A incerteza quanto ao fim do isolamento é um claríssimo factor de risco (Público)

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Edição Porto • Ano XXXI • n.º 10.938 • 1,70€ • Domingo, 5 de Abril de 2020 • Director: Manuel Carvalho Adjuntos: Amílcar Correia, Ana Sá Lopes, David Pontes, Tiago Luz Pedro Directora de Arte: Sónia Matos

Júlio Machado Vaz “A sociedade está rendida ao que é jovem”

Saúde mental “A incerteza quanto ao fim do isolamento é um claríssimo factor de risco” Destaque, 16/17

Programação Os espectadores “pedem televisão de conforto em tempos sombrios” Cultura, 26/27

Curva “errática” da epidemia em Portugal intriga especialistas Portugal ultrapassa barreira dos dez mil contágios • Em vésperas de encontro com Marcelo, banca receia efeitos da crise para lá do Verão • Layo atinge total de 552 mil trabalhadores numa semana • Governo deixa sem apoio recibos verdes com quebras a pique na actividade • Sem-abrigo em hotéis? Hipótese está a ser explorada • Pedro Sánchez no PÚBLICO: “A Europa está a arriscar tudo” Destaque, 2 a 17 • Acompanhe ao minuto em publico.pt/coronavírus ANA MARQUES MAIA

Parada do Monte, Melgaço Viver numa aldeia cercada com gente confinada entre quatro paredes ISNN-0872-1556

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16 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020

DESTAQUE

CORONAVÍRUS Saúde mental: “A incerteza quanto ao m do isolamento é um claríssimo factor de risco” Investigadores da Universidade do Minho lançam estudo para avaliar os efeitos psicológicos das medidas de isolamento social. Equipa do King’s College alerta que conhecer o m da quarentena reduz risco Isabel Salema

“N

o último mês, com que frequência se sentiu nervoso e em stress? E furioso por coisas que ultrapassaram o seu controlo?” — estas são algumas das centenas de perguntas a que têm de responder os participantes no inquérito da Escola de Medicina da Universidade do Minho que procura conhecer as consequências psicológicas do isolamento social imposto pela pandemia de covid-19 na saúde mental dos portugueses. Os oito investigadores do estudo que está a ser desenvolvido no Instituto de Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho, em Braga, querem igualmente saber se estas situações se aplicaram algumas vezes na semana anterior ao inquérito: “Tive di culdades em me acalmar; sentia a minha boca seca; não conse-

gui sentir nenhum sentimento positivo.” Ou, então, nas duas últimas semanas: “Tive di culdade em concentrar-me nas coisas, como ao ler o jornal ou ver televisão; tive falta ou excesso de apetite; senti desânimo, desalento ou falta de esperança; tenho guardado tantas coisas que até me estorvam.” O psiquiatra Pedro Morgado, da Universidade do Minho, explica que fenómenos como a pandemia e as medidas de isolamento social e de quarentena decretadas pelo estado de emergência, que foram agora prolongadas, “são novos e altamente complexos, pelo que perceber a forma como a sociedade e cada pessoa está a reagir é muito relevante”. Esta equipa composta por psicólogos, psiquiatras e neurocientistas vai acompanhar as pessoas durante todo o período da pandemia, sejam semanas ou meses, explica o investigador, acrescentando que esse tempo indeterminado foi aprovado pela

comissão de ética da Universidade do Minho. Sobre os resultados de um estudo britânico que se debruça exactamente sobre a necessidade de reduzir os efeitos negativos das quarentenas, recentemente publicado na revista The Lancet, Pedro Morgado concorda que é importante as pessoas conseguirem prever quando a situação de isolamento social vai acabar: “A incerteza quanto ao m do isolamento é um factor claríssimo de risco para a saúde mental. Uma das coisas a que recorremos para utilizarmos os recursos que as pessoas têm para lidar com a adversidade é precisamente usar a baliza temporal. O facto de a baliza ser desconhecida e incerta é um factor de risco acrescido.” Em Portugal, as medidas do estado de emergência, iniciadas a 9 de Março e agora prolongadas, prevêem, basicamente, o dever de “recolhimento domiciliário” (isolamento social preventivo) para a população

em geral e de “con namento obrigatório” (quarentena) para doentes e pessoas infectadas pelo coronavírus, bem como para os suspeitos de contaminação. As medidas de isolamento social que se aplicam a toda a população têm inúmeras excepções, como a que permite saídas curtas para a realização de actividade física. Com uma duração prevista de mais duas semanas, apertou as regras já decretadas, principalmente em relação ao período da Páscoa. “Os conceitos de isolamento social e de quarentena não são facilmente distinguidos [pela população]. Neste momento, encontramo-nos em isolamento social preventivo, dado que é pedido que permaneçamos em casa durante todo o tempo possível, saindo apenas para tarefas imprescindíveis (como ir ao supermercado ou farmácia ou para cuidados de saúde)”, a rma o líder da equipa, juntamente com Maria Picó Pérez. Já a quarentena, acrescenta, “é uma forma de isolamento social

obrigatório em que devemos cumprir rigorosamente o isolamento e pedir ajuda a terceiros para suprir as necessidades básicas”.

Situação inédita Pedro Morgado não conhece outra situação de isolamento social generalizado na história contemporânea de Portugal. “Daí a urgência destes estudos serem feitos, porque estamos a viver um momento excepcional e que desejamos que seja único nas nossas vidas. A realidade em Portugal não é muito diferente do que se passa noutros sítios em termos de medidas de con namento. A Espanha está a adoptar uma política muito semelhante, com ligeiras diferenças que não vale a pena escalpelizar.” Até agora, o estudo já recrutou mais de 1600 pessoas, mas vai continuar em aberto durante o período da pandemia. “Nós avaliamos sempre as pessoas semanalmente à medida que elas se juntam ao estu-


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MIGUEL MANSO

Um estudo britânico mostra que os comportamentos associados ao isolamento continuam nas semanas seguintes ao fim de uma quarentena aquela que identi ca sintomas obsessivo-compulsivos: “Nesta última, perguntamos, entre 18 questões, se a pessoa tem números mágicos, se costuma arrumar as coisas de uma determinada maneira, se ca nervosa quando não lava as mãos.” Pedro Morgado diz que é expectável que aumentem os níveis de ansiedade e stress, bem como o risco de depressão: “Quanto aos sintomas obsessivo-compulsivos, também se espera que possa haver um aumento expressivo em algumas pessoas que já tinham alguns sintomas subclínicos e também um agravamento de algumas formas de doença obsessivo-compulsiva. É preciso olhar também com muita atenção para as dependências, nomeadamente as dependências de álcool, jogo e Internet, que terão uma maior propensão ao agravamento nesta fase de isolamento social.” Em Espanha, segundo o El País, o Governo decretou esta última semana medidas de urgência para proibir anúncios ao jogo online.

O estudo britânico

Uma das coisas a que recorremos para utilizarmos os recursos que as pessoas têm para lidar com a adversidade é precisamente usar a baliza temporal Pedro Morgado Psiquiatra da Universidade do Minho

do. Todas as semanas há perguntas que se repetem e perguntas que são novas.” O que varia neste estudo em que qualquer pessoa que viva em Portugal e Espanha pode participar é as “escalas” aplicadas, mantendo-se as perguntas que recolhem dados biográ cas, de saúde e avaliam condições de vida — estas últimas procuram saber, por exemplo, se a nossa casa tem jardim, espaço verde exterior, varanda, terraço ou pátio. Os investigadores querem igualmente perceber se continuamos a trabalhar presencialmente, estamos em teletrabalho, recebemos aulas online ou se perdemos o emprego por causa da covid-19. As “escalas” são instrumentos de avaliação psicológica validados porque incluem perguntas que já foram feitas em estudos anteriores e permitem comparar resultados. Há uma escala que procura sintomas de stress, depressão e ansiedade, outra que avalia o stress percebido e ainda

Com 43% da população global aconselhada ou obrigada a car em casa, um dado inédito em tempos de paz, o estudo do King’s College liderado por Samantha Brooks sobre o impacto psicológico de várias quarentenas conclui que esta medida deve ser tão curta quanto possível: “Para as pessoas que já estão em quarentena, uma extensão, não importa quão pequena seja, é provável que exacerbe qualquer sentimento de frustração ou de desmoralização. Impor um cordão inde nidamente em cidades inteiras sem um limite temporal claro, como aconteceu em Wuhan (China), pode ser mais prejudicial do que aplicar procedimentos de quarentena limitados ao período de incubação.” O artigo do The Lancet lembra que já havia antecedentes de quarentenas urbanas com alguma dimensão, como as impostas na China e no Canadá em 2003 durante a crise da SARS, também provocadas por um coronavírus, ou em aldeias inteiras em muitos países da África Ocidental durante o surto de ébola em 2014, mas nada semelhante ao que estamos a ver agora e que as medidas actuais devem ser tomadas com base em provas cientí cas.

Assinado por sete investigadores do Departamento de Psicologia Médica do King’s, publicado no nal de Fevereiro, faz uma revisão de 3166 estudos já publicados sobre o assunto, concluindo que 24 deles tinham dados relevantes sobre o impacto psicológico da quarentena e de como reduzi-lo. Abrangem dez países e incluem pessoas com SARS, ébola, gripe A, MERS e gripe equina. Nenhum identi ca um período de quarentena com uma duração superior a 21 dias: “Os benefícios potenciais de uma quarentena em massa que é imposta têm de ser pesados com cuidado perante possíveis custos psicológicos. O uso com sucesso da quarentena como uma medida de saúde pública requer que tentemos reduzir ao máximo os efeitos negativos associados”, escrevem os investigadores britânicos na The Lancet.

54%

das pessoas evitam indivíduos com tosse nas semanas seguintes ao fim de uma quarentena, segundo um estudo publicado na revista The Lancet A súmula dos 24 estudos sugere que o impacto psicológico de uma quarentena “é abrangente, substancial e pode ser duradouro” e a maioria dos 24 estudos analisados reportam “efeitos psicológicos negativos que incluem sintomas de stress póstraumático, confusão e raiva”. Os investigadores chamam a atenção para que as conclusões só poderem ser aplicadas “com cautela” a processos de con namento mais amplos como aquele que abrange cidades inteiras. Entre os 24 estudos analisados, a maior amostra incluiu 6000 pessoas isoladas na Coreia do Sul por causa do MERS. Há apenas um estudo realizado na Europa, na Suécia, com pro ssionais de saúde e os seus contactos mais próximos que estiveram em África por causa do ébola, envolvendo 12 pessoas. Ao considerar a quarentena “essencial”, as autoridades “devem garantir que esta experiência é tão tolerável quanto possível para as

pessoas”, alerta o estudo. Outra mensagem-chave é que a informação é essencial para que as pessoas entendam o sacrifício, devendo “os responsáveis pela saúde pública enfatizar a escolha altruísta do autoisolamento”: “A quarentena voluntária está associada a menos stress e menos complicações a longo prazo.” Muitas das pessoas em isolamento “fazem avaliações catastrócas de quaisquer sintomas experimentados”. Depois de terminada a quarenta, alguns participantes num estudo canadiano que envolveu 1057 pessoas em contacto potencial com o vírus da SARS continuaram a revelar nas semanas seguintes comportamentos associados ao isolamento, com 54% a evitarem pessoas com tosse, 26% a evitarem espaços fechados cheios e 21% todos os espaços públicos. Já outro estudo que envolveu 333 enfermeiras canadianas expostas ao SARS mostra que a quarentena esteve positivamente associada a não ter de ir trabalhar e a um menor contacto com doentes. Finalmente, a revisão do King’s College nunca sugere que as medidas de quarentena não sejam usadas, antes pelo contrário, “porque os efeitos psicológicos de não a usar e permitir que a doença se espalhe podem ser piores”. Uma comunicação consistente, transparente e aberta é o que aconselha Samantha Brooks, numa entrevista à revista Wired: “Um factor enorme no impacto psicológico negativo parece ser a confusão sobre o que se passa, não ter orientações claras ou receber mensagens diferentes de diversas entidades.” Positivo, nota o psiquiatra português, é o facto de a população actualmente não se encontrar toda em quarentena obrigatória: “Estamos numa situação que, apesar de tudo, protege a saúde mental das pessoas, ao permitir que elas possam sair para deslocações indispensáveis à sua sobrevivência.” Também atenua os factores de risco termos a certeza de que esta situação há-de terminar, apesar de não sabermos quando: “É um factor que nos traz alguma esperança. Um regresso à normalidade há-de acontecer nas próximas semanas ou meses. Isto tem de ser salientado como um factor bom.” isabel.salema@publico.pt


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