Edição Porto • Ano XXX • n.º 10.894 • 1,70€ • Sexta-feira, 21 de Fevereiro de 2020 • Director: Manuel Carvalho Adjuntos: Amílcar Correia, Ana Sá Lopes, David Pontes, Tiago Luz Pedro Directora de Arte: Sónia Matos
Susana Santos Silva O trompete no topo do jazz europeu
Porto Turismo empurra ESAP do centro da cidade mas futuro vai ser melhor Local, 22
Festival de cinema Catarina Vasconcelos conta em Berlim a história da avó que nunca conheceu Cultura, 37
Leis da eutanásia não acautelam pagamento dos seguros de vida Projecto de lei do PS de despenalização da eutanásia foi o mais votado entre os cinco aprovados ontem no Parlamento. Seguradoras lamentam não terem sido consultadas na procura de uma solução Destaque, 2 a 5 NUNO FERREIRA SANTOS
Raspadinhas aumentam casos de jogo patológico
TAP diz que a empresa já passou o “Cabo das Tormentas”
Portugal pode perder 2000 milhões de euros na coesão
Morreu Pina Moura: sempre nos bastidores do poder
Só o Sporting ganhou na jornada da Liga Europa
Cada português gasta por ano, em média, 160 euros na lotaria instantânea p16/17
Suspensão dos voos da TAP para a Venezuela custa dez milhões de euros p24/25
Proposta do Conselho Europeu prevê corte entre os 9% e os 10% p28
O ex-ministro da Economia e das Finanças de António Guterres tinha 67 anos p14
BenÄca, FC Porto e Braga perderam fora de casa nos 16 avos-de-Änal p48 a 51 ISNN-0872-1556
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16 • Público • Sexta-feira, 21 de Fevereiro de 2020
SOCIEDADE
Raspadinha está a aumentar casos de jogo patológico Psiquiatras alertam para potencial adictivo da Raspadinha e reivindicam mecanismos de controlo para restringir acesso dos viciados. Cada cidadão gasta 160 euros/ano, em média, nesta lotaria Dependências Natália Faria Há cada vez mais pessoas a chegarem aos consultórios médicos com a doença do jogo patológico desencadeada pela Raspadinha. Perante esta realidade, o psiquiatra Pedro Morgado, por cuja consulta, no Hospital de Braga, passam muitos destes doentes escreveu um artigo, publicado hoje na revista The Lancet Psychiatry, a alertar para os perigos desta lotaria instantânea e para o seu “potencial para incentivar o jogo excessivo”, nomeadamente por ser “um jogo de retorno imediato, barato e altamente acessível”. Além disso, “não requer conhecimentos especíÆcos”. Em 2018, as vendas da Raspadinha em Portugal ascenderam a 1594 milhões de euros. Dá um gasto médio de 160 euros por pessoa em cada ano. “É um número muito superior ao registado nos países vizinhos, nomeadamente em Espanha, onde o montante despendido na Raspadinha é de 14 euros por pessoa em cada ano, em média”, contrapõe o artigo cientíÆco, assinado por Pedro Morgado e Daniela Vilaverde, ambos investigadores da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Contas feitas de outro modo aos 1594 milhões de euros gastos em Raspadinhas: os portugueses gastaram em média naquele jogo 8,5 milhões de euros por dia, em 2018. Por detrás destes números, está “um problema negligenciado”, disse ao PÚBLICO Pedro Morgado. “Os números são brutais. Gastamos demasiado dinheiro em Raspadinhas e isso signiÆca que o número de pessoas com problemas de jogo patológico, adicção ou vício do jogo, associado a Raspadinhas é potencialmente maior”, sustentou, lamentando que ainda não tenha sido feito nenhum estudo epidemiológico para ajudar a diagnosticar o problema.
No artigo, o psiquiatra admite que o retorno destes jogos para os cofres estatais pode ajudar a explicar a ausência de “políticas efectivas” para travar o seu potencial patológico. Mas, mesmo sem essa noção exacta sobre a dimensão da doença do jogo patológico associada à Raspadinha, o psiquiatra reivindica a urgência de um “plano estratégico” e de uma regulação efectiva capaz de ajudar a restringir o acesso ao jogo. “Um dos problemas com que nos deparamos no consultório é que, ao contrário do que acontece nos jogos de casino, em que a própria pessoa pode, no contexto do tratamento, requerer uma inibição de entrada no casino, nas Raspadinhas isso não é possível”, nota, sugerindo que um dos mecanismos de controlo poderia ser obrigar os jogadores a fazerem um registo para poderem comprar uma Raspadinha nas papelarias e tabacarias. “Isso permitiria, com recurso ao cartão de cidadão, que o doente pedisse essa auto-exclusão”, precisa o médico. O jogo patológico caracteriza um comportamento persistente em que a pessoa não consegue parar de jogar, apesar das perdas, num vício alimentado por uma distorção cognitiva que “as levam a acreditar que a probabilidade de ganhar é muito superior à real”. “Por outro lado, as pessoas sentem que dominam melhor do que os outros os detalhes do jogo e, portanto, sabem melhor como ganhar”, descreveu Pedro Morgado. O facto de as Raspadinhas estarem disponíveis em qualquer quiosque e não haver “qualquer estigma associado, aliás, as pessoas até oferecem Raspadinhas como prendas”, também não são facilitadores do travão ao vício. “A sobreexposição a notícias de casos em que as pessoas gastam três euros e ganham 30 mil também criam a ilusão de que é fácil ganhar”, acentua Morgado, para quem “é preciso aumentar a literacia da população face a estes problemas,
Os portugueses gastaram em média nas “raspadinhas” 8,5 milhões de euros por dia, em 2018
Nos jogos de casino, a própria pessoa pode pedir a auto-exclusão, na Raspadinha isso não é possível Pedro Morgado Psiquiatra
dado que a maior parte das pessoas desconhece que é possível Æcar viciado neste jogo”. Lançada em 1995, pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a lotaria instantânea, destinada a “Ænanciar as políticas sociais do Estado”, só assumiria a designação comercial Raspadinha em Março de 2010. Este jogo, cujo bilhete custa um euro, distingue-se das restantes lotarias por não ser necessário esperar por nenhum sorteio ou escrutínio para que os jogadores percebam se ganharam ou perderam: basta raspar a área de jogo. Três anos depois, em 2013, a Santa Casa passou a disponibilizar uma versão da Raspadi-
nha online por apenas 10 cêntimos, e a adesão a este jogo rapidamente superou a de alternativas como o Euromilhões, a Lotaria Clássica ou o Totoloto. O último relatório e contas da Santa Casa, referente a 2018, atribui à Raspadinha uma quota de vendas de 51,5% sobre os restantes jogos. E os 1594 milhões de vendas brutas representaram um acréscimo de 7,2% relativamente ao ano anterior. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa garante ter uma política de “jogo responsável”, no âmbito da qual criou um microsite, no qual os jogadores são confrontados com os sintomas mais comuns entre os que
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214 193 721 é o número da linha de apoio Jogo Responsável, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
MIGUEL MANSO
"Chegou a gastar 500 euros num dia"
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Æcaram viciados no jogo, deixando de o controlar, além de uma linha telefónica de apoio. Em 2018, chegaram à linha Jogo Responsável (214 193 721) 262 pedidos de ajuda, dos quais 135 buscavam apoio psicológico. Os mecanismos de exclusão criados pela Santa Casa para responder aos casos problemáticos não abrangem, porém, a Raspadinha, estando limitados à possibilidade de auto-exclusão dos jogos online no portal da Santa Casa e ao Placard. No Ænal de 2018, aquele organismo somava 92 auto-exclusões, que são válidas por um período mínimo de 180 dias. nfaria@publico.pt
uando a família de J. percebeu que o hábito de jogar na Raspadinha se tinha tornado num vício incontrolável, já o septuagenário tinha acumulado dívidas um pouco por toda a aldeia onde vivem, no concelho de Braga. “Foi um familiar que me telefonou a contar que o meu pai andava a pedir dinheiro emprestado com o intuito de ir jogar na Raspadinha”, conta a filha, recuando “há sete ou oito anos atrás”. Na altura, pondo-se a escrutinar o comportamento do pai, descobriu que ele “chegou a gastar 500 euros num dia”. “Às vezes eram 300, outros 200, o que tivesse”, recorda a filha, pedindo para não ser identificada. Para se financiar, J. começou “a levantar grandes quantias de dinheiro do banco e, quando isso deixou de chegar, começou a pedir emprestado e a comprar Raspadinhas a crédito”. E a dificuldade maior foi mesmo “convencer os estabelecimentos comerciais que lhe vendiam fiado que tinham de parar para o fazer”. “A tendência das pessoas eram sempre de acharem que estávamos a exagerar, porque, ao contrário do vício da droga ou do álcool, o vício do jogo ainda é socialmente aceite, não tem uma conotação tão negativa e as pessoas tendem a não levá-lo muito a sério”, lamenta ainda a filha. Actualmente, com familiares e amigos impedidos de emprestarem dinheiro, J. tem o dinheiro controlado pela mulher. “Ainda joga, mas já só se tiver dinheiro com ele e este está sempre controlado pela minha mãe”, retoma a filha do septuagenário, dizendo-se consciente de que o seu pai “nunca ficará totalmente curado”. Mais não fosse porque o jogo “está ali, disponível, ao virar de cada esquina”.
Muitos continuam a alegar que conseguem parar, “apesar das dívidas e do descontrolo” Entrevista Natália Faria Pedro Morgado, psiquiatra e investigador da Faculdade de Medicina da Universidade de Braga, e um dos autores do artigo publicado na The Lancet Psychiatry, fala das distorções cognitivas dos jogadores patológicos que, geralmente, chegam à consulta acompanhados por familiares. E aponta a diÆculdade que os médicos sentem em manter os seus doentes afastados de um jogo tão acessível quanto a Raspadinha. Há alguma explicação para esta maior adesão à Raspadinha dos portugueses comparativamente com outros países? A Raspadinha é de venda completamente livre e as pessoas que têm doença não podem de nenhuma forma ser inibidas de as comprar no contexto da sua doença. As explicações para esta maior adesão são sempre especulativas, mas terão necessariamente a ver com o facto de ser um jogo de retorno imediato, ou seja, não é preciso Æcar à espera, como acontece no Euromilhões ou na Lotaria, para o jogador ver se ganha ou se perde. Esta recompensa imediata pode explicar. Depois, há factores relacionados com o trabalho da imprensa que leva a que haja a uma sobreexposição a notícias de casos em que alguém jogou três euros e ganhou 30 mil. Ora, a situação de doença caracteriza-se precisamente por uma distorção da probabilidade de ganho: as pessoas acreditam que a probabilidade de ganhar é muito superior àquela que que realmente existe. Por outro lado, o facto de o jogo estar tão disseminado, de haver tantos pontos de venda, é muitíssimo facilitador. E há uma enorme
aceitação social deste jogo, inclusivamente as pessoas até oferecem Raspadinhas como prenda. Há alguma noção, ainda que aproximada, de em quantas pessoas este comportamento se torna anormal ou lesivo? Não há qualquer estudo epidemiológico em Portugal, ao contrário do que acontece noutros países, e daí o nosso apelo: é necessário quantiÆcar o universo de pessoas com este problema e criar uma política para trabalhar neste sentido. E isso é uma necessidade que é premente, porque, com estes valores de dispêndio na Raspadinha, seguramente que o número de jogadores problemáticos está a aumentar. Há uma epidemia de Raspadinhas em Portugal e eu temo que possa haver também um número muito signiÆcativo de pessoas com perturbação de jogo patológico associada às Raspadinhas. Como é que vos é colocado o problema nas consultas? As pessoas quando chegam já têm
a vida desregulada por causa do jogo? O mais comum é a pessoa ser trazida por familiares que se depararam com dívidas avultadas ou com utilização de dinheiro sem o consentimento de outros familiares. Por vezes, com uma situação que ainda não é de dívida, mas é de gasto das poupanças da família, e, portanto, a família reúne-se à volta do problema e tenta intervir. Mas o jogador tem, nestes casos, noção de que o seu comportamento é problemático? Nem sempre. Temos pessoas que quando vêm à primeira consulta têm noção de que existe um problema, mas muitos, apesar das dívidas e do descontrolo, continuam a dizer que conseguem parar, se quiserem. Porque essa doença caracteriza-se por várias distorções cognitivas. Uma é a que já referi, de aumento da probabilidade de ganho, a segunda é acharem que dominam melhor do que os outros os detalhes do jogo e a terceira é considerarem que têm controlo sobre o jogo, apesar de não o terem, e de muitas vezes jogarem porque têm a expectativa de que vão conseguir repor as dívidas que foram acumulando. Como é feito o tratamento? É feito através da utilização de psicoterapia — em algumas situações mais especíÆcas farmacoterapia — e depois através de uma série de medidas que fazem parte do contrato terapêutico que a pessoa aceita. Podem ser medidas como, durante o período transitório, a pessoa deixar de ter acesso directo ao seu dinheiro, deixar de frequentar os locais que associa mais vezes ao jogo, contar às pessoas que lhe emprestam dinheiro que tem este problema.