings financeiras que, apesar de seus altos lucros, buscam formas de se valorizar ainda mais a partir do acirramento da exploração de grupos mais fracos socialmente. 257


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Objetivos incongruentes demarcam o território da governança corporativa. A valorização do capital não vem acompanhada da valorização da renda dos empregados. Ao contrário, observam-se interesses em conflito acelerado, na medida em que a precarização tem sido a tônica no mundo do trabalho e, paralelamente, há o aumento da concentração de renda nas diversas economias nacionais. 3.3. Clientes Os clientes dos bancos apresentam perfis diferenciados e recebem atendimento com base na segmentação mercadológica desenhada pela estratégia do setor bancário nas últimas décadas. O foco principal para isso é a renda do cliente, seja ele pessoa física, seja jurídica. Os tipos de serviços oferecidos e os valores cobrados por determinadas tarifas e serviços são diferentes entre as faixas e podem sofrer descontos de acordo com o grau de fidelidade na utilização dos produtos financeiros e pelo volume de recursos movimentados na instituição. Os bancos de grande porte têm operado com pelo menos dois segmentos voltados exclusivamente para pessoas físicas e outros dois somente para empresas. A classificação “varejo”, que compõe a base da pirâmide, pode incluir pessoas físicas e pequenas empresas em uma mesma faixa. Com base na segmentação, os bancos criaram cestas de serviços e produtos direcionadas às necessidades de utilização dos serviços pelos clientes. Os valores atribuídos a essas cestas podem sofrer descontos associados à aquisição de produtos financeiros ou volume de depósitos a prazo na instituição. Desta forma, o cliente enquadrado como de alta renda e que possui uma cesta de utilização dos serviços mais completa pode pagar menos que um outro com menor renda e maior restrição no que diz respeito aos itens de utilização do pacote. O segmento Pessoas Físicas é o maior, se levarmos em consideração o número de clientes. Um gerente de contas tem sob seus cuidados uma carteira com aproximadamente 1.600 clientes em uma agência de grande porte. Entretanto, para cumprir as metas de trabalho estipuladas, o profissional tem de destinar a maior parte de sua jornada de trabalho para vender produtos aos correntistas, já que essas vendas compõem a produtividade exigida dos funcionários e a rentabilidade das agências. Com foco nas vendas e no retorno imediato dos resultados da agência como unidade de negócio, falta tempo para assistir e esclarecer dúvidas dos clientes, que na realidade podem adquirir produtos e serviços financeiros inadequados ou realizar investimentos de alta complexidade sem avaliar corretamente os riscos. Isso pode ocorrer principalmente quando se trata de públicos com pouca informação, como idosos, ou maior vulnerabilidade, como pessoas que já apresentam alto grau de endividamento e buscam limites de crédito maiores. No caso das pessoas jurídicas, apesar da quantidade menor de clientes, os 258


A economia política das holdings financeiras no Brasil

volumes transacionados são mais elevados e os produtos, por vezes, são chamados de “soluções”. Durante a crise financeira internacional, alguns bancos negociaram com empresas de grande e médio porte a concessão de crédito associada à compra de derivativos de câmbio. Posteriormente as empresas alegaram desconhecer o potencial de risco de tais produtos. Para coibir abusos com cobranças de tarifas, o CMN e o Banco Central buscaram, entre outras questões, padronizar a nomenclatura adotada pelos bancos para possibilitar a comparação entre tarifas, proibir a cobrança do cheque estabelecendo limite mínimo de folhas aos clientes, garantindo cartão de débito gratuito, dois extratos e quatro saques mensais. Tais regras, no entanto, não dão conta da situação, já que os bancos oferecem a compra do já citado pacote (ou cesta) de tarifas que inclui diferenças banco a banco na composição dos serviços incluídos. Isso diferencia a cobrança e dificulta a comparação entre instituições. As inovações tecnológicas, como já apontado anteriormente, possibilitaram aos clientes o uso de canais alternativos de atendimento. A estratégia dos bancos consiste em direcionar constantemente os clientes para esses canais que contribuem para a redução dos custos operacionais, na medida em que diminui o atendimento presencial. Ao ampliar a quantidade de canais e de possibilidades de atendimento, as instituições financeiras elevaram também a arrecadação com tarifas e serviços financeiros que obtiveram crescimento médio de 1.030%, considerando o período de 1994 a 2008 (ver Tabela 14). Já os clientes, por sua vez, passaram a realizar diretamente diversas etapas de trabalho que antes eram de responsabilidade dos empregados das instituições e não tiveram qualquer redução de custos. Inovações como o Débito Direto Autorizado (DDA), implementado em outubro de 2009, exigiram elevado investimento com desenvolvimento e instalação de sistemas, mas vale considerar que diversos custos como emissão e impressão de boletos, processamento administrativo, transporte, postagem, serão eliminados e reforçarão mais uma vez o uso dos canais eletrônicos que, como mostra a tabela 15, são menos custosos às instituições financeiras11.

11 No Brasil são compensados mais de 1,5 bilhão de boletos ao ano (CIAB, 2009).

259


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 14: Evolução da Receita de Prestação de Serviços (Em reais mil)

Bancos

1994

2001

2008

1994/2008

Banco do Brasil

836.409

3.637.779

9.527.963

1.039,15%

Caixa Econômica

999.110

3.230.239

7.366.149

637,27%

Bradesco

526.844

2.690.439

11.215.095

2.028,73%

Itaú

456.209

2.507.894

10.306.643

2.159,19%

Unibanco

272.570

1.014.820

-

-

Banespa

155.272

590.747

-

-

ABN Real

164.407

917.378

Santander

65.537

211.933

3.714.375

5.567,60%

Safra

184.154

258.756

534.808

190,41%

Nossa Caixa

36.648

255.317

1.141.216

3.013,99%

HSBC

366.789

987.538

2.119.419

477.83%

Total

4.063.949

16.302.840

45.925.668

1.030,07%

-

-

Fonte: Balanços Anuais dos Bancos. * Trata-se de valores nominais não deflacionados. ** Os bancos Itaú, Unibanco, Santander, Banespa e ABN passaram por processo de fusão.

Tabela 15: Transações Bancárias

Canal de Distribuição

Custo por Transação (em US$)

Agências

1,07

Telefone

0,54

Auto-atendimento

0,27

Home Banking

0,02

Internet Banking

0,01

Fonte: Apud Fortuna, 2009.

A falta de funcionários nas agências voltados para o atendimento direto pode ser percebida pela política de funcionamento dos guichês de caixa, já que em média 32% deles estão abertos em dias de movimento considerado normal e 53% nos dias de pico, segundo levantamento publicado pela Revista do Idec (outubro 2008). Essa situação tem imputado ao usuário períodos longos de fila quando não é possível ou não se pretende utilizar os meios eletrônicos para operacionalizar as transações bancárias. O elevado custo do crédito no Brasil está refletido nas altas taxas de juros praticadas que são também influenciadas por cobranças como a Tarifa de Abertura de Cadastro (TAC). A taxa é uma das que compõem o Custo Efetivo do Crédito (CET), soma de todas as cobranças feitas pela instituição ao percentual de correção estabelecido mensal ou anualmente para o empréstimo. O Banco Central emitiu uma Resolução em 2007, obrigando os bancos a discriminar, item por item, a composição do CET, o que possibilitou mais 260


A economia política das holdings financeiras no Brasil

transparência na relação com o consumidor dos produtos que agora pode visualizar tudo o que vai desembolsar. Nos últimos anos, apesar da queda da Selic, os spreads – margens praticadas entre a captação e os empréstimos – se mantiveram elevados, o que representa taxas finais ao consumidor ainda elevadas. A estabilidade econômica, a inadimplência controlada, o crescimento do emprego e da massa salarial, a revisão da lei de falências e medidas mais recentes de flexibilização do compulsório geraram uma expectativa frustrada de que fossem adotadas melhores práticas na política de redução das taxas de juros ao tomador final. 3.4. Segurança Bancária Ainda sobre a relação das instituições bancárias com seus clientes, a segurança bancária pode ser pensada em diferentes níveis. O tema é importante e se relaciona a questões como combate a fraudes ao operar os canais eletrônicos disponíveis (internet, celular, caixa eletrônico) e em situações como de assaltos a agências ou caixas eletrônicos. Os clientes, assim como os empregados dessas instituições, têm sido vítimas da violência e da falta de segurança. Os sindicatos de trabalhadores buscam intervir junto à esfera federal no sentido de aprovar leis que possam exigir mais esforços dos bancos nesse sentido, para impedir que a vida de clientes e empregados, além dos transtornos psicológicos e financeiros, seja submetida a riscos. A crítica dos sindicatos indica que mais se protege o patrimônio – o dinheiro – do que as pessoas envolvidas, na medida em que existem estabelecimentos bancários que não cumprem as regras básicas. Dentre elas, citamos falta de pelo menos dois seguranças por agência; o não cumprimento de itens do plano de segurança, como, por exemplo, câmeras, alarme etc.; e transporte irregular de numerário12. Os gastos com segurança em alguns bancos são muito inferiores aos destinados à propaganda e publicidade. Como pode ser apurado na Tabela 16 apenas os bancos públicos apresentam tendência inversa.

12 Conforme Ata da 78º reunião da CCASP (Comissão Consultiva para Assuntos de Segurança Pública), os bancos pagam diversas multas por terem agências em desconformidade com os itens elementares do Plano de Segurança.

261


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil Tabela 16: Despesas com Propaganda/Publicidade e Serviços de Vigilância/Segurança

Instituições Financeiras

Propaganda e Publicidade (A)

Serviços de vigilância e segurança (B)

Bradesco

644.114

217.280

296,44%

Itaú Unibanco

611.176

238.497

256,26%

Santander

304.550

109.480

278,18%

Safra

13.448

10.785

124,69%

HSBC Bank

122.066

74.471

163,91%

Banco do Brasil

249.269

524.040

47,57%

Caixa Econômica

261.002

395.835

65,94%

Nossa Caixa

65.844

92.321

71,32%

Total

2.271.469

1.662.709

136,61%

A/B

Fonte: Notas Explicativas dos Balanços Anuais dos Bancos – Dezembro/2008.

Vale ressaltar que pelos caixas eletrônicos e correspondentes bancários passam também grande parte dos serviços bancários. As ante-salas das agências onde os clientes acessam os caixas eletrônicos que não contam com a presença do vigilante acabam por se tornar lugares mais propícios aos assaltos. Os clientes dos pontos de correspondentes bancários que possuem movimentação de numerário também são alvos de crimes por não contarem com a presença de vigilantes. 4. Considerações Finais O contexto econômico marcado pela financeirização das economias mundiais tem levado as empresas a buscar resultados com investimentos em ativos líquidos que apresentem valorização no curto prazo, em detrimento de projetos de investimento e expansão de longo prazo. Os gestores do capital buscam estabelecer que os princípios em que se baseiam a governança corporativa orientam a gestão das empresas são suficientes ao bom funcionamento das instituições financeiras. Quando há uma ruptura no ciclo de valorização das ações, atribui-se isso à manipulação dos números contábeis em função do não cumprimento das regras estabelecidas pela governança, mas na verdade o que se pode concluir é que as crises de fato ocorrem porque o conjunto das ações está submetido aos interesses imediatos que não se sustentam economicamente no longo prazo. Na realidade, quando as empresas, seja do setor financeiro, seja do setor produtivo, promovem ajustes em seus balanços contábeis e apresentam lucros diferentes, estão buscando atender interesses distintos e também visam dialogar com cada grupo à sua maneira. Desta forma, mantêm o vigor do mercado a partir da lógica vigente. Por sua vez a transparência, tratada como um valor essencial desta lógica, torna-se algo relativo. 262


A economia política das holdings financeiras no Brasil

De uma forma mais geral, observa-se no sistema financeiro brasileiro que a mesma lógica que orienta as decisões de maximizar o valor acionário das empresas no curto prazo, com retorno rápido para o acionista permeia a relação com outras partes diretamente envolvidas (empregados, terceirizados e clientes). Os empregados são submetidos aos processos de trabalho marcados pela baixa autonomia com relação à tomada de decisões e subordinados ao modelo de gestão fortemente centralizado em instâncias superiores, implementado pelos conglomerados e holdings financeiras. O objetivo principal de grande parte dos trabalhadores bancários é o cumprimento de metas de vendas de produtos financeiros com graus diferentes de sofisticação, mas sempre pré-formatados por áreas especializadas e ofertados de maneira ostensiva aos clientes como “soluções” às suas necessidades. Essas necessidades, entretanto, estão em geral mal avaliadas, já que a prioridade é realizar as vendas num prazo determinado. As metas delimitam a performance do empregado, são utilizadas na avaliação e justificam demissões, constituindo-se por vezes em uma ameaça ao emprego. Os gestores costumam ter claro que um sistema de administração baseado na cobrança de metas no curto prazo acaba por gerar pressão e causar stress, elucidando as consequências negativas desta política aos trabalhadores. Na tentativa de manter o estímulo destas pessoas, as organizações implementam programas de remuneração variável com o objetivo de convencer o trabalhador de que valorizam os mais dedicados merecedores de uma remuneração diferenciada em relação ao grupo. O total de remuneração variável que cada funcionário pode atingir se diferencia de acordo com o cargo por ele exercido, sendo ele mais alto quanto mais elevada for a função na hierarquia estabelecida. Segundo as empresas, isso ocorre para contemplar os diferentes graus de responsabilidade na geração do resultado, mas por outro lado estimula determinados funcionários a assumir para si os riscos do negócio, exercendo uma cobrança mais ostensiva aos seus subordinados. A remuneração variável é muito elevada em determinados segmentos do setor financeiro, sendo, portanto, considerada pelos executivos mais requisitados como um diferencial na análise das propostas de trabalho que lhes são ofertadas. Estes profissionais, por sua vez, buscam justificar seus elevados bônus assumindo cada vez mais o formato de gestão baseado no curto prazo e nas operações de maior risco nos mercados financeiros. Ao analisar o grupo dos terceirizados, destacado neste artigo como um dos stakeholders, foi possível concluir que esta é uma das partes mais impactadas pelas decisões administrativas derivadas da política de corte de custos. Este grupo, marcado pela deterioração das condições de trabalho, principalmente quando comparado ao patamar dos trabalhadores bancários, mesmo que realizem as mesmas rotinas de trabalho são submetidos a maiores jornadas de trabalho e menores salários. 263


Sistema financeiro e desenvolvimento no Brasil

Os clientes também sofrem na prática as consequências do modelo de gestão adotado no sistema financeiro brasileiro. Passaram a realizar diretamente as transações bancárias através dos diversos canais de auto-atendimento proporcionados pela evolução tecnológica, contribuindo assim para uma redução significativa dos custos destas operações sem contrapartida efetiva, já que têm enfrentado, além de elevadas tarifas e altas taxas de juros nas operações de crédito, problemas derivados da falta de atendimento adequado e da insuficiente segurança bancária. Referências Bibliográficas CARVALHO, F.C. “Estrutura e padrões de competição no sistema bancário brasileiro: uma hipótese para investigação e alguma evidência preliminar”. In PAULA, L.F. ; OREIRO, J.L. (Orgs.) Sistema Financeiro: uma análise do setor bancário brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. CARVALHO, C.E. Bancos e Inflação no Brasil, da Crise dos Anos 1980 ao Plano Real, V Congresso Brasileiro de História Econômica. 2003. (Apresentação de Trabalho/Congresso). CERQUEIRA, H.G. & AMORIM, W.C. Evolução e características do emprego no setor bancário. Revista de Economia Política, v. 18, n. 1, jan./mar. 1998. CHESNAIS, F. A Mundialização Financeira. São Paulo: Xamã, 1998. FARIA, J.A.; PAULA, L.F.; MARINHO, A. Fusões e aquisições bancárias no Brasil: uma avaliação da eficiência técnica e de escala. (Texto para discussão, n. 1233). Rio de Janeiro: Ipea, novembro 2006. FORTUNA, E. Mercado Financeiro: produtos e serviços. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2008. GRINBLATT, M. & TITMAN, S. Mercados Financeiros-Estratégia Corporati-va. Porto Alegre: Bookman, 2005. IBGC. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. São Paulo: IBGC, 2009. LODI, J.B. & LODI, E.P. Holding. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. PAULA, L.F.R. “Tamanho, dimensão e concentração do sistema bancário no contexto de alta e baixa inflação no Brasil” In Revista Nova Economia, v. 8, n. 1, p. 87-116, jul./dez. 1998. RODRIGUES, A.C. O emprego bancário no Brasil e a dinâmica setorial (1990 a 1997). Dissertação de Mestrado em Economia. 1999. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. SANCHES, A.T. “Terceirização no sistema financeiro”. In: DAU, D.M.; RODRIGUES, I.J.; CONCEIÇÃO, J.J. (Orgs). Terceirização no Brasil: do discurso da inovação à precarização do trabalho (atualização do debate e perspectivas). São Paulo: Annablume; CUT, 2009. Revistas Revista do Idec, maio de 2008; Revista do Idec, outubro de 2008; 264


A economia política das holdings financeiras no Brasil

Sites www.valoronline.com.br em 27.07.2009 www.spbancarios.com.br em 27.11.2009 www.bcb.gov.br em 30.11.2009 Documentos: • Ata da CCASP em 10 de junho de 2009; • Caderno XXI Congresso e Exposição de Tecnologia da Informação das Instituições Financeiras, CIAB-Febraban, realizado de 17 a 19 de junho de 2009; • Demonstrações Financeiras Consolidadas Preparadas de acordo com as normas de contabilidade brasileiras. Banco Santander Brasil S.A. emitido pelo departamento de Relações com Investidores em 30 de setembro de 2009; • Demonstrações Financeiras Condensadas Preparadas de acordo com as normas de contabilidade internacional. Banco Santander Brasil S.A. emitido pelo departamento de Relações com Investidores em 30 de setembro de 2009; • Dossiê Correspondente Bancários emitido pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região e entregue ao BACEN em 19 de janeiro de 2005; • Formulário 20-F Itaú Unibanco Holding, registrado junto à Securities and Exchange Comission (SEC) em 30 de junho de 2009; • Formulário 20-F Bradesco registrado junto à Securities and Exchange Comission (SEC) em 30 de junho de 2009; • Relatório Anual Bradesco 2008; • Relatório Anual de Sustentabilidade Itaú Unibanco 2008.

265


A pobreza do debate e o discurso único de glorificação do mercado impediam qualquer possibilidade de se inverter essa lógica perversa. Nesses anos, plantaram-se as sementes do pensamento questionador. Mas somente com o advento da crise encerra-se o ciclo da financeirização, lentamente, penosamente como em todos os processos históricos brasileiros. A reconstrução da nova política, a recuperação do papel proativo do Estado e o aproveitamento virtuoso do mercado de capitais exigem uma espécie de exumação do cadáver do neoliberalismo estéril das últimas décadas. Nessa linha, o livro faz talvez o melhor apanhado até agora sobre todos os passos dados pelo Brasil passando de uma economia fechada para uma economia financeira. Será uma obra de referência para futuros estudos desse processo. Através dele será possível entender o que estava por trás de bordões como “fazer a lição de casa”; porque medidas aparentemente sem nexo – como a ideia de que corte de investimentos públicos ou de despesas essenciais, como saúde e educação, ajudariam o país a crescer – eram, de fato, sem nexo. Luís Nassif

ISBN 978-85-85938-64-2

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