Uma medicina sem alternativas (Haja Saúde)

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Escola de Medicina Universidade do Minho

Revista Semestral Gratuita N. 8 ¡ Abril 2020

Diretor Diogo Cruz

Haja SaĂşde


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Uma medicina sem alternativas Pedro Morgado

No momento em que escrevo este artigo vivemos dias extraordinários que parecem retirados de um livro de ficção. Portugal decretou o Estado de Emergência, vivemos confinados às nossas habitações e estamos em isolamento sanitário. Aguardamos ansiosa e esperançadamente que a Medicina cuide dos que sofrem ao mesmo tempo que a Ciência procura o tratamento e a vacina que nos devolverá a vida “normal”. Vivemos um período verdadeiramente paradoxal. Ao mesmo tempo que mais seres humanos do que nunca têm a oportunidade de estudar, apreciar a literatura e o cinema, conhecer a História, compreender a ciência ou usufruir dos benefícios da tecnologia emergem movimentos anticientíficos que procuram questionar a evidência que gerou uma sociedade onde vivemos mais e, muitas vezes, melhor. Os movimentos anticientíficos recorrem às maiores falácias para montar indústrias económicas gigantes através das quais vendem falsas esperança sem qualquer controlo sanitário ou financeiro. Neles cabem a homeopatia, a propalada “tradicional chinesa” e outras práticas que, não estando sujeitas ao princípio da demonstração de eficácia, deveriam situar-se à margem de qualquer sistema de saúde financiado pelo Estado. Importa admitir que todos os movimentos radicais de contestação podem incorporar alguns benefícios. Pôr em causa o sistema é, muitas vezes, uma forma de o fortalecer, ajudando-o a mudar, a progredir e a regenerar-se. Há muitas coisas que devemos aprender com o sucesso comercial destes movimentos alternativos a que alguns chamam “medicina”. Desde logo, que as pessoas vão aos Hospitais e Centros de Saúde à procura de algo mais do que aquilo que os profissionais de saúde estão habituados [e muitas vezes forma(ta)dos] para lhes dar. O modelo biomédico foi contestado nos anos 70 do século XX mas perdura com demasiada força entre alguns de nós. A visão do médico como um mecânico do corpo humano tem sido progressivamente substituída por uma abordagem biopsicossocial da pessoa. Mas valerá a pena continuar a questionar: de que vale uma excelente cirurgia se deixamos os pacientes esvaídos de esperança? De que vale o melhor antidepressivo se deixamos as pessoas amputadas de sentido de vida? De que vale a melhor técnica endoscópica se deixamos os utentes tolhidos de medo? Em vez de curar, a Medicina do século XXI deve propor-se cuidar. Em vez de tratamentos, a Medicina do século XXI deve implementar planos de cuidados.


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Em vez da quantificação da incapacidade, a Medicina do século XXI deve promover a reabilitação contínua. “O que importa não é aquilo que te acontece, mas o que fazes com aquilo que te acontece.” O aforismo adequa-se melhor que tudo à experiência subjetiva do encontro com o médico. Tão importante como a qualidade técnica da cirurgia ou do medicamento (que é, sem qualquer dúvida, muitíssimo relevante) é sermos capazes, enquanto médicos, de transportar esse sucesso para o doente, de preservar a sua confiança, de alimentar a sua esperança e de cuidar com realismo quando a morte inexoravelmente se aproxima. Se é verdade que não existe medicina sem evidência científica, também importa recordar que uma medicina que começa e acaba na técnica não cumpre a sua missão. Apesar de não resultarem no tratamento das doenças, as chamadas “medicinas alternativas” amaciam o sofrimento com uma empatia que, por vezes, não é possível construir na linha de produção de atos médicos em que se tornaram alguns hospitais do Serviço Nacional de Saúde. A pandemia do novo coronavírus reafirmou a confiança da sociedade na medicina baseada na evidência científica. Nos próximos tempos será mais difícil convencer as pessoas menos informadas acerca dos malefícios das vacinas que tantas vidas pouparam ao longo do último século. Mas esta confiança renovada e reforçada da medicina científica também acarreta novas exigências. A medicina é, simultaneamente, uma disciplina das ciências biológicas e das ciências sociais e humanas. O deslumbramento com a ciência e a técnica não podem torná-las absolutas sob pena de voltarmos a cometer os graves erros do passado. À ciência compete descrever os fenómenos e encontrar formas de os prever e modificar; à sociedade cabe integrar os dados da ciência em seu proveito, incorporando as exigências que a consciência ética lhe impõe a cada momento. À ciência compete descrever as regularidades dos fenómenos; à sociedade cabe definir os limites da normalidade. À ciência compete propor soluções; à sociedade cabe escolher caminhos. A ciência é um instrumento ao serviço das pessoas e, consequentemente, das sociedades. Não é um fim em si mesma. A medicina está, precisamente, na interface entre a ciência e a sociedade. Ao médico não lhe basta a ciência; precisa de mergulhar na sociedade para cumprir de forma completa a sua missão. O médico é aquele que é capaz de cuidar do outro com todas as

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suas imperfeições, propondo sem impor e aceitando sem julgar. Quem julga que a ciência se cumpre com um apontar de dedo ao que é “patológico” e “anormal” não percebe nada de medicina. A mudança começa na aceitação do outro de forma a que outro possa aceitar o que temos para lhe propor. Apesar das dificuldades quotidianas que experimentamos na prática clínica, a verdade é que não existe nenhum confronto entre medicina convencional (ou científica) e “medicinas alternativas”. A medicina é só uma. Seja em Portugal ou na China, a medicina é uma atividade técnico-científico-relacional que tem como propósito cuidar e promover a saúde das pessoas com base na melhor evidência científica e no respeito pelos princípios bioéticos que a circunscrevem. Ainda que imperfeita e em permanente transformação, esta é a única medicina que existe e a única que produz resultados que protegem as pessoas, as sociedades e as civilizações. O resto não é medicina. É um negócio como outro qualquer.


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