NÓS GENTI - Nº4

Page 1



Em todos os momentos, damos valor à qualidade!

SOFTWARE (SAC 4) Gestão Facturação Gestão de R H

INTERNET Banda Efectiva Registo Domínios Downloads ilimitados NOVA LOJA: RAINHA GINGA - Rua Rainha Ginga, nº41/43 - Luanda

Maculusso Rua Nicolau Gomes Spencer, nº13 Tlf: 917 651 157

Talatona Talatona Park, nº14 Tlf: 222 012 160/1

Ledil Av. Comandante Valódia, nº138/140 Tlf: 222 431 276

1º Congresso Avª1º Congresso do MPLA nº7/9 Tlf: 222 338 641-5

Síntese Rua Conselheiro júlio de Vilhena, nº 8 Tlf: 222 393 484

IAUABA Rua Amilcar Cabral, nº 236/238 Tlf: 222 330 428


Nesta edição

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

44

Jorge Carlos Fonseca Erigir o futuro do país

60

Basílio Mosso Ramos Cabo Verde: motivo de orgulho para todos nós

3

Editorial

124

Milton Paiva

Crença e empenho na construção do Estado

6

Contributos históricos para a independência de Cabo Verde

132

Ana Maria Cabral

18

Amílcar Cabral

142

Reportagem

26

História

158

Fernando dos Reis Tavares

34

Sociedade

164

Olhares

66

José Maria Neves

172

Gil Querido Varela

78

Pedro Pires

178

Josefina Chantre

90

Carlos Veiga

186

Chico Serra

190

Germana Gomes

200

André Brito

204

Nha Balila

O percurso de um herói nacional Hoje nasce um novo país Construir o Estado novo Continuar o trabalho em prol do desenvolvimento ... Acreditar nas causas pelas quais batalhamos Ultrapassar as adversidades

104

António Monteiro

116

Aristides Lima

A importância dos valores tradicionais Realizar sonhos... ao sonhar realidades

Fotografias de arquivo e textos de referência: Fundação Amílcar Cabral ; Cabo Verde - Os Bastidores da Independência (José Vicente Lopes); Guiné-Bissau e Cabo Verde: Da unidade à separação (Antero da Conceição Fernandes);

Menor Estado, melhor Estado Amílcar Cabral - Dedicação e espírito de sacrifício O campo de concentração do Tarrafal Combater o regime colonial A cerimónia da independência A independência na linha da frente O contributo das mulheres para a independência A música que conquista liberdades O contributo da independência para a saúde ... As novas gerações e as perspectivas futuras Independência Nacional - Uma visão única e singular

NÓS GENTI EDIÇÃO Nº 4 | PROPRIEDADE: Palanca Média Produções - Rua 5 de Julho, nº70 - 3º Andar - Plateau - Praia - Cabo Verde (Tel. +238 2619860) | email: info@nosgenti.com | www.nosgenti.com | DIRECTOR: Luís Neves WRITER: Pedro Matos, Diana Lopes | CONSELHO EDITORIAL: Silvino Évora, Luís Neves, Tereza Teixeira, Júlio Rodrigues, Carlos Medina, Isabel Santos | PRODUÇÃO: Cândida Barros | FOTOGRAFIA E EDIÇÃO DE IMAGEM: Pedro Matos PAGINAÇÃO E PRÉ-IMPRESSÃO: Visioncast - Interactive Solutions, Lda PT | WEB e REDES SOCIAIS: Anabela Duarte | TIRAGEM: 3.000 exemplares | PREÇO DE CAPA: 750$00 (Cabo Verde) - 7 Euros (Portugal) - 9 Euros (Mundo) Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais. | Número de Registo: 1/2012

2


Secção do Artigo

Editorial

Crença e empenho

na construção do Estado

N

a comemoração de mais um aniversário da Independência Nacional, julgámos ser oportuno colher, de forma transversal, a opinião da sociedade cabo-verdiana quanto aos seus anseios antes da independência e se os mesmos foram atendidos, passados que estão 37 anos daquele dia histórico e incomensurável que foi o 5 de julho de 1975. Para os cabo-verdianos e cabo-verdianas, estes trinta e sete anos são motivo de grande orgulho, pois juntos, transformaram o que outros consideravam de inviável num Cabo Verde viável, herança apetecível para as gerações vindouras, com a certeza porém, de que ainda há muito trabalho para realizar. Provaram ao mundo que, da sua crença e empenho inabaláveis, foi possível combater a pobreza, especialmente a pobreza crítica, que pela fome ceifou muitas vidas; consolidaram os direitos de equidade, cujos valores e princípios, baseados na igualdade e na justiça social, sempre lhes foram negados pelo regime colonial. Unidos, provaram que a promoção e a proteção dos direitos humanos são condições fundamentais para a existência de uma sociedade mais justa, sendo a educação o meio mais eficaz para fomentar consciências pelo respeito aos seus semelhantes e ao seu próprio país. Os cabo-verdianos reconhecem que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento, respeitando o princípio da tolerância política. Depreendi haver unanimidade quanto aos princípios democráticas existentes. Os mecanismos e instrumentos legais instituídos, têm cumprido intentos, traduzindo assim os desígnios da Constituição e dos organismos do Estado, garantes da democracia. Contudo, reafirmam que o caráter participativo da democracia em Cabo Verde nos diferentes âmbitos da atividade pública e privada, poderão ainda melhorar, o que em última análise contribuirá para a consolidação dos valores democráticos, para a liberdade e para a solidariedade entre os todos os cabo-verdianos no arquipélago e no mundo. Por tudo isto, expresso aqui a minha admiração por este povo e país, que nos ensina ser possível, com boas práticas, reproduzir o bem de forma consequente. Espero que o continuem a fazer por muitos e longos anos.

Luís Neves


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

O preâmbulo da

Independência Nacional

4


5

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


6

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


W: Pedro Matos

História

Contributos históricos para a

Independência de Cabo Verde

Em 1956, provenientes da Casa dos Estudantes do Império, um grupo de cabo-verdianos e guineenses, motivados pelo descontentamento e humilhações a que durante séculos foram sub-

Com a criação do PAIGC aparece, pela primeira vez na história do povo da Guiné e Cabo Verde, uma organização de luta que se propõe libertar os dois povos do colonialismo português. As pri-

Em 1951, foi fundado pelos jovens da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, o Centro de Estudos Africanos, cujo objetivo era a pesquisa da identidade africana, visando a redescoberta daquele continente.

metidos os seus povos, iniciaram um plano para unir os dois territórios, depois de conquistadas as respetivas independências. Fundam em 1957 o MAC - Movimento Anti Colonial, cuja finalidade era a luta contra o colonialismo português em África. Foi nesta fase de tomada de consciência, que surgiram nas colónias portuguesas, os movimentos nacionalistas, entre os quais o PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, que, segundo o seu líder, Amílcar Cabral, tinha como objetivo a integração da tradição de resistência patriótica dos povos da Guiné e de Cabo Verde, mas agora com um novo e bem definido objetivo: a expulsão dos colonialistas e a consequente soberania dos seus Estados.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

O

fim do colonialismo português em África, enquadra-se no contexto da desagregação dos grandes impérios coloniais europeus, iniciada com a Primeira Guerra Mundial. Apesar de resistir até à década de setenta, embora com grandes pressões internacionais, o colonialismo português foi dos últimos a resistir a uma onda de mudança iniciada nos anos 50.

w w w.nosgenti.com

Dada a sua localização geográfica, Cabo Verde sempre foi um ponto estratégico para o governo colonial português. Situado entre o eixo Europa, África e América, Cabo Verde assumiu especial relevo no comércio de escravos provenientes da costa africana. Na Ribeira Grande, na Ilha de Santiago, os portugueses construíram a primeira cidade além-mar, de onde partiam missões de evangelização e captura e venda de escravos. A sua importância para a Coroa portuguesa era tal que, em 1550 foi nomeado um Capitão Geral para Cabo Verde e Guiné, responsável pela administração comum dos dois territórios. Esta ligação administrativa de Cabo Verde e Guiné (na altura a Guiné assumia a denominação de “Guiné de Cabo Verde”) iria manter-se até princípios do século XIX, onde por decreto de 18 de março de 1879, a Guiné seria desanexada do arquipélago, passando a constituir uma província autónoma, dotada de um governo-geral independente do da Praia.

7


Amílcar Cabral (segundo a contar da direira) com Marcelino dos Santos (segundo em pé a contar da esquerda). Lisboa, 1948

meiras células clandestinas do Partido foram criadas em Bissau, Bolama e Bafatá. Os três grandes objetivos do partido eram a conquista imediata da independência da Guiné e de Cabo Verde, a democratização, a emancipação das populações guineenses e cabo-verdianas e a realização de um rápido progresso económico e social.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

O princípio da unidade da Guiné e Cabo Verde baseava-se no facto de, dada a natureza histórica dos dois territórios, com uma mesma tendência económica, Cabo Verde e Guiné eram entendidos como um só.

8

A luta pela independência dos povos coloniais, teve como base o princípio da autodeterminação das populações. Com a criação da Organização das Nações Unidas, esta autodeterminação ganhou nova força e uma nova era anticolonial nasceria. Na década de 60, a ONU intensifica as ações de defesa dos processos de auto determinação dos povos, tornando-se o principal instrumento da descolonização. Em 1960, dos 117 membros da Organização das Nações Unidas, 50 tinham recentemente deixado de ser colónias de outros países membros. O aumento do número de países recém independentes, fez aumentar a pressão a favor da descolonização.

A 14 de dezembro de 1960, é aprovada e adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Resolução 1514, que proclama a necessidade de pôr termo a quaisquer formas de colonialismo, reconhecendo o direito à autodeterminação dos povos como um direito fundamental. Esta data seria para sempre um marco importante no processo de descolonização do continente africano. Em 1963, criou-se em Adis Abeba, a Organização da Unidade Africana, cujos principais objetivos eram a promoção da unidade entre os Estados africanos, a defesa da soberania, integridade territorial, independência dos seus Estados membros e erradicação de todas as formas de colonialismo em África. Foi a primeira vez que países africanos tomaram uma posição firme contra o colonialismo no continente. Portugal, atento ao que se estava a passar no mundo, defendeu uma assimilação cultural, numa tentativa de evitar os movimentos autonomistas dos povos coloniais. Esta ideia teve forte contestação de alguns nacionalistas africanos, incluindo o próprio Amílcar Cabral, que a ridicularizou ao afirmar que “Portugal é um país subdesenvolvido com 40% de analfabetos e o seu nível de vida é o mais baixo a Europa. Se conseguisse


Contudo, a repressão da polícia política do regime colonial português, a PIDE, obrigou os dirigentes do PAIGC a saírem da Guiné e a refugiarem-se em países vizinhos, nomeadamente na Guiné Conacri e no Senegal, onde procuraram apoio político para a luta armada. Esta luta armada foi legitimada, segundo os seus líderes, pelo facto do Estado Português não se mostrar recetivo ao diálogo, por forma a se poder encontrar uma saída política com base na diplomacia, para a independência da Guiné e de Cabo Verde. Em Cabo Verde, apesar de algumas agitações verificadas durante o século XIX e inícios do século XX, até às primeiras manifestações das estruturas clandestinas do PAIGC, viveu-se uma certa apatia relativamente à oposição política ao poder co-

Na primeira década de 1960, já se colocava a hipótese de desencadear a luta armada em Cabo Verde. Num comunicado difundido de Dakar a 21 de julho de 1963 e dirigido “aos combatentes, responsáveis e militantes do partido” e a “todos os guineenses e cabo-verdianos”, Amílcar Cabral chama a atenção para a necessidade de “intensificação da luta em Cabo Verde, para faze-la passar da fase política à fase de ação direta, que poderá ser a luta armada”.

Portugal, através de Adriano Moreira, compreendeu a necessidade urgente de reformar a sua estrutura colonial, pelo que promoveu uma série de medidas para diminuir situações de descriminação de que eram vítimas as populações negras, sendo a mais significativa a medida para a abolição do estatuto do indigenato.

lonial. O movimento claridoso, considerado por uns como a “verdadeira proclamação da independência cultural de Cabo Verde”, é acusado de pouco ou nada ter feito para a independência política do arquipélago. Contudo, com o regresso da Guiné-Bissau de Abílio Duarte, dá-se uma reviravolta na consciencialização nacionalista em Cabo Verde. A pretexto do desenvolvimento cultural e académico, Abílio Duarte, reúne no Mindelo muitos jovens, o que acabou por se revelar vital para a mobilização de ativistas pela luta de libertação nacional. Contudo, depois de saída de Abílio Duarte do panorama mobilizador em São Vicente (devido à perseguição infringida pela PIDE naquela ilha do arquipélago), Santiago tornou-se o baluarte da luta clandestina em Cabo Verde contra o colonialismo português.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

ter uma “influência civilizadora” sobre qualquer povo, seria uma espécie de milagre”.

w w w.nosgenti.com

O início da luta armada foi uma necessidade face à falta de diálogo do regime colonial português

9


Contudo, em 1968, a PIDE desferiu um rude golpe à estrutura clandestina do PAIGC ao prender os seus principais dirigentes, entre os quais Luís Fonseca, Carlos Tavares e Jaime Scholfield, cuja principal missão em Santiago era precisamente preparar um possível desembarque de homens afetos a Cabral, e para a qual executaram, sob a orientação de Reis Tavares, missões de reconhecimento dos melhores locais nas várias costas da ilha. Em 1968, Marcelo Caetano sucede a Salazar no poder, mas continua a política do seu antecessor, apenas mostrando alguma flexibilidade no que dizia respeito à Lei Orgânica do Ultramar, consubstanciada na revisão constitucional de 1971, em que é concedido, “a título honorífico”, o estatuto de Estado a Angola e Moçambique, permitindo que estes territórios possuíssem Governos, Assembleias e Tribunais próprios.

O rápido desenvolvimento da luta político-militar na Guiné-Bissau, contrastava com o que se passava em Cabo Verde. Para fomentar a luta política no arquipélago, foi decidido no Segundo Congresso do PAIGC, criar a Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC, constituída apenas por cabo-verdianos da qual faziam parte Pedro Pires, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Olívio Pires, todos membros do Conselho Superior da Luta. A convite do PAIGC, uma missão especial da ONU visitou, de 1 a 8 de abril de 1972, as regiões li-

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Esta estratégia de confundir a opinião pública internacional, não passou despercebida por parte de certos nacionalistas africanos, os quais voltaram a insistir na luta armada como forma de resolver a questão da independência dos dois territórios, a ponto de, em agosto de 1971, o Conselho Superior da Luta do PAIGC ter decidido preparar a proclamação da independência da Guiné-Bissau.

Um ano antes, em 1970, teve lugar a conferência de Roma, cujo mote foi a solidariedade para com os povos das colónias portuguesas. Esta conferência foi coroada com a audiência concedida pelo Papa Paulo VI aos três lideres dos movimentos nacionalistas: Amílcar Cabral do PAIGC, Agostinho Neto do MPLA (Angola) e Marcelino dos Santos da FRELIMO (Moçambique). Cabral falou em nome dos três movimentos, ao que o Papa respondeu, afirmando que a Igreja estaria do lado dos que sofrem, da liberdade e da independência nacional de todos, em particular dos povos africanos. Esta posição do Vaticano demarcava-se claramente do colonialismo português e constituiu uma grande vitória no plano internacional dos movimentos nacionalistas.

10

Missão de observadores da ONU em visita às áreas libertadas da Guiné-Bissau em 1972


11

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


bertadas. Na sequência dessa visita, o Comité da Descolonização, aprovou a 13 de abril de 1972 uma resolução, na qual reconhece o PAIGC como o único e legítimo representante do povo na Guiné e Cabo Verde, o que lhe conferiu o estatuto de observador nesta organização, a 22 de novembro de 1972. Este somar de vitórias político-diplomáticas, junto com as vitórias militares, levaram o PAIGC em 1973 a declarar, na área libertada de Medina de Boé, a independência unilateral da República da Guiné-Bissau, logo reconhecida por mais de oitenta países e saudada pela ONU. Estas vitórias retumbantes sobre o colonialismo português, levaram à afirmação do PAIGC na cena política internacional. Amílcar Cabral, numa conferência do CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas realizada em DAR-ES-SALAM, chamou a atenção para a responsabilidade dos antifascistas portugueses perante os sacrifícios que a guerra estava a impor aos povos africanos e à própria juventude portuguesa, afirmando que se tornava necessário abrir uma quarta frente de luta em Portugal. Caso os anti-

O 25 de Abril em Portugal marca o fim do regime fascista

fascistas não o fizesse, os movimentos de libertação ver-se-iam na obrigação de levar a guerra para território português.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Na noite de 24 para 25 de abril de 1974, essa “quarta frente” abrir-se-ia em Portugal. Os militares portugueses acabaram por destituir o regime fascista de Marcelo Caetano, pondo assim, fim a um regime que impunha sacrifícios ao povo português e aos africanos.

12

Na sequência da Revolução de Abril, cessaram as hostilidades nas colónias e iniciou-se o processo de negociações que iria conduzir ao desmantelamento do império português em África e à completa independência das colónias. O dia 25 de abril de 1974, quase passou despercebido em Cabo Verde. Mesmo entre as pessoas politicamente mais esclarecidas, havia muitas reservas. Só no dia 30 de abril é que o povo despertou da sua habitual sonolência, dando vivas ao PAIGC e à independência, sem no entanto terem clara noção do que aquilo significava. A primeira aclamação, realizada de forma quase espontânea, verificou-se no dia 1 de maio. Em Santiago, a movimentação política centrou-se em torno da libertação dos presos políticos do Campo de Concentração do Tarrafal.


Libertação dos presos políticos da Cadeia do Tarrafal

Após a Revolução de Abril, aumentaram as pressões internacionais sobre o governo português com vista a uma definição clara das suas posições, no que dizia respeito às colónias. As dificuldades de manter a guerra em África, as pressões internacionais sobre o poder político em Lisboa para que clarificasse a sua posição acerca da descolonização e a existência de movimentos a favor da independência das colónias no interior do próprio governo, levaram ao reconhecimento do direito de autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a aceitação da independência dos territórios ultramarinos. A primeira ronda negocial iniciou-se em Dakar. Após duas horas na residência do primeiro-

w w w.nosgenti.com

De abril a dezembro de 1974, viveu-se em Cabo Verde um período multipartidário, com as várias forças políticas a movimentarem-se, procurando cada uma divulgar os seus ideais e assim reforçar a sua implementação popular. Nas principais ilhas do arquipélago, travou-se uma árdua luta política em torno de três questões: a independência total e imediata tendo por base a unidade Guiné e Cabo Verde, defendida pelo PAIGC; a in-

A confrontação política entre o PAIGC e a UPICV marcou esse breve período da história do país. A UDC como porta-bandeira da solução federal, desapareceu na cena política com o 28 de setembro em Portugal, acusada de estar envolvida com o partido do progresso. Esta movimentação política pluralista em Cabo Verde, terminaria em dezembro de 1974.

Festejado o derrube do regime colonial, surgiu alguma desconfiança por parte do PAIGC quanto ao rumo a dar à questão colonial. A 6 de maio, o Comité Executivo da Luta efetuou uma declaração onde defende a irreversibilidade dos princípios defendidos pelo PAIGC, nomeadamente o reconhecimento da República da Guiné-Bissau e do direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência; o reconhecimento deste mesmo direito aos povos das outras colónias e a abertura imediata de negociações com ou sem cessar-fogo.

dependência total sem a unidade com a Guiné, defendida pela UPICV; e uma federação com Portugal, defendida pela UDC.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A par dessas movimentações políticas populares, os partidos políticos começaram a emergir da clandestinidade: o PAIGC, a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde) e um novo partido político apareceu também na cena política, a UDC - União Democrática Cabo-verdiana.

13


-ministro senegalês, a delegação portuguesa e os representantes do PAIGC acordaram voltar a encontrar-se novamente a 25 de maio. Este encontro em Dakar satisfez a necessidade de Amílcar Cabral “obrigar Portugal a sentar-se à mesa de negociações”. Dessa conversação, resultou o reconhecimento do PAIGC como o único movimento de libertação da Guiné. A 25 de maio, em Londres, pela delegação portuguesa estiveram presentes Mário Soares, Almeida Bruno, Almeida Santos e Jorge Campino. O PAIGC fez-se representar por Pedro Pires (chefe da delegação), José Araújo, Umaru DJalo, Lúcio Soares, Júlio Semedo e Gil Fernandes. As questões que levantaram mais polémica eram o futuro das colónias (Spínola queria formar uma comunidade lusíada em moldes federativos) e Cabo Verde, em que o PAIGC exigia que o governo português reconhecesse o seu direito à independência.O PAIGC aceitou pôr Cabo Verde de fora. O argumento utilizado por Portugal foi a inexistência de conflito armado no território.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

A última ronda negocial decorreu em Argel. O PAIGC continuava a pretender a resolução con-

14

No final da assinatura dos Acordos de Lisboa. Setembro de 1974

junta dos casos da Guiné e Cabo Verde e Portugal permanecia na valorização do cessar-fogo em detrimento do caso de Cabo Verde. O Acordo foi finalmente assinado a 26 de agosto de 1974 em Argel, e previa para 10 de setembro o reconhecimento de júri da República da Guiné-Bissau. Este acordo continha nove artigos, dois dos quais relativos a Cabo Verde: o artigo 6º e o artigo 7º. No artigo 6º o governo português reafirma o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência e garante a efetivação desse direito de acordo com as resoluções pertinentes das Nações Unidas, tendo também em conta a vontade expressa da Organização da Unidade Africana. O artigo 7º estabelece que o governo português e o PAIGC consideram que o acesso de Cabo Verde à independência, no quadro geral da descolonização dos territórios africanos sobre dominação portuguesa, constitui fator necessário para uma paz duradoura e uma cooperação sincera com a Guiné-Bissau. O Acordo de Argel constituiu um facto histórico no processo da descolonização, pois foi a primeira forma de aplicação por Portugal do direito à


Encontro entre o PAIGC e o governo português. Lisboa, 18 de setembro de 1974

Uma série de encontros entre o PAIGC e o governo português, levou à assinatura, a 18 de setembro de 1974 em Lisboa, de um acordo que estabelecia um calendário para o processo de descolonização de Cabo Verde. O Acordo de Lisboa contém 19 artigos, entre os quais, a criação de um governo de transição (artigo 5º), a

w w w.nosgenti.com

Com a tomada de posse do governo de transição a 31 de dezembro, emergiu em Cabo Verde um Estado com soberania dividida entre o governo português e o PAIGC. O Acordo de Lisboa também estipulava que no dia 31 de Junho de 1975, se realizariam eleições para a Assembleia Constituinte. A lei eleitoral aprovada pelo decreto-lei nº 203/75, afastava o PAIGC, enquanto partido político, das eleições, pois as listas dos candidatos a deputados deviam ser apresentadas por cidadãos e não por partidos políticos. Neutralizadas algumas tentativas de listas concorrenciais, a lista única dominada por influência do PAIGC acabou por arrecadar 90% dos votos e eleger os

O processo negocial da independência de Cabo Verde iniciado em Londres e acordado em Argel, não saiu da esfera política, pelo menos até dezembro de 1974. Apesar das autoridades portuguesas indiretamente terem reconhecido o PAIGC como representante do povo de Cabo Verde e, de abril a agosto o PAIGC ter demonstrado a sua força política, as autoridades portuguesas resistiram a uma transmissão pura e simples do poder, em benefício exclusivo deste partido, uma vez que era do interesse de Portugal que o povo cabo-verdiano pudesse referendar a independência.

composição desse governo de transição (artigo 9º), a eleição de uma assembleia representativa do povo de Cabo Verde, dotada de poderes soberanos e constituintes e que teria por função declarar a independência de Cabo Verde (artigo 10º) e a data da proclamação da independência (artigo 11º). Nenhum dos artigos reconhecia o PAIGC como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

autodeterminação, o que já tinha sido reconhecido através da lei 7/74.

15


aclamação, foi eleito para primeiro-ministro, Pedro Verona Rodrigues Pires, Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do PAIGC.

A primeira sessão legislativa com o objetivo de constituir a Assembleia Nacional de Cabo Verde, decorreu no dia 4 de julho de 1975. Para Chefe de Estado, foi eleito por aclamação, Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC e, também por

A 5 de julho de 1975, foi proclamada a independência de Cabo Verde sob a égide de um partido binacional, força política e dirigente do Estado e da sociedade em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. 

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

56 deputados, todos afetos ao Partido. Foi desta forma que o PAIGC, em Cabo Verde, acabou por legitimar o seu poder.

16

Aristides Pereira no momento solene de juramento na tomada de posse como Presidente da República de Cabo Verde


17

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


NÓS GENTI 3 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Secção do Artigo

18


W: Pedro Matos

Personalidade

Amílcar Cabral

O percurso de um herói nacional Nasceu em Bafatá, no centro da Guiné portuguesa. O pai, Juvenal da Costa Cabral, professor primário e ex-seminarista e a mãe, Iva Pimentel Évora, ambos oriundos de Santiago em Cabo Verde, conheceram-se na Guiné. Após o regresso à terra natal, o casal separa-se, ficando o jovem Amílcar ao cuidado da mãe.

Em 1945, obtém uma bolsa de estudos da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Com 21 anos, parte para Portugal onde conclui o curso de engenharia agrónoma, no Instituto Superior de Agronomia. Na sua estadia em Portugal, distinguiu-se como aluno, intelectual, dançarino, desportista e como impulsionador de diversas atividades culturais e políticas, nomeadamente as que desenvolveu na Casa de África, na Casa dos Estudantes do Império e no Centro de Estudos Africanos. É de destacar os vários trabalhos realizados sobre a questão da identidade africana, ou como ele próprio gostava de dizer, sobre a “reafricanização dos espíritos”. Foi precisamente na Casa dos Estudantes do Império, que Amílcar Cabral conheceu outros futuros dirigentes africanos, entre os quais se destacariam os angolanos Agostinho Neto e Mário de Andrade, o são-tomense Francisco José Tenreiro e os moçambicanos Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos, todos eles empenhados na causa da “reafricanização dos espíritos”.

Em Angola, enquanto trabalhava como engenheiro agrónomo

w w w.nosgenti.com

Após concluir, uma vez mais, com elevada distinção o curso de engenharia agrónoma, regressou à Guiné, onde a 22 de Setembro de 1952, tomou posse do cargo de diretor do Posto Agrícola Experimental de Pessubé, em Bissau, cargo que desempenhor com dedicação e que lhe valeu a confinça do regime.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

E

m 1933 foi frequentar a escola primária na Cidade da Praia, tendo em 1944, concluído o ensino secundário no Mindelo, com elevada distinção. Após o seu regresso à Praia, emprega-se como ajudante na Imprensa Nacional, sem no entanto, abandonar a ideia de continuar os estudos.

19


Em agosto de 1953, foi encarregado pelo Governo da Província de “estudar, planear e executar o recenseamento agrícola, cuja realização, lhe deu um profundo conhecimento da sociedade local. As suas preocupações sociais e políticas, levaram-no a envolver-se em diversas movimentações anticolonialistas.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Em 1954, esteve na origem da criação da Agremiação Desportiva e Recreativa de Bissau, que entretanto não foi autorizada pelo regime, por ser considerada “suspeita”. Foi aconselhado a abandonar a Guiné em 1955, podendo no entanto visitar a sua mãe uma vez por ano.

20

Decide fixar-se em Lisboa, contudo, numa das suas visitas à Guiné, cria em setembro de 1956, juntamente com Aristides Pereira, Luís Cabral (seu irmão), Júlio Almeida, Fernando Fortes e Eliseu Turpin, o Partido Africano da Independência (PAI) o qual, em outubro de 1960, dará origem ao PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde.

Em Conacri, com o irão Luís e Aristides Pereira

De regresso a Lisboa, funda, juntamente com outros africanos nacionalistas de Angola e Moçambique, o MAC - Movimento Anti Colonial.

Até finais de 1959, reside em Lisboa, mas desempenha diversas atividades profissionais em Angola, onde simultaneamente, participa na formação do MPLA.

Amílcar Cabral dedicou a sua vida à libertação do seu povo e à luta contra o regime colonial português. Foram três a ideias-chave do seu idealismo político: a solidariedade interafricana, a construção de uma sociedade mais justa e liberta da opressão colonial e a unidade da Guiné e Cabo Verde.

Em janeiro de 1960, abandona definitivamente Lisboa, para liderar a luta de libertação nacional na Guiné, onde a causa da independência ia ganhando adeptos, impulsionada pelo exemplo de países vizinhos, como a Guiné-Conacri, que tinha conquistado a independência dois anos antes e cujo percurso muito enfluenciou Amílcar Cabral.


O regime português, fruto da observação de outros movimentos independentistas que tinham levado a bom porto os seus intentos em outros países africanos, atuava com dureza perante qualquer atitude de contestação. O momento mais marcante, ocorreu a 3 de agosto de 1959 em Pidgiguiti, quando as forças fieis ao regime, carregaram violentamente contra uma manifestação de trabalhadores portuários que exigiam melhores condições, e da qual resultaram dezenas de mortos e feridos.

Em fevereiro de 1962, o regime português efetua uma série de detenções em Bissau, que conduzem à prisão de centenas de pessoas, entre as quais Rafael Barbosa, o número dois na hierarquia do Partido, o que atrasou algumas ações políticas previstas para a capital. Antes de iniciar o confronto armado, o PAIGC enviou várias propostas ao governo português para que este desse oportunidade ao povo da Guiné e Cabo Verde de decidirem livremente o seu destino. A última, em outubro de 1961, exigia o direito à autodeterminação, advertindo que a sua recusa iniciaria a luta armada. A proposta não obteve qualquer resposta, pelo que o conflito de tornou-se inevitável. A fase que antecedeu os combates, teve especial importância para o PAIGC, pois muitos dos seus quadros, preparados clandestinamente em Conacri, passariam clandestinamente a fronteira para irem viver no seio das comunidades locais, onde levaram a cabo um permanente trabalho político. Estes militares, a maioria originários das cidades, foram especialmente formados para compreenderem o pensamento político das comunidades rurais. O seu maior êxito foi junto da etnia balanta, a maior e com mais dispersão geográfica, cujo núcleo principal vivia no Centro da Guiné, em zona altamente florestal e de difícil penetração.

Em 1966, Amílcar Cabral destaca-se pelo teor da sua intervenção realizada em Havana, na Conferência Tricontinental. Fruto dos grandes avanços militares conquistados pelo PAIGC no terreno, Amílcar Cabral considera a situação guineense comparável à de “um Estado independente, onde os centros urbanos se encontram ocupados por forças estrangeiras”. Contudo, fruto de uma manobra militar encabeçada pelo general Spínola, em que subordina o desenvolvimento socioeconómico das populações, o equilíbrio militar instala-se e sustém-se o ímpeto da ofensiva do

w w w.nosgenti.com

A 3 de agosto de 1961, o PAIGC solidariza-se com o MPLA e proclama prematuramente a “ação direta”.

A 23 de janeiro de 1963, inicia-se no Sul do território, a luta armada de libertação nacional. Durante 1964, conforme refere o comando militar na Guiné, a situação no terreno é “gravíssima” e o PAIGC começa a ser considerado o mais consequente movimento de libertação africano.

Em 1960, Amílcar Cabral denúncia internacionalmente o colonialismo português e participa na formação de células unitárias de luta, o que faz com que abandone a clandestinidade e se instale definitivamente em Conacri.

Cabral e Otto Schacht, na Guiné

Cabral e delegação da Tricontinental, Havana 1966

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Após os acontecimentos de Pidgiguiti, Amílcar Cabral promove a mudança da agitação nacionalista para uma estratégia de libertação nacional, através da mobilização de camponeses, por forma a preparar a luta armada e a instalação do PAIGC em Bissau. Esta “matança”, como foi chamada pelos nacionalistas, marcou definitivamente o rumo do Partido, que um mês depois dos acontecimentos, realizou uma conferência clandestina onde decidiu preparar-se para o início da luta armada.

21


22

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Amilcar Cabral com os camaradas, a caminho de Cassacá

Na noite de 20 de janeiro de 1973, uma complexa teia de conspiradores irá assassiná-lo. O seu desaparecimento teria profundas repercussões no futuro do PAIGC, na descolonização portuguesa e na história da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Contudo, não alterou o processo que, como ele mesmo dizia, estava “em andamento”. Portugal, fruto da Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 em Lisboa, viria a reconhecer a independência da Guiné-Bissau a 10 de Setembro desse mesmo ano e Cabo Verde proclamaria a sua soberania a 5 de Julho de 1975. 

w w w.nosgenti.com

O ano de 1971 é marcado por várias viagens onde espera apoios para a causa da independência. Visita vários países do bloco comunista, está presente no congresso do Partido Social-Democrata realizado na Suécia, e em agosto, desloca-se a Helsínquia, a Londres e a Dublin. Em 1972 intensifica os contactos em prol da luta de libertação nacional e discursa, a 1 de fevereiro, perante o Conselho de Segurança das Nações Unidas, reunido em Adis Abeba e onde convida uma missão da ONU a visitar as regiões libertadas. A visita

Uma vez mais, tenta entrar em conversações com o governo português, ao mesmo tempo que se realizavam, nas regiões libertadas, eleições para uma Assembleia Nacional Popular, cuja finalidade seria a declaração unilateral de independência.

1970 foi um ano pleno de atividade para Amílcar Cabral. Em fevereiro, desloca-se aos Estados Unidos, onde numa cerimónia de homenagem a Eduardo Mondlane, discursa perante a Comissão de Negócios Estrangeiros do Congresso. Em abril, na URSS, participa nas comemorações do centenário de Lenine e em junho, participa na Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas, realizada em Roma, onde também por esta ocasião é recebido em audiência pelo Papa Paulo VI.

viria a ocorrer de 2 a 8 de abril desse mesmo ano. Viria a influenciar decisivamente o reconhecimento internacional do PAIGC como o único e legítimo representante do povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

PAIGC, obrigando Amílcar Cabral a deslocar a guerra para o plano diplomático.

23


24

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


25

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


26

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


W: Pedro Matos

História

Hoje nasce um novo país

São dez da manhã. Nos ouvidos ainda ecoam as palavras da “aurora de um novo tempo” proferidas por Aristides Pereira às zero horas desta nova era. As ruas estão cheias de gente, que ri, conversa e entretém-se. Às janelas, metade da população da

O estádio municipal da Várzea foi o local escolhido para o cerimonial da transferência da soberania portuguesa para as novas autoridades do país. O exíguo estádio, em terra batida, mostrou-se pequeno para acolher os milhares de cabo-verdianos que queriam, com os próprios olhos, testemunhar este momento único na história do país e nas suas vidas. Aos olhos de muitos, incluindo alguns observadores internacionais, a independência do país era alvo de apreensão e desconfiança. Ao contrário

cidade, ultima os enfeites com que dará as boas-vindas à República de Cabo Verde. Nas ruas, estudantes distribuem panfletos. As praças enchem-se num mar de gente. Quase todos exibem com orgulho o retrato de Amílcar Cabral, estampado nas camisas que envergam.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

pequena cidade da Praia está toda engalanada para celebrar este nascimento. Papéis de todas as cores contrastam com a paisagem pobre e agreste causada pela escassez de água, a que o povo já se resignou. Hoje, 5 de julho de 1975 é dia de festa, celebrado por mais de 300 mil pessoas que, teimosamente, insistem em viver neste chão incapaz de produzir sustento para mais do que 15 mil. É preciso coragem e determinação para, a partir de quase nada, se iniciar a construção de um país, onde apenas abunda a esperança no amanhã.

w w w.nosgenti.com

Hoje é dia 5 de julho de 1975. É um dia histórico para o arquipélago. A alegria contagiante que se sente em cada esquina, é a prova do sentimento que percorre a alma de todos os cabo-verdianos, aqui e além-mar. Hoje nasce um novo país, fruto de uma gestação dolorosa, atribulada e de muitas mágoas. Hoje nasce um novo país, fruto do empenho, garra e amor à terra e ao povo de uns tantos que lutaram pela sua libertação.

27


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

das outras antigas colónias, Cabo Verde não possuía recursos capazes de levar com sucesso uma empreitada desta natureza e que se adivinhava difícil. No entanto, era vontade de todos que, a partir daquele dia, com esforço, dedicação e muito trabalho, a realidade viria a mostrar-se menos cruel.

28

A cerimónia está prestes a iniciar-se. Dezenas de delegações e individualidades estrangeiras, testemunham o momento. De Portugal, veio a delegação mais numerosa, chefiada pelo primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Da Guiné-Bissau veio o comissário-principal, Francisco Mendes que se fez acompanhar pelo comissário das Forças Armadas, João Bernardo Vieira. Há também delegações vindas de Angola, São Tomé e Príncipe, Senegal, Costa do Marfim, Guiné-Conacri, Argélia, Cuba, China e URSS. A Organização da Unidade Africana fez-se representar pelo seu presidente, o somaliano Omeh Chalib e pela Organização das Nações Unidas, o paquistanês Abu Farah, em representação do seu secretário-geral, o austríaco Kurt Waldheim.

São onze da manhã. Chegam ao local o secretário-geral do PAIGC, Aristides Pereira, acompanhado por Vasco Gonçalves. A multidão saúda-os calorosamente. Cabe ao presidente do parlamento cabo-verdiano, Abílio Duarte, rubricar com o representante do Chefe de Estado de Portugal, o general Francisco Costa Gomes, o documento que marca a independência de Cabo Verde. A cerimónia prolonga-se por mais quatro horas. Do programa oficial, fazem parte desfiles da tropa portuguesa e do contingente das FARP, treinadas no âmbito do governo de transição, desfiles das Melícias Populares e dos representantes dos vários setores sociais, profissionais e culturais. Nos céus, voa uma esquadrilha da Força Aérea Portuguesa, em formação de quatro elementos. Às 12h40, Abílio Duarte, em cima de um palco improvisado, finalmente proclama para os presentes e para o mundo, a independência da República de Cabo Verde:


29

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Diz a história que as reiteradas tentativas de emancipação social das nossas ilhas, embora tenham deixado mártires e gerado heróis anónimos, foram sempre estranguladas pela opressão colonial. Coube às modernas gerações, iluminadas pela ideologia de libertação dos povos colonizados e impregnados de espírito de Bandung, compreender que o problema da miséria e do atraso social das ilhas de Cabo Verde reconduzia-se a um problema político e, como tal, jamais poderia ser resolvido no quadro da sujeição colonial e da alienação da liberdade humana. Antes de mais, postulava a reivindicação e a luta pela Independência. Todavia, para empreender com êxito esta luta, desigual face à expressão numérica das realidades

em confronto e ao prestígio de falsos valores dominantes em vastas regiões da comunidade internacional, era, na conjuntura, necessário que os Povos Africanos superassem a escala nacional e potenciassem a sua energia vital na cooperação de esforços e na unidade de depósitos revolucionários. Assim, AMÍLCAR CABRAL, Fundador e Militante número 1 do P.A.I.G.C., concebe a genial ideia de renovar o sentido do Povo e reestruturar na matriz política da libertação dos Povos do Terceiro Mundo, a Unidade dos filhos da Guiné e Cabo Verde, Assim se funda e se constrói o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, motor histórico da renovação mental, social e ideológica, segundo linhas da acção construtiva e da pedagogia política do nosso imortal guia, Amílcar Cabral.


O sucesso de qualquer projecto depende sempre da forma como o abordamos The success of any project always depends on how we approach

ASSESSORIA FISCAL / TAX CONSULTING INVESTIMENTO PRIVADO / PRIVATE INVESTMENT CONSULTORIA DE GESTテグ / MANAGEMENT CONSULTING CONTABILIDADE / ACCOUNTING AUDITORIA / AUDIT

AUDICONTA, Auditores e Consultores, Lda

Rua de Timor, 47 (Kinaxixi) - Luanda - Angola - T. +244 222 448 901 - F. +244 222 448 908 - Email: info@audiconta.co.ao


O princípio da Unidade Guiné e Cabo Verde, concebido para a luta e forjado na luta, que já estava prefigurado na nossa comunhão de sangue, de mártires e de História, deu provas irreversíveis como factor decisivo de mobilização da consciência nacional, de organização para a luta e de transmutação da nossa Sociedade. Coroada de glória a confrontação política e armada na Guiné-Bissau, onde se iniciou a derrota do Império Colonial Português, O P.A.I.G.C. intensificou a luta revolucionária nas ilhas: lançou justas palavras de ordem correspondentes às profundas

aspirações e aos interesses vitais do nosso povo, mobilizou as camadas trabalhadoras alienadas à omnipotência do Estado Colonial, deu aos trabalhadores públicos e da actividade privada uma nova consciência de dignidade na liberdade, inspirou greves e manifestações de protesto contra actos repressivos na Ordem Colonial, dinamizou movimentos de massa para reivindicação de bens e valores pertencentes ao sagrado património do Povo. Assim, a vontade inequívoca das massas populares confirmou, no terreno firme e eloquente dos factos, a legitimidade representativa que ao P.A.I.G.C. haviam reconhecido as mais altas instâncias as Organização da Unidade Africana e das Nações Unidas. Assim, nós, o Povo das Ilhas, quebramos as cadeias de subjugação colonial e escolhemos livremente o nosso destino Africano. E a História reterá que filhos do nosso Povo glorioso de Cabo Verde, que se bateram com valentia na frente da luta armada da Guiné, estiveram prontos e decididos para o combate armado em Cabo Verde também, se tal viesse a revelar-se como única via para a libertação das nossas queridas Ilhas. Povo de Cabo Verde, hoje, 5 de Julho de 1975, em teu nome, a Assembleia Nacional de Cabo Verde, proclama solenemente a República de Cabo Verde como Nação Independente e Soberana. A multidão aplaude efusivamente o momento. Todos têm noção que estão a viver um momento único na história, e há muito desejado. No meio de grande alegria e emoção, às 13h15, dois oficiais das FARP, hasteiam a bandeira cabo-verdiana, marcando assim o nascimento de um novo país no mundo. Ouve-se o hino do recém-nascido Estado. Aristides Pereira, então empossado como primeiro Presidente de Cabo Verde, não esconde a emoção, ao ver subir no mastro de honra do estádio da Várzia, a bandeira do seu país. “Os nossos portos e os nossos corações estão abertos a todas as bandeiras”, disse, ao discursar, no palanque improvisado onde o primeiro-ministro português, Vasco Gonçalves, minutos antes assinara o documento que punha termo a 519 anos de domínio colonial. Hoje é dia 5 de julho de 1975. Acabou de nascer um novo país, livre e independente, com o futuro que o seu povo desejar construir.


33

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


34

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


W: Pedro Matos

Sociedade

Construir o

Estado Novo A evolução histórica nas vertentes socioeconómica e política do país, suportado em dados comparativos, revelam o inicio, o atual momento e os principais desafios futuros na construção do Estado.

O novo governo, liderado pelo primeiro-ministro Carlos Veiga e pelo Presidente da República António Mascarenhas, definiu como objetivos governa-

w w w.nosgenti.com

Após várias negociações entre o partido no poder - o PAICV - e o MpD, força da oposição, foram marcadas as primeiras eleições democráticas multipartidárias no país. As eleições foram realizadas a 13 de janeiro de 1991 e delas, saiu vencedor o Movimento Para a Democracia (MpD) com maioria. Com esta vitória do MPD, colocou-se fim ao período de governação de partido único, que durou de 1975 a 1990.

O governo do PAICV governou Cabo Verde durante 15 anos, ficando o regime conhecido como de monopartidário com tendência socialista, e onde não era permitida a existência de outras forças políticas. Os principais objetivos do PAICV, durante esses 15 anos de governação, foram a criação das bases para o desenvolvimento do país, principalmente ao nível da educação, saúde e infraestruturas elementares.

Com as alterações no xadrez político mundial e o processo de democratização dos países africanos, ocorre em 1990 a abertura política em Cabo Verde, possibilitando o surgimento de novos partidos políticos, entre os quais o Movimento Para a Democracia (MPD), liderado por Carlos Veiga.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

pós a independência nacional, a 5 de julho de 1975, a formação e consolidação do novo Estado foi assegurada pelo PAIGC, partido que liderou toda a luta anticolonial, tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde. Este Partido, governou Cabo Verde até 1981, altura em que ocorreu o golpe de Estado na Guiné. Como consequência direta deste Golpe de Estado, registou-se uma rotura no interior do Partido, dando origem ao PAICV.

35


Negociações entre o PAICV e o MpD. Praia, 1990

tivos, a abertura da economia cabo-verdiana aos investidores estrangeiros.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Com esta nova era de governação, iniciou-se o sistema multipartidário e democrático, marcado pela conquista dos direitos civis, políticos, de liberdade de expressão e de imprensa, de liberdade de associação e da conquista de vários direitos por parte dos trabalhadores.

36

Este período marca igualmente o ressurgimento de algumas forças políticas que entretanto estavam retiradas do panorama político nacional, como por exemplo, a União Caboverdiana Independente e Democrática (UCID). É também nesta altura que aparecem novas forças partidárias, tais como, o Partido da Convergência Democrática (PCD), o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido da Renovação Democrática (PRD). Após dois mandatos de governação, o MPD perde as eleições de 2001, pelo que o principal partido da oposição, o PAICV, liderado por José Maria Neves, assume a governação do país, com uma expressiva maioria absoluta de 42 deputados, contra os 30 do MPD, perfazendo o total de 72 que compõem o Parlamento cabo-verdiano.

Atualmente, o PAICV exerce o seu terceiro mandato, com maioria absoluta. Após dois mandatos sucessivos, Jorge Carlos Fonseca sucedeu ao Comandante Pedro Pires na Presidência da República. A alternância governativa que se tem registado em Cabo Verde, é prova da democracia política a que o país já se habituou. De acordo com a Constituição em vigor desde setembro de 1992, Cabo Verde define-se como uma República Democrática multipartidária, em que o Chefe de Estado é o Presidente da República. O governo é do tipo parlamentar, com um equilíbrio moderado entre o primeiro-ministro e o Presidente da República. O poder executivo é exercido pelo primeiro-ministro e pelo Concelho de Ministros, havendo uma descentralização ao nível autárquico.

A demografia ao longo dos tempos

A polução cabo-verdiana tem registado algumas oscilações ao longo da sua história. Durante a década de 40 do século passado, ocorreu um período de seca severa em todo o arquipélago. Esta seca levou a um decréscimo acentuado da população, principalmente devido à fome de 1947, que causou incalculáveis perdas de vidas humanas.


37

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Em finais da década de 80, as difíceis condições de vida nos meios rurais, levaram à fuga das populações para os centros urbanos.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

A década de 70, também ficou marcada pela expansão da emigração cabo-verdiana, sobretudo para os países europeus, o que contribuiu significativamente para a diminuição demográfica no país. Esta emigração, intensificou-se na década de 80. A busca de melhores condições de vida em países estrangeiros, fez com que durante esta década, a população aumentasse apenas uns escassos 0.9%.

38

Devido à implementação de políticas restritivas levadas a cabo pelos países de acolhimento, o fluxo migratório dos cabo-verdianos reduziu-se significativamente durante a década de 90, o que proporcionou um crescimento populacional de 2.4%. Segundo dados do primeiro Recenseamento Geral da População e da Habitação, de 1990, a população residente em 1990 no país era de 341 mil habitantes, dos quais 171 mil eram do sexo masculino e os restantes 340 mil do sexo feminino. No censo de 2000, o número total de habitantes tinha aumentado para 432 mil habitantes, dos quais 208 mil eram do sexo masculino e 224 mil do sexo feminino.

Segundo o INE, em 2002, o número de cabo-verdianos a residir no exterior (cerca de 500 mil) ultrapassava o número de habitantes a residirem no país, à época aproximadamente 470 mil indivíduos. Atualmente, o número de habitantes ultrapassa os 491 mil. O INE, mostra ainda que existe um forte crescimento populacional nos principais centros urbanos do país (Praia, São Vicente e Sal), que é uma característica marcante da evolução demográfica das três últimas décadas. Enquanto a população aumentou 46% entre 1980 e 2000, a cidade da Praia registou um aumento de 82%. Em São Vicente, o aumento foi de 60%, e na ilha do Sal, de 150%. Para este crescimento, contribuiu o êxodo rural das populações. O crescimento acelerado da urbanização, teve consequências negativas para as áreas da educação, saúde, saneamento, habitação e emprego, uma vez que as infraestruturas sociais, não acompanharam a evolução do crescimento destes centros urbanos. Essa situação não permitiu a inserção de todos os que se deslocaram para estas ilhas à procura de tra-


balho, contribuindo assim para o aumento do índice de pobreza das famílias, dificultando as suas condições de vida. Este crescimento acelerado dos três principais centros urbanos do país, contribuiu igualmente para a estagnação de algumas ilhas, como as da Boa Vista, de São Nicolau e Santo Antão. É também nestas ilhas que se regista um maior índice de pobreza e analfabetismo. No que se refere à distribuição da população por grupo etário, o Censo de 2000 mostra que 42% da população tem menos de 14 anos de idade, e mais de metade, cerca de 53,5%, tem idade inferior a 20 anos. Este facto constitui um desafio para o governo, pois exige bastante das políticas de educação, formação profissional, saúde, habitação e emprego. Dados de 2010, revelam que, a taxa de alfabetização na faixa etária entre os 15 e os 24 anos, é atualmente de 95,6%, o que é prova do empenho do governo nas políticas educativas.

Por ser um pequeno Estado, a economia de Cabo Verde é aberta e com forte dependência do comércio, das remessas dos seu emigrantes e da ajuda internacional. Em termos de captação de investimento externo, Cabo Verde não é diferente de outros pequenos Estados, onde a competitividade face a mercados maiores é um fator limitador do investimento externo. O setor público é o principal empregador, num mercado de trabalho formal limitado. A economia do país, ressente-se dos escassos recursos naturais existentes, o que a torna bastante dependente das importações, sobretudo de produtos de primeira necessidade, como a alimentação. Também os bens de consumo e equipamentos, têm de ser, quase na sua totalidade, importados do exterior. Para as restrições de crescimento económico do país, contribuem essencialmente a falta de recursos naturais, a forte pressão da população sobre esses meios, a reduzida dimensão territorial, a insularidade e a descontinuidade territorial, a escassez de recursos hídricos, o clima desértico em todo o território, secas prolongadas, reduzido potencial de terra cultivável, forte ritmo de crescimento demográfico, mercado de trabalho diminuto, e localização geográfica à margem dos principais centros de comércio internacional.

A fraca base produtiva do país, reflete-se na economia, tornando-a bastante dependente das importações

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

A expectativa de vida que na década de 90 era de 63 anos, em 2000 passou para 71 anos, sendo que para as mulheres é de 75 anos e para os homens de 67 anos de idade. Essa evolução resulta diretamente da melhoria das condições de vida, e de um maior acesso da população aos serviços de saúde.

A evolução económica

39


40

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Na década de 90 do século passado, a economia cabo-verdiana beneficiou do crescimento dos investimentos externos, sobretudo no setor bancário e hoteleiro, com a venda a grupos estrangeiros (na sua maioria portugueses) de algumas das principais empresas estatais, conseguindo Cabo Verde passar para a comunidade internacional a imagem de um país politicamente bem administrado, apesar dos parcos recursos. Contudo, com a diminuição da ajuda externa por parte de alguns doadores que, em vista do aumento do PIB per capita dos últimos anos, tendem a restringir os montantes da sua cooperação financeira, Cabo Verde enfrenta o desafio de persuadir estes parceiros a manter os atuais níveis de ajuda económica. O facto de Cabo Verde passar a ser classificado com País de Desenvolvimento Médio, acarreta mais responsabilidades e melhor gestão dos recursos disponíveis por parte do governo. Apesar da população cabo-verdiana ser considerada como o principal recurso do país, existe ainda um número muito significativo de analfabetos, que representa cerca de 18% da população em idade ativa, com baixos níveis de qualificação e for-

A pobreza constitui uma das principais características da situação social de Cabo Verde, a que não alheio o facto da sua frágil base produtiva e das próprias condições económicas do país. A estrutura produtiva não consegue gerar empregos em número suficiente, capaz de absorver a mão-de-obra disponível e que na sua maioria é pouco qualificada. O desemprego é a principal causa de pobreza do país, assim como a degradação do meio ambiente, provocada pela escassez de água e da erosão dos solos, que se reflete na prática da agricultura de subsistência, incapaz de alimentar a população que dela depende.Segundo as mais recentes estatísticas do país, residem em Cabo Verde, 491 mil habitantes, distribuídos por 117 mil agregados familiares, com um índice de incidência de pobreza de 26,6%. A falta de instrução e a falta de formação profissional, em conjunto com as poucas oportunidades de trabalho, são considerados como os principais fatores para a pobreza e desemprego.

w w w.nosgenti.com

A liberalização e a privatização de importantes ramos da atividade económica, tem alterado profundamente a economia cabo-verdiana nos últimos anos.

A situação social

O desenvolvimento de Cabo Verde tem sido marcado, nas últimas décadas, por avanços e recuos resultantes da vulnerabilidade económica do país, da falta de recursos naturais, de uma fraca base produtiva e de uma forte dependência em relação aos fluxos financeiros externos, em que o peso da ajuda pública externa e as remessas dos emigrantes, assumem um papel vital no sustento económico do país.

mação profissional, sendo estes a principal causa de desemprego que atinge as famílias mais pobres do país.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Por outro lado, a independência do país, encontra a economia de Cabo verde ancorada na estrutura socioeconómica herdada do modelo colonial, a qual apresentava um profundo atraso. Na ausência de atividades produtivas do setor público, o setor privado era essencialmente formado pela agricultura, pesca e construção civil, segundo moldes tradicionais e obsoletos. Apresentava uma economia de mercado atrasada e limitada às poucas áreas urbanas, com o predomínio de uma economia de subsistência, condicionada à evolução social e ao desenvolvimentos das classes sociais.

41


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Cabo Verde possui atualmente uma população ativa empregada na ordem dos 177 mil habitantes

42

O último censo, revela que, Cavo Verde possui atualmente uma população ativa empregada na ordem dos 177 mil habitantes, dos quais 56,7% são do sexo masculino e 43,4% do sexo feminino.

lume de emprego no país. Existe igualmente um elevado grau de desigualdade socioeconómica, em que o rendimento e a riqueza, está concentrado numa pequena franja da população.

Relativamente à distribuição de emprego no país, este encontra-se concentrado essencialmente no setor primário (mais especificamente na agricultura), que absorve 24% da população, no setor secundário (indústrias, produção e distribuição de energia, água e construção civil), com cerca de 20% e finalmente, o setor terciário, que é o principal empregador do país, com uma percentagem total de 57% dos empregos disponibilizados. Os serviços governamentais asseguram o maior vo-

Em forma de conclusão, estas analises, suportadas em fontes especializadas privadas e oficiais, revelam ainda o longo caminho que o país terá de percorrer para se aproximar dos níveis de desenvolvimento de países semelhantes. A revelação dos dados expostos, é um claro indicador da clarividência, dos cabo-verdianos no geral e dos políticos em particular, de que os ganhos obtidos ainda são insuficientes face aos objetivos e determinação na viabilização do país. 


Há coisas que são

para sempre

P R ATA

RELÓGIOS

J ia d’África OURIVESARIA

Esplanada Restaurante S. João Rua da Liga Africana, 121A · Imgombotas · Luanda Telfs. 933 326 752 · 924 972 986 E-mail: joia-de-africa@hotmail.com

Aberta também à hora do almoço e do jantar

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

OURO

w w w.nosgenti.com

GOLD

43


E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Entrevista

Jorge Carlos Fonseca

Presidente da República de Cabo Verde

Erigir o futuro do país

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Jorge Carlos de Almeida Fonseca nasceu no Mindelo a 20 de Outubro de 1950 -. Jurista de profissão, foi eleito, a 9 de Setembro de 2011, Presidente da República de Cabo Verde. Com um percurso político iniciado na luta de libertação nacional, Jorge Carlos Fonseca foi, entre 1975 e 1977, Director Geral da Emigração em Cabo Verde. Entre 1977 e 1979, ocupou funções de secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ao que se seguiu um período de algum afastamento da vida política, aproveitado profissionalmente para leccionar, primeiro na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1982-1990) e depois na Faculdade de Direito de Macau (1989-1990). Entre 1991 e 1993 regressa à vida política activa, ocupando a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros. Autor de vários trabalhos na área do direito, Jorge Carlos Fonseca foi condecorado pelo Estado de Cabo Verde. É um dos titulares do Estatuto de Combatente da Liberdade da Pátria.

44

No seu entender, na época colonial, o pensamento generalizado dos intelectuais e nacionalistas era lutar pela independência ou simplesmente reclamar mais justiça, mais igualdade e melhores condições sociais para o povo cabo-verdiano? A luta pela independência de Cabo Verde fez-se num contexto histórico muito específico. Penso que dificilmente poderemos falar de um pensamento independentista estruturado antes da criação do PAIGC, na Guiné-Bissau. É claro que, antes disso, houve alguns movimentos mais ou menos político-culturais pela afirmação da autonomia de Cabo Verde, muitos deles num quadro de autonomia regional, subjacente a Portugal.

A radicalização pela separação e consequente luta pela independência, com um pensamento estruturado e organizado, só surge com criação do PAIGC, o que quer dizer que, se o objectivo era a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, essa luta foi sempre pensada, contextualizada e operacionalizada num quadro teórico de unidade africana. Se pensarmos no ideal de Amílcar Cabral, verificamos que a sua teorização surge num contexto de afirmação de África. Neste sentido, penso que podemos afirmar que houve uma influência do pan-africanismo no processo de independência, sobretudo se pensarmos que, já em 1945, no congresso de Manchester, já com a presença de Nkrumah e


45

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Kenyatta, a ideia de "África para os africanos", e mesmo algumas ideias de Cabral, nomeadamente a "africanização dos espíritos", começavam a ter forma. Daí que a luta pela independência se tenha realizado num quadro de unidade africana, e, talvez também por isso, surgiu a ideia de uma luta com base num cenário de unidade entre a Guiné e Cabo Verde.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

"Quando se optou pela luta armada, o mais visível e estrategicamente mais adequado às aspirações dos povos, era a luta desencadear-se no continente, mais concretamente nas matas da Guiné-Bissau."

46

Penso que não foi tanto uma questão de estratégia, mas sim uma questão de eficácia e pragmatismo em se atingirem os objectivos. De qualquer forma, a luta foi feita por guineenses, mas também por cabo-verdianos, muitos deles a lutar noutras frentes. Em Cabo Verde e mesmo na diáspora cabo-verdiana, a luta funcionou noutros moldes, mais concretamente através de acções clandestinas de enfraquecimento do regime colonial. Do ponto de vista externo, era mais comum falar-se na luta na Guiné-Bissau; no entanto, não creio que tenha sido por razões estratégicas ou por alguma ideia de resignação em relação ao conflito, que não houve mais protagonismo por parte dos cabo-verdianos. O facto de, logo após terem sido reunidas as condições de afirmação da independência em Cabo Verde, ter havido uma adesão popular extraordinária à luta, mostra que os cabo-verdianos também tinham presente a ideia da separação, da autonomia e da criação de uma identidade própria, que não a imposta pelo regime colonial.

Evidentemente que esta unidade obedeceu a outro tipo de razões, nomeadamente de estratégia política e diplomática, mas sem dúvida que tem algo a ver com essa perspectiva mais geral de unidade africana.

A esta distância, acha que era possível viabilizar esta visão política de Amílcar Cabral, relativamente à união dos dois povos, quer em termos políticos, como em termos culturais e económicos?

Essa estratégia da unidade, muito defendida por Amílcar Cabral e que levou ao pensamento e mais tarde à ligação ideológica à Guiné-Bissau, não terá retirado aos cabo-verdianos a liderança dos seus destinos, nomeadamente nas negociações dos termos da independência nacional?

Creio que a ideia de unidade entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde era um objectivo e um conceito que obedecia a uma visão estratégica de luta. Talvez,

Essa ideia de segundo plano de Cabo Verde nas lutas pela independência tem a ver com as circunstâncias concretas desses movimentos. Quando se optou pela luta armada, o mais visível e estrategicamente mais adequado às aspirações dos povos era a luta se desencadear no continente, mais concretamente nas matas da Guiné-Bissau. Historicamente, e pelos dados que tenho, pensou-se igualmente numa luta nas ilhas. Inclusivamente, houve quadros cabo-verdianos que foram formados para um desembarque militar nas ilhas, tentando transpor para Cabo Verde a teoria do foquismo de Che Guevara, que consistia em criar focos de revolução, neste caso adaptados a Cabo Verde. Contudo, chegou-se à conclusão que não era viável nem o desembarque, nem a luta armada aqui nas ilhas de Cabo Verde.


"Muito antes da luta, já existia uma

nação cabo-verdiana, mais ou menos sólica, com critérios de identidade próprios"

Alguns poderão dizer que o projecto talvez não tenha sido bem explicado ou fundamentado. A minha opinião é que não havia uma grande teorização desta ideia. Mesmo junto

w w w.nosgenti.com

Estes estados de evolução histórico-sociais diferentes levaram a que a ideia de unidade não vingasse em Cabo Verde e que, na oportunidade que houve para a sociedade cabo-verdiana se pronunciar, esta a tenha renunciado.

Acredito que essa ideia não tenha vingado, nomeadamente aqui em Cabo Verde, pelo facto de haver diferenças visíveis entre os dois países, sobretudo ao nível das dinâmicas sociais e dos processos de formação histórico-sociais. Ainda hoje há um pro-

blema na nação guineense face à diversidade das etnias do seu povo, o qual lhes dificulta a construção do Estado. Em Cabo Verde, a nação precedeu o Estado. A nação cabo-verdiana existe muito antes da independência, muito antes do PAIGC. Muito antes da luta já existia uma nação cabo-verdiana, mais ou menos sólida, com critérios de identidade próprios, designadamente a língua, o modo se ser e de estar, as tradições e a cultura. Este é um elemento forte da nossa identidade que não existia, na época, na Guiné-Bissau.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

naquele contexto histórico, onde já havia lutas de outros povos africanos pela sua autonomia e independência, diplomaticamente fosse mais fácil enquadrar a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde num contexto com uma argumentação de emancipação dos povos africanos. Houve um esforço de fundamentação desse projecto de unidade, através de critérios históricos e culturais, mas sobretudo, através de uma definição de estratégia de luta.

47


dos dirigentes do PAIGC, tanto da Guiné como de Cabo Verde, havia muitas dúvidas e reservas em relação ao projecto de união. Talvez não se falasse muito, mas, em círculos privados e restritos, sabia-se que havia muitas hesitações quanto às próprias bases teóricas da unidade entre os dois países, sobretudo quando se pensava em unidade de Estados. Creio que o fim desse projecto não tem a ver com a morte de Cabral, como alguns teorizam. Quando Amílcar Cabral morre, a ideia continua, pelo menos como um projecto oficial, mas não havia condições sociais, culturais nem políticas para que projecto vingasse, e efectivamente, o projecto não vingou. Lembra-se do que sentiu nesse dia 5 de julho de 1975?

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Quando se dá a independência de Cabo Verde eu tinha 24 anos de idade, mas já com sete anos de militância na clandestinidade, no PAIGC, a lutar pela

48

independência. Como jovem, sonhava com esse momento de libertação, mas não nego que, por vezes, tinha dificuldade em acreditar que algum dia esse momento chegaria. Quando ocorre o 25 de Abril em Portugal, a ideia de que a independência poderia ser algo de realizável torna-se mais evidente. Antes desse momento era apenas uma luta por ideais de justiça, igualdade e equidade para nos podermos afirmar como entidade autónoma no mundo. Passei o dia da independência nos Estados Unidos da América. Fui representar Cabo Verde nesse país, mais concretamente no estado de Massachusetts, onde ainda hoje existe uma comunidade muito forte de cabo-verdianos. Fui eu que hasteei a bandeira de Cabo Verde na celebração da independência. Foi um sentimento muito forte de felicidade e alegria, sobretudo por ter estado num ambiente de muitos amigos e ter tido a possibilidade de içar a nossa bandeira, nesse momento tão importante da nossa história.


Jorge Fonseca, Pedro Pires e Abílio Duarte. Cimeira da OUA, Liberville, 1977

Com a Revolução de Abril em Portugal, houve um outro factor que pesou, que foi a aliança forte entre o PAIGC e o Movimento das Forças Armadas português, que, praticamente, inviabilizaria qualquer

Será que poderia ter sido diferente?

Cabo Verde, devido a condições específicas da sua sociedade, nomeadamente pelo seu processo histórico de formação, pelas elites intelectuais e culturais que possuía e possui, e pelo contacto que a vasta diáspora manteve com outros regimes já democráticos, foi sempre um espaço aberto a outros valores e culturas. Por isso, penso que os cabo-verdianos estariam preparados para eleger a democracia, bem antes dos anos 90. Tanto assim é que, contrariamente ao que muitos pensam, houve em Cabo Verde muitos movimentos, muitos grupos e tentativas de resistência ao partido único, com muitas iniciativas para a abertura democrática do regime. A UCID,

w w w.nosgenti.com

Talvez, no entanto, também não era fácil a abertura política, embora pense que esta pudesse ter ocorrido mais cedo. Claro que tudo isto não é fácil de demonstrar, dado o contexto político da época. O certo é que a forma como os cabo-verdianos abraçaram o movimento popular e político que levou à irrupção democrática nos anos 90, dá-nos a ideia de que a sociedade há muito estaria preparada para abraçar a democracia.

Penso que, na altura, a resposta a essa pergunta, era extremamente difícil. Actualmente, talvez seja mais fácil de responder. É sempre possível dizer que se podia fazer de forma diferente, mas à distância, vejo que no contexto preciso e concreto em que ocorreu a independência, num âmbito de clara e forte supremacia do PAIGC, e também, pelo menos aparentemente, de um apoio muito forte e entusiástico das populações ao partido e ao ideário da independência, seria muito difícil obtermos a soberania num quadro que não aquele em que se verificou. Ao nível da Organização da Unidade Africana e das Nações Unidas, o PAIGC já tinha sido reconhecido como o único movimento representativo da luta pela libertação. Havia na altura outras organizações, mas eram muito mais frágeis e sem apoios internacionais, por isso tiveram muitas dificuldades em se afirmar.

outra veleidade política. Após a proclamação da independência, num quadro de liderança do PAIGC, viveu-se, até 1991, num regime de partido único.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Entretanto, entrou-se numa nova era, com novas responsabilidades. Foi preciso definir um modelo constitucional e político para a altura. Acha que era possível, logo a seguir à independência, desenhar-se um modelo diferente para a Constituição de Cabo Verde?

49


sobretudo na emigração, é um exemplo concreto dessa resistência. Também, ainda nos fins dos anos 70, apareceu um movimento que ficou conhecido por movimento fraccionista ou trotskista, do qual eu fiz parte, que integrava muitos jovens militantes da independência e vários segmentos de militantes políticos nacionais, e que depois se transformou em vários outros grupos, nomeadamente o CCPD – Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia, que surgiu em Portugal em 1981 e 1982 mas que possuía ramificações internas aqui no país. A Liga Cabo-verdiana dos Direitos Humanos, que surgiu em 1982, é um outro exemplo dos vários movimentos que se organizaram em prol da implementação de um regime democrático.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Mesmo dentro do próprio regime verificaram-se alguns ensaios para uma relativa abertura política e lembro-me que, no congresso de 1988 do PAICV, surge a ideia de abertura da economia, falou-se de extroversão económica, mas que, na altura não houve consenso por parte da direcção do partido. Na minha perspectiva, só quando já não era suportável, por parte da sociedade, o regime de partido único, é que surge a declaração de Fevereiro de 1990 para a chamada abertura política, numa altura em que o PAICV já não possuía condições para controlar os acontecimentos, sobretudo ligados ao movimento popular e político que exigiu eleições, as quais culminam com a vitória esmagadora do MpD, a 13 de Janeiro de 1991.

50

Eurico Monteiro, Carlos Veiga e Carlos Fonseca. Praia, 1991

Na altura, a conjuntura específica que se vivia nos regimes socialistas, nomeadamente com a desagregação dos membros do Pacto de Varsóvia, com a política da perestroika e com a queda do muro de Berlim, não terá acelerado a mudança política em Cabo Verde? É evidente que aqueles movimentos populares e políticos pró-democráticos que nos anos 90 irromperam em Cabo Verde encontravam-se inseridos num contexto internacional que os favoreceu. Verificou-se, nessa altura, uma desagregação de muitos regimes totalitários e autoritários, o que, sem dúvida, contribuiu para o fomento das mesmas ideias em Cabo Verde. Contudo, foi necessário haver condições internas que possibilitassem essa mudança e, na altura, Cabo Verde possuía essas condições. Apesar de tudo, o regime de partido único em Cabo Verde colhia alguma simpatia do ponto de vista externo. Lembro-me que, por exemplo, em Portugal, contactávamos círculos democráticos portugueses e as pessoas não se mostravam muito receptivas a uma mudança de regime em Cabo Verde, argumentando que a situação do país era diferente da de outros países com o mesmo tipo de políticas; que era um regime muito mais suave. Por conseguinte, houve alguma dificuldade em fazer valer os nossos argumentos e atrair a simpatia desses círculos democráticos internacionais. Se não houvesse esse contexto internacional e essa erosão do partido úni-


51

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


"a ideia inicial do PAICV não era a realização de eleições imediatas, mas sim de fazer uma espécie de período de estágio" co aqui em Cabo Verde, não era previsível que se registassem alterações no modelo político interno.

Repare-se que, deste o período da abertura política de Fevereiro de 1990 até às eleições de 13 de Janeiro de 1991, isto é, em menos de um ano, dá-se a formação de uma nova força política - o MpD capaz de ir a eleições com o PAICV, partido organizado e estruturado, e derrotá-lo com uma maioria qualificada superior a dois terços, impondo, inclusivamente, o ritmo das alterações constitucionais. Tal constitui prova de que havia uma maturação e uma preparação da sociedade cabo-verdiana para um novo regime. Um dado curioso é que, apesar do MpD ter surgido no panorama político com força, não era ainda um partido político legalmente constituído. Apesar disso, fruto do descontentamento popular, o PAICV viu-se obrigado a negociar o calendário eleitoral com o MpD. Curioso é verificar que, a ideia inicial do PAICV não era a realização de eleições imediatas, mas sim de fazer uma espécie de período de estágio, marcando as eleições para quatro anos depois. Contudo, a dinâmica popular de rejeição a um regime de partido único foi de tal forma, que levou a que o PAICV, em conjunto com o MpD, alterasse o caderno eleitoral. Nessas legislativas, o MpD ganha com mais de dois terços dos votos e, nas presidenciais, Mascarenhas Monteiro derrota, com longa margem, Aristides Pereira, que até aí se julgava um candidato invencível. Por isso, penso que o processo democrático aconteceu devido a uma conjunção favorável de factores internos e de factores externos.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Este modelo constitucional, que legitima o multipartidarismo em Cabo Verde, é para si um modelo acabado, ou há ainda trabalho a realizar na sua consolidação?

52

A Constituição, sobretudo num país que cresce baseado na cultura democrática, traduz valores, opções e crenças que representam um consenso social. O que posso dizer é que, no meu entender e em rigor, Cabo Verde só é Estado constitucional com a Constituição democrática de 1992. Houve Constituições anteriores, nomeadamente a de 1980 que institucionalizou o regime de partido único, através do célebre artigo 4º onde se dizia que o Partido era a força dirigente da sociedade e do Estado. Contudo, o Estado cabo-verdiano dos anos 80 (oitenta) não estava fundado, nem limitado por essa Constituição. A legitimidade que imperava era a do movimento de libertação nacional que, por sua vez, procurava le-



gitimar a própria Constituição. Na Constituição de 80, o Presidente da República quando tomava posse e prestava juramento, fazia-o afirmando "fidelidade aos princípios e objectivos do PAICV e à Constituição". A Constituição aparecia em segundo lugar. Por isso, um Estado que está limitado e fundado na Constituição só surgiu, verdadeiramente, em 1992. É evidente que a Constituição é um texto aberto. Vai funcionando a par das dinâmicas sociais e políticas. Neste preciso momento, a Constituição é que baliza o poder político. Não há democracia cabo-verdiana fora da Constituição e muito menos contra ela. No fundo, o quadro do exercício da democracia cabo-verdiana está regulado pela Constituição. Contudo, como ainda não somos um país de grande cultura constitucional, é natural que haja dinâmicas na vida político-partidária que podem não estar sempre de acordo com o texto da Constituição.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

A Constituição que temos tem servido em pleno à afirmação da democracia e ao processo do nosso desenvolvimento. Por mais críticas, reparos e tentações que houver para alterar a Constituição - às vezes até por uma questão de moda - o sistema político existente em Cabo Verde tem provado que é o adequado ao país, onde a democracia tem sido exercida sem grandes sobressaltos ou crises políticas. Os pequenos desentendimentos que têm existido são resolvidos no quadro constitucional que possuímos. Podemos aprimorá-la fazendo algumas reformas, conforme anteriormente já o fizemos. Ainda em 2010 procedemos a uma Revisão Constitucional, o que é natural para acompanhar o evoluir da democracia e da sociedade; contudo, não vejo necessidade de a alterar profundamente, pois tem sido um instrumento vital na estabilidade do país, servindo como quadro regulador do desenvolvimento político, social e cultural de Cabo Verde.

54

"Se analisarmos países com experiências democráticas anteriores à nossa, alguns deles com democracias mais consolidadas que a nossa, também vemos que há contestação de resultados eleitorais."

No entanto, uma coisa são as regras democráticas e outra completamente diferente, são as suas práticas. No quadro político nacional, as discussões, quando muito exacerbadas, não poderão descredibilizar as boas práticas da democracia e dos políticos? É bom que em Cabo Verde haja exigência e ambição com a nossa democracia. Já tivemos eleições em que os resultados foram contestados, havendo necessidade da intervenção de um órgão jurisdicional. Aconteceu, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2001. Essas eleições decidiram-se com uma vitória do Comandante Pedro Pires por 12 votos, após um recurso instaurado no Supremo Tribunal de Justiça. Ainda agora, nas últimas eleições autárquicas, houve uma impugnação num determinado círculo eleitoral, em que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu anular as eleições em duas mesas. Se analisarmos países com experiências democráticas anteriores à nossa, alguns deles com democracias mais consolidadas que a nossa, também vemos que há contestação de resultados eleitorais. Talvez em Cabo Verde essas questões sejam mais empoladas, por se se tratar de situações novas. No entanto, existem instituições para cuidar dessa arbitragem. Uma vez decididas nas instâncias competentes, todos as acatam sem quaisquer complicações. Podemos então deduzir, que passados estes trinta e sete anos, os cabo-verdianos, na sua generalidade, estão satisfeitos com o modelo político do país? Penso que sim. Apesar da nossa democracia não ser perfeita, pois também não existem países com democracias perfeitas, o processo democrático em Cabo Verde é irreversível. Sei que é uma afirmação polémica, mas, no meu entender, a esmagadora maioria dos cabo-verdianos já interiorizou a ideia de que um dos critérios que legitima o exercício do poder é precisamente o voto popular. Em Cabo Verde, qualquer outra ideia que não esta, não terá aceitação, o que torna irreversível o nosso processo democrático, isto é, não há possibilidade de retrocesso dos modelos políticos actuais. Mesmo que haja alguma tentação para tal, estou convencido que os cabo-verdianos lutarão por repor os valores e os ideais dos princípios da democracia. Neste sentido preciso, entendo que o nosso processo democrático é irreversível.


55

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Cabo Verde tem registado grandes progressos nos últimos anos. Acha que tal facto é resultado apenas da boa governação, ou existem outros fatores favoráveis, como por exemplo, a ajuda externa? Numa avaliação objectiva, sou da opinião que, nestes 37 anos, fizemos um percurso interessante. Muitos países tiveram mais apoios que os que nós tivemos e não conseguiram os resultados que atingimos, o que quer dizer que há algum mérito da nossa parte. Independentemente dos regimes e dos sistemas de governo que temos tido até aqui e da avaliação, mais ou menos positiva, dos sucessivos governos que tivemos, objectivamente, Cabo Verde desenvolveu-se. É algo que qualquer pessoa pode comprovar. Alguém que fizesse o retrato de Cabo Verde de 74 e o comparasse ao Cabo Verde de hoje, não encontraria termos de comparação. São duas realidades diferentes, quer ao nível da educação, saúde, justiça, infra-estruturas portuárias, aeroportuárias, viárias, e mesmo em termos de desenvolvimento político. O problema que podemos colocar, do ponto de vista histórico, é a avaliação que se pode fazer ao nível da prestação do regime de partido único e do regime pluralista depois de 90, isto é, se com os apoios que tivemos, poderíamos ter feito mais. Se fizemos o máximo que estava ao nosso alcance ou se poderíamos ter feito ainda mais. A questão que se coloca, não é se nos desenvolvemos; o que devemos questionar é se o fizemos na medida do desejável, com os meios que tivemos.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Apesar de termos evoluído muito, creio que precisamos de dar um grande salto qualitativo, isto é,

56

"Apesar de termos evoluído muito, creio que precisamos de dar um grande salto qualitativo, isto é, deixarmo-nos de preocupar com o que já fizémos e tentarmos ser ainda mais ambiciosos, traçando metas cada vez mais elevadas."

deixar de nos preocuparmos com o que já fizemos e tentarmos ser ainda mais ambiciosos, traçando metas cada vez mais elevadas. Devemos tentar atingir os níveis dos países que estão à nossa frente. Há Estados que são ilhas como nós e que, em todos os indicadores, estão à nossa frente. Nós temos é que atingir esses mesmos níveis e, se possível, até os ultrapassar. Essa é que deverá ser a ambição nacional, a qual deverá ser protagonizada, em primeira mão, pelo Presidente da República. Temos que nos desenvolver preservando o ambiente, crescendo mais horizontalmente, ou seja, atenuando cada vez mais as desigualdades sociais e as assimetrias regionais, que são, neste momento, pouco razoáveis. Devemos priorizar mais a qualidade de vida e o bem-estar de todos os cabo-verdianos. Esse é o grande desafio dos governos de Cabo Verde. O facto de Cabo Verde ser atualmente considerado um país de desenvolvimento médio, faz com que deixe de beneficiar de alguns apoios por parte da comunidade internacional. Sem esses apoios internacionais, que soluções poderá Cabo Verde encontrar para continuar o seu desenvolvimento e o seu progresso? Os números que apresentámos e que espelham o crescimento e desenvolvimento do país nos últimos anos fizeram com que fôssemos classificados de país de rendimento médio. Devemos assumir este facto não como um problema, mas como um desafio, que também proporciona oportunidades. Hoje vive-se uma crise internacional financeira e económica que atinge, sobretudo, os países europeus da zona euro. A nossa economia é muito dependente da economia desses países, o que quer dizer que, também aqui, recebemos os impactos negativos dessa crise. Contudo, a ajuda externa clássica também está a acabar. A ajuda em donativos findou e daqui a pouco tempo irá também findar a ajuda externa ao nível de financiamentos concessionais, o que quer dizer que temos que repensar e reavaliar os nossos modelos de economia e de desenvolvimento. Temos que pensar em desenvolver uma economia capaz de gerar internamente os fluxos financeiros indispensáveis ao nosso crescimento, resolvendo um dos grandes problemas de Cabo Verde, que é o desemprego - temos já uma taxa de desemprego, nomeadamente junto dos jovens e das mulheres, que atinge números preocupantes. Para o fazermos, temos que apostar numa economia de serviços, vi-


Apostar numa indústria ligeira vocacionada para as exportações e na prestação de serviços internacionais, como as telecomunicações é outra possibilidade que deve ser seriamente considerada.

w w w.nosgenti.com

Nos últimos anos, temos crescido a uma taxa média de 5%, o que, segundo os entendidos na matéria, para nos aproximarmos de referências como as Ilhas Maurícias ou as Ilhas Seicheles, devíamos

Possuímos ainda potencial ao nível do turismo. No entanto, nesta área, devemos ter cuidado com o modelo que queremos realizar, para que esta actividade não delapide os recursos e condicione o nosso meio ambiente. Terá que ser um turismo capaz de impulsionar a economia local, nomeadamente ao nível da agricultura, pecuária e pescas. Devemos igualmente diversificar a nossa oferta turística, introduzindo outros modelos que não apenas o turismo balnear. Temos potencial no turismo de montanha, no turismo rural, no turismo de saúde e no turismo cultural e científico, através da captação, para Cabo Verde, de potenciais congressos e conferências internacionais.

"Temos de pensar em desenvolver uma economia capaz de gerar internamente os fluxos financeiros indispensáveis ao nosso crescimento"

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

rada para a exportação, explorando e potenciando as vantagens comparativas que temos: o facto de sermos uma democracia de referência, de possuirmos estabilidade política e institucional e de termos uma posição geoestratégica importante e interessante do ponto de vista internacional.

57


crescer de forma contínua, num mínimo de 10 anos, a uma taxa superior à que temos vindo a registar. É, sem dúvida, um desafio difícil e complexo. Num ambiente de crise é um objectivo difícil, é um grande desafio para o país, mas é o único caminho que temos. Tocou no problema do desemprego, que arrasta consigo outras consequências graves de cariz social. Tem-se verificado uma desagregação da base familiar cabo-verdiana, que era a pedra basilar da sociedade. Consequência direta desta desagregação, é a delinquência juvenil e a perda de valores morais por parte das futuras gerações. Em que medita este fenómeno poderá contribuir para a desestruturação da nossa sociedade? A partir do momento que temos taxas de desempregA partir do momento que temos taxas de desemprego elevadas, sobretudo junto da camada jovem, levantam-se problemas delicados em termos sociais. Cabo Verde tem uma população muito jovem, com aproximadamente dois terços dos seus habitantes com idade inferior a 35 anos. Nesta faixa, há um elevado número de jovens com menos de 18 anos que, fruto da elevada taxa de desemprego, vê condicionado o presente e, em última análise, o futuro das suas vidas. A única forma de reduzirmos estes números, que poderão colocar em causa o nosso crescimento e desenvolvimento, é através do crescimento da nossa economia. E um crescimento forte e contínuo. Não temos outra alternativa.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Por outro lado, temos de apostar em políticas fortes na área da educação e formação técnica e profissional, pois para atingirmos um novo patamar de desenvolvimento, precisamos de possuir quadros altamente qualificados. Temos feito muito ao nível da educação, que é uma das nossas grandes conquistas,

58

"temos de apostar em políticas fortes na área da educação (...), pois para atingirmos um novo patamar de desenvolvimento, precisamos de possuir quadros altamente qualificados"

mas é, talvez, o sector onde a aposta tem que ser ainda maior, investindo agora numa educação de ponta, de qualidade e com um maior grau de exigência. Um outro grande desafio que enfrentamos, fruto directo da problemática do desemprego e que pode afectar a economia, o desempenho do turismo e a nossa coesão social, é a redução dos níveis de insegurança, principalmente nos meios urbanos principais, para uma dimensão comunitariamente suportável, pois actualmente, os níveis verificados são já preocupantes. Qual a importância da diáspora cabo-verdiana para a resolução de alguns dos problemas do país? Logo à partida, essas comunidades no exterior tornam-nos numa nação maior. O sermos uma nação diaspórica dá-nos uma dimensão que não teríamos caso fossemos constituídos apenas pelos cabo-verdianos do arquipélago. Mesmo do ponto de vista dos processos políticos, a diáspora foi, e continua a ser, muito importante. Por exemplo, para o processo da independência, boa parte dos quadros cabo-verdianos que ingressaram nas fileiras da luta na Guiné-Bissau foi recrutada em Portugal, França, Holanda e Estados Unidos da América. Muitos grupos de luta pela independência na clandestinidade fizeram-na na diáspora. Tiveram também uma importância grande na democratização do país, através de vários grupos de resistência e oposição que trouxeram novas ideias e valores. Durante muito tempo, a própria sobrevivência de muitas famílias cabo-verdianas deveu-se à contribuição da diáspora, nomeadamente através das remessas dos emigrantes. Há anos em que o volume dessas remessas chega a ultrapassar o volume da ajuda externa da cooperação internacional. Por todos estes motivos, ao longo da nossa história, a diáspora cabo-verdiana tem-se mostrado de vital importância para o crescimento e desenvolvimento do país. No entanto, temos que começar a pensar de maneira diferente. A partir de uma ligação mais forte entre as ilhas e a diáspora, temos que criar políticas públicas eficazes e inteligentes que potenciem o capital intelectual, científico, técnico e financeiro dessas comunidades no exterior, incentivando o investimento directo nos processos de desenvolvimento de Cabo Verde.


Gostaria que soubessem que somos um país com futuro. Que acreditem no nosso, no seu país, Cabo Verde. Fruto da sua democracia, do seu povo e das suas competências, tem condições para se tornar, a médio prazo, num país desenvolvido. Para alcançarmos esse objectivo, que é o de todos nós, temos que continuar a trabalhar, empenhando-nos todos por construir um Estado cada vez mais coeso, uma democracia avançada e um país competitivo, onde cada cabo-verdiano se sinta orgulhoso do trabalho realizado e onde tenha prazer em viver.

w w w.nosgenti.com

Cabo Verde, apesar de ser um país pequeno, tem todas as condições humanas, culturais e sociais para ser um país com apetência para lidar bem com outros povos e outros Estados. Temos bem presente a permuta e a cooperação com os outros. Temos presença na CPLP, na União Africana, na CEDEAO, nas Nações Unidas entre outras. A essas instâncias podemos oferecer um país com estabilidade política e institucional, onde há respeito pelas leis e cujas pessoas são afáveis, competentes e com vontade de aprender. Adicionando a estes factores a nossa posição geoestratégica que poderá servir de ponte a outros mercados, penso que temos potencial para nos tornarmos um país com condições de receber investimentos de todo o género.

Que mensagem deixaria a todos os cabo-verdianos, quer para os residentes no arquipélago, quer para todos os que se encontram na diáspora?

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Como vê a relação de Cabo Verde com os outros Estados, e como se pode tirar vantagens desses relacionamentos?

59


60

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E: Luís Neves | W: Diana Lopes | F: Pedro Matos

Opinião

Presidente da Assembleia Nacional

Basílio Mosso Ramos

Cabo Verde Motivo de orgulho para todos nós

A esmagadora maioria dos cidadãos e a maior parte dos intelectuais cabo-verdianos desejavam a independência e os resultados concretos obti-

Conhecedor da realidade de Cabo Verde antes da independência, Basílio Mosso Ramos lembra “as condições de vida dificílimas pelas quais o país passou, como os indicadores de desenvolvimento humano, que eram na altura os piores da região – uma elevada taxa de analfabetismo, uma esperança média de vida baixa, uma taxa de mortalidade infantil extremamente elevada, uma situação de miséria muito grande, mas, sobretudo, uma incerteza permanente em relação ao futuro.”

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

D

este jovem que, Basílio Mosso Ramos está habituado a funções de direção. Passou por Câmaras Municipais e pelo governo, permitindo-lhe assim, obter a experiência necessária para exercer com determinação e empenho, o novo cargo de Presidente da Assembleia Nacional. Preocupado em evitar decisões que possam pôr em causa as normas estabelecidas e os direitos das pessoas, acredita que, embora a experiência no Parlamento seja apenas de um ano, a forma como tem conseguido dirigir as sessões parlamentares permitem-lhe já antecipar resultados animadores quanto à consolidação democrática no país.

w w w.nosgenti.com

Formado em sociologia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, Basílio Mosso Ramos possui uma longa carreira política, sendo atualmente Presidente da Assembleia Nacional desde 2011. Crê que as políticas adotadas após a independência e a determinação do próprio cabo-verdiano, capacitaram a construção do país. Apesar de ainda haver aspetos negativos a corrigir, considera que o balanço é muito positivo, encorajador e constitui motivo de orgulho para todos os cabo-verdianos.

61


dos atualmente, demonstram que “aqueles que defenderam essa via, tinham razão”, comenta. “As pessoas tinham uma convicção muito forte, uma força de vontade enorme e uma grande esperança. Contudo, também havia dúvidas, porque os próprios organismos internacionais eram os primeiros a afirmar que, Cabo Verde não tinha condições de sobreviver enquanto Estado independente”, continua.

"As pessoas tinham uma convicção muito forte, uma força de vontade enorme e uma grande esperança."

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Os intelectuais que optaram por permanecer no seu país, deram um enorme contributo para a situação atual de Cabo Verde, “sujeitando-se muitos deles a uma redução de vencimento e a um aumento das horas de trabalho na função pública. Termos conseguido manter a unidade nacional, num período tão difícil da nossa história, foi um elemento determinante para o sucesso do nosso empreendimento”, afirma Basílio Ramos.

62

A consolidação democrática e o modelo constitucional

O reconhecimento internacional prestado a Cabo Verde pelo seu bom exemplo no exercício democrático, “deixa os cabo-verdianos e especialmente os políticos que participaram nesse processo, satisfeitos”, declara o Presidente. Após 37 anos de independência, a situação melhorou sem que houvesse retrocesso em relação à época colonial, mas segundo Basílio Mosso Ramos, Cabo Verde é uma “referência, sobretudo no que diz respeito a apostas em políticas corretas.” Acrescenta que, “Cabo Verde é uma espécie de primeira experiência de globalização, fruto da colonização e do cruzamento dos negros e dos europeus, dos escravos e dos senhores, originando esta sociedade nova, crioula, mestiça, aberta ao mundo e tolerante. As políticas adotadas na altura da independência e seguidas pelos sucessivos governos em Cabo Verde foram fundamentais, pois caso tivessem sido incorretas, poderíamos ter assistido a um retrocesso.” O Presidente da Assembleia Nacional destaca também que, apesar de Cabo Verde ser um país jovem, “conseguiu-se criar um Estado que funciona, onde os políticos e a própria sociedade sabem como devem comportar-se em relação às instituições. O Estado tem as suas normas, independentemente de quem estiver à frente de determinada instituição. As regras devem ser observadas e, a partir daí, apenas temos que fazer a gestão da coisa pública, em função dessas mesmas regras.”, e adianta que “a Constituição tem dado respostas aos desafios constantes do país”, assegura o político. “Independentemente da autonomia dos diferentes órgãos de poder e da independência que existe, há um funcionamento perfeito. Não há bloqueios institucionais. Desde 1991, que instaurámos um sistema multipartidário e não tivemos problemas de maior. Globalmente, creio que as nossas instituições, têm dado resposta aos desafios do país e têm permitido um funcionamento normal das instituições. Por tudo isso, acredito que temos um bom modelo constitucional.”

O Estado social e a responsabilidade política

No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer, pois como Basílio Mosso Ramos afirma, “os cabo-verdianos são ambiciosos. É necessário continuar a lutar contra a pobreza, reduzir as desigualdades sociais ainda existentes, melhorar as


63

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


assimetrias regionais, assim como elevar a qualificação dos recursos humanos. Temos de ganhar a batalha da produção económica, porque para reduzir a pobreza é preciso produzir, aumentar a riqueza do país e preocuparmo-nos com a sua redistribuição, para que tenhamos uma sociedade próspera, inclusiva e de justiça social. Esses são os ideais da independência – criar condições para que as pessoas possam viver de uma forma digna e essas motivações devem fazer-nos trabalhar dia após dia para as implementar o melhor possível”, expõe o Presidente.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

"temos de ganhar a batalha da produção económica, porque para reduzir a pobreza é preciso produzir, aumentar a riqueza do país e preocuparmo-nos com a sua redistribuição, para que tenhamos uma sociedade próspera (...)"

64

Para Basílio Ramos, os políticos têm grande responsabilidade no desempenho do país, uma vez que são uma referência para a sociedade. Conforme salienta, “nas sociedades modernas, há uma tendência muito forte para a desacreditação do político e um ataque muito forte contra a política. Mas uma sociedade não pode viver sem políticos, por isso é fundamental que os políticos saibam que devem estar ao serviço do país, que devem ter uma postura irrepreensível e, sobretudo, que devem transmitir confiança aos cidadãos, para que estes, tenham a certeza que aqueles em quem depositam o seu voto, os representam dignamente”, acrescentando que “é fundamental ter seriedade, competência, postura correta, estar sempre próximo das pessoas, e principalmente, abraçar os ideais da independência e do Estado Democrático Inclusivo, onde se constrói a paz, o progresso e a justiça social.”

A educação como base da qualificação

Um dos segredos para o sucesso pós-independência de Cabo Verde, reside no facto do cabo-

-verdiano ter entendido desde muito cedo que, o único mecanismo de ascensão social é a educação. “Muitas vezes as mães são analfabetas, mas fazem um grande esforço para colocar os filhos na escola”, reflete, “hoje, o mais normal, é o filho de um pescador ou de um camponês ser ministro, Presidente da República ou diretor de uma empresa.”

O contributo da emigração

Basílio Mosso Ramos pensa que “a emigração sempre foi, é e continuará a ser, uma componente estruturante e fundamental da sociedade cabo-verdiana. Contribuiu fortemente para o equilíbrio económico da família, evitando assim mortandades devido às fomes.” Além da redução da massa populacional, o reenvio dos recursos para os que ficam, permite-lhes melhorarem a sua condição de vida. Contudo, o emigrante não trouxe apenas recursos materiais. O Presidente da Assembleia Nacional acrescenta que “com os recursos materiais, o emigrante trouxe novas ideias, outras formas de ver o mundo, o que por si só, foi fundamental para o desenvolvimento do país.” Os estudantes que saem para estudar fora do país, também contribuem para esse desenvolvimento, trazendo consigo ideias mais modernas e avançadas. Como salienta Basílio Ramos, “os emigrantes e os estudantes no estrangeiro, continuam a ter um papel fundamental na difusão de novas ideias e no desenvolvimento de Cabo Verde. Os operadores económicos cabo-verdianos espalhados pelo mundo também podem perfeitamente trazer ideias, recursos e contribuir para a internacionalização da economia cabo-verdiana.”

Os grandes desafios futuros

Todavia, se é verdade que Cabo Verde melhorou muito, é também verdade que os desafios são muito mais complexos, porque aquilo que era normal há dez anos, hoje não o é. Basílio Mosso Ramos explica que, “as exigências que tínhamos há uma década são completamente diferentes das atuais, porque a própria evolução da sociedade coloca-nos novos desafios. Se há uns anos o desafio era abrir muitos liceus para permitir a ascensão das pessoas ao ensino secundário, hoje o desafio está em abrir universidades, algo muito mais complexo e exigente. Ou se a nossa preocupação era simplesmente dizer que a democracia


exige a participação de todos, hoje já teremos de falar em “qualificação da democracia”, e dá como exemplo a participação da mulher na política, em que “o desafio atual é já ao nível da sua participação nas listas”, concluindo que, “os grandes desafios futuros são a melhoria dos feitos e conquistas já alcançadas nestes últimos 37 anos”. O Presidente afirma por fim que, “pelo que vejo, ouço e vivo, os cabo-verdianos tem um orgulho

enorme no percurso que o país fez desde a independência até agora. Temos razões mais do que suficientes para nos sentirmos reconfortados e orgulhosos com o que fomos capazes de fazer em prol da melhoria das condições de vida das pessoas. Os indicadores são provas deste trabalho árduo que, todos os dias, temos vindo a desenvolver, por isso, considero que o balanço destes 37 anos é muito positivo, ganhando com isso Cabo Verde e todos os cabo-verdianos.”


66

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Opinião

José Maria Neves

Primeiro-ministro de Cabo Verde

Continuar o trabalho

em prol do desenvolvimento do país José Maria Neves, nasceu no ano 1960 em Santa Catarina, na ilha de Santiago. Deputado da Assembleia Nacional de 1996 a 2000, foi eleito pelo Partido Africano para a Independência de Cabo Verde. Como membro da Assembleia Nacional, ocupou os cargos de Vice-Presidente da Assembleia, Diretor da Comissão Especial para a Administração Pública, Governo Local e Desenvolvimento Regional. Nas eleições autárquicas de março de 2000, José Maria Neves foi eleito Presidente da Câmara do Concelho de Santa Catarina, cuja sede é a cidade de Assomada, a segunda maior cidade da Ilha de Santiago e sua terra natal. Depois de José Maria Neves ter sido eleito Presidente do PAICV em 2000, o seu partido venceu as eleições legislativas de 2001. Designado primeiro-ministro de Cabo Verde pelo Presidente da República, assumiu o cargo em fevereiro. Em 2006, José Maria Neves venceu novamente as eleições legislativas e foi reconduzido à chefia do governo, para mais

Ao analisarmos as obras de Eugénio Tavares - poeta e escritor cabo-verdiano do final do século XIX e início do século XX - verificamos que há uma ideia permanente de contestação em relação às injustiças, numa

A relação que se desenvolveu nos estudantes que foram para Portugal concluir os seus cursos, ajudou a consolidar a ideia de que, para se escapar à opressão do regime, a independência poderia ser um dos caminhos a seguir.

luta constante pela dignidade.“Em vários momentos, Eugénio Tavares declara que, se for necessário, podemos optar pela independência, salientando o facto do povo cabo-verdiano precisar de ser tratado com dignidade, através da eliminação das arbitrariedades, conferindo-lhe mais autonomia e liberdade”, afirma o primeiro-ministro, acrescentando que, “já naquela altura, havia uma preocupação clara com a questão da independência do país. Diria que o ideal de modernidade, seria a independência nacional”, conclui.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

ntes da independência, um grupo de intelectuais cabo-verdianos sentiu a necessidade de liberdade, mais justiça e equidade, capaz de pôr fim à situação de difícil sobrevivência do povo, imposta pelo regime colonial português. José Maria Neves comenta que, “desde sempre, o cabo-verdiano teve um sentido de justiça muito forte, o que o levou a travar uma luta permanente pela liberdade e pela dignidade.”

w w w.nosgenti.com

um mandato de cinco anos. Atualmente, exerce o terceiro mandato consecutivo na governação de Cabo Verde.

67


O facto desses estudantes conhecerem, desde muito jovens, a realidade dos seus países, as injustiças e os meandros da dominação colonial, “contribuiu para sedimentar uma consciência muito forte de coesão e, mais tarde, da necessidade da luta pela independência dos respetivos países”, afirma o primeiro-ministro.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Os primeiros movimentos de contestação e de combate ao regime, emergem no contexto da luta de todas as ex-colónias portuguesas contra a dominação colonial fascista. Todo o movimento libertário e a busca de formas organizacionais autónomas nos diferentes países, surgiram para a libertação de cada um dos povos, sendo que neste processo, Amílcar Cabral assume um papel importantíssimo, enquanto mensageiro.“Em 1959, Amílcar Cabral deslocava-se entre vários países. Lúcio Lara e outros nacionalistas angolanos, fixaram-se na Alemanha e, através de Amílcar, enviavam mensagens a outros camaradas, como por exemplo, Agostinho Neto. Através da troca destes contactos, vê-se que havia uma ligação muito forte entre eles, e é dessa ligação que emerge a consciência comum da luta pela independência. A ligação era tão forte, que o sucesso da luta num país, era o sucesso no outro país”, firma José Maria Neves.

68

A luta da libertação em todas as colónias – principalmente Angola, Moçambique e Guiné-Bissau – contribuíram para o 25 de abril e a consequente queda do regime colonial português.“Claro que a luta na Guiné-Bissau ganhou contornos muito mais fortes”, salienta, “pois era um espaço pequeno, com uma dinâmica

"a luta na Guiné-Bissau ganhou contornos muito mais fortes (...) dada pela capacidade política, diplomática e estratégica de Amílcar Cabral" militar, política e diplomática muito grande. Teve também uma visibilidade internacional muito forte, dada pela capacidade política, diplomática e estratégica de Amílcar Cabral. A Guiné-Bissau, contribuiu para projetar as lutas de libertação nacional e o facto de, em 1973, terem proclamado a independência do ponto de vista do direito internacional, acabou por colocar Portugal numa situação muito delicada”. Nessa altura, mais de 80 países reconhecem a independência da Guiné-Bissau o que coloca Portugal numa posição de invasor de um país independente. Com essa situação, os dados do problema colonial mudam completamente. Na opinião do primeiro-ministro, “a visão de Cabral em relação à unidade Guiné-Bissau/Cabo Verde, é uma questão que devia ser aprofundada e estudada do ponto de vista da História Política dos dois países, pois não é uma questão tão simples como parece”, adiantando que, “essa visão foi fundamental para a libertação de Cabo Verde.” A independência de Cabo Verde, era pois, um facto inevitável. Consumou-se por fim, a 5 de julho de 1975. José Maria Neves recorda bem os sentimentos que, esse tão aguardado dia, lhe provocaram. “No dia da independência, eu estava em Santa Catarina. Ainda adolescente, com 15 anos, fugi com um vizinho para assistir à cerimónia na Praia. Ouvir aquela voz forte de Abílio Duarte a proclamar a independência, foi um momento muito emocionante: em nome do povo cabo-verdiano, proclamo solenemente a independência de Cabo Verde. Foi como se existisse um novo brilho. Aquele amarelo cor do Sol da bandeira, o verde cor de Cabo Verde e da esperança na construção do futuro e o vermelho do heroísmo do nosso povo, fez-me


Apesar da alegria e entusiasmo dos primeiros anos de independência, a ideia da unidade entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau defendida por Cabral, mostrava-se cada vez mais difícil de pôr em prática. Conforme refere o primeiro-ministro, “seria extraordinariamente

w w w.nosgenti.com

Para o primeiro-ministro, o pensamento de Cabral e a sua ação pedagógica durante a luta de libertação nacional, influenciou o processo de construção de um Estado independente em Cabo Verde. “Cabral dizia que, se depois da independência o povo não vivesse melhor, esta não seria necessária, nem haveria razões para a justificar. Por isso, Amílcar Cabral sempre se esforçou por afirmar que a independência era mais do que ter uma bandeira: era preciso trabalhar para

"seria extraordinariamente difícil, mesmo com Cabral vivo e a liderar, que se consumasse essa sua visão da união. Era um sonho, um ideal."

difícil, mesmo com Cabral vivo e a liderar, que se consumasse essa sua visão da união. Era um sonho, um ideal. Era uma utopia de difícil concretização. Logo depois da independência, as realidades sociais, políticas e culturais dos dois países, revelaram fortes disparidades”, confidencia, “visto que não havia convergência em muitos dos aspetos políticos e institucionais entre os dois países, havendo mesmo formas diferentes de apreender o exercício do poder, apesar da ideia da unidade ter sido fundamental para a independência dos dois países.”

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

estremecer diante da grandeza do ato. Tive noção, na minha leitura ainda ingénua de jovem adolescente, que aquele dia 5 de julho de 1975, era um grande momento para Cabo Verde”, recorda.

69


São Vicente, 7 de Julho de 1975. A ideia da união entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau ainda era um dos grandes objetivos do PAIGC

a legitimar de forma permanentemente, melhorando as condições de vida e a dignidade das pessoas. Cabral justifica a sua adesão à luta da independência quando viu os cabo-verdianos morrerem de fome e os guineenses serem açoitados. Quis, por isso, lutar pela dignidade dos dois povos”, conta.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

José Maria Neves também refere uma dimensão ética subjacente a todo o processo.“Amílcar Cabral, ao falar do suicídio da pequena burguesia, quis dizer que a elite política devia comprometer-se com a realização

70

do bem comum. Deveria colocar-se ao serviço dos cidadãos, disponibilizando os recursos do país em prol das pessoas e do desenvolvimento, no qual o poder teria que ser exercido com decência, honestidade e patriotismo. Esse pensamento de Cabral condicionou o exercício do poder pela elite diligente do PAIGC em Cabo Verde até 1980 e do PAICV após essa data, o que levou a que houvesse um forte empenhamento na construção do Estado emergente na resolução dos problemas básicos dos cabo-verdianos”. É com orgulho que o primeiro-ministro recorda que, “com os primeiros 15 anos da nova governação, legitimou-se em pleno a independência nacional, pois os cabo-verdianos passaram a viver melhor. Para além da bandeira, construímos um país, uma economia, onde as pessoas passaram a viver com mais dignidade, mais educação, mais saúde, mais estradas, mais portos, mais aeroportos, mais água, mais saneamento, mais energia, mais telecomunicações e, sobretudo, com orgulho de terem dignidade e liberdade.” Nesses

"Amílcar Cabral, ao falar do suicídio da pequena burguesia, quis dizer que a elite política devia comprometer-se com a realização do bem comum"



Nos primeiros anos de governação, o PAIGC mobilizou quase a totalidade da população de Cabo Verde

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

primeiros 15 anos, o sistema político governativo foi de partido único,“mas o poder foi exercido com muita moderação, muita abertura, com um respeito muito grande pelas instituições e pelas pessoas”, refere.

72

No entanto, adivinhavam-se alterações no modelo governativo. Cabo Verde caminhava para um regime democrático. Os sinais na esfera pública eram tímidos, mas existiam. O que aconteceu no mundo socialista acelerou o processo de democratização em Cabo Verde. Conforme refere, “a dinâmica de desenvolvimento social, económica e política do país, impulsionou o surgimento de novos interesses que não podiam ser enquadrados apenas por um único partido. A partir daí, a abertura política e a realização das primeiras eleições livres e multipartidárias em 1991, organizadas com honestidade, decência e patriotismo na linha de Amílcar Cabral, levaram à vitória do Movimento para a Democracia (MpD), que assume o poder de governar. O PAICV, com o desgaste do exercício do poder nos primeiros 15 anos e apesar do balanço globalmente positivo num país pequeno e com grandes constrangimentos, assume o poder da oposição, continuando contudo, a dar uma grande contribuição para a democracia”, diz. No Parlamento, enquanto oposição democrática, o PAICV continua ao lado do MpD a contribuir decisivamente para a instauração e a consolidação do Estado

de direito democrático em Cabo Verde. Conforme refere José Maria Neves, “a queda do artigo IV permitiu a instauração da democracia e a afirmação plena das liberdades civis e políticas no país, abrindo caminho à instauração do Estado de direito democrático em Cabo Verde”, adiantando no entanto que, “enquanto conceito de que a liberdade é a não subjugação, já tínhamos liberdade, sendo que o momento maior foi a independência, em que assumimos o destino do país nas nossas próprias mãos, deixando assim de ser subjugados por um outro país e assumindo plenamente nas nossas mãos os destinos de Cabo Verde. Este foi o momento fundacional da libertação do homem cabo-verdiano.”

"a dinâmica de desenvolvimento social, económica e política do país, impulsionou o surgimento de novos interesses que não podiam ser enquadrados apenas por um único partido"



que virão. É um processo que exige uma liderança forte, visionária, com capacidade para mobilizar os cabo-verdianos na construção de um país moderno, competitivo, justo, inclusivo e com oportunidades para todos”. Apesar das dificuldades, José Maria Neves é categórico ao afirmar que tem “uma fé inabalável no povo cabo-verdiano e na sua capacidade de superar todos os desafios, todos os obstáculos e de conseguir realizar plenamente os seus sonhos”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Apesar do contexto ser de um partido único,“ele mobilizava todas as vontades e sensibilidades políticas, de todas as cabo-verdianas e todos os cabo-verdianos. No primeiro momento, a ambição comum era a independência no sentido da liberdade e esse movimento levou à independência e à construção do Estado. Contudo, durante o processo, surgem novos interesses, provenientes de novas sensibilidades políticas e de outras visões, que já não podiam ser integradas ou articuladas no quadro do partido único. Surge então a abertura política, com a emergência de novos partidos. Com a diferenciação dos vários grupos que resultam desse movimento, o povo ganhou a liberdade de escolher entre as diferentes sensibilidades”, expõe.

74

Para o primeiro-ministro, Cabo Verde é uma democracia consolidada, no entanto “não há democracias perfeitas: é um processo de contínuo aperfeiçoamento. Temos instituições consolidadas e respeitadas, temos eleições justas, livres e transparentes. Temos alternância política, temos um Estado descentralizado, temos uma comunicação social que funciona, temos uma opinião pública autónoma, crítica, que controla o exercício do poder dos tribunais independentes, uma cidadania cada vez mais plena e uma sociedade civil que está a densificar-se todos os dias”, o que o leva a concluir que,“Cabo Verde conseguiu ganhar a batalha da democracia”. Contudo, apesar das vitórias conseguidas ao nível político, o chefe do governo refere que, “apenas falta ganhar a batalha do desenvolvimento. Somos um país de desenvolvimento médio, mas ainda de renda baixa, com muitos constrangimentos e desafios”. José Maria Neves realça que, “o futuro do país, dependerá da capacidade de enfrentar com sucesso os desafios

Para se atingirem os níveis de desenvolvimento esperados, a diáspora cabo-verdiana assume-se como decisiva. Conforme refere o primeiro-ministro, “a diáspora cabo-verdiana tem tido um papel fundamental na transformação de Cabo Verde. Foi um fator importante da independência, da democracia, do crescimento da economia e da abertura de Cabo Verde ao mundo. Governar Cabo Verde implica considerar esta nação global. Se aproveitarmos todas as capacidades e competências existentes na diáspora, podemos acelerar a modernização do país. Precisamos é conjugar todas estas potencialidades e produzir uma nova gramática de desenvolvimento para a nação global cabo-verdiana”. José Maria Neves acredita que Cabo Verde tem cumprido os objetivos esperados, sendo atualmente um país viável e com credibilidade internacional. Afirma haver uma grande confiança dos cabo-verdianos no seu país, pois conforme adianta, “hoje, Cabo Verde é motivo de orgulho para todos e há uma forte certeza no futuro. Esses são os ingredientes de que precisamos para continuarmos o nosso desenvolvimento. Considero que temos essas condições e que o progresso em África é possível.”.

"não há democracias perfeitas: é um processo de contínuo aperfeiçoamento" José Maria Neves termina, dizendo que, “temos sido um país de aventureiros, capaz de realizar grandes proezas que nos têm deixado orgulhosos. Cada um de nós tem tido o seu papel e tem dado o seu contributo. Juntos, devemos continuar o trabalho em prol do futuro do país. Só assim, Cabo Verde será grande, à medida da grandeza dos nossos objetivos.” 


75

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


76

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


77

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


78

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Entrevista

Pedro Pires

Acreditar nas causas

pelas quais batalhamos

Pedro Verona Rodrigues Pires, nascido em 1934 num São Filipe pobre e abandonado à

Após o 25 de Abril em Portugal, a descolonização assume particular relevância, assumindo Pedro Pires a liderança do dossiê. Mais tarde,

Pedro Pires assumiu o cargo de Primeiro Ministro do recém-criado país, em 1975 e deu início a uma série de reformas democráticas durante toda a década de 80. Manteve-se na chefia do governo até 1991. Em 2001 é eleito Presidente da República de Cabo Verde, cargo que manteve durante dois mandatos.

num Golpe de Estado que mergulhou a Guiné-Bissau numa guerra civil, o PAIGC divide-se, e Cabo Verde prosseguiu os seus objetivos separadamente da Guiné-Bissau, através do PAICV Partido Africano para a Independência de Cabo Verde.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

través da convivência direta com colegas de ideais pró independentistas provenientes de outras colónias africanas, decide em 1961 abandonar Portugal e abraçar a causa da independência cabo-verdiana como membro do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), onde trabalhou na captação de apoios entre a comunidade cabo-verdiana no Senegal e em França.

w w w.nosgenti.com

sua sorte, cedo enfrentou as dificuldades que, na altura, todos os cabo-verdianos sentiam na própria pele. A sua juventude foi passada entre a Ilha do Fogo e Santiago, concluindo os estudos do ensino secundário em São Vicente. Em 1956, viajou para Portugal para frequentar a Universidade de Ciências de Lisboa. No entanto, não teve possibilidade de concluir os estudos, pois foi chamado para cumprir o serviço militar obrigatório, ficando colocado na Força Aérea Portuguesa. A sua passagem por Lisboa viria a ser fundamental para a história futura de Cabo Verde.

79


Abílio, Ana Maria, Amilcar e Luís de Almeida (MPLA). O reflexo da unidade de pensamento entre as várias colónias. Argel, 1965.

Quais os motivos que estimularam o aparecimento de um movimento de intelectuais a pensarem num processo de independência para Cabo Verde?

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Cada época tem os seus apelos e causas, o que faz com que as pessoas se mobilizem em sua prol. O apelo à igualdade, ao progresso e à dignidade, marcaram significativamente essa época. Não podemos procurar as motivações sem analisarmos as suas causas. Essas causas eram o regime colonial, com as suas leis, as suas práticas, discriminações, repressões e humilhações. Tudo isso criou um ambiente contestatário, refutando essa ordem colonial. Era preciso destruir e vencer as imposições coloniais.

80

Havia também a questão da dignidade humana. A dignidade é igualdade, é ser tratado com respeito e em equidade ao seu semelhante. Nessa contestação, buscava-se a nossa humanidade enquanto seres humanos. Não foi uma busca individual, pois no contexto colonial, qualquer um podia-se realizar individualmente. Foi sim, uma busca coletiva, enquanto um só povo, e isso na altura não era permitido. O desejo de mudar o rumo dos acontecimentos, podendo ser o povo a decidir o seu próprio destino, o que, no meu entender, foi o que motivou esse grupo de indignados.

Havia uma unidade de pensamento de vários intelectuais oriundos das colónias. No entanto, Amílcar Cabral destacou-se pelas suas ideias de unificação, em particular no que diz respeito à Guiné-Bissau e Cabo Verde. Acha que eram exequíveis essas ideias de união entre estes dois povos? Quando há um movimento coletivo de resistência com um mesmo objetivo, há um esforço de teorização que justifica as ações desenvolvidas. Não basta sentir na pele, é preciso justificar intelectualmente o porquê de determinadas opções. Os primeiros intelectuais foram precisamente os precursores desses ideais e dessas teorias. Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane, Marcelino dos Santos, Lúcio Lara, Vasco Cabral entre muitos outros, comungavam desses ideais. Tinha de haver uma união para um objetivo comum. No entanto, tudo isso foi obra do acaso. Aconteceu que eles se encontrassem a estudar em Lisboa, que se interessassem pelo destino dos seus povos e dos seus países, e assim se gerou essa unidade e convergência de pensamento, que evoluiria para uma convergência de ação. Certamente que Amílcar Cabral sabia que a Libertação não seria obra de uma pessoa ou de um


Há uma afinidade histórica entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde e que muita gente por vezes esquece. Inicialmente, nós fomos a mesma colónia e diocese. Por isso, há laços remotos dessa união. A circulação entre as duas colónias era feita de forma natural. O próprio Amílcar Cabral é

Acho que sim. O 25 de Abril só surge porque a solução militar se tinha esgotado, correndo-se o risco do colapso. Este risco era eminente na Guiné. Foi por isso uma antecipação a um desfecho que podia ser catastrófico para Portugal. A guerra colonial, os seus custos e riscos, levou à revolução dos oficiais que viam os mais jovens sofrer na pele essa guerra sem propósito. Como

w w w.nosgenti.com

Acredita que o papel da guerra na Guiné-Bissau, tenha influenciado significativamente a decisão do Movimento de Abril, que culminou com a Revolução dos Cravos e por inerência, originou os acordos subsequentes que levaram às diversas independências nacionais, e em particular à de Cabo Verde?

Não sei se o pan-africanismo jogou um papel importante nisso, mas a ideia pan-africanista que está na origem de muitos dos movimentos de libertação de África, poderá ter desempenhado um papel motivador. É com o regresso a África de muitos dos que estavam no Brasil, nos Estados Unidos da América, em Inglaterra, e outros países, que essa ideia de União Africana tomou forma. Contudo, a ideia que todos partilhavam é que, apenas juntos se poderia fazer alguma coisa a favor da libertação dos povos.

fruto dessa circulação entre os dois territórios. Pensou, em minha opinião bem, que seria mais razoável que esse combate se fizesse no quadro dos dois países, evitando que um deles fosse utilizado contra o outro. Além de uma opção, foi uma estratégia.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

grupo de pessoas; tinha que ser obra dos respetivos povos. Por isso, havia que unir esforços, agregando as pessoas, em prol de um objetivo comum.

81


Pedro Pires e Mário Soares na assinatura dos Acordos de Argel

tal, seria mais razoável terminar esse conflito. Assim, o 25 de Abril pôs fim à guerra e pôs fim ao regime político vigente em Portugal, pois esse regime não se mostrava capaz de negociar uma paz.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Dá-se o 25 de Abril e é um dos intervenientes nas negociações, assinando mesmo o Acordo de Argel. O que é que sentiu nesse momento, em que já visualizava a independência de Cabo Verde?

82

solidar a nossa presença em Cabo Verde. A nossa estratégia não foi de negociar diretamente a independência de Cabo Verde nesse momento, mas sim, de negociar o direito de Cabo Verde à independência o que, posteriormente, viríamos a reclamar. Eram estratégias diferentes para os dois países, pois sabíamos que, depois de cair um, os outros seguir-se-iam, daí que fosse fundamental que o primeiro conquistasse a sua independência.

Houve um documento que escrevi uns dias antes do 25 de Abril destinado ao Secretário Geral do PAIGC, Aristides Pereira, que retratava a situação da luta na Guiné-Bissau. Nesse documento, antecipei, numa espécie de previsão, o 25 de Abril. É que antes do 25 de Abril, acontecera o 16 de Março, com a revolta das Caldas da Rainha, e que nos transmitiu um sinal muito preciso do que, mais tarde ou mais cedo, se viria a passar. No início das negociações, começámos a pensar qual a estratégia que devíamos seguir. Uns eram a favor da negociação da independência da Guiné e de Cabo Verde em conjunto, de uma só vez. Contudo, nós preferimos separar os processos, dando tempo ao tempo, e assim permitir con-

O 25 de Abril em Portugal permitiu a queda do regime colonial fascista português


83

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Pedro Pires na cerimónia da proclamação da independência, ao lado de Vasco Gonçalves e Aristides Pereira

Chegado o Dia da Independência, o que sentiu ao ver a euforia do povo cabo-verdiano?

Havia uma estratégia implementada pelo partido, na altura o PAIGC e que tinha participação nos dois estados. No entanto, subitamente, desencadeia-se um processo de rutura partidária. Até que ponto isto afetou a estratégia da governação de Cabo Verde e a estabilidade a que se propunham para o país?

ma bipolar, acabou por se criar essa sensação em relação à Guiné. Sabíamos também que Cabo Verde, pela sua situação estratégica, estaria sobre intensa vigilância. Como essa desconfiança pairava no ar, havia interesses externos em transformar Cabo Verde numa base de um dos polos políticos mundiais que na altura dominavam o mundo, daí que, naquele momento, não nos conviesse ser conotados como um prolongamento da luta na Guiné-Bissau e como um país que tivesse a mesma política da praticada neste país. Desta forma, tivemos que recentrar a nossa estratégica política e todo o nosso discurso. Por forma a evitarmos qualquer tipo de pressão e de influência para a destabilização do país, tivemos que provar que da nossa parte não havia qualquer intenção de nos ligarmos ao Bloco Soviético. Este foi um elemento importante e que muitas pessoas na altura não entenderam.

A determinada altura, pressentimos que havia países que tinham alguma desconfiança em relação à Guiné-Bissau, pois pensavam que estava próxima dos Soviéticos. Não era tanto assim, mas como na altura o mundo funcionava de for-

O que aconteceu na Guiné não nos afetou muito, pois tínhamos uma linha política orientada para Cabo Verde de país Não-Alinhado. Influenciou-nos emocionalmente, no entanto, não alterou muito a nossa estratégia política.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Senti uma grande alegria, pois vi realizado o primeiro ponto daquilo que tanto reclamámos. No entanto, também senti uma enorme responsabilidade, pois não podíamos defraudar as pessoas. Havia muito trabalho pela frente, daí a necessidade de estimular a união do povo, para que em conjunto, pudéssemos enfrentar os desafios que se nos deparavam.

84


Olhando para o modelo político da altura, fortemente influenciado pelos blocos do Tratado do Atlântico Norte e dos do Pacto de Varsóvia, sentia-se que, Cabo Verde embora tivesse uma Constituição centralizadora, tinha uma abertura diferente a esses Blocos. Acha que a Constituição foi feita por forma a ser flexível, podendo o modelo político ser moldado em função de um ou outro Bloco, conforme os interesses e as estratégias na altura? Muitas vezes fazem-se análises e tiram-se conclusões baseadas em preconceitos. Por exemplo, hoje em dia há um grande preconceito chamado “democracia”. Há outro preconceito que é o denominado “mercado”. Há depois a chamada “economia liberal”… enfim, há um cem número de preconceitos que se instituem e que se nos impõem como “verdades”, passando todo o debate a ser orientado tendo por tese estas mesmas “verdades”. Essa questão da Constituição de Cabo Verde tem duas vertentes, nomeadamente a elaboração da Constituição e a aplicação dessa mesma Constituição, ou seja, uma é a Lei e a outra é a aplicação da Lei, que são coisas diferentes às quais as pessoas não se podem apartar. O que na altura se fez em Cabo Verde, merece um estudo sem preconceitos, apenas focado na utilidade dos atos. A questão que se levanta é precisamente quem poderia manter este país a funcionar, apesar da falta de recursos que havia? Essa é a questão fundamental. Antes de se tirarem conclusões sobre os métodos utilizados, há que analisar muito bem esta questão, pois é ela que está na base de muitas das dúvidas que, na altura, se levantaram. Foi o princípio da “viabilização do país” que tantas vezes refere? Foi o princípio da “viabilização”, mas também o da consolidação da independência, da soberania, da responsabilidade e da segurança que todos ansiavam. Por isso, essa fase da história, deverá ser analisada para além dos preconceitos, pois muitos deles foram veiculados para condicionar o pensamento de determinadas pessoas. O facto do país evoluir e de ser hoje um país multipartidário, permitiu que a Constituição também evoluísse. É esta Constituição o pilar de Cabo Verde?

Independentemente do valor das instituições, o mais importante é a aplicação e o funcionamento dessas instituições. Com isto quero dizer que, não podemos estar constantemente a discutir todos os assuntos em torno da Constituição. Devemos sim, é discutir as políticas que estiveram na base dessas matérias. É verdade que a Constituição limita e ordena, mas devemos discutir as políticas que estão na base das leis. Temos que analisar se as políticas servem, ou não, o povo; se permitem, ou não, libertar o país. Quando olhamos para África, por mais belas que sejam as Constituições, temos que ver se os seus países evoluem e progridem; temos que analisar se essas Constituições garantem os direitos dos seus povos. É que uma Constituição pode ser democrática e ser uma péssima Constituição, o que faz com que na prática a política não responda às necessidades e desejos das populações.


Um dos ganhos que a independência de Cabo Verde trouxe, manifestou-se na melhoria de muitas das políticas sociais, nomeadamente na saúde e na educação. Qual a sua visão sobre esta evolução?

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Quanto um país tem uma população pobre, não existe outra saída senão uma política social que “liberte” as pessoas da miséria e da falta de perspetiva de vida. Em Cabo Verde era inevitável que assim fosse. Ao nível de recursos humanos e qualificações, comparar Cabo Verde de 74 com o Cabo Verde atual, é algo de abismal. A diferença é enorme, o que nos dá uma visão do trabalho desenvolvido nestes trinta e sete anos. Por forma a que o país vingasse, não havia outra alternativa senão apostar nas políticas sociais e nós fizemo-lo com êxito. A independência tinha que trazer resultados, tinha que acarretar mudanças. Seja

86

na saúde, na educação ou em outras áreas: a evolução é enorme. Agora temos é que nos esforçar pelo aumento da qualidade dessas valências. Cabo Verde de hoje é o Cabo Verde “sonhado” por quem fez a independência? Pessoalmente, na altura não podia “sonhar” com o Cabo Verde que agora temos. Sabia que era preciso “construir” todos os dias, mas não sabia o que essa construção nos iria proporcionar. Creio que, nenhum dos que fizeram a independência, sabia o que nos iria acontecer, apenas sabíamos que iríamos ter muito trabalho pela frente. Cabo Verde nos dias de hoje é um país surpreendente. No entanto, a grande pergunta é o que ainda temos que fazer para torna-lo ainda melhor do que é hoje.


Em sua opinião, passados estes trinta e sete anos da proclamação da independência nacional, qual acha que é o sentimento geral dos cabo-verdianos? Em momentos mais complicados que este que estamos agora a viver, fez-se uma sondagem sobre o que é que os cabo-verdianos pensavam da independência e, noventa e seis por cento, louvaram-na. Levar avante este ambicioso projeto é o desafio que se coloca a todos nós. É evidente que o país tem que continuar a trabalhar muito, tem que continuar a fazer políticas realistas e in-

Em Cabo Verde há muitas vezes essa falta de sentido de Estado e de cultura institucional, que são imprescindíveis à ordem e ao progresso do país, por isso, espero que os cabo-verdianos sejam realistas e que tenham a verdadeira noção do país que têm, dos seus limites e dos seus desafios. Que tenham plena consciência que nada no mundo é completo e perfeito, o que leva a que tenhamos que fazer um esforço constante no aperfeiçoamento das nossas ações. O mesmo se aplica às nossas instituições e práticas políticas: tem de haver esse esforço permanente em as aperfeiçoar e melhorar. Depois há que ter sempre presente que, na vida, não há dádivas, apenas conquistas. Ninguém dá nada a ninguém, por isso, temos que ser nós a conquistar o que aspiramos vir a ter. Na vida tudo tem um preço, que pode ser pago hoje ou num qualquer futuro, mas certamente terá que ser pago, por isso, devemos ser realistas e previdentes, mas sempre com um sentido crítico, por forma a que possamos avaliar bem as opções que se nos apresentam. É com este espírito crítico que podemos aperfeiçoar o que desenvolvemos. Penso que todos os cabo-verdianos, devem ter mais presente este espírito analítico, não aceitando de ânimo leve as tais “verdades” que se nos apresentam como certas. Devemos submete-las à crítica para descobrimos, por nós próprios, o melhor caminho a seguir na resolução dos nossos problemas. Espero que os cabo-verdianos continuem a mostrar confiança, sem nunca esquecerem que tudo é suscetível de ser aperfeiçoado e melhorado. Só desta forma poderemos preservar os nossos ganhos e as nossas conquistas. Nos dias de hoje, pelo que está a acontecer no mundo, devemos ter a consciência que existem riscos de regressão dessas conquistas, daí que temos a obrigação de nos mantermos empenhados em melhorar cada vez mais os mecanismos que nos permitiram obter e manter esses ganhos. Devia haver um debate mais sincero nas sociedades mundiais, de modo

w w w.nosgenti.com

Na classificação mundial dos países, Cabo Verde é hoje considerado com um país de “desenvolvimento médio”, o que levou a uma redução significativa dos apoios estruturais da comunidade internacional. Está Cabo Verde preparado para esta redução em prol do desenvolvimento nacional? Não podemos lamentar, pois esses cortes são consequência do nosso crescimento. Temos é de estar à altura desse crescimento e sermos ainda mais responsáveis pelo modo como gerimos os nossos recursos. Temos que estar preparados para viver neste novo quadro. No entanto, também temos de ter em conta que o país continua a ter grandes fragilidades estruturais, fruto das nossas próprias condições naturais. Este é o nosso grande desafio futuro.

Sendo um homem com sentido de Estado e que empenhou toda a sua vida na construção do Estado Soberano de Cabo Verde, o que é que gostaria de ver realizado no seu país?

Cabo Verde é hoje obra dos vários governos, mas, acima de tudo, de todos os cabo-verdianos. Os resultados dizem que as várias governações conseguiram fazer com que o país evoluísse. Hoje o mundo é diferente do de 74, de 90 e de 2 mil. O mundo mudou e continua a mudar, mas sempre com focos de crise e de dificuldades que, quando se pensa numa perspetiva futura, introduz o fator da incerteza. Esta incerteza deve ser gerida pelas várias governações, pois é ela que pesa nas nossas vidas. Cabo Verde é uma economia pequena, com parcos recursos, o que faz com que estas “incertezas” que pairam hoje em dia no mundo, tenham um peso muito significativo na nossa vida quotidiana.

teligentes e que sejam capazes de gerar riqueza e confiança.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Este Cabo Verde é o resultado das boas práticas que alicerçaram toda esta “construção” que se vem mantendo nestes trinta e sete anos?

87


w w w.nosgenti.com 

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

88

a que se possam ultrapassar determinadas armadilhas que nos podem conduzir a essa regressão. Se vermos o que está a acontecer neste preciso momento no mundo, reparamos que muitos países estão a regredir nos modelos políticos e nos direitos sociais conquistados. Por isso, é preciso mantermo-nos atentos, com o espírito crítico ativo, e não cairmos em determinadas armadilhas que podem causar a regressão de muitas das conquistas que, ao longo destes trinta e sete anos, alcançámos. Com toda a sua experiência, com tudo o que já fez e realizou, que desafios o esperam para os próximos anos? Entendo que agora a responsabilidade é dos mais jovens. Eles é que têm de assumir os novos desafios. Chegámos até onde chegámos, caben-

do agora aos mais jovens assumirem a liderança da responsabilidade pelo futuro do país e, se possível, fazendo mais e melhor do que já fizemos. Em relação a mim, cabe-me a tarefa de trabalhar as minhas memórias, por forma a dar a conhecer o trabalho, o esforço e as dificuldades vencidas por toda uma geração que lutou pela nossa liberdade. É fundamental avaliar bem o “ponto de partida”, pois para podermos fazer um balanço dos ganhos obtidos, temos de ter consciência plena de onde viemos. Penso que seja essencial para o futuro, analisar de forma desapaixonada o nosso percurso: de onde partimos até onde chegámos, fazendo com que essa análise sirva de referência aos mais novos, fazendo-os entender que tudo é possível, bastando para tal que haja empenho, dedicação e se acredite nas causas pelas quais batalhamos. 


89

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com



E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Entrevista

Carlos Veiga Movimento para a Democracia

A intelectualidade cabo-verdiana naquela altura, procurou pôr em relevo os princípios que nos identificavam, nomeadamente a nossa cultura, língua, culinária e tradições. Houve uma preocupação do telúrico, isto é,

voltada para a própria terra, fazendo com que os cabo-verdianos se orgulhassem de si próprios. A afirmação da nossa identidade cultural enquanto povo, foi bem elucidativo da resistência cultural ao regime. Os resultados dessa afirmação, ficaram claros no momento em que surgiu a oportunidade de se lutar pela independência, onde alguns assumiram essa luta mais cedo do que a grande maioria. No entanto, houve uma resistência comum a toda a população.

Considera que a luta pela libertação nacional, ocorreu numa perspetiva de independência, ou apenas para, de alguma forma, se poder conquistar mais igualdade e justiça social?

NÓS GENTI CABO VERDE 1

Carlos Alberto Wahnon de Carvalho Veiga, ficará para sempre na história de Cabo Verde como o primeiro primeiro-ministro eleito, em 1991, através de eleições multipartidárias. Nasceu na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, a 21 de outubro de 1949. Concluiu os seus estudos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1971. Em 1975, exerceu o cargo de Diretor-geral da Administração Interna de Cabo Verde ao que se seguiu a nomeação para Procurador Geral da República, função que exerceu até 1980. Em 1985, Carlos Veiga foi eleito Deputado para a Assembleia Nacional Popular de Cabo Verde, integrando a Comissão de Assuntos Constitucionais e Legais, onde se tornou numa voz de contestação contra o sistema de partido único liderado pelo PAICV. Os seus ideais, estiveram na base da fundação, em 1990, do partido político Movimento para a Democracia (MpD), tornando-se o seu incontestado líder. A 13 de Janeiro de 1991, nas primeiras eleições democráticas realizadas em Cabo Verde, o MpD elegeu 56 dos 79 deputados com lugar no Parlamento. Carlos Veiga foi assim escolhido para primeiro-ministro e formou o primeiro governo democraticamente eleito em Cabo Verde.

w w w.nosgenti.com

Ultrapassar as adversidades

91


Renato Cardoso, Onildo Pires, Manuel Duarte, David Hoffer, António Mascarenhas Monteiro e Carlos Veiga. Tarrafal, Abril de 1979

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Mais do que se falar em lutar pela independência, penso que o que verdadeiramente motivava todos os cabo-verdianos, era a luta por eles próprios. É claro que isso, mesmo ao nível dos intelectuais, gerou muita discussão. Quando se lutava pela própria identidade, mesmo num contexto colonial, estava-se a contribuir para a criação de um conceito de Nação, ao qual, de forma natural, se seguiria o conceito de Estado. Por este motivo, o PAIGC teve a adesão que a história registou, apesar de em Cabo Verde não ter havido luta armada e de todos os focos de luta política terem sido severamente reprimidos pelo regime colonial.

92

Em que medida o movimento panafricanista e o conceito de unidade defendido por Amílcar Cabral, favoreceu o processo de afirmação de Cabo Verde no seu empenho pela obtenção da independência? Era sustentável a ideia de união de Amílcar Cabral? Amílcar Cabral tinha os seus seguidores. Fruto do seu trabalho, ele era por muitos considerado como um verdadeiro mito. Os Rabelados, por exemplo, que são comunidades do interior de Santiago, cultivaram uma feroz resistência ao regime colonial. A bandeira desse núcleo de pessoas, que sempre viveu fora das regras impostas pelo regime - não aceitando por exemplo, dar os nomes às autoridades coloniais, não permitindo que as autoridades sanitárias desinfestassem as suas aldeias e que viviam fechados sobre si mesmos - foi precisamente Amílcar Cabral.

Diria que, na classe intelectual cabo-verdiana, mesmo entre os claridosos, muitas das teorias de Amílcar Cabral, não tiveram muita aceitação. No entanto, mesmo assim, do grupo de cabo-verdianos que formou o PAIGC e participou na luta politica clandestina, quer interna, quer externamente, Cabral exercia um grande ascendente, com as suas ideias de união africana a serem bem acolhidas. Naquela altura, a ideia da unidade, juntando-nos à Guiné-Bissau para, em conjunto, termos mais sucesso na luta de libertação, teve alguma aceitação. Sabíamos que tínhamos de estar integrados num mundo mais vasto, sob pena de perdermos visibilidade e sermos absorvidos novamente pelo regime colonial. Apesar de ser uma ideia sem uma grande adesão nas classes mais baixas da população, proporcionou à classe intelectual e com mais formação, um motivo adicional para a luta de libertação nacional. Um dos fenómenos que se passou nas outras colónias, fruto da instabilidade política que então se registava, foi a famosa ponte de quadros gerais de adidos, que as abandonaram fixando-se na metrópole. Muitos destes quadros altamente qualificados eram cabo-verdianos. Acha que Cabo Verde, a quando da sua independência, beneficiou da competência desses profissionais? Logo após a independência, o PAIGC, pela voz de Pedro Pires e Aristides Pereira, disse que, para começarmos a


93

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


construir o Estado, tínhamos que aproveitar as estruturas que existiam, assim como os cabo-verdianos que nelas trabalhavam. Como tal, a construção do Estado foi feita, essencialmente, com as pessoas que aqui estavam, com gente nova que veio em grande quantidade da diáspora, assim como com alguns dos quadros que vieram das outras ex-colónias. Muitos deles instalaram-se em Cabo Verde, participando na administração pública durante vários anos. Nesse aspeto, Cabo Verde beneficiou, no entanto, o grosso da massa de funcionários que assegurou o funcionamento da administração pública com estabilidade e que permitiu transformar a administração colonial e provincial numa administração independente, foi feito por pessoas que já cá estavam e por jovens quadros que estavam a estudar no exterior.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Após a independência, numa altura em que se vivia a divisão mundial entre dois grandes blocos ideológicos, como é que Cabo Verde de posicionou? Acha que o país soube tirar proveitos desta disputa global?

94

Apesar de ser capaz de se relacionar com os dois blocos, o facto de, logo a seguir à independência, Cabo Verde se ter posicionado como um país que não se integrava em nenhum dos grupos, penso que nos terá beneficiado. Obtivemos muita cooperação dos países de leste, designadamente da União Soviética, mas também tivemos cooperação por parte do ocidente, precisamente pela nossa postura de não alinhamento, mantendo uma certa neutralidade. Tal comportamento político por parte de Cabo Verde, foi muito importante para que pudéssemos trilhar o nosso caminho, sem influências externas, consolidando assim a criação do Estado. Muita gente considerava Cabo Verde como um país inviável, no entanto, ao nível externo, a política inteligente que foi seguida nos primeiros anos de independência, apostando na diversificação das nossas relações - apesar de, do ponto de vista ideológico haver uma ligação a um desses blocos - foi crucial para a implementação de ações políticas capazes de proporcionar o desenvolvimento necessário. Também do ponto de vista do relacionamento internacional, esse posicionamento


Carlos Veiga, Eurico Monteiro e José António dos Reis durante as negociações com o PAICV para as eleições de 1991.

O contexto internacional ajudou. As potências financiadoras do desenvolvimento, isto é, os países doadores, pela voz de François Mitterrand, passaram a condicionar a ajuda a mudanças democráticas. Na sequência dessa declaração de condicionamento houve uma reação rápida do PAICV, através de uma declaração de abertura. No entanto, essa abertura foi imposta de forma condicionada, pois o PAICV queria o controle da situação política no país. No seguimento dessa declaração, o PAICV decidiu promover a abertura através de eleições, onde de um lado concorreria o partido e do outro, um grupo de cidadãos. Só então, após cinco anos decorridos, é que o PAICV propunha eleições multipartidárias. É neste quadro que surge o MpD.

w w w.nosgenti.com

A partir dos primeiros cinco anos de independência, era necessário repensar o sistema político. Começou a ser claro que as pessoas quiseram a independência, não só para se libertarem do jugo colonial, mas também para terem liberdade civil. Acho que nessa altura, podiam ter sido tomadas medidas que possibilitassem a abertura do sistema político. Contrariamente ao esperado, não foi isso que aconteceu. Houve inclusive um aumento da repressão, talvez não como em outras partes do mundo, mas o certo é que houve prisões, perseguições e torturas. No momento em que era necessário uma abertura política por parte do regime, disponibilizando-se para ouvir outros ideais, de alguma forma ele endureceu. Penso que este fechar do regime, deveu-se sobretudo a problemas internos do PAIGC, nomeadamente entre

A abertura política de Cabo Verde em inícios da década de 1990, terá sido consequência do desmoronar do bloco socialista, ou deveu-se apenas à insustentabilidade do regime de partido único à frente da governação do país?

Mesmo apesar dessa maturidade demonstrada pelos políticos cabo-verdianos, os primeiros anos de independência não foram pacíficos. Se tivesse que destacar alguma dessas decisões que poderiam merecer um tratamento político diferente, qual escolheria?

a ala cabo-verdiana e guineense a que se seguiram problemas dentro da própria ala cabo-verdiana no país. Esses problemas levaram a que o regime começasse a ver inimigos em todo o lado, em vez de congregar as vontades que existiam.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

neutral e moderado, permitiu que se estabelecessem diversos contactos e pontes com os dois blocos, o que garantiu a viabilidade do Estado. Por parte da direção política do país, na altura Pedro Pires e Aristides Pereira, foi uma atitude inteligente, que nos trouxe benefícios ao nível da nossa projeção no plano internacional.

95



O MpD surge precisamente para afirmar que, a abertura política proposta pelo PAICV, feita a conta-gotas, não era a solução. O problema que se colocava na altura, não era a de continuidade do sistema, mas sim de uma rutura do próprio sistema. Logo, era preciso realizar eleições multipartidárias no imediato. Foi depois dessa altura, que o sistema político cabo-verdiano se desenvolveu. Fale-nos um pouco do processo de formação do Movimento para a democracia. Era essencialmente um grupo de pessoas, muitas delas que até tinham pertencido ao PAIGC, e que descontentes e dececionados com a evolução da abertura para as liberdades civis, entendiam ser necessário um novo cenário político no país. A partir do momento em que há abertura, o que permitiu que, embora de forma tímida, as pessoas se pudessem reunir, um grupo de quadros com experiência em várias áreas da administração pública e do setor empresarial, começou a esboçar ideias em reuniões que, embora já permitidas, eram sempre muito vigiadas pela polícia política.

Mais tarde, apareceu um segundo grupo, que se reunia na Fazenda, e que basicamente reivindicava os mesmos direitos. O mais lógico foi esses dois grupos se juntarem e, de reunião em reunião, em março de 1990, chegaram a uma declaração política. Fez-se então circular essa declaração. Na Praia, a subscrição foi um sucesso. Em São Vicente e no Fogo, não registou tanto sucesso, mas foi novamente um sucesso em Santo Antão. Em poucos dias, conseguiu-se reunir mais de setecentas assinaturas de pessoas que pediam uma rutura com o sistema instalado, através de eleições multipartidárias imediatas, com a eleição direta do Presidente da República. Reivindicou-se ainda outras medidas, nomeadamente a despartidarização da comunicação social do Estado, a extinção da polícia política, a extinção dos tribunais populares, a extinção das comissões da reforma agrária, entre outras que o povo entendia irem contra a liberdade civil. Foi um manifesto muito forte sobre tudo aquilo que, representava na vida das pessoas a opressão, a perseguição e o abuso.


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Reuniam-se quase todos os dias em plenários, sem corpos dirigentes. Por forma a nos organizarmos, decidimos escolher uma coordenação provisória, da qual eu fui selecionado como o seu coordenador. Resolvemos então testar o regime, apresentando a nossa declaração política ao Sr. Presidente da República. Este mostrou-se agradado pelo surgimento deste movimento na sociedade. A partir desse momento, o movimento ganhou forma e expressão. Começámos por fazer reuniões por todo o país, sentindo que, de facto, as nossas propostas iam ao encontro dos grandes anseios na generalidade da população.

98

Tinha sido feita uma sondagem conduzida pelo dr. Basílio Mosso Ramos, que é hoje Presidente da Assembleia Nacional, que mostrava que 90% da população estava contente com o sistema que existia e que apenas uma percentagem mínima de aproximadamente 10%, sobretudo nos intelectuais, queria a democracia. Mas o que nós sentíamos no terreno não era isso. Assim, começámos a fazer uma grande pressão, para se mudar o paradigma que tinha sido estabelecido para a transição. A transição dizia que iríamos ter eleições em finais de 1990 com o PAICV e grupos de cidadãos, e nós reivindicávamos que era preciso autorizar a participação de outros partidos políticos, de forma imediata.

Também nos debatemos muito para que as eleições presidenciais fossem feitas depois das legislativas. Conseguimos que estes temas entrassem na agenda, apesar da posição desfavorável do PAICV a qualquer uma destas propostas. Com as manifestações de apoio a crescerem de tom de dia para dia, acabou por se criar um ambiente de entendimento, no que a estes pontos dizia respeito. Por todo lado, o número de apoiantes das nossas ideias crescia como nunca se tinha visto antes. Em qualquer ilha, inclusive no Fogo, éramos recebidos por milhares de pessoas que partilhavam dos nossos ideais. Nós, que tínhamos partido de uma posição em que esperávamos eleger apenas um terço dos deputados para a Assembleia Constituinte, depois dessa calorosa receção por parte das populações, tivemos a convicção que tínhamos atingido a maioria governativa. Nessa altura, foi possível chegar-se a uma situação de negociação com o PAICV para um entendimento sobre o processo de transição. Reviu-se a lei por forma a se poder permitir, de forma imediata, constituir partidos políticos, assim como a necessidade de eleições diretas para a escolha do Presidente da República. Também se acordou que as eleições legislativas ocorreriam antes das eleições presidenciais e que os emigrantes podiam votar e ser deputados. Apesar de um ou outro proble-


ma, depois desse entendimento, foi relativamente fácil fazer-se a transição. No cômputo geral, todo o processo correu muito bem. Foi inclusive necessário fazer uma rutura com a Constituição existente, avançando-se para uma outra que conseguisse congregar todos esses desejos do povo. O processo do modelo Constitucional encontrado, com a separação de poderes e que é ainda hoje a base da democracia. Foi foi difícil de atingir ao MpD negociar com o PAICV essa mudança na Constituição do país?

Após as eleições, decidimos que iríamos mudar a Constituição, oficializando a mudança de regime político em Cabo Verde. Em finais de 1992, depois de um debate com toda a sociedade, mudámos efetivamente o regime. Passou a haver separação de poderes com interdependência, que, apesar de não ser tão perfeita quanto o desejado, faz com que a decisão de uns possa, de alguma forma, influenciar as decisões de outros. Esta mudança foi boa para Cabo Verde, pois garantiu estabilidade política, alternância e governabilidade. Sempre tivemos governos democraticamente eleitos, que governaram por legislaturas completas. Ao nível nacional, nunca tivemos eleições antecipadas, o que mostra bem a estabilidade política do país. A Constituição permitiu essa estabilidade. Foi com as alterações ao nível da Constituição que pudemos avançar com a implementação do poder local, o que também se revelou de vital importância para o desenvolvimento nacional.

Carlos Veiga a discursar num comício político do MpD

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Nesse período de transição, foi feita apenas uma revisão mínima da constituição, por forma a permitir efetuar as eleições. No entanto, no que respeitava às competências, o sistema continuava mais ou menos o mesmo. Houve a necessidade de se alterar o ponto relativo ao Presidente da República, que deixava se ser o presidente do PAICV, para passar a ser eleito diretamente. Também foi introduzida a possibilidade da existência de outros partidos políticos, através de uma lei aprovada em setembro de 1990. No entanto, dado os prazos que o PAICV estipulou, houveram partidos que não conseguiram legalizar-se em tempo útil, o que fez com que não pudessem concorrer às eleições. A UCID foi um dos

partidos que não conseguiu concorrer por falta de tempo na sua estruturação. Nós, no MpD, só o conseguimos fazer porque tínhamos um corpo de juristas muito forte, com alguma capacidade e facilidade na mobilização da sociedade.

99


Acha que hoje, depois desse exercício de cedência e de ganhos de poder, os cabo-verdianos na generalidade e os políticos em particular, conseguem interpretar rigorosamente as diferenças de opinião, balizadas nos órgãos e instituições que supervisionam e regulam a atividade do Estado? Normalmente sim. Uma parte do “sucesso” de Cabo Verde, também se deve, desde a independência, à sua classe política. De um modo geral, a classe política dedicou-se, com sentido de Estado e de serviço público, ao desenvolvimento do país. Embora o que conseguimos até agora não seja suficiente, devemos ter orgulho no que já alcançámos, com parte desse crédito a pertencer, por pleno direito, à classe política cabo-verdiana. A maior parte dos políticos vai ganhando maturidade e capacidade de aceitar diferentes opiniões, o que num

Estado de direito, é importante. Contudo, há ainda muito trabalho pela frente que tem de ser feito para a melhoria da imagem de muitos deles. Assiste-se hoje a um fenómeno de compra de votos, que é culpa exclusiva dos políticos. A curto prazo, tem de haver um entendimento comum para erradicar este fenómeno, que já foi longe demais e que já ultrapassou o tolerável, com consequências que podem originar retrocesso, podendo mesmo colocar em risco o sistema democrático. A maturidade política dos cidadãos votantes não diferencia e castiga essas práticas? Condicionará cada vez mais, à medida que o nível de formação das pessoas aumentar e se for generalizando, uma vez que esse mercado de compra e venda de votos se reflete sobretudo nos jovens desempregados, sem acesso à formação, com problemas sociais graves e com comportamentos desviantes. O eleitorado mais antigo e mais pobre, sem grandes acessos à formação, tem um voto de convicção. Com todos os ganhos obtidos por Cabo Verde nestes 37 anos, considera alcançados os pressupostos da independência? É um facto que evoluímos muito, mas não podemos dar-nos por satisfeitos. Há muitos arquipélagos no mundo com estágios de desenvolvimento muito superiores ao nosso. Em muitos dos pontos fundamentais do progresso, quando comparados com esses outros arquipélagos, continuamos na cauda do pelotão. Por isso não nos podemos dar por satisfeitos, pois até agora ainda não atingimos o desenvolvimento. As pessoas ainda vivem com muitíssimas dificuldades. Há neste momento uma franja da juventude, que ideologicamente não se interessa por nada. Atingiram um ponto de descrença tão grande, que apenas vivem o dia-a-dia, aproveitando as oportunidades que lhes surgem, sem quaisquer barreiras, limites ou valores. Esta é uma das grandes preocupações com que a sociedade cabo-verdiana se debate atualmente. O atual modelo governativo, é feito a pensar apenas nas próximas eleições, e isso não pode acontecer. O facto de ter que haver fortes ajustamentos financeiros no país até 2015, aliado ao agravamento da crise financeira mundial, poderá originar um retrocesso na qualidade de vida já alcançada por parte dos cidadãos? Avizinham-se dias difíceis, no entanto acredito nos políticos cabo-verdianos e na sua capacidade de encon-


Criaram-se infraestruturas, mas isso só, não chega para o desenvolvimento. Ninguém se consegue desenvolver tendo apenas por base a construção de infraestruturas. Gastámos 3,5 bilhões de euros nestes últimos onze anos, e quando se analisa o crescimento da economia, o desemprego e a dinâmica do setor empresarial, os resultados são dececionantes. Investiu-se tudo num só dos fatores, esquecendo-se outros igualmente importantes. Podia-se ter investido a um ritmo mais lento, mas mais equilibrado. De que nos vale ter um porto marítimo se não o conseguimos gerir? É isso que está atualmente a acontecer.

Fala-se muito do turismo, que é uma área em que temos grande potencial. No entanto, o turismo desligado dos setores produtivos, não gera as receitas esperadas e essa situação está à vista. A falta de unificação do território que se falou à pouco, tem levado a que os produtos agrícolas e piscícolas cabo-verdianos, não sejam potenciados por esse mercado turístico. A cultura, por exemplo, é um outro produto que é exportável, gerador de riqueza e que não está a ser aproveitado pela indústria turística. Temos também que encontrar novas formas de financiamento à economia. Temos que criar uma instituição financeira parabancária pública, competente que seja capaz de captar os financiamentos fora do circuito dos empréstimos constitucionais que existem um pouco por todo o mundo, sob pena de colocarmos em causa o nosso próprio desenvolvimento e a nossa própria viabilidade. Acha que é possível perpetuar no tempo, o exemplo das boas práticas e da boa governação de Cabo Verde e que têm, inclusive, servido de exemplo para outros países africanos? Temos que ser capazes de manter essas práticas. É uma questão fundamental da qual não podemos abdicar. É um ativo que nos orgulha. Mesmo onde essas boas praticas ainda não se verifiquem, temos de conseguir melhorar, pois só assim poderemos continuar a ser ouvidos, considerados e apoiados pelos outros. Só mantendo essas boas praticas, poderemos ser considerados como destino de investimentos. Contudo, há áreas onde temos de ser muito mais exigentes. A administração pública é uma delas, fazendo mais parte da solução, que do problema. Temos de fazer uma rutura total com o modelo de recrutamento, seleção e formação dos dirigentes administrativos. Devemos ser capazes de sepa-

w w w.nosgenti.com

No entanto, os ajustamentos que terão de ser feitos, resultam de apostas estruturais nas infraestruturas do país. Acha que se conseguia atingir os níveis de desenvolvimento obtidos sem esses investimentos?

Se tivesse que eleger um novo modelo de desenvolvimento para Cabo Verde, quais seriam as áreas estratégicas a que daria mais importância?

Os resultados das presidenciais e das autárquicas, apesar do mérito dos vencedores, espelha já essa deceção. Vamos ter pela frente anos difíceis, que deverão ser aproveitados como a oportunidade para mudarmos a linha de governação. Temos o desemprego a subir com uma pobreza persistente. Continuamos a não ter o território cabo-verdiano unificado; o produtor do Fogo, por exemplo, não consegue colocar os seus produtos na Boa Vista ou no Sal. O de Santo Antão, não consegue escoar a sua produção para Santiago ou para o Maio. Para irmos a São Nicolau é um problema. Não resolvemos ainda o problema da energia nem do abastecimento de água. Não se fizeram ainda as grandes reformas estruturais necessárias na educação; apesar de termos aumentado para quase cem por cento o grau de alfabetização e de termos aumentado substancialmente o acesso ao ensino secundário, deparamo-nos agora com o problema da qualidade desse ensino. O próprio ensino superior está aquém do nível exigido, o que se reflete no problema da empregabilidade. Há muita formação profissional, há muitas pessoas licenciadas mas, em áreas que não têm procura no mercado real. Não há uma ligação entre as universidades e as empresas. Não resolvemos ainda o problema da gestão dos portos, nem da nossa companhia aérea, cujas privatizações estão ainda bloqueadas. São situações que podiam ter sido resolvidas e estão a ser proteladas.

O setor aeronáutico é outro dos exemplos: não somos competitivos no setor aéreo, porque não fazemos um esforço para competir, por exemplo, com o Senegal. Nos primeiros anos de independência, apesar de não ter sido fácil, conseguimos conquistar o mercado aeronáutico ao Senegal. Agora perdemo-lo novamente por falta de competitividade. Há, por isso, muito trabalho que ainda tem de ser feito, por forma a podermos encarar os anos difíceis que se avizinham com mais esperança.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

trar soluções para os problemas. A previsão realizada, diz-nos que seremos obrigados a baixar o nosso défice, que está atualmente em mais de 10%, para os 3%, já em 2015. Tal redução vai exigir um ajustamento muito forte. Não se pode continuar a vender ilusões ao povo cabo-verdiano, sob pena de se criarem expectativas que depois geram deceção.

101


w w w.nosgenti.com 

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

102

rar a função política da função de direção administrativa. Atualmente, usa-se um modelo partidarizado, em que os dirigentes chegam aos postos de administração por escolha política, sem qualquer formação específica para a liderança administrativa. Para além das bases técnicas que essas pessoas eventualmente possuam, há exigências suplementares que deviam ser respeitadas. Esse recrutamento, tem forçosamente que passar a ser feito por mérito, com pessoas altamente qualificadas, capazes de liderar ao nível das funções de direção administrativa, e acima de tudo, com uma ética a toda a prova. É impensável termos ministros a assinar papeis; os ministros são eleitos para a promoção da elaboração de políticas de interesse nacional. Deverão reunir recursos humanos e logísticos para que essas políticas sejam aprovadas e finalmente, garantir que sejam executadas nos termos que foram aprovadas, isto é, avaliar a sua execução tirando as consequencias ao nível da sua eficácia, cumprimento e impacto. Essa é a função do governante. Depois há a direção administrativa, que se deverá ocupar da gestão do dia-a-dia. A burocracia deve parar no diretor geral. Se ele decidir contra a lei,

deverão existir órgãos competentes para o julgar de forma funcional e ágil. É fundamental, à semelhança do que acontece já noutros países, que consigamos fazer essa separação entre a função política e a função de direção administrativa. Passados estes 37 anos, que mensagem deixaria a todos os cabo-verdianos? Acima de tudo, uma mensagem de confiança e de não conformismo. Devemos ambicionar, nos próximos cinco a dez anos, estar entre os primeiros cinco Estados insulares do mundo, quanto ao nível de desenvolvimento atingido. Estamos hoje muito longe desse objetivo. No entanto, para o atingirmos, devemos ter plena consciência que vai ser necessário por parte de todos, muito esforço, trabalho e sacrifício. Contudo, ao olharmos para a nossa história, encontramos a inspiração necessária para despendermos dessa força, labuta e suor, pois sempre mostrámos capacidade de resistir lutando contra todas as adversidades, as quais sempre conseguimos ultrapassar. Certamente que no futuro, não irá ser diferente. 


103

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


104

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Entrevista

António Monteiro

UCID - União Caboverdiana Independente e Democrática

A importância dos valores tradicionais

Quando trabalhava como eletricista, na década de 80, tinha um colega militante da UCID. Como éramos

Certo dia, a polícia foi ao meu local de trabalho com o intuito de me prender. Eu como não sabia de nada fiquei admirado. Deram-me 24 horas de cadeia sem me dizerem o motivo pelo qual eu estava preso. Só mais tarde é que soube que tinham desconfiado, ser eu o autor dos cortes de energia. A partir dali, ganhei

A UCID foi fundada a 13 de maio de 1978 na Holanda. Surge fruto da discordância da unidade entre a Guiné e Cabo Verde. Nasceu a partir do chamado grupo dos descontentes, que embora fossem militantes do PAIGC, não estavam de acordo com esta ideia de unificação política entre os dois Estados. O próprio nome do partido, União Caboverdiana Independente e Democrática espelha esse desagrado.

muito amigos, ele aproveitava-se do facto de eu estar a estudar, e durante a minha ausência saía e fazia alguns cortes de energia, possibilitando assim que os militantes da UCID, de forma mais segura e resguardada dos olhares da polícia política, lançassem folhetos e pintassem as paredes com palavras de ordem.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Porquê a UCID?

w w w.nosgenti.com

António Delgado Monteiro, nasceu no dia 9 de junho de 1961 em São Tomé e Príncipe. Os pais, fugidos da fome e da seca que reinava na década de 1950 em Cabo Verde, admitiram o sistema de contratações que o regime colonial português estipulava e mudaram-se para as plantações de cacau daquelas ilhas do Sul. Ainda jovem, parte novamente com os pais ainda mais para Sul, para Angola. Regressa finalmente a Cabo Verde, a 13 de outubro de 1975, já com 13 anos de idade, onde continuou os estudos na Escola Técnica, em simultâneo com o trabalho noturno desenvolvido na então Empresa de Eletricidade e Águas do Mindelo. Com o auxílio de uma bolsa de estudos, completa no exterior o curso de Engenharia Eletromecânica, regressando definitivamente a Cabo Verde em finais de 1991, após a abertura multipartidária do país.

105


“a UCID conseguiu trazer a Cabo Verde a Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional, que visitaram a Cadeia da Ribeirinha e a Cadeia Militar João Ribeiro, em São Vicente” alguma simpatia pelo partido e alguma revolta em relação ao PAICV. Quando terminei o curso, esse mesmo colega convidou-me para entrar para o partido, que, entretanto, já estava oficializado.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

A UCID participou em momentos que ficarão para sempre na história do país, nomeadamente a sua associação ao movimento que marca a reforma agrária e o facto de ter falhado as primeiras eleições democráticas em Cabo Verde.

106

de São Vicente. O trabalho meritório dos dirigentes do partido nessa altura, deu a conhecer a realidade da ação da polícia política em Cabo Verde. Após esses acontecimento, e até 1988, a UCID revelou uma grande dinâmica na ação. Chegou a fazer parte de algumas organizações internacionais políticas, nomeadamente a União dos Partidos Democratas Cristãos, o que do ponto de vista de divulgação internacional, representou um trabalho louvável.

O primeiro momento alto da UCID em Cabo Verde, foi na década de 80, mais concretamente no dia 31 de Agosto de 1981. Nessa altura, a UCID tinha algum peso político em Santo Antão. Com as prisões arbitrárias que ocorriam na altura, devido às questões da reforma agrária, a direção e os militantes do partido no exterior (na altura não podiam haver dirigentes nem militantes da UCID em Cabo Verde pois eram imediatamente presos), decidiram iniciar uma série de movimentações em várias capitais europeias e mesmo em algumas cidades dos Estados Unidos da América, chamando a atenção da opinião pública mundial sobre a forma injusta como muitas pessoas estavam a ser presas e torturadas. Como resultado dessas movimentações, a UCID conseguiu trazer a Cabo Verde a Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional, que visitaram a Cadeia da Ribeirinha e a Cadeia Militar João Ribeiro, em São Vicente, onde puderam testemunhar a situação miserável em que se encontravam detidas essas pessoas. Foi por causa destas movimentações por parte da UCID que, alguns presos que estavam na Cadeia Militar, conseguiram ser transferidos para a Cadeia Civil

Lídio Silva - Primeiro presidente da UCID


Quando a UCID se tenta legalizar, não consegue. O próprio Lídio Silva, que na altura foi eleito presidente do partido num congresso extraordinário ocorrido em Portugal para tentar legalizar o partido em Cabo Verde, faz uma petição na Assembleia Nacional a favor do reconhecimento da UCID pela importância histórica da sua atuação no passado. Essa intenção

A partir dessa altura, tivemos grande dificuldade em reaver o protagonismo político que tínhamos atingido no período de 1978 a 1990. Sem esse protagonismo, o MpD destacou-se como o partido da oposição. Per-

w w w.nosgenti.com 

não foi aceite, e quando a UCID iniciou a recolha de assinaturas necessárias à sua oficialização através do Supremo Tribunal de Justiça, deparou-se com o constrangimento de todas as assinaturas serem averiguadas. Foram encontradas assinaturas de pessoas que também já tinham assinado pelo MpD, o que fez com que houvesse uma rejeição por parte do STJ da primeira leva de assinaturas entregues. Este facto, impediu que o partido se legalizasse em tempo útil, perdendo a oportunidade de concorrer nas primeiras eleições livres de Cabo Verde.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Em 1990, quando se dá a queda do artigo IV da Constituição, em que o PAICV deixa de ser a força orientadora da sociedade de Cabo Verde, a UCID não consegue em tempo útil vir para o país, e com isso perde a oportunidade de se afirmar no terreno, pois o MpD, livre de quaisquer outros concorrentes de peso, consegue implementar-se como a grande força de oposição ao PAICV.

107


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

deu-se assim uma grande oportunidade, logo no início da abertura política, de se ter dado um contributo valioso para a democracia no país. Com essa perda, também se perdeu o fulgor político da altura. Só muito mais tarde, a partir de 2000, é que a UCID volta a ser falada em Cabo Verde.

108

Atualmente acreditamos que estamos a fazer o percurso que devíamos ter feito anteriormente, e todos os dias trabalhamos com dedicação, para num futuro breve sermos uma força política de peso, capaz de contribuir para a tomada de decisões, ajudando assim na construção de um país melhor. Em sua opinião, a ideologia das pessoas que defendiam a liberdade, nomeadamente intelectuais cabo-verdianos que conviviam com outros intelectuais de outras colónias, era de facto a obtenção da independência ou apenas a melhoria das condições de justiça e de igualdade do povo? Do meu ponto de vista, a grande questão que se levantava era a falta de justiça social. A disparidade

existente entre aqueles que efetivamente eram os nativos das ilhas e os colonos portugueses, era gritante. O que se pretendia, no meu entender, era um equilíbrio e que não houvessem injustiças, semelhantes às que, ainda em criança, pude presenciar. Penso que a independência foi um instrumento, isto é, uma ferramenta que os intelectuais da altura usaram, para trazer para as colónias portuguesas um pouco mais de justiça. Considero que em Cabo Verde, os intelectuais que lutaram contra o colonialismo, fizeram-no para possibilitar ao povo orgulho, estabilidade social e acima de tudo menos injustiça. É claro que, houve intelectuais que até ao último momento, não quiseram a independência nacional. Se recuarmos até 1973 e analisarmos a história de Cabo Verde, encontramos movimentos que defendiam ser mais benéfico para Cabo Verde a realização de um referendo político, por forma a averiguar se os cabo-verdianos estariam ou não dispostos a assumirem independência nacional. Falo concretamente da UDC - União Democrática Cabo-verdiana e do UPIC-CV União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde. Como con-


Nessa altura, morava com os meus pais em Angola. Cheguei a Cabo Verde dois meses após a proclamação da independência, contudo, lembro-me perfeitamente do clima de alegria que se vivia. A 27 de outubro, quando cheguei a São Vicente, depois de ter estado uma semana no Sal no quartel militar a aguardar vez para viajar, vi uma grande euforia, com as pessoas felizes e radiantes. Sentia-se como que se uma lufada de ar fresco tivesse chegado às ilhas. É claro que tínhamos grandes dificuldades. O país não tinha recursos e muitos diziam que era inviável a construção de um Estado nas ilhas de Cabo Verde. Com a inteligência dos que tinham a responsabilidade de governar o país, lá se foram criando, paulatinamente, as condições que hoje nós temos.

“Se recuarmos até 1973 (...) encontramos movimentos que defendiam ser mais benéfico para Cabo Verde a realização de um referendo político”

Como caracteriza os dois períodos pós independência de Cabo Verde? O período do partido único e o período pós 1991, com a abertura multipartidária do sistema político? Na primeira República, temos que considerar duas fases: a primeira, vai da independência até ao início da década de 80 e a segunda fase, que engloba os inícios de 1980 até 1990. Na primeira fase, isto é, nos primeiros cinco anos após a independência, houve uma vontade muito grande dos governantes imporem a Cabo Verde uma dinâmica de um país aberto. Nessa altura, justiça seja feita, o PAIGC fez um trabalho excelente, pois ainda não tinha a ideia, que mais tarde se enraizou, de controlar tudo e todos. Entre 1980 e 1990, senti que havia uma vontade por parte do PAICV em controlar de forma muito apertada tudo no país. Penso que foi nessa fase que ocorreu o maior erro político do PAICV por querer controlar pessoas que normalmente não estão disponíveis para serem controladas. Não nos podemos esquecer que nessa época os cabo-verdianos já tinham muitas influências da diáspora, logo com ideias mais abertas e democráticas. Nessa altura, penso que o PAICV perdeu a oportunidade de se mostrar um pouco mais flexível e provavelmente permitir que as pessoas se pudessem exprimir de forma livre, pois foi para isso que foi pedida a independência. Muitas pessoas eram perseguidas pela então polícia política, criada precisamente para reprimir os que ansiavam a tão prometida liberdade. A partir dessa altura, penso que o sistema ficou irremediavelmente perdido. Depois, com a abertura política, as coisas modificaram-se para melhor. No entanto, essa abertura não foi

w w w.nosgenti.com

Quando é declarada a independência, tinha 13 anos. Tem recordações dessa altura?

Hoje, em parte, estamos a construir esse país, talvez não da forma que eu gostaria que estivesse a ser erigido, mas de todo o modo, o que eu vivi antes da independência, dá-me muita tranquilidade ao encarar os desafios futuros.

Pessoalmente, defendo que a independência tinha que ser feita, pois a própria colonização, isto é, os dirigentes que controlavam as colónias portuguesas, aliados ao espírito fascista do regime em Portugal que reprimia inclusive o próprio povo português - não iriam nunca libertar as colónias, só porque haviam pessoas contra os seus métodos. Foi preciso efetivamente pressionar e desenvolver a luta. A luta que se travou nas matas da Guiné, de Angola e Moçambique, foi verdadeiramente necessária para que os povos, quer das colónias, quer mesmo de Portugal, pudessem ter a liberdade que tanto ansiavam.

Recordo a vontade que existia em todo o povo cabo-verdiano em construir um país com melhores condições. No tempo colonial tínhamos filas para tudo: para comprar açúcar, petróleo, leite… tínhamos problemas de água, de energia... enfim, não tínhamos nada. Por isso mesmo, após a independência, sentia-se a vontade dos cabo-verdianos em trabalhar para desenvolver o país. Atrevo-me a dizer que havia uma militância, não partidária, mas pró nacional, que é o que agora nos falta.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

sequência dessa ideia, estes partidos políticos foram rechaçados do país.

109


isolada. Foi fruto dos acontecimentos políticos mundiais que então estavam a ocorrer, nomeadamente, a queda do bloco socialista que arrastou a queda de muitos regimes políticos semelhantes, noutros países. Cabo Verde foi um desses países. Penso, que se não tivessem havido essas alterações no nível do xadrez político mundial, provavelmente não teríamos a abertura política que tivemos. No entanto, de uma forma inteligente e ordeira, conseguimos aproveitar essa oportunidade internacional e introduzimos o multipartidarismo e o sistema democrático em Cabo Verde. Pensa que, em Cabo Verde, a democracia está consolidada? Não, não está. A democracia cabo-verdiana está num processo de consolidação, mas ainda não está perpetuada. Um dos grandes momentos da democracia são as eleições, no entanto, em Cabo Verde as pessoas ainda não conseguem exercer o direito de eleger os seus candidatos, de forma tranquila e sem pressões. Espero que os partidos políticos, como instituições que têm obrigação de zelar pela defesa da democracia, entendam o perigo dessas pressões para o sistema democrático nacional. Depois da entrada do MpD no poder, em 1991, generalizou-se a tendência dos partidos quererem eternizar-se no poder, e para o conseguirem, não olham a meios. Vale tudo, inclusive falsear a vontade popular. Quem tem meios financeiros e poder económico, consegue, com menos esforço, com menos ideais políticos e com menos projetos credíveis, ganhar eleições. Isso faz com que a democracia seja falseada.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Os meios de consciencialização social são a educação e a justiça. Acha que melhorando essas áreas, os cidadãos poderão afirmar mais convictamente as vontades políticas?

110

Acho que sim. Um país vale pela educação do seu povo. Quanto maior for o seu nível de instrução, maior será a sua capacidade de entendimento, compreensão e análise. Em Cabo Verde, somos fruto dessa instrução. Mesmo no tempo colonial, o nível de educação dos cabo-verdianos foi superior ao de outras colónias, pelo que, conseguimos de forma menos arrogante, assumir determinadas posições que têm permitido que Cabo Verde se desenvolva, apesar dos seus recursos limitados. Costuma-se fazer muitas críticas à educação que atualmente temos em Cabo Verde, contudo, essas cri-

ticas têm essencialmente a ver com a qualidade do ensino que aqui se pratica, principalmente no que diz respeito ao ensino superior. Considero que, os sucessivos governos desde a independência até aos dias de hoje, sempre deram uma atenção muito especial à área educativa. Esse cuidado que foi dado à educação, tem permitido aos cabo-verdianos adquirir mais conhecimentos, o que os faz distinguir o que realmente é importante, dentro do panorama político nacional. No que diz respeito à justiça, houveram sem dúvida, grandes avanços nestes últimos 37 anos. Lembro-me que em São Vicente, havia apenas um juiz e um procurador. Tínhamos um tribunal sem quaisquer condições para funcionar. Hoje o cenário é completamente diferente. A justiça melhorou muito em Cabo Verde. No entanto, a celeridade e a influência do poder político na justiça, são questões que ultimamente me têm preocupado, pois essa imiscuição pode travar o próprio desenvolvimento de Cabo Verde. Atualmente, verifica-se que há quem esteja na justiça sem a convicção de que faz parte um poder autónomo e que deve apenas respeitar a sua consciência e o

“penso que o PAICV perdeu a oportunidade de se mostrar um pouco mais flexível e provavelmente permitir que as pessoas se pudessem exprimir de forma livre, pois foi para isso que foi pedida a independência” que está estipulado e regulamentado nas leis. Alguns estão a ser permissíveis a influências políticas que poderão manchar a própria justiça cabo-verdiana, com as consequências nefastas que tal acarreta num Estado de direito.


111

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

“a família, a justiça, o respeito e solidariedade são alguns dos valores que têm desaparecido por pressões externas e por não termos tido a capacidade de nos protegermos”

112

Acha que a globalização tem contribuído para a quebra de identidade cabo-verdiana, tão marcada e valorizada na altura da independência, podendo mesmo colocar em causa a estabilidade e os ganhos alcançados nestes 37 anos? Esse é um dos grandes problemas com que atualmente nos deparamos. A UCID, como partido que defende os princípios cristãos, reconhece que nos últimos anos, a sociedade civil cabo-verdiana tem perdido algumas das suas referências. A família, a justiça, o respeito e solidariedade são alguns dos valores que têm desaparecido por pressões externas e por não termos tido a capacidade de nos protegermos dessas influências. Estamos a ser absorvidos pela globalização que, infelizmente, está assente na vertente económica e financeira, deixando de lado o que realmente é importante para as pessoas.

Para se combater essa perda de valores, os partidos, o governo e a própria comunicação social, têm de ter um papel mais ativo, na divulgação dos valores que a cabo-verdianidade sempre demonstrou. O facto de termos uma sociedade extremamente desequilibrada, com um fosso bastante acentuado entre os mais pobres e os mais ricos, influência negativamente essa perda de valores. A desigualdade faz com que, os mais pobres, também queiram a equidade a qualquer preço, o que faz com que os valores morais fiquem em segundo plano. Atualmente, as pessoas não olham a meios para atingir os objetivos materiais que vêm nos outros, o que invariavelmente conduz a práticas ilícitas prejudiciais para o desenvolvimento do país. Se não se controlar este fenómeno, teremos a curto prazo problemas muito maiores para resolver. Fomentar os valores cristãos e tradicionais dos cabo-verdianos, é, por isso, primordial nas políticas dos governos e nos comportamentos da própria sociedade civil, sob pena de colocarmos em risco a nossa própria cabo-verdianidade. Como encara o futuro de Cabo Verde? Independentemente de ainda termos muitos problemas para resolver, temos de acreditar no nosso país. Acredito que Cabo Verde conseguirá ultrapassar os problemas que tem, defendendo a nossa cultura e a nossa forma de estar no mundo. Para tal é preciso que os políticos digam, de forma permanente, a verdade ao povo, para que estes se mantenham empenhados na construção do Estado. Só com o esforço de todos os cabo-verdianos, quer no arquipélago, quer na diáspora, se poderão manter vivas as raízes e os valores pelos quais sempre nos guiámos, pois essas são as heranças mais importantes que poderemos deixar às novas gerações. 


Harmonia - Produção e Distribuição, Lda Rua Visconde de S. Januário, 19 R/C - Plateau C.P. 653 Praia - Santiago Tel. 261 6515 Fax. 261 8371 harmoniapraia@harmonia.cv


114

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


115

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


116

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E: Luís Neves | W: Diana Lopes | F: Pedro Matos

Opinião

Aristides Lima

Realizar sonhos ... ao sonhar realidades

Segundo o político, com a independência houve também melhorias significativas ao nível de um dos problemas crónicos das populações enquanto governadas pelo regime colonial português: a alimentação. Conforme refere, “antigamente, no tempo do regime colonial, as fomes eram frequentes. Com a independência, foram introduzidas várias políticas que fomentaram a agricultura nacional, passando os cabo-verdianos a terem condições substancialmente diferentes das de antigamente”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Q

uando se proclamou a independência, esperava-se que os cabo-verdianos tivessem melhores condições de vida para que não tivessem como destino a emigração, mas que também se pudessem realizar plenamente em Cabo Verde. Conforme afirma Aristides Lima, “atualmente os cabo-verdianos têm tido essa possibilidade de realização. Têm tido mais emprego, mais formação e mais escolaridade do que no tempo colonial”.

w w w.nosgenti.com

A independência nacional, representa para Aristides Lima, a “realização do sonho dos nossos antepassados; de sermos um país livre, que pudesse desenvolver plenamente as suas potencialidades, designadamente culturais”.Significa também o exercício responsável da soberania, ao longo de vários anos e indica um país que conseguiu níveis interessantes de progresso e inclusão social, bem como o respeito e a admiração no plano internacional. No entanto, o ex-presidente da Assembleia Nacional, admite que “apesar de nunca se estar satisfeito com tudo, muitas pessoas olharão para o que o país era antes e para o que é hoje, e estarão certamente orgulhosas do percurso coletivo do povo caboverdiano”. Há, todavia, grandes desafios pela frente e, por isso mesmo, diz que “nunca podemos estar satisfeitos.

117


Também ao nível cultural, Aristides Lima é categórico ao afirmar que, “houve uma libertação de todas as forças produtivas no domínio da cultura no país, nomeadamente das diversas manifestações culturais que antes eram proibidas e que, com a independência e soberana, deixaram de o ser. Houve muito mais criatividade na música, na literatura e na pintura. O país cultural densificou-se”. Não se travou a emigração, “nem fazia sentido travar, porque a emigração é um meio de realização – os emigrantes são pessoas especiais que não se conformam com a realidade. Atualmente, já não se coloca essa a questão da emigração da mesma forma que se colocou a quando da independência, em que se dizia que as pessoas não podiam sair do país, sob pena de perda de recursos humanos essenciais à construção na nação. Hoje em dia, com este mundo mais interdependente e com o mercado global que se tem, é natural que o cidadão cabo-verdiano veja a possibilidade de realização, não só interna, como externamente, mantendo duas vidas: uma no país de acolhimento e outra que consegue ter, através da ligação aos seus familiares aqui”, expõe.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Sendo Cabo Verde uma referência no mundo em geral e em África em particular pelas suas boas práticas, tem demonstrado ser um país estável,

118

“Com a independência, foram introduzidas várias políticas que fomentaram a agricultura nacional, passando os caboverdianos a terem condições substancialmente diferentes das de antigamente.” um país de tolerância. Aristides Lima sente, naturalmente, “um orgulho contido, em relação ao que os cabo-verdianos fizeram ao longo do tempo, quer em termos de organização da sua vida económica, social e política, quer ao nível da governação, da distribuição de riqueza, da solidariedade e da paz”. Contudo, acrescenta, “apesar de nos sentirmos muito orgulhosos, temos plena consciência que não temos apenas sucessos; há ainda um longo e difícil trabalho a realizar”.


fundamentalmente pelo turismo através da atração de investimento externo”

w w w.nosgenti.com

de desenvolvimento passa

Tal implica, necessariamente, o desenvolvimento de atividades tradicionais como a agricultura, a pesca e o artesanato, por forma a que, em conjunto, contribuam eficazmente para o desenvolvimento do país. “Exige também um investimento muito forte na formação profissional e qualificação. Exige poderes locais que funcionem efetivamente, obriga a melhorias ao nível do desenvolvimento urbano, do embelezamento dos espaços, da proteção ambiental e de um investimento forte no domínio da cultura, para que, “se acontecer alguma grande mudança no panorama político

“atualmente, a perspetiva

e de todo o povo, para serem definidas políticas de desenvolvimento que sejam coerentes e que garantam a sustentabilidade do crescimento”, afirma, “atualmente, a perspetiva de desenvolvimento passa fundamentalmente pelo turismo através da atração de investimento externo. Esta via de desenvolvimento exige, para que seja sustentável, que haja uma diversificação de políticas que concorram para a sua sustentabilidade”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Cabo Verde é, atualmente, considerado um país de desenvolvimento médio. Durante muito tempo, beneficiou de apoios estruturais para que crescesse e poderá, eventualmente, deixar de contar com este apoio por ser mais autossuficiente em determinadas matérias. “Esse é o grande desafio que Cabo Verde tem neste momento e que exige uma grande responsabilização das elites governativas

119


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

internacional, nós não deixemos de ter a procura turística que temos tido até agora. Estamos a beneficiar muito do facto de terem havido mudanças políticas nos países árabes com mais oferta turística, mas, de repente, esta situação pode mudar. Daí que temos de nos preparar, para que a nossa economia funcione de uma forma muito mais ampla, menos dependente do turismo”, refere. O centro das políticas públicas, do ponto de vista de Aristides Lima, deve ser pensado cada vez mais em relação ao cidadão cabo-verdiano e “na melhoria da sua condição de vida”.

120

Para Aristides Lima, as pessoas têm de ser informadas e educadas como o principal fator de desenvolvimento. “São responsáveis pelo seu próprio desenvolvimento”, afirma. “A Suíça tem uma constituição interessante: é a única que possui um artigo que diz que o homem é o principal responsável pela sua vida. Eu penso que, para um país em que o povo viveu sempre muito da dependência do estado e de algum paternalismo do mesmo, é muito importante incutir essa ideia nos nossos concidadãos”. Esse esforço já resultou em efeitos positivos no funcionamento da sociedade. Atualmente, as ilhas têm todas vocações diferentes, o que é positivo para o desenvolvimento nacional. Segundo Lima, seria redutor dizer que “o nosso país é uma herança do estado colonial, pois acima

de tudo, Cabo Verde, é hoje fruto do seu próprio esforço no contexto económico, social, cultural e geográfico”. Na opinião de Aristides Lima, a construção de Cabo Verde “é um processo, que embora não seja um desafio fácil, as pessoas sentem-se empenhadas e preparadas para o enfrentar. Por um lado, dá-se aos cidadãos instrumentos para que possam assumir a responsabilidade das suas vidas, com formação e com a criação de mecanismos de acesso a crédito e outras coisas. Por outro, os mais pobres vão tendo mais dificuldade em relação à autonomia e ao seu projeto de vida. Através das políticas redistributivas, o estado vai colocando melhores condições do lado daqueles que menos têm, com a massificação do ensino e com a criação de escolas profissionais. Pessoas que outrora eram bem pobres, conseguem subir na vida com o seu trabalho. Se encontrarem um

“temos de nos preparar, para que a nossa economia funcione de uma forma muito mais ampla, menos dependente do turismo”



apoio na sociedade ou no estado, as pessoas, consequência do seu trabalho, podem perfeitamente sair da pobreza, exercendo a necessária responsabilidade individual”, declara. Todavia, há outros problemas em Cabo Verde. Lima sugere que se dê mais atenção e oportunidades aos jovens para a sua realização pessoal, mostrando que, “uma forma de se dar essa atenção pode ter a ver com a gestão dos fluxos demográficos em Cabo Verde, estimulando a juventude a deslocar-se para onde haja ofertas de trabalho, possibilitando assim, a obtenção de melhores condições de vida”. Aconselha a ilha do Sal e da Boavista, “onde falta sempre mão-de-obra”, mas instiga a juventude a realizar-se também fora do território nacional, “não como emigração por con-

“Cabo Verde tem feito um percurso notável” denação, mas para realização pessoal, mantendo as raízes e ajudando o país no seu desenvolvimento e crescimento.” Este desenvolvimento, passa forçosamente pela melhoria dos níveis de formação e qualificação dos recursos humanos do país. Para Aristides Lima, o sistema de ensino deve ser funcionalmente desenvolvido, considerando as grandes tarefas de desenvolvimento económico, social e cultural que o país tem. Conforme revela, “eu veria mais uma mistura entre o ensino superior, capaz de gerir e maximizar o país, e o ensino profissional ou profissionalizante que dê às pessoas ferramentas para responderem às necessidades no mercado de trabalho. São igualmente necessárias empresas que garantam o sustento das pessoas, para que não saiam das universidades doutores sem emprego”. Para o deputado, a comunicação social desempenha um papel fundamental para o desenvolvimento do país, embora pense que, “talvez falte algum acompanhamento crítico do seu papel na sociedade”. Lima sugere um controlo por parte da sociedade para melhorar o trabalho que a comunicação social desempenha na integração social, na atividade económica, na coesão e especialmente na educação para os novos valores e para a cidadania. No entanto, apesar de achar que a comunicação social pode ser mais desenvolvida, Aristides Lima admite que “tem-se, nos últimos tempos, observado avanços significativos”. Para Aristides Lima, os 37 anos de independência são um motivo de orgulho, trazendo a Cabo Verde ganhos e esperança no futuro. “Cabo Verde tem feito um percurso notável”, afirma, “realizou muitos feitos positivos, contudo, ainda tem questões a desenvolver e a resolver. Tem sido um país e uma nação de paz no sentido externo. Agora, precisamos trabalhar muito nessa área, para garantirmos um mesmo índice de tranquilidade interna, possibilitando um maior desenvolvimento, uma maior segurança e um empenho mais afincado, quer das pessoas, quer do Estado, no fomento de um desenvolvimento regional mais equilibrado”.


Aristides Lima

O percurso de um Estadista

Lima desempenhou importantes cargos políticos no país, trabalhando no Secretariado Nacional do PAICV junto de Olívio Pires e José Araújo, entre outros, tendo dado uma importante contribuição no processo de transição para a democracia. Várias das leis do processo de transição, incluindo a Lei de Revisão Constitucional de 1990 e a primeira Lei dos Partidos Políticos de Cabo Verde, contaram com a sua colaboração. Foi eleito (1993) e reeleito dirigente máximo do PAICV, ao tempo Secretáriogeral, tendo sido candidato a primeiro-ministro em 1996. Foi também eleito deputado à III Legislatura em 1985, tendo sido reeleito em 1991, 1996, 2001 e 2006. Aristides Lima foi o primeiro líder parlamentar do PAICV a lançar as bases organizativas e jurídicas para o funcionamento do Grupo Parlamentar no contexto da democracia competitiva. Exerceu este cargo de 1991 a 1998, em que a função de deputado, durante muitos anos, não era re-

Foi durante o primeiro mandato de Aristides R. Lima, como Presidente da Assembleia Nacional, que o Parlamento cabo-verdiano deu a todos os Deputados a possibilidade de exercerem o seu mandato a tempo inteiro. Foram criadas condições dignas de trabalho próprias de um Parlamento moderno. A Assembleia Nacional de Cabo Verde deixou de ser um Parlamento inibido, para se transformar numa verdadeira legislatura, passando a exercer com plena autonomia as condições básicas à sua função como órgão de soberania e centro vital do poder, onde os direitos e domínios da oposição são plenamente respeitados e a maioria governativa pode igualmente exercer a sua função, com total liberdade. Como Presidente da Assembleia Nacional, Aristides R. Lima empenhou-se na modernização do Parlamento, tendo trazido para Cabo Verde personalidades do mundo académico europeu, africano e das Américas, assim distintos Presidentes de Assembleias Nacionais de países que mantêm relações tradicionais com Cabo Verde. Esta iniciativa visou aproximar o Parlamento da sociedade e contribuiu para a transformação do Parlamento numa democracia. Lima, desenvolveu ainda a cooperação da Assembleia Nacional com vários parceiros internacionais, em especial os de Portugal, Brasil e Angola, o Parlamento Italiano, o Bundestag Alemão, o Congresso do Povo Chinês, o Parlamento Espanhol, o Parlamento da CEDEAO, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o PNUD e a Fundação Friedrich Ebert. Em 2004, Aristides Lima foi distinguido com uma das mais altas condecorações do país, a Grã-cruz do Mérito da Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha, pelo Presidente da República Federal da Alemanha, Horst Köhler, não só pelo seu empenho no desenvolvimento do Estado de Direito cabo-verdiano, mas também pela contribuição prestada no reforço da cooperação entre a Alemanha e Cabo Verde. 

w w w.nosgenti.com

Em 1983, Aristides Lima licenciou-se com distinção em Direito na Universidade de Leipzig. Mais tarde, obteve o grau de Mestre nas Universidades de Heidelberg e Mannheim com uma dissertação em Direito Constitucional, obtendo a classificação máxima. Não deixou, no entanto, de contribuir, internamente, para o desenvolvimento do seu país, desempenhando várias funções na Administração Pública cabo-verdiana, tendo sido também Jornalista, Conselheiro Jurídico do Presidente da República Aristides Pereira, Técnico Superior e Diretor no Ministério da Justiça. Exerceu no Instituto Amílcar Cabral, durante vários anos, o ensino de disciplinas como Cultura Jurídica, Teoria do Estado e Direito Constitucional, História das Instituições Políticas Contemporâneas e de Introdução ao Sistema Jurídico-ambiental Cabo-verdiano.

Em 2001, Lima foi eleito Presidente da Assembleia Nacional, o segundo mais alto cargo na hierarquia do Estado, tendo sido reeleito em 2006 para um segundo mandato, substituindo, por diversas vezes, o Presidente da República nas suas ausências. A partir de 2001, exerceu as funções de membro do Conselho da República, órgão auxiliar de consulta do Chefe de Estado.

Dedicando-se plenamente à luta política pela independência de Cabo Verde, Aristides Lima torna-se membro do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, após o 25 de abril, participando na mobilização para as eleições de 1975. Foi também um dos promotores do Ciclo Preparatório na Boa Vista, onde lecionou as disciplinas de português e francês, entre 1974 e 1976, bem como jornalista no semanário “Voz di Povo”, entre 1976 e 1978.

munerada. Os deputados não exerciam o mandato a tempo inteiro e podiam acumulá-lo com funções administrativas e outras. Como deputado, foi o autor de vários projetos de leis sobretudo em matérias relacionadas com o Reforço do Estado de Direito Democrático.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

ristides Raimundo Lima nasceu em Sal-Rei, mas foi em São Vicente que participou no programa “Nos Terra” e pertenceu ao grupo político-cultural “Distância”, que teve uma intervenção notável na antiga rádio Barlavento, entre 1972 e 1974, sob a orientação do Dr. Baltasar Lopes.

123


E: Luís Neves | W: Diana Lopes | F: Pedro Matos

Opinião

Milton Paiva

Menor Estado,

melhor Estado

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Filho da independência, Milton Paiva é docente universitário e consultor de empresas e instituições públicas na área jurídica. Tem também exercido atividades políticas no país: foi Vereador na Câmara Municipal em S. Domingos e é deputado suplente no MpD na região de Santiago Sul. Já esteve em duas sessões temáticas sobre o estado da justiça e sobre a solidez do sistema financeiro, exercendo cargos na estrutura partidária, nomeadamente, na comissão de política nacional e regional do MpD.

124

M

ilton Paiva compara a independência nacional à liberdade individual, em que se podem identificar realizações feitas e desafios por concretizar e consolidar. Para o professor, “37 anos de independência é um tempo histórico irrisório para a idade de um Estado. Para analisar a performance de indivíduos, esse espaço de tempo é razoável, mas para analisar a do Estado, é muito curto. Apesar das mudanças notáveis do regime político, do modelo do Estado e do modelo da economia, diria que poderíamos resumir 3 momentos diferentes: o momento do regime político do partido único, o momento da democracia

nos anos 90 e o momento atual, o dos alicerces do regime político, da economia, dos recursos humanos e das infraestruturas de que o país vai necessitar para uma fase seguinte.” Para o deputado, a ideia de menor Estado, melhor Estado é um conceito internacional assumido pela maioria das teorias sobre a reforma do Estado. “Penso que é possível constatar através da observação, que a maioria dos Estados que são mais eficientes, mais ligeiros e melhores em organizar o ambiente económico, são os Estados pequenos que se vão concentrando naquilo que é fundamental, como a segurança, a educação para


125

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


as massas mais desfavorecidas, os setores da saúde, a organização das finanças e algumas grandes infraestruturas de informação e de transportes. Os Estados que têm sido bem-sucedidos, são os que recuam na esfera económica e social, para deixarem espaço ao desenvolvimento do setor privado e da sociedade civil. É possível observar em Cabo Verde que essa ideia já foi assumida. Alguns relatórios recentes posicionaram-nos favoravelmente em relação à atitude reformista”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Contudo, Milton Paiva continua por dizer que “no ranking de competitividade estamos muito atrás. A lentidão da justiça tem sido um ponto muito negativo na competitividade. Apesar de ser um Estado grande, comparativamente com o setor privado e a sociedade civil, as posições que ocupa nessas áreas de grande impacto económico não são competitivas. É necessário simplificar e modernizar ”. Conforme explica o político, “em teoria, uma viragem excessivamente à esquerda ou à direita é sempre nefasta. A virtude está no equilíbrio. Em termos absolutos”, acrescenta, “é

126

uma questão que praticamente não se resolve. Dizer que a esquerda tem sempre razão ou a direita tem sempre razão é, do meu ponto de vista, uma discussão eterna. No caso de Cabo Verde, penso que a governação da última década tem sido mais de esquerda, embora digam que é uma esquerda mais moderna e mais de terceira via. Partindo da ideia que o Estado seria mais solidário, mais justo e mais seguro, aniquilou-se o setor privado, sendo neste momento quase inexistente. Atualmente “já é possível constatar que as grandes empresas nacionais estão em extremas dificuldades financeiras, estão a despedir pessoas, os grandes projetos estão bloqueados, há problemas de liquidez e de pagamento dos impostos. Neste momento, conduzirmos o país para o apoderamento excessivo do Estado na economia e na educação, seria prejudicial. É preciso dar novo fôlego ao setor privado, à criação de riqueza e ao autoemprego. Isso faz-se partindo de uma visão ideológica mais de centro direita, mais reformista, orientada para os privados e menos para o Estado coletivo”, conclui o jovem deputado.


O sucesso de qualquer projecto depende sempre da forma como o abordamos The success of any project always depends on how we approach

ASSESSORIA FISCAL / TAX CONSULTING INVESTIMENTO PRIVADO / PRIVATE INVESTMENT CONSULTORIA DE GESTÃO / MANAGEMENT CONSULTING CONSULTORIA FINANCEIRA / FINANCIAL CONSULTING AVALIAÇÃO E INVENTÁRIO PATRIMONIAL / ASSET INVENTORY AND ASSESSMENT

ADC Consultores, Lda

Rua 5 de Julho, nº 70 - 3º Andar - Plateau - Praia - Tel. +238 2619860/2642304 - adconsultores@adc.cv


128

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


de Cabo Verde uma potência.” propriedade, para se fazer um registo, a legislação laboral, a facilidade com que contrata ou se despede, a facilidade com que se contrai crédito ou não - há um conjunto de situações que se fazem a nível de leis e de decisões politicas, que têm de ser reformadas. Com isso, num curto prazo, podemos perder algumas receitas garantidas, mas que a médio e longo prazo se traduz em progresso, crescimento e riqueza”. Como jovem experiente em várias áreas, quer políticas, quer relativas à sua profissão, acredita que é possível ambicionar, nos próximos anos, um Cabo Verde equilibrado. Conforme salienta, “para a minha geração já não é utópico. Com os modelos que existem no mundo, com o percurso que já fizemos e com o acesso que vamos tendo ao conhecimento, penso que é possível dar um grande salto competitivo - não ainda um salto

Quanto ao futuro do país, Milton Paiva pede aos mais experientes que confiem nas novas gerações, pois conforme diz, “quando se atinge uma certa maturidade, as pessoas têm tendência a tornarem-se pessimistas, pensando que a sua geração é que era a melhor, a única capaz de garantir o progresso. A esses, peço que confiem nos jovens de hoje, da mesma forma que confiaram no passado. Para a nova geração, que é a minha, a mensagem é para que se qualifiquem e trabalhem cada vez mais, pois o desenvolvimento e o progresso não acontecem de forma espontânea, mas sim de maneira programada e persistente. Ver o que é que se faz no mundo de inteligente e de adequado para nós, dominar essas práticas e implementá-las em Cabo Verde”. 

w w w.nosgenti.com

com formação e escolas, podia fazer

Há contudo áreas estratégicas para o desenvolvimento, que segundo Milton Paiva, estão a ficar relegadas para segundo plano, nomeadamente “a cultura e o desporto que, ainda não são tratados como áreas prioritárias do Estado e da estratégia nacional. Os recursos são muito inferiores aos que investimos nas tecnologias e nas infraestruturas rodoviárias ou noutro tipo de estruturas. Penso que ainda não assimilámos de forma muito clara que a cultura e o desporto podem ser dois vetores chave do marketing do país e da atração de rendimentos. Existe um potencial em bruto que, com formação e escolas, podia fazer de Cabo Verde uma potência. Podíamos fazer da cultura e do desporto, uma indústria estratégica de atração de meios e oportunidades. A ideia de que podíamos concentrar todas as nossas espectativas de desenvolvimento apenas na área do turismo fracassou. A espectativa sobre os grandes investimentos imobiliários acabou por não se concretizar, devido às nossas dificuldades burocráticas, institucionais, financeiras e competitivas. Não estamos preparados para contar só com o turismo”, salienta.

“Existe um potencial em bruto que,

económico, porque penso que não vamos ser uma nação rica daqui a 50 anos”, acrescenta, “mas competitiva sim! Acho que outros povos, outras economias e outras empresas podem vir a olhar, progressivamente, para Cabo Verde como um país atrativo para se investir, em função dos recursos humanos existentes, com boas leis e instituições que funcionam de forma mais rápida, tribunais que deem respostas céleres, de um ambiente seguro, de pessoas abertas ao mundo, agradáveis, amantes da cultura e do desporto e que sabem estar e receber”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Milton Paiva diferencia o crescimento económico da competitividade do mercado interno. “Pôr a economia a crescer é muito mais complexo”, comenta, “porque exige recursos humanos, meios materiais, financeiros e de capital, sendo preciso averiguar se estão disponíveis para os objetivos ambiciosos que estão fixados. Competitividade é a facilidade, a segurança, o interesse e o retorno que investir no país pode trazer, não utilizando meios nossos. Isso já se fez noutros Estados pequenos, também com recursos próprios pequenos. Para tal, a forma como se implementa o sistema fiscal é determinante. Pode-se escolher manter um sistema fiscal em que se coleta muito para o Estado ter a curto prazo bastante dinheiro, mas há outras experiências conhecidas de sistemas que optam por coletar menos em alguns setores para gerar mais investimentos. A forma como se manuseiam os instrumentos fiscais, define a forma como o Estado é mais ou menos competitivo. O tempo de resposta das instituições administrativas, o número de etapas que se fixam para se adquirir uma

129


130

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


131

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


132

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Opinião

Ana Maria Cabral

Amílcar Cabral Dedicação e espírito de sacrifício

Quando a D. Simoa morre, “Juvenal teve de regressar a Cabo Verde para tomar conta dos terrenos herdados. Segundo as informações que tenho, ela tinha muitos terrenos e conseguiu mantê-los, apesar da seca. No entanto, o Juvenal, que não tinha jeito para o negócio, acabou por perdê-los aos poucos. Nessa altura, quando ele veio para Cabo Verde, conseguiu convencer Nhá Iva a trazer os filhos e, mais tarde, ela própria também voltou para Cabo Verde, ficando a residir na Praia. Quando ouviu dizer que a madrasta não tratava muito bem os filhos dela, resolveu ir buscá-los, apesar de não haver caminho e a viagem da Praia a Santa Catarina demorar dias. Quando finalmente se encontra com Nhô Juvenal, vê Amílcar todo sujo a tomar conta de umas cabras e as gémeas a arearem panelas”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

madrinha de Juvenal Cabral, D. Simoa, natural de Santa Catarina, tinha uma família com grandes posses, mas não tinha filhos. Assim, resolveu contemplar o afilhado no seu testamento. “No entanto, impôs uma condição”, acrescenta Maria Cabral, “Uma família portuguesa de quem era muito amiga veio cá passar umas férias com as suas duas filhas gémeas. Uma delas, Adelina, gostou tanto de Cabo Verde que não quis voltar a Portugal com os pais e ficou em casa da D. Simoa. A condição que a madrinha impôs era que Juvenal casasse com Adelina. Assim, Juvenal teve de deixar a mãe de Amílcar para casar com a portuguesa, levando-a para Bissau. Desse casamento, nasceu Luís, o meio-irmão de Amílcar Cabral.”

w w w.nosgenti.com

Por causa das crises prolongadas devido aos períodos de seca que já naquele tempo Cabo Verde enfrentava, Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral, viu-se obrigado a emigrar para a Guiné-Bissau. Lá conheceu Iva, mãe de Amílcar, que também tinha emigrado. Juvenal Cabral e Nhá Iva não chegaram a casar, contudo, tiveram quatro filhos: Amílcar Cabral, duas gémeas e outro filho, que acabou por morrer após a independência nacional. Ana Maria Cabral, mulher de Amílcar Cabral, conta o percurso de vida do homem a quem Cabo Verde deve os ideais da independência .

133


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Amílcar entre is irmãos Luís e António

134

Nesse momento, Nhá Iva afirmou perentoriamente que os seus filhos “não tinham nascido para serem escravos” e levou-os para a Assomada. “Alguém foi avisar o Nhô Juvenal”, conta Maria Cabral, “que veio imediatamente a cavalo para impedir que Iva levasse as crianças. Contudo, ela jurou, diante de todos, que ia fazer de Amílcar uma pessoa especial. Levou os filhos para Assomada e mais tarde para a Praia, onde os colocou na escola a estudar, enquanto trabalhava como cozinheira, lavadeira e costureira. As meninas, além de estudarem, também tinham de aprender a coser. Depois de completar a instrução primária, só havia liceu em S. Vicente, por isso toda a família foi para lá. Nhá Iva foi trabalhar numa fábrica de conservas de atum e o Amílcar, mesmo estando no liceu, dava explicações para conseguir mais dinheiro. Foi assim que ele conseguiu terminar o liceu. De volta a Praia, ele foi trabalhar na Imprensa Nacional como escriturário”. Amílcar e Maria Cabral Maria Cabral recorda que conheceu Amílcar nos anos 50 em Portugal, “durante o despertar das consciências”, conforme diz. “Eu era bastante jovem e estava a estudar no liceu. A maioria desses jovens eram universitários, outros já tinham terminado, como Cabral,

e tinham constituído família. Foram eles os mobilizadores da abertura das nossas consciências. Naquela altura eles não pensavam em luta armada - era apenas contestação às injustiças do regime. O próprio Amílcar Cabral confessou isso. Eles pensavam fazer greves, à semelhança do que tinham feito as colónias

Iva Cabral



francesas e inglesas. Foi a partir do massacre na Guiné Bissau, a 3 de Agosto de 1959, que os fundadores do PAIGC, que já estavam no terreno a trabalhar, resolveram mudar de estratégia: não podiam combater as armas apenas com contestações. Resolveram então começar a mobilizar militantes a partir de 1959. Nós tínhamos informações dos mais velhos sobre o que se estava a passar nas outras colónias de África e no mundo. Em Portugal não havia liberdade, pois a PIDE estava sempre em cima de nós a controlar todos os nossos passos. Muitos desses jovens contestatários ao regime estiveram várias vezes presos. A única solução para se fazer alguma coisa era sair de Portugal, mas como eles estranharam o pedido de tantos passaportes, impediram que muitos se juntassem ao movimento que, entretanto, crescia. A única solução estava nas saídas clandestinas, muito ajudadas pelas igrejas protestantes de Angola, que financiaram essas viagens clandestinas”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Maria Cabral já era bolseira e casou em Portugal com um angolano. “Nós tínhamos decidido que enquanto os nossos países não fossem independentes eu iria colaborar com o PAIGC e ele com o MPLA. Conseguimos uma bolsa, ele do MPLA e eu do PAIGC e estivemos na Checoslováquia, onde tivemos um filho, que está agora em Luanda”, refere. Amílcar Cabral ia inúmeras vezes aos países que ajudavam o PAIGC, incluindo a Checoslováquia, para contar as novidades aos vários estudantes afetos aos dois partido - o PAIGC e do MPLA - sendo a maioria deles angolanos.

136

“Nós todos estudámos na época colonial”, recorda Maria Cabral, “mas das nossas terras não sabíamos quase nada. Lembro-me que em Angola fiz a instrução primária e o que estudávamos sobre a História de Angola era um livrinho com meia dúzia de páginas que não dizia quase nada. De resto, era só Portugal, porque punham no nosso espírito a ideia de que éramos portugueses. Foi na Rua António Vale que nasceu o movimento de reafricanização dos espíritos. Eles comprometeram-se a estudar várias matérias, além do estudo das suas especialidades, que eram obrigados a fazer. Um estudava a geografia de África, outro a sua História, entre outras coisas, e depois faziam as reuniões. Tinham de ter muito cui-

dado, porque se a PIDE desconfiasse iriam certamente passar a vigiar a casa, condicionando o movimento. Uma estudante minha amiga levou-me a essa casa e foi através dela que eu conheci o Amílcar Cabral. Ela é que mo apresentou, mas eu não liguei o nome à pessoa. Pensava que eram pessoas diferentes. Só mais tarde descobri que, aquele engenheiro que me tinha sido apresentado, era o mesmo de quem tanto ouvia falar”. “Amílcar já tinha duas filhas”, afirma Maria Cabral, “mas a relação dele com a mulher não estava muito bem e já não viviam juntos. Depois dos contactos oficiais, ele falava com os estudantes. Nessa altura, eu e ele conversávamos sempre um bocadinho, havendo uma espécie de atração. Quando ele se separou da mulher e eu me separei do angolano, decidimos fazer uma experiência de vida a dois. Tive de interromper os meus estudos na Checoslováquia, porque havia demasiados problemas e eu estava esgotada. Fui para Conacri trabalhar com o meu filho. Em inícios de 1966, a luta já estava tão desenvolvida, que havia áreas libertadas. Teve de se administrar e organizar as populações dessas áreas. Umas das primeiras

Amilcar e Maria Cabral


coisas que se fizeram foram escolas - ensinar a ler e a escrever. Isso iria ocupar as crianças e consciencializá-las para o que se estava a passar. Era necessário também tratar dos feridos. Estas eram as duas prioridades naquela altura: a saúde e a educação. A direção do partido resolveu criar uma escola, a escola piloto, em Conacri, que foi a sede do PAIGC”. Maria Cabral recorda que o trabalho foi bastante edificante. “Fazíamos e adaptávamos livros de outros países, ensinávamos o português e dávamos também aulas rudimentares de francês, porque era a língua que mais se falava em Conacri. Paralelamente à ajuda militar, Cabral procurou convencer os países que ajudavam o PAIGC a darem bolsas para cursos profissionais e cursos técnicos, porque os jovens não podiam ficar eternamente na escola piloto. Ficavam dois ou três anos no máximo e depois iam para o estrangeiro aprender eletricidade, mecânica e enfermagem. As nossas primeiras ajudantes de enfermagem foram todas enviadas para fora: União Soviética, Checoslováquia, Bulgária. Todos esses países ofereceram bolsas. Enquanto durou a luta, foram todos formados lá. Depois da independência, como eram jovens, Amílcar Cabral mandou-os para Portugal, para terminarem o liceu e aprofundarem os seus conhecimentos. Cabral era uma pessoa extremamente amiga e carinhosa com os filhos. Achava que tínhamos de nos sacrificar para dar o melhor aos filhos, para que

todas as crianças tivessem um futuro melhor”. “Como eu era extremamente anticolonialista e estava de acordo com a nossa resistência, estava sempre absorvida com os assuntos do partido, com a luta e com a educação dos meninos. Uma ou duas vezes, fui com ele às áreas libertadas, mas, de maneira geral, ele ia sozinho, para contactar os combatentes armados. Dizia que nós não éramos militares, éramos militantes, mas havia uns que eram obrigados a estar com armas nas mãos. No entanto, os que estavam com os livros também lutaram;

Ensinar fazia parte das tarefas de Ana Maria Cabral


138

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Antes de se iniciarem os conflitos armados, Amílcar Cabral tentou todas as vias diplomáticas para dialogar com o regime colonial

Cabo Verde e Guiné-Bissau Maria Cabral, diz que, “Amílcar procurava convencer todos os países que havia uma li-

w w w.nosgenti.com

“Cabral foi obrigado a conviver com as armas”, conta Maria Cabral, “Quando morria alguém, ele ficava extremamente perturbado e perguntava-se quais seriam as consequências de todo aquele sangue, quando a luta acabasse. Era uma violência para toda a gente, especialmente para os guineenses que nem sequer conheciam bombas. Tive uma aluna que disse que quando viram um avião, foram para a rua

Amílcar Cabral discutia com os amigos e intelectuais a necessidade de se sair daquele impasse. Mesmo com Marcelo Caetano à frente da governação, Portugal continuava com a mesma política, sendo atacado pela ONU e já com poucos países ao seu lado. “Depois do 25 de Abril, decidiu-se criar as condições para a proclamação do Estado. A ONU apoiava esta decisão e Portugal seria considerado um agressor. Contudo, era preciso preparar a população para a criação do Estado. Não foi fácil explicar à população o que era uma assembleia e deputados, por isso. Foram precisos quase três anos para se criarem conselhos regionais, para que fossem eleitos deputados. Nesse ano, Cabral foi assassinado. Proclamou-se o Estado em setembro de 73. Foi logo reconhecido por todos os países africanos e criou-se as condições para se levar o reconhecimento à ONU”.

Cabral e a luta armada Cabral queria a paz, por isso, antes da luta começar, escreveu várias cartas a Salazar e à ONU, às quais não obteve resposta, apenas tiros e bombardeamentos. Foi, por isso, necessário recorrer às armas. Amílcar Cabral recebeu instrução militar na China. Depois, formaram-se outros combatentes, instruindo-os a como se defenderem e usarem as armas. Cabral questionava-se sobre quais seriam as consequências de toda esta violência. Contudo, os princípios da libertação eram absolutamente justos, porque as assimetrias eram muito grandes.

dizer adeus àquele pássaro de metal. Quando largou as bombas, ninguém fugiu”, recorda Maria Cabral.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

lutaram para deixar de ser analfabetos. Foram muitos anos de sacrifício”, desabafa.

139


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

gação muito forte entre a Guiné e Cabo Verde. Afirmava que Cabo Verde fora formado por pessoas que saíram dessa costa africana, sobretudo guineense. Houve uma altura, na época colonial, nos primeiros anos da verdadeira

140

colonização, que a sede da Guiné e Cabo Verde era em Cabo Verde. Sendo dois países tão pequenos, podiam perfeitamente complementar-se, mas a unidade dependeria dos dois povos e isso ficou definido no estatuto do PAIGC. Foi muito violento e traumatizante, mas não há dúvida que Cabo Verde evoluiu e desenvolveu-se muito. No entanto, o grande sonho de Cabral era que os dois países estivessem juntos e se complementassem”, acrescenta. Em nome de Amílcar, Maria Cabral gostaria que os guineenses conseguissem arranjar uma maneira de acabar com todo o crime, que conseguissem ter uma consciência nacional e que os militares e os políticos percebessem que devem servir o Estado. Além disso, Maria Cabral “gostaria que aprendessem com os outros países democráticos e, acima de tudo, com Cabo Verde, aproveitando a experiência positiva da administração na época da luta pela libertação e das áreas libertadas.”  

O dia da independência da Guiné-Bissau


141

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Tarrafal O Campo de Concentração do

142

Texto: Silvino Évora Fotografias: Pedro Matos


143

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


144

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Campo de Concentração do Tarrafal

Para uma história

da liberdade na lusofonia

O resultado é bem catastrófico. Os mortos contam-se aos milhões. Aqueles que ficaram com sequelas, às dezenas de milhões. Em quase todo o mundo, os países conhecem profundas transformações que se deram no tecido social, político e económico. A Europa perde cerca de metade do seu parque industrial, sofrendo uma inflexão negativa no seu potencial agrícola de 30 por cento. França e Inglaterra perdem cerca de um terço das suas riquezas. Portugal perde, claramente, a ‘paz política’. O

A 29 de Outubro de 1936, Tarrafal abre as portas para receber os primeiros ocupantes da então Colónia Penal. Antes, o regime ditatorial tinha publicado o Decreto-lei 26/539, de 23 de Abril de 1936, com a finalidade de reorganizar os serviços prisionais, assinando o atestado de nascimento ao Campo de Con-

w w w.nosgenti.com

Como uma corrente de água em direção à foz, a história desfila-se no tempo rumo ao Estado Novo, causando várias baixas no interior da Ditadura, fazendo emergir o Salazarismo como o vencedor. A vitória não é pacífica. O Reviralhismo e o Movimento Operário declaram guerra à derrota, não aceitando o triunfo do Salazarismo. O clima é de grande tensão. As desconfianças são mútuas. E, para assegurar a estabilidade da sua administração política, Salazar amplia os instrumentos de repressão e instala o Estado Novo. Polícia Política, sistema de saneamento, isolamento, encarceramento são apenas nomes próprios desse período. E como a ordem é superior a tudo, não há de haver fronteiras para as prisões. Cabo Verde é apenas uma de entre todas as possibilidades.

O século XX encontra o mundo de pernas para o ar. A Europa conhece momentos de pulverização política, sendo que a relação inter-estado conhece picos máximos de ebulição, chegando a haver, aqui e acolá, focos de convulsão política. A paciência entre os países acaba e a intolerância impera. Criamse os blocos, formam-se as alianças e a guerra prova o sabor da globalização. Entre 1914 e 1919, o mundo conhece um dos momentos mais trágicos da sua história. É a primeira guerra mundial que mostra o rosto dos novos tempos em que quase tudo ganha a feição do global. Não é só a economia, a comunicação internacional, a transferência de capital e a internacionalização das empresas que se apresentam como o espelho desta nova roupagem que o mundo ganhou. A primeira guerra mundial teria dado, desde o início do século XX, sinais claros de que, cada vez mais, o mundo perderia fronteiras físicas, psicológicas e culturais.

Reviralho (esquerda republicana) afasta-se do regime ditatorial, travando contra ele um combate sem tréguas; o AnarcoSindicalismo serve de base ao Movimento Operário Organizado para a conquista de terreno no seio da classe operária; O Partido Comunista Português (PCP), com fraca expressão, procura espaço de afirmação; e o Partido Socialista (PS) adota uma posição ambígua face ao sistema ditatorial. Lança-se as cartas na mesa e delineia-se as estratégias.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Dos antecedentes à criação do “campo da morte lenta”

145


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

centração do Tarrafal. Trata-se de uma prisão especial, pensada para indivíduos que sobre as suas ‘culpas’ recaem ‘penas especiais’. Mas, as culpas não precisam estar formadas. O primeiro e o segundo parágrafos do Artigo n.º 2 do Decreto-lei 26/539, de 23 de Abril de 1936, são bem elucidativos. Mostram, como objetivo da Colónia Penal, o dever de receber os presos políticos e sociais, sobre quem recai a obrigação de cumprir o desterro; aqueles que, internados em outros estabelecimentos prisionais, se mostram refratários à disciplina; e ainda os elementos perniciosos aos outros reclusos. O documento abrange, também, os condenados à pena maior por crimes praticados com fins políticos, os presos preventivos e os presos por crime de rebelião.

146

Antes de Tarrafal houve Campos de Concentração Historicamente, os campos de concentração traduziram-se num sistema de encarceramento de presos políticos, prisioneiros de guerra e grupos étnicos. O seu surgimento despontou sobretudo durante o século XIX, em que o Colonialismo europeu passou a pôr mão dura sobre alguns territórios, entre os quais Índia e Cuba. O objetivo era sobretudo sufocar as tentativas de insurreição e de rebelião dos indígenas a favor de um certo ideal de autonomia e libertação dos seus territórios. Napoleão Vieira de Andrade, cabo-verdiano com um percurso entre a academia e o universo militar, recorda que “o campo de concentração sur-

giu numa época em que os mundos políticos foram arrastados tanto pela Segunda Guerra Mundial como pela guerra das independências”. Tarrafal é, assim, o resultado de um conjunto de situações que se conjugaram no sentido do Estado Novo pensar no desterro de pessoas para Cabo Verde. A agudização da luta de classes em Portugal e a situação política da Itália e da Alemanha levam, então, o regime Salazarista a pensar na incrementação da repressão. Antes do Tarrafal, o regime opressor criara, na Ilha de São Nicolau, um Campo de Concentração que servira para o degredo, sobretudo, de oficiais do exército detidos na Revolução da Madeira de 1931. E anterior ainda às prisões de Cabo Verde, o Decreto-Lei de 17 de Fevereiro de 1907 havia criado, em Angola, uma Colónia Penal Militar. Contudo, o Campo de Concentração da Ilha de S. Nicolau e os campos de concentração alemães, principalmente o de Dachau, são apresentados por muitos, especialmente pelos presos que estiveram no Tarrafal, como os antecedentes que justificam a criação daquilo que, para uns, é Colónia Penal e, para outros, Campo de Concentração do Tarrafal. O regime salazarista e os seus apoiantes defendem apenas que o Campo de Concentração do Tarrafal foi pensado como “Colónia Penal”, tendo como objetivo o acolhimento dos condenados a pena de desterro pela prática de crimes políticos e os prisioneiros de delitos comuns que, na Metrópole, mostraram-


Tarrafal, cujo silêncio da história ainda hoje lhe dorme sobre as orlas do mar, conhece um dos períodos mais negros da sua história nos corredores dos anos 30 do passado século, estendendo-se até a meados dos anos 50. O decreto-lei que injetou vida ao “campo de morte lenta” determinava taxativamente que fosse instalado, na localidade de Achada de Chão Bom, no Concelho de Tarrafal, em Cabo Verde, um estabelecimento prisional. Ainda hoje a história teima em não revelar tudo o que lá se passou. Mas, alguns pormenores vão, através de testemunhos, se desengrenando da máquina do tempo. O trabalho tosco de construção foi entregue ao Ministério das Obras Públicas e Telecomunicações, sobre quem também recaía a responsabilidade de encontrar o modelo arquitetónico do edifício a ser implementado. O mesmo Ministério concebe, então, um projeto que prevê diferentes pavilhões. Uns para al-

w w w.nosgenti.com

No seu livro intitulado Campos de concentração em Cabo Verde: as ilhas como espaços de deportação e de prisão no Estado Novo, Victor Barros trabalha a questão da dupla prisão para mostrar que, se as próprias ilhas podem ser entendidas como espaços onde se reduz a liberdade de movimento, estarse encarcerado numa ilha faz com que se viva a dupla dimensão da prisão. Pensamento semelhante tem Napoleão Vieira de Andrade, segundo quem “os transportes aéreos e marítimos na

O histórico “campo de morte lenta”

Analisando a transferência de presos para Cabo Verde, durante o regime salazarista, Napoleão Vieira de Andrade põe o acento tónico na questão do isolamento: “sem dúvida que Cabo Verde, dado ao seu isolamento na altura, como colónia de Portugal, tinha maior possibilidade de manter a comunidade internacional desinformada, em relação aos maus-tratos que sempre caracterizam o quotidiano dos presos... Tarrafal, como interior e extremo norte da ilha, com seu colonato (com matas), servia de camuflagem perfeita para um lugar que não se queria ter exposto aos olhos do mundo”.

altura eram raros e Cabo Verde, por si próprio, apresenta-se na sua posição de ilhas como prisão, dado à impossibilidade de fuga terrestre. As únicas vias de que se dispõem são aéreas e marítimas, o que, na altura, não era fácil”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

se intransigentes à disciplina prisional. O Governo justifica ainda que a Colónia Penal do Tarrafal é, em tudo, semelhante às prisões da Metrópole, dirigidas pelo Ministério da Justiça, como os casos de Caxias, Aljube e Peniche.

147


bergarem serviços; outros eram tão-somente depósitos de seres humanos. A arquitetura, depois de pronta, foi aprovada. Depois de aprovada, a obra construída. Eram tão-somente 1.700 hectares de terra circundada, com uma extensa zona à volta, que serviriam para uma possível ampliação.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Para quem vai, de Assomada, na direção ao Monte Graciosa, quando chega na zona do ex-Campo de Concentração do Tarrafal, atrás de si, deixa a aldeia de Chão Bom, uma zona cujas famílias apresentam condições precárias; à sua frente, dorme a outrora Vila do Tarrafal (hoje cidade), com enormes potencialidades turísticas colocadas presas numa outra ‘colónia penal’, que é o marasmo ao qual o concelho se viu devotado; no lado esquerdo conta com a zona agrícola de colonato que, nos últimos tempos, tem contado com um percurso penoso; no lado direito, as achadas. Achadas com as mesmas características que tinham a Achada de Chão Bom, na primeira metade do século XX, quando o regime salazarista decidiu traduzir as suas fragilidades em desumanismo no solo cabo-verdiano.

148

O “campo de morte lenta” não era apenas um campo. Mais do que isso, materializava o sonho do Estado Novo de travar a ascensão libertária das mentalidades em todas as zonas onde o seu poder se fazia sentir. Duas fases fizeram a sua implementação: a primeira acontece entre 1936 e 1954. Naquele ano de 1936, os meses corriam como água na ribeira porque os acontecimentos eram tantos: na Alemanha, os Jogos Olímpicos de Berlim marcaram o retorno do país ao cenário internacional, depois do seu isolamento após a sua derrota na Primeira Guerra Mundial; na outra ponta da Europa, deflagrara a Guerra Civil Espanhola, que se estendera até o ano em que se iniciara a II Guerra Mundial, denotando o fracasso da Sociedade das Nações e empurrando o mundo, depois dessa fase, para uma nova base de entendimento na esfera internacional; em Cabo Verde surgira, no Mindelo, a Revista Claridade, marcando, de forma indelével, a história social, política, cultural e humanista do arquipélago. Todas essas situações marcaram então o ano em que se deu o início à primeira fase de implementação do “campo de morte lenta” no Tarrafal de Santiago. Essa fase que se estende até 1938 é marcada sobretudo pela chegada dos primeiros 150 presos antifascistas. Entre eles, havia gente que sabia fazer de tudo um pouco: camponeses, operários, soldados, marinheiros das revoltas dos navios Dão, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque, estudantes, intelectuais, entre outros. Nessa altura, a concentração se fazia mais num campo destapado. Era mais a ilha a funcionar como prisão de que a existência de um local de alta segurança. Numa primeira fase, o espaço foi sumariamente equipado e hermeticamente fechado com arrame farpado, onde se regista uma desatenção aos direitos mais elementares do ser humano. Os pavilhões, nesta etapa, são improvisados. Os feitos de pedra e a chegada do médico Esmeraldo Pais de Prata marcam a segunda etapa, que se estende até ao encerramento, a 26 de Janeiro de 1954. Durante

esse tempo, foram presos 340 indivíduos, sem qualquer tipo de defesa. A presunção de inocência e a necessidade de formação da culpa foram riscados dos livros de Direito que António Oliveira Salazar tinha lido em Coimbra, para iniciar a sua carreira de docente universitário. Ou dos livros ou da memória científica de um sistema político encrudescido. Dos 340 presos que foram levados para o “campo de morte lenta”, 32 viriam a pagar, com a vida, a sua sorte. De entre eles, destaca-se um nome: Bento Gonçalves. Este foi o primeiro Secretário-Geral do Partido Comunista Português (PCP). A sua morte ocupou a página da história do ano 1942. Depois dele, abriu-se uma frente de dirigentes dentro do PCP, até chegar-se à atual liderança de Jerónimo de Sousa. No cemitério do Tarrafal permanecem, de forma quase intangível, as 33 campas dos antifascistas que, em Tarrafal, encontraram a morte. As campas, apenas, conservam a memória. Os corpos, estes, foram transladados para o cemitério do Alto São João, em Lisboa, em 1978, quatro anos depois da Revolução dos Cravos devolver a dignidade humana ao homem lusófono. Oficialmente conta-se menos um indivíduo morto no Campo de Concentração do Tarrafal. O trigésimo terceiro tinha estampado, no seu Bilhete de Identidade, o nome de Artur Santos Oliveira. Motivo da sua prisão: delito comum. Ano de falecimento: 1948.

Da chegada dos primeiros presos ao teste de resistência Os primeiros presos que chegam a Tarrafal no atlético ano de 1936, marcado pelos Jogos Olímpicos de Berlim, têm que enfrentar enormes dificuldades, a começar pelas condições higiénicas e de habitabilidade. As barracas de lona, habitação improvisada, não garantem uma proteção adequada do sol e da chuva. A corrente elétrica não passa de um sonho; a questão da ventilação não é acautelada; e a saúde dos presos deve-se às graças da natureza. Em termos de contagem absoluta, é uma dúzia de barracas circuladas com arrame farpado. Em termos de dimensão, o cumprimento se estende até aos sete metros; a largura fica pelos quatro. Em cada barraca, doze presos. Prazo de validade: dois anos. A partir de então, surgem as barracas construídas de pedras. Durante a primeira etapa, o único edifício de pedra é a cozinha, que, entretanto, não fica acabada. Hoje, quem se aproxima à entrada do edifício, recebe as boas vindas de uma placa que tem estampada: ‘museu de resistência’. Naquele tempo, a resistência estava marcada na alma dos homens. Pagando com corpo e alma, durante 16 anos na ‘jaula prisional’, o preço da liberdade, João Faria Borda deixa a voz da consciência soar como os sinos da igreja de Santo Amaro: “o Campo de Concentração é um retângulo (cerca de 250 metros


149

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


por 180) situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como alojamento, existem umas barracas de lona onde são metidos cerca de 12 presos em cada uma”. Resistência é a palavra de ordem: resistência ao regime, às vicissitudes do mar, à imposição de uma consciência cozinhada, às doenças tropicais e à morte que, todas as noites, dorme com os presos numa mesma cama, também ela improvisada. O castigo das frigideiras é a outra parte que também puxa pela resistência. De 0.6 por 1.7 metros de altura, a frigideira apresenta a forma da morte. O denso portão de ferro, que mete medo, faz imaginar a entrada do inferno. Frigideira, uma pequena construção com as paredes completamente fechadas, tem o teto e o chão feitos à base de cimento. Ali o regime põe à prova a expressão máxima do seu combate sem tréguas ao livre pensamento. Ali o regime põe à prova a capacidade de resistência humana, na fronteira entre a loucura e a morte.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Os presos, quando não estão na Frigideira, estão nas celas. Estas são separadas, também elas, por portões de ferro, que tudo têm semelhante entre si. Carregam sobre o dorso do metal a dor de seres humanos que transportam a liberdade no seu espírito. Alguns pagam o elevado preço da liberdade com a vida. A morte abraça-os. A frigideira é construída a uma distância consid-

150

erável de qualquer outro compartimento da “casa da morte”, para que a sombra não proteja os seus habitantes do calor infernal que lá se faz, ficando permanentemente exposta ao raio solar durante o período diurno. No seu interior, só há dois companheiros: a solidão e o silêncio. Dias e noites a fios, os homens que lá estão apenas “falam” com a chuva que cai, apreciando o som da água que corre da Ribeira Prata para ir alagar os terrenos de Colonato. “Em Cabo Verde, região de clima variável, calha chover bastante nestes anos. A lona das barracas apodrece de tal maneira que lá dentro chove como na rua e de manhã acordamos com a cara negra da poeira que se pega à humidade que sobre nós cai. As águas acumuladas formam pântanos onde se desenvolvem mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos, arruína-se”… desabafo de quem, durante 16 anos, dorme na mesma cama que a morte, abraçado por ‘putrificas’ condições higiénicas. O dia-a-dia dos homens, contra ventos e marés, levados a Tarrafal resume-se à vida do Campo: trabalhos forçados, provocações e castigos. O contacto com o exterior é precário, sendolhes dificultado a troca de correspondências com pessoas que se encontram do outro lado da vida. Hoje, 76 anos depois, o livro da história regista as palavras que permanecem elasticamente no tempo. Esmeraldo Pais de Prata quando chega a Tarrafal


151

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


parece um médico morto. Apenas chega o corpo vivo de um homem que parece ter perdido o humanismo: “não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”. Fala Esmeraldo Pais de Prata, mas não é a voz do médico. A ditadura funciona como os finados para as pessoas do interior da Ilha de Santiago: entram nas pessoas, apossam do seu corpo e falam.

Edmundo Pedro, a face visível da resistência Edmundo Pedro, histórico dirigente do Partido Socialista (PS) português, pertence ao lote de indivíduos que passaram pelo Campo de Concentração do Tarrafal entre 1936 e 1954. Por sorte e pela resistência, continua a respirar o mesmo ar que nós. Edmundo Pedro transporta, hoje, sobre a pele do rosto as marcas do tempo. Se cada ruga fosse um livro de história, seria uma biblioteca viva da especialidade. Os seus anos, já se contam 94. Mas, no espírito, continua com a mesma firmeza de outrora. Edmundo Pedro, que nasceu nas curvas do ano 1917, briga com o tempo para não deixá-lo apagar a história da sua vida. No livro “Um Combate à Liberdade” pinta, como se fosse um artista plástico, as marcas que o tempo deixou na sua vida. Nascido em Alcochete, Portugal, foi na Ilha de Santiago, em Tarrafal, no “campo da morte”, que vive os piores momentos da sua vida. Em 1936, recebe a voz de prisão e passa por várias cadeias: Aljube, Peniche e Caxias. Daí, é desterrado para Tarrafal. Sempre a braços com o tempo, chega a Tarrafal com um selo: o mais jovem prisioneiro político daquele campo de concentração. O regresso a Portugal, conhece-o 10 anos depois.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Antes da prisão, Edmundo Pedro conhece várias ocupações: operário, correspondente comercial, entre outros. Depois da prisão do Tarrafal, conhece outras prisões. Entre 1962 e 1965, volta a ver o sol a nascer quadrado. Acusação: participação no assalto ao quartel de Beja.

152

O 25 de Abril rasga o lençol da história, deixando para trás a faixa ditatorial. De braços dados com a Liberdade, Edmundo Pedro adere ao Partido Socialista (PS), tendo sido eleito deputado à Assembleia da República na I e na III Legislaturas. Em liberdade, Edmundo Pedro passa pela Presidência da Radiotelevisão Portugal (RTP). Mas, o vento da liberdade não está a jogar a seu favor: volta a tatear as paredes da prisão, acusado de armazenagem de material bélico. Na verdade, o acusado apenas junta as armas entregues ao PS no ‘Verão quente’ de 1975 para devolvê-las ao exército. Feitas as provas, merece absolvição para, alguns anos depois, reeditar a sua presença no Parlamento, na V Legislatura, desta feita, em regime de substituição.

“Um combate pela liberdade” é o rosto do livro de um homem marcado pela história. E Edmundo Pedro tenta, no limite das suas possibilidades, ser consequente com a sua história de vida. Quando, em Setembro de 2007, soube que a então ministra da Cultura de Portugal faria uma viagem a Cabo Verde para visitar a ‘ilha prisão’ que o tinha acolhido, meteu-se dentro do mesmo avião e viajou para o conhecido ‘país da morabeza’. Apenas queria se deslocar ao ex-Campo de Concentração do Tarrafal no mesmo dia que a então ministra. Cumpriu o seu objetivo: pagou do seu próprio bolso uma viagem entre Portugal e Cabo Verde para vir dizer à sua ministra que é preciso não deixar que a antiga colónia penal fique abandonada. Sugeriu que ali fosse edificado um museu da resistência. Em Tarrafal, Edmundo Pedro chora novamente. As lágrimas derramadas em 2007 deviam-se à memória dos cerca de 10 anos que se alimentou de amargura no Tarrafal. Em 2007, Edmundo Pedro tinha menos cinco anos de que hoje. Estava na barreira dos 89 anos. É esse homem de 89 anos que apanhou, de surpresa, a comitiva de Isabel Pires de Lima, então ministra da República Portuguesa. Em 2007, Edmundo Pedro, que pagou a viagem do seu próprio bolso, não era um homem rico. Não era como não o é hoje. Por isso, não ficou sem queixar-se do preço da viagem, mas chegou a Cabo Verde com a mesma convicção que marcou, toda a vida, o seu combate pela liberdade. O preço que pagou pela viagem ficou justificado em poucas palavras: "quero aproveitar a presença da ministra para a sensibilizar. Quero que ajude a preservar algo que faz parte da história contemporânea, que ajuda a caracterizar o antigo regime e que está cada vez mais esquecido", palavras de um antigo tarrafalista, entre um amargo da boca da história e umas tiras de lágrimas que se preparavam para brotar.

Tarrafal e a memória coletiva A dialética da história faz com que os acontecimentos do passado não se desvaneçam no tempo, sendo preservados na memória coletiva das sociedades humanas, que sempre viveram a experiência da transmissão de conhecimentos de gerações para gerações. Tito Olavo Gonçalves já atravessou o portão de ferro dos quarenta anos. Estudou Filosofia em Coimbra, estando a doutorar-se em Psicologia por uma Universidade espanhola. Professor da Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, Tito Olavo Gonçalves vê para dentro da história que embrulha o Campo de Concentração do Tarrafal, abre a alma e deixa sair indignação: “a atitude filosófica é de tolerância, de humilde, de reflexão crítica e de paz perpétua contra todas as espécies de barbárie. Pensando que a filosofia e a educação sempre estiveram lado a lado, podemos afirmar que a tarefa da primeira é a busca do sentido da formação humana. Tudo o que for atrocidades fere a imagem do homem e da sociedade”. Este é o


153

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


filósofo que acaba de falar. Mas, Tito Olavo Gonçalves cala o filósofo e deixa falar o cientista: “para mim estes meios nunca justificam aqueles fins preconizados; ou seja, o êxito político nunca desculpa os crimes cometidos para o atingir. O êxito político não desculpa o comportamento imoral. Essas atrocidades acabam por ser comportamentos eticamente reprováveis que podem ser vistos como problemas de origem ideológica como, por exemplo, atentados aos Direitos Humanos”. Depois do cientista, Tito Olavo Gonçalves dá a voz ao homem que, no cimo do seu descontentamento, deixa sair palavras de repulsa, que marcam, de forma acintosa, o seu desagrado: “trata-se um acto bárbaro, de trevas e de incivilidade, de brutalidade e crueldade, que fere a dignidade humana e desrespeita a pessoa. O homem nunca deve ser tomado como meio, mas sim, como dizia Kant, ele é um fim em si mesmo. O bem deve sempre sobrepor-se ao mal”. É o homem que fala, mas ao mesmo tempo dá a voz ao filósofo e empresta à filosofia as suas ferramentas para ler as realidades da história do Campo de Concentração do Tarrafal.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Diferente de Tito Olavo Gonçalves, que é filho de Santa Catarina, Carlos Manuel Gomes, professor de ensino básico, quando abriu os olhos foi para ver o rasgo da rusticidade do Tarrafal naquelas redondezas da independência. Carlos Manuel Gomes,

154

de meia estatura, exibe uma tez branca na pele e prefere olhar para os aspetos positivos do monumento, hoje batizado de Museu de Resistência: “no caso do Tarrafal, assume uma enorme importância, tanto para a sua história cultural, como para o lançamento ou elevação do seu nome a nível internacional. Para o nosso país, representa a resistência e a luta a favor da libertação de povos, contrariando a ditadura que operava na época”. Depois de olhar para o monumento como um elemento de promoção do turismo e do concelho, Carlos Gomes prefere destacar também as partes menos positivas que envolvem o espaço, deitando a mão à história para trazer os elementos de tortura. Assim, defende que é preciso mais divulgação do passado junto da camada juvenil, de forma a que a história se mantenha viva na memória dos homens. Fala na construção deturpada da realidade vivencial, onde a própria ideia que muitos jovens têm hoje da frigideira não corresponde à realidade dos factos: “muitas pessoas pensam que ela existe debaixo do subsolo, o que não é verdade. Também [muita gente pensa] que há uma cadeia no subsolo. Sendo um património, porque não contemplá-lo na História Geral de Cabo Verde ou dos países da CPLP? A mim, [essa parte da história de Cabo Verde] marca-me pela positiva porque, se estou aqui hoje, é consequência da abertura [do campo de concentração do Tarrafal]”.


155

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


w w w.nosgenti.com 

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

156

Assim como a vida e a morte andam lado a lado, também lado a lado andam a liberdade e a opressão. Passaram setenta e seis anos depois do desembarque dos primeiros presos políticos portugueses no Tarrafal, que tiveram que marchar entre a então Vila e o local de desterro, para, diante da população, desfilar todo o desprezo que o regime fascista tinha para com aqueles que pensavam contrário. Hoje, o monumento histórico que serviu de base às atrocidades do Estado Novo é apenas um rasgo de memória pouco eloquente do flagelo vivido pelos cidadãos que por ali passaram.

Ciclos e contraciclos: quando a memória se arrasta no tempo O ano 1954 marca uma etapa na história do ex-campo de concentração do Tarrafal. A prisão mortífera é encerrada para vir a ser reaberto, em 1961, por ordem de Adriano Moreira, então Ministro do Ultramar. O mesmo Adriano Moreira que aproveitou as rotas do tempo para fazer a paz com a História, tendo recebido títulos Honoris Causa por quase todo o espaço da língua portuguesa, inclusive, através da Universidade do Mindelo,

em Cabo Verde, que o distinguiu recentemente. Porém, as distinções não têm sido pacíficas. Joana Lopes, autora do blogue “Entre as brumas da memória”, perfura a história para questionar o facto de Adriano Moreira ter sido laureado em solo caboverdiano. A blogueira vai desenterrar a Portaria n.º 18 539, da então Direção Geral da Justiça, sob a custódia do Ministério do Ultramar. O documento data de 17 de Junho de 1961. Quem o assinou foi o então Ministro da Ultramar. Nome Completo: Adriano José Alves Moreira. Indicação: “Para ser publicado no Boletim Oficial de todas as províncias ultramarinas”. A última palavra do texto é Moreira, apelido de Adriano. O primeiro ponto do documento é categórico: “é instituído em Chão Bom um campo de trabalho”. Chão Bom era o outro nome que Tarrafal ganhara na sua projecção internacional. Muitas vezes, a história do campo tem-se confundido com a história de Tarrafal; a de Tarrafal com a do “campo da morte”; e a de Chão Bom com a da luta pela resistência. Será tudo a mesma coisa? Ao menos, demonstra-nos a história que aqui qualquer semelhança entre as realidades não é uma coincidência em estado puro. As semelhanças aqui se vestem de factos históricos.


O agora arquiteto, que publicou em 1995 o livro “Testemunhos de um Combatente”, disse ter ficado “totalmente estupefacto” com a decisão da Universidade do Mindelo, anunciada a 22 de Novembro último, contando com a participação de outros ex-combatentes e ex-presos, bem como a do primeiro-ministro José Maria Neves. “Fiquei totalmente estupefacto, porque devemos pensar qual é a mensagem que vamos passar à juventude cabo-verdiana e também aos outros povos que lutaram pela independência em África e tiveram de sacrificar-se. O direito de memória de um povo é sagrado e deve ser respeitado”, afirma Pedro Martins, acrescentando que, “pessoalmente, nada tenho contra ele [Adriano Moreira]. Mas quando uma autoridade responsável por tantas atrocidades, parece-me incongruente e contra tudo aquilo que lutamos para pôr fim ao regime colonial fascista”. Sendo certo que a lusofonia é o resultado de uma história comum, Pedro Martins não vê considerações de fronteiras para as decisões que se tomam, no espaço lusófono, quando dizem respeito à existência de todos: “é um insulto à atitude dos povos que lutaram pela independência. Como vamos homenagear alguém que foi chefe e responsável por uma máquina que tanto mal fez contra os nacionalistas cabo-verdianos, contra o sentimento de independência também de Angola, Guiné e Moçambique”? Tudo isso mostra-nos que, na história dos povos, o passado é apenas uma palavra que se encontra no dicionário do tempo. Salazar já não existe fora da memória coletiva de todos. Marcelo Caetano, que o substituiu até à derrocada do Estado Novo, também não. Mas, o ex-Campo de Concentração do Tarrafal está aí… à vista de todos. Pedra sobre pedra, o edifício é testemunha de si próprio. Contraria todos os contra-argumentos que podem ser erguidos. O resto, aquilo que não couber na história, é tudo estória. Tarrafal é hoje a certeza viva de que a obra tem mais vida do que o próprio obreiro. E a história continua aí: sempre que necessário abandona os livros e sai à rua; continua impávida no tempo. 

w w w.nosgenti.com

Joana Lopes, Diana Andringa e Jorge Martins não são os únicos que se levantam a voz contra a decisão da supradita instituição de ensino superior. A Associação Cabo-verdiana de ExPresos Políticos (ACEP) considerou o acto de um ‘insulto’. Em declarações à Agência Lusa, disse Pedro Martins, Presidente da ACEP: ‘é um insulto porque foi ministro do Ultramar e foi sob a sua liderança que o campo de concentração do Tarrafal foi reaberto ( Junho de 1961). Também foi nesse período em que a PIDE foi trazida para Cabo Verde’.

1995 foi o ano para Pedro Martins. Rasgou a mente prenha de imagens do passado para, em livro, trazer as suas recordações. Pedro Martins é, hoje, um arquitecto. Outrora era preso.

O texto de Joana Lopes não circunscreve somente o pensamento da autora. Resultou da conversa com duas outras respeitadas personalidades da sociedade portuguesa: Diana Andringa e Jorge Martins. Três individualidades, um único pensamento, para o qual existe uma justificação. Diana Andringa, reputada jornalista da capital portuguesa, viajou de Angola para Portugal a meio do século XX para cursar Medicina na Universidade de Lisboa. Abandonou o curso em prol do jornalismo. Diana Andringa justifica porque não concorda com o doutoramento Honoris Causa a Adriano Moreira em solo cabo-verdiano: “no cemitério da Vila do Tarrafal permanecem ainda os restos mortais dos guineenses Cutubo Cassamá e Biaba Nabué, falecidos no campo a 12 e 24 de Novembro de 1962. Morreram também, em consequência da sua detenção no campo, os angolanos António Pedro Benge (13 de Setembro de 1962) e Magita Chipóia (13 de Maio de 1970). Muitos outros presos – alguns dos quais cabo-verdianos – vivem ainda as consequências dos maus tratos sofridos no campo mandado reabrir pelo agora homenageado no Dia Internacional dos Direitos Humanos”. Por tudo isso, a jornalista considera a atitude da Universidade do Mindelo um desprezo à História de Cabo Verde.

Refutando a ideia de que as feridas ainda não estejam saradas, Pedro Martins, um dos prisioneiros do Campo na sua segunda fase de funcionamento, defende que se trata de uma ‘questão de memória e de coerência’ para com a história cabo-verdiana: “O problema é a coerência. Foi um dos chefes máximos do sistema, sobretudo em relação às antigas colónias portuguesas, que levou muita gente para a prisão, para a tortura. Foi sob a sua égide que a PIDE foi aqui instalada. É História e é memória que todos os povos têm direito a preservar”, realça, colocando a imagem histórica de Adriano Moreira debaixo de fogo em Cabo Verde.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Joana Lopes, no seu blogue, apenas nos deixa uma caricatura daquilo que eventualmente poderá ser a sua imagem física. Mas, a sua imagem psicológica fica plasmada no título do seu post: “A amnésia do leão é a glória do caçador”. O reconhecimento a Adriano Moreira pela Universidade do Mindelo, em Cabo Verde, programado para 10 de Dezembro de 2011 (Dia Internacional dos Direitos Humanos), foi apadrinhado por dois respeitados nomes da política e da cultura cabo-verdianas: Onésimo Silveira e Germano Almeida. Joana Lopes não entende a atitude e indigna-se: “não pondo em causa as qualidades académicas do Professor Doutor Adriano Moreira, não posso deixar de pensar que conceder-lhe o Doutoramento Honoris Causa no Dia Internacional dos Direitos Humanos, tendo sido ele o autor da Portaria 18 539, de 17 de Junho de 1961, que instituiu o Campo de Trabalho de Chão Bom – onde estiveram presos, em condições de inumanidade, mais de duas centenas de nacionalistas de Angola, Guiné e Cabo Verde – é, além de uma notável demonstração de humor negro, uma afronta à memória dos homens e mulheres que lutaram pela libertação dos seus países do jugo colonial português. Não se trata de perpetuar ódios, mas de respeitar a memória das vítimas”.

157


158

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Testemunho

Fernando dos Reis Tavares

Combater

o regime colonial

No entanto, o regime da altura apercebeu-se das movimentações e mandou polícia especializada pôr cobro à situação. Instalaram-se na Praia e começaram "a montar a rede, aparecendo depois pessoas da ação católica, que eram o braço armado do colonialismo". Fernando Tavares dos Reis, conta que, “em 1961 co-

fome. Eu e a minha família sofremos muito na grande fome de 1947. Fiquei deslumbrado com aquelas ideias e decidi aderir a esse grupo, pois não queria que os meus filhos passassem as dificuldades que eu fui obrigado a passar”, relembra Tavares dos Reis.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

"Só quando tinha 17 anos é que veio para aqui, para Santa Catarina, um professor vindo de Portugal”, conta. “Arranjou uma escola com outro professor, Júlio Teixeira, de S. Vicente, e deram aulas e explicações aos alunos para fazerem os exames na Praia. Foi assim que consegui fazer o 2.º ano do liceu na Praia. Muitos que tinham vontade de estudar, mas não podiam ir a S. Vicente, iam para essa escola. Comecei a conviver com familiares, amigos e colegas que estavam ligados à luta da libertação nacional. Apercebi-me que havia uma realidade diferente e Amílcar Cabral tinha um projeto para Cabo Verde e para a Guiné que eliminava a

w w w.nosgenti.com

Fernando dos Reis Tavares, conhecido por Toco, nasceu em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial. Filho de Ernesto dos Reis Pereira e Filipa Mendes Tavares, Toco acredita ter crescido como qualquer outra criança, só que numa época mais difícil. As recordações da sua infância, viriam mudar-lhe todo o pensamento sobre o então regime colonial português. Estava-se em plena época de fome em 1947. A injustiça e as desigualdades que via todos os dias, iriam justificar em pleno, a sua intervenção ativa na luta de libertação nacional.

159


meçou a guerra. O colonialismo decidiu aumentar o exército recrutando pessoas com alguma formação e eu, com mais alguns colegas, fomos para a Escola de Sargentos, em Portugal. Quando terminei o curso, fui destacado para Braga, depois para Angola, onde estive cerca de dois anos, e regressando novamente a Portugal. De seguida, vim para Cabo Verde. Fiquei aqui um ano e depois resolvi ir para França, mais concretamente para Paris. Foi aí que tive o primeiro contacto com a direção do partido e com os seus elementos, os quais resolveram reenviar-me novamente para Cabo Verde, em 1968, para dar apoio na luta de libertação nacional”, recorda Toco. Tavares dos Reis foi um dos membros ativos ao serviço do PAIGC que, na ilha de Santiago, prepararam a logística para um eventual desembarque de militares afetos ao partido, caso fosse necessário iniciar a luta armada em Cabo Verde.

“ Apesar de ter estado sempre isolado durante um ano, consegui acompanhar as grandes decisões do partido.” Toco refere que, em Lisboa, havia “uma rede de estudantes cabo-verdianos que procuravam transmitir para a direção do partido instalada em Conacri, informações - por carta e por boca - através da França e da Holanda. Tínhamos na Holanda um grupo muito forte. Em 1968, cheguei de Paris, e após ter trabalhado cerca de três meses, fui preso. A PIDE tinha cópias das minhas cartas que saíam de Paris. Quando me mostraram as

Parte do grupo de cabo-verdianos preparado para desembarcar nas prais de Cabo Verde


fotocópias das cartas, fiquei espantado e perguntei-me como é que elas lhes tinham ido parar às mãos deles. Assim que pude, enviei um comunicado para a direção do partido, de que havia pessoas na secretaria que fotocopiavam as cartas e entregavam à PIDE". Apesar de não saber de onde partira a fuga de informações, se da polícia francesa ou de outro qualquer grupo que colaborava com a PIDE, o certo é que Tavares dos Reis foi preso pela polícia política do regime colonial. Para Tavares, a vida na cadeia reforçou a convicção de que era preciso mudar e lutar. "Percebi que era necessário mobilizar imediatamente as pessoas mais próximas, no meu caso os carcereiros. Depois de falar com eles, conseguimos passar mensagens para fora e receber informações do exterior. Apesar de ter estado sempre isolado durante um ano, consegui acompanhar as grandes decisões do partido. O partido estava sem-

“Tinha acabado de sair da prisão. Apesar da grande tristeza e incerteza quanto ao futuro, havia uma inabalável confiança na direção do partido.” pre em contacto connosco, quer a partir de Cabo Verde, quer de Lisboa, através dos militantes que trabalhavam na clandestinidade. Nós mandávamos as nossas mensagens para a direção do partido e depois o partido mandava as ordens e diretrizes”, lembra. Estava em Santa Catarina, em Santiago, quando soube que Amílcar Cabral tinha sido assassinado. “Tinha acabado de sair da prisão. Apesar da grande tristeza e incerteza quanto ao futuro, havia uma inabalável confiança na direção do partido. Essa confiança foi bem patente após a morte do Amílcar, quando o partido se dinamizou, fruto dos muitos apoios nacionais e internacionais. Nas Nações Unidas, o PAIGC atingiu um novo estatuto, fruto do empenho e direção de Aristides Pereira. Houve como que um novo fôlego no PAIGC, que o fez crescer muito”, diz.


w w w.nosgenti.com 

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

162

A Revolução do Cravos em Portugal, originou a queda do regime colonial e a inevitável independência de Cabo Verde, a 5 de julho de 1975. “O 5 de julho foi um movimento extraordinário”, declara Fernando dos Reis Tavares. “Toda a gente nos saudava. Foi uma adesão total à causa. Percebemos que o PAIGC tinha muitos adeptos; tinha muita gente a lutar connosco. Nunca pensamos em parar a luta, mas vimos, naquele 5 de julho, que não era necessário arriscar-nos tanto, pois o povo tinha o PAIGC como a salvação do país. O dia da independência nacional, foi um grande dia para a história do nosso povo. Foi a possibilidade de escaparmos do jugo colonial fascista e provar ao mundo que o tratado de Tordesilhas tinha sido a pior coisa que se poderia ter inventado", ironiza.

Em parte, este é o Cabo Verde com que sonhou, “apesar da muita turbulência que sempre aparece pelo meio. Nós ainda não acreditamos que temos capacidade de construir o Estado", e continua afirmando que, "a abertura política foi boa, mas não deveria ter sido tão cedo. Era melhor o povo amadurecer primeiro. Algumas escolhas políticas que, inconscientemente o povo tomou, arrasaram Cabo Verde. Felizmente, agora o nosso povo está mais maduro e está a tomar outro tipo de decisões, ajudando este governo a desenvolver o país." Sobre o futuro do país que ajudou a criar, Toco é perentório ao afirmar que, "apenas queria que o povo cabo-verdiano se consciencializasse e assumisse que é dono do país e dono dos seus destinos”.


163

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Olhares

164


165

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


166

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


167

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


168

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com



170

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com



172

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Testemunho

Gil Querido Varela

A independência

na linha da frente

Em 1968, a PIDE lançou o primeiro golpe às estruturas clandestinas do PAIGC, com a prisão dos seus principais dirigentes, seguindo-se Gil Querido Varela e os seus companheiros Fernando dos Reis Tavares, José Querido, Emanuel Braga Tavares e José Aguiar Monteiro, todos eles tendo trabalhado a favor do PAIGC na ilha de Santiago, e cuja principal missão era preparar o desembarque de Amílcar Cabral, sob orientação de Reis Tavares. Foram presos e torturados na cadeia civil da cidade da Praia,

Verde, passando-a da fase política à fase da ação direta da luta armada.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

D

epois de São Vicente, Santiago foi o palco da luta contra o colonialismo português. A saída de muitos estudantes para prosseguirem os seus estudos universitários em Portugal, esvaziou São Vicente dos seus principais ativistas políticos. Na década de 1960, já se colocava a hipótese de se iniciar a luta armada em Cabo Verde. No dia 21 de julho de 1963, Amílcar Cabral enviou um comunicado aos cabo-verdianos e guineenses, bem como “aos combatentes, responsáveis e militantes do partido”, onde chamava a atenção para a necessidade de intensificar a luta em Cabo

w w w.nosgenti.com

Nascido em 1935, Gil Querido Varela (Kid) esteve sempre em Cabo Verde na luta de libertação. A sua relação com os seus camaradas de luta - Fernando dos Reis Tavares (Toco), José Querido (Zequi), Emanuel Braga Tavares (Shanon) e José Aguiar Monteiro (Zézé) - depois do 25 de abril e da Proclamação da Independência, manteve-se sólida e cúmplice, como antes, em que a palavra de ordem era confiança.

173


174

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


tendo sido julgados apenas dois anos depois. O internamento nessa cadeia era caracterizado por interrogatórios, torturas físicas e psicológicas e pela formulação dos processos de condenação – registo da condenação e definição do último destino de cumprimento da pena num campo de trabalho. Relatórios e informações da PIDE/DGS da delegação da Guiné e de Cabo Verde mostram que Cabo Verde vivia sob a ameaça de uma luta armada executada pelo PAIGC, afirmando que possuíam três barcos de nacionalidade russa, com os quais planeavam uma operação de ataque terrorista em Cabo Verde. Gil Querido Varela conta que, antes da Independência, a época era muito difícil por causa da PIDE e dos informadores. “Era difícil confiar em alguém” relembra, “mas nós, aqui em Sta. Catarina, confiávamos uns nos outros. Depois da vinda de Toco da França, começámos a levar a luta a sério. Passámos a combater organizados, mas foi uma época bastante difícil.” Para ele, o momento mais marcante da época foi a notícia da morte de Amílcar Cabral. Conforme refere, “ouvi a notícia na rádio. Quando me fui deitar, o meu irmão já estava a dormir e só de manhã é que tive coragem de lhe contar o sucedido.” Depois desta tragédia, Gil Querido Varela confidencia que, sempre teve esperança que alguém sucedesse Cabral e não deixasse a luta cair. Quando conheceu os novos líderes do partido, continuou a acreditar que este era o caminho certo para levar Cabo Verde à independência. No período da revolta dos capitães de abril, Varela explica que “a sensação era de vitória, uma vitória já alcançada”. No Dia da Independência Nacional, a 5 de julho de 1975, quando viu baixarem a bandeira colonial portuguesa e hastearem a primeira bandeira cabo-verdiana, ao som do discurso da independência, afirma que sentiu “a alegria inexplicável de uma luta vencida. No entanto, conforme refere, "sabia que se aproximava outra luta: a da guerra do desenvolvimento.” Para Gil Querido Varela, a vida dos cabo-verdianos e Cabo Verde depois da independência, com um país novo e uma História nova, evoluiu e melhorou muito. “De um país inviável


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

passou a ser considerado viável, com prestígio no mundo, apesar do seu tamanho”, e acrescenta que, “tornou-se uma referência de boa governação, mesmo com as diferenças internas. Isto é uma grande responsabilidade para um país pequeno e de poucos recursos. É preciso ser responsável, porque, apesar da nação cabo-verdiana já estar consolidada, é imperativo continuarmos a trabalhar”.

176

Acredita que a geração mais nova, a geração da independência, está preparada para dar continuidade ao esforço que, em conjunto com os camaradas do seu partido, fez para que se pudesse alcançar a independência nacional e o Estado que hoje Cabo Verde representa, “porque eles devem continuar a História, que ainda não está acabada”, explica. Varela é da opinião que as várias mudanças políticas que Cabo Verde conheceu nos últimos 37 anos - começando com o Partido Único, o Estado Social, seguindo-se a democracia num modelo diferente daquele que foi pensado inicialmente e agora com uma maturidade de partilha das diferenças políticas – “ainda poderão ser melhoradas”, afirma. Crê, tam-

bém, que Cabo Verde poderá ser um país de referência, "criando e educando gente estruturada, orientada e em que os seus governantes estejam direcionados para a gestão do bem comum e da causa pública". O corajoso lutador apela para que os jovens “pensem em maneiras de levarem o país a avançar ainda mais, porque, apesar de tudo, Cabo Verde é um país frágil e é sempre preciso ter cuidado para que não regrida. Por outro lado, as pessoas são fortes. Podemos ver pela importância que Cabo Verde tem no mundo. É um país pequeno, mas tem muito prestígio, pois teve homens que souberam granjear esse respeito mundialmente”. No entanto, conforme afirma, “o desenvolvimento traz consequências”, acrescentando que, “houve perda de certos valores. Os valores da moral, do respeito pelos mais velhos, da ética, do respeito pelo bem comum, diminuíram bastante e, no mesmo grau, aumentou a criminalidade”. A mensagem que este bravo combatente transmite aos mais jovens, é que, "continuem fortes, firmes e lutem constantemente por Cabo Verde.” 


Opinião Victor Barros

Campo de concentração do Tarrafa

O desterro e a prisão no local do desterro

A máscara do discurso e a realidade da repressão Aquilo que historicamente veio a eternizar-se na memória colectiva como Campo de Concentração do Tarrafal foi formalmente enunciado pelo discurso salazarista como Colónia Penal de Cabo Verde. Porém, fica sempre o inquérito: que critérios determinaram a escolha do espaço colonial cabo-verdiano para o estabelecimento da prisão? Uma das respostas prende-se com a eleição formal do

w w w.nosgenti.com

Em 1961, aquando da contestação anticolonial, a extinta colónia penal do Tarrafal foi reactivada pela portaria n.º 18:539, de 17 de Junho de 1961, assinada pelo então ministro do ultramar, Adriano Moreira. A prisão é reaberta com uma nova nomenclatura: Campo de Trabalho de Chão Bom. Nesta nova conjuntura, entre 1962 e 1974, são internados mais de duas centenas (cerca de 241) de presos políticos africanos: angolanos, guineenses e cabo-verdianos que contestaram a relação colonial e o mito da portugalidade do império. Desse cômputo morreram 4 presos: dois guineenses (Cutubó Cassamá e Biaba Abua, ambos em 1962) e dois angolanos (António Pedro Benge – 1962 e Chipoia Magita – 1970). A 1 de Maio de 1974, todos os presos foram libertados e o Campo de Chão Bom foi encerrado enquanto símbolo do regime colonial.

Instrumento punitivo por excelência, a Colónia Penal se inscreve historicamente como um dos dispositivos de repressão que, primeiro, acompanha a emergência política do Estado Novo e, segundo, espelha indubitavelmente a orientação ditatorial que caracterizava a matriz repressiva do novo regime em ascensão. Aliás, a designação Colónia Penal é, por si só, a revelação incontestável da forma como o campo discursivo do regime institui os limites e os contextos da sua normatividade semântica: tudo era enquadrado, enunciado e reproduzido a partir de uma interioridade textual e discursiva que forjava, por sua vez, a sua própria exterioridade correspondente, através da fabricação de “realidades” que deviam ser aceites e interiorizadas como ordem natural incontestável. Desta feita, o Estado Novo, para além de insistir sistematicamente na designação de Colónia Penal à prisão do Tarrafal, também, sempre recusou que mantinha um campo de concentração em Cabo Verde. O que se tinha criado em Cabo Verde era um estabelecimento prisional para delinquentes políticos e sociais: insistia Salazar. Porém, entre a prática discursiva do regime que pretendia mascarar a sua matriz repressiva e a disciplinarização dos corpos impostos àqueles que experienciaram o regime disciplinar da prisão do Tarrafal, a margem de distância é substancialmente contrastante. O que prova, na verdade, que a memória do Tarrafal eternizada pelos relatos dos presos políticos – como campo de morte lenta – refuta todos os silêncios e põe em causa todos os efeitos retóricos com que Salazar tentava mascarar o calvário da deportação política e da prisão no local de desterro. Portanto, pelo caminho da deportação política fica a memória da repressão. Fica também a angústia do passado e do nosso presente, oscilando de forma pendular entre uma rememoração pouco crítica e reificadora e uma amnésia inconsequente. Do mesmo modo, fica a nostalgia do presente do nosso passado em relação àqueles que pereceram em nome da liberdade por acreditarem que a defesa da dignidade humana não poderá nunca degradar na vã retórica desprovida de sentido de inscrição e de mudança. Mas, estes que as condições difíceis do desterro consumiram não morreram: são os eternos “náufragos embarcados”, os indomáveis “náufragos ancorados” e os plangentes “náufragos da terra longe”, tal como grafou o poeta angolano, António Jacinto.

Da sua fundação, em 1936, até o seu primeiro encerramento oficial, em 1956, a prisão do Tarrafal recebeu várias levas de presos políticos de orientação ideológica diversa: comunistas, anarquistas, republicanos, democratas, sindicalistas, e outros reviralhistas. Todos tinham como denominador comum a oposição ao Estado Novo. Na sua maioria, eram presos portugueses, embora registos e memórias deixadas dão conta de alguns poucos deportados de outras nacionalidades que foram desterrados para Cabo Verde, depois de terem sido presos em Portugal. Em virtude da deportação passaram por Tarrafal mais de três centenas e meia de presos políticos (cerca de 374) e, desse calvário, pereceram cerca de pouco mais de três dezenas de presos portugueses, em resultado das duras condições impostas pelo regime prisional salazarista. O primeiro encerramento desse estabelecimento concentracionário só se dá em 1954, em consequência da pressão internacional. E, somente em 1956, o Estado Novo extingue formalmente a prisão do Tarrafal, na sequência da criação da colónia penal de Bié, em Angola.

espaço insular – da ideia de ilha – como espaço apropriado para o desterro e o estabelecimento de uma prisão especial no local do desterro. Em 1933 o regime foi peremptório: o desterro passaria a ser cumprido em recinto fortificado ou colónia penal a estabelecer numa ilha das colónias. A facilidade de vigilância, logo de imposição do espectro do efeito panóptico sobre o controlo dos presos; a limitação das possibilidades de evasão, e a localização da prisão numa área de população pouco densa são, entre outros, alguns dos critérios apontados pelos estudos do anteprojecto que antecede a fundação da Colónia Penal do Tarrafal. Em rigor, as ilhas, enquanto espaços circundados e petrificados, presas ao seu insulado destino e eternamente escravas dos limites impostos pela condição líquida do mar, satisfaziam os intentos da dupla prisão: ilha prisão (natural) e prisão especial fortificada no interior da própria ilha.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

E

m Outubro de 1936 desembarcou, na baía do Tarrafal, a primeira leva de deportados políticos portugueses condenados ao desterro na recém-criada Colónia Penal de Cabo Verde, instituída pelo Decreto-lei n.º 26:539, de 23 de Abril de 1936. Pouco mais de uma centena e meia de deportados políticos constituíam a primeira população prisional que inaugura uma das temporalidades históricas mais sinistra do regime salazarista. Uma curta temporalidade medeia o período entre a sua criação oficial e a chegada dos primeiros deportados. Por esta razão, os deportados são instalados em barracas de lonas e, gradualmente, organiza-se a materialização das obras do projecto da prisão.

177


178

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Sociedade

Josefina Chantre

O contributo das mulheres

para a independência

“Em Lisboa, comecei a namorar um rapaz de Moçambique, que estava a acabar o curso. Quando finalizou os estudos, para fugir à tropa colonial, foi para a Suécia fazer um estágio. Amaro da Luz, que era o representante do

tava a acontecer, só sabia que qualquer coisa não ia bem. Estive lá aproximadamente dois anos e depois pedi transferência para Luanda. Consegui uma equivalência e fui matricular-me no Instituto Superior de Serviço Social de Luanda. Fiz dois anos do curso e depois fui para Portugal, porque a injustiça que se via e sentia era gritante”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

J

osefina Chantre conta que, apesar de em Portugal ter feito um curso médio, quando voltou para Cabo Verde não encontrou emprego. “Como tinha um tio em Angola, escrevi-lhe, sem ninguém saber, pedindo-lhe que me mandasse para lá”, admite. Como já tinha 21 anos, os pais aceitaram facilmente a sua decisão de abandonar a sua terra. Trabalhou no Instituto de Assistência Social de Angola. No contacto com os bairros degradados de várias províncias, começou a sentir as diferenças e a injustiça social, “apesar de, na altura, não ter muita perceção do que es-

w w w.nosgenti.com

Josefina Chantre, por todos conhecida como Zezinha Chantre, nasceu em Santo Antão, numa família de dez irmãos. Era uma família pobre, tradicional, com uma educação muito rigorosa, apesar do pai, devido ao trabalho como marítimo, estar a maior parte do tempo ausente. Começou a distinguir-se dos irmãos bem cedo, posicionando-se de maneira diferente perante os desafios diários. Estudou em São Vicente e, mais tarde, viajou para Portugal para se matricular num curso de serviço social. Participou na luta de libertação nacional, e após a independência, dedicou a sua vida à igualdade das mulheres.

179


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

PAICV em Lisboa, sempre na clandestinidade e com muita descrição, mobilizou-me para a luta pela independência, de forma muito sigilosa. Fui para a Suécia atrás do desse namorado e durante os vinte dias em que lá estive, apercebi-me que era necessário lutar, pois o mundo não era aquele que vivíamos sob o jugo colonial repressivo. Acabei por ter de me separar desse meu companheiro, por não me terem deixado ir com ele para a Argélia. Entretanto, tive tempo de conhecer o PAIGC. Mais tarde, fui para Conacri ajudar nos movimentos de libertação nacionais", conta.

180

Com a morte de Amílcar Cabral em janeiro de 1973, Zezinha Chantre, que já tinha estado na Argélia, é enviada juntamente com Inácio Semedo - um representante do PAIGC - para aquele país do norte de África. "Havia uma grande azáfama, porque, depois da morte de Cabral, houve necessidade de fazermos uma frente de explicação dos motivos que estiveram na origem do seu assassinato. A Argélia, foi um dos países que nos apoiou incondicionalmente e que desempenhou um papel preponderante, não só durante a luta armada - com apoio logístico e formação dos nossos camaradas - mas ajudando também nas negociações de Londres. Recordo que, para que ti-

véssemos mais dignidade durante as negociações, o presidente argelino enviou-nos num dos seus aviões pessoais". O esforço, a perseverança e o sofrimento causado pela luta de libertação, culminam finalmente com a declaração de independência de Cabo Verde, a 5 de julho de 1975. Zezinha Chantre, recorda esse dia com muita emoção mas também com algum desalento. Conforme diz, "Cabo Verde, assim como as outras colónias, foi colonizado durante 500 anos, no entanto, não tínhamos onde receber os nossos convidados que se disponibilizaram para virem festejar connosco esse dia tão importante da nossa história. Acho que isso foi uma vergonha para a parte colonial. Tivemos de recorrer a casas de privados e aos nossos amigos.

"a maior dádiva que obtivemos, foi termos tido a possibilidade de iniciar a construção de uma nação livre, independente e soberana"


w w w.nosgenti.com

trutura capaz de as albergar. Apesar de tudo, vermos a nossa bandeira ser hasteada, foi motivo de grande orgulho”, recorda emocionada. Zezinha Chantre refere que, "a maior dádiva que obtivemos, foi termos tido a possibilidade de iniciar a construção de uma nação livre, independente e soberana".

"a mulher cabo-verdiana foi duplamente colonizada: primeiro foi explorada pelo colonialista e depois pelo próprio homem"

Josefina Chantre destaca o importante papel da mulher na construção de Cabo Verde. Na sua opinião, “a mulher cabo-verdiana foi duplamente colonizada: primeiro foi explorada pelo colonialista e depois pelo próprio homem". Conforme argumenta, "no limiar da independência, a participação da mulher cabo-verdiana na luta armada da libertação nacional não foi fácil, mas mais difícil continuou a ser para mudar as mentalidades de muitos homens. Eu fui casada com um dirigente e sofri na pele, tal como muitas outras, quando decidimos que a mulher cabo-verdiana, pela sua situação de inferioridade, precisava de uma discriminação positiva. Cheguei a Cabo Verde em 1980, mas um grupo de mulheres veio para o arquipélago mais cedo, logo a seguir à independência, para tentar caracterizar e estudar a situação da mulher cabo-verdiana nas diferentes áreas – social, política, económica e cultural – chegando à conclusão de que, mereciam realmente atenção face à sua situação social”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Lembro-me que Cuba enviou dois barcos. As pessoas ficavam na baía e tinham de dormiam a bordo, porque não havia nenhuma infraes-

181


182

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


"Constituindo as mulheres mais de metade da população, teria de haver uma força motora que trabalhasse especificamente a sua problemática"

w w w.nosgenti.com 

Em relação à igualdade de oportunidades entre homens e mulheres na sociedade cabo-verdiana, Zezinha Chantre atribui parte do mérito ao governo, "uma vez que este subscreveu todas as convenções sobre a eliminação da desigualdade, contrariamente a certos governos africanos que, apenas ratificam os acordos, porque isso lhes dá um certo índice de boa governação", afirma.

"Temos trabalhado incansavelmente com a rede de mulheres parlamentares, fazendo pressão junto dos nossos governos em prol da equidade feminina. Cabo Verde é um país bem posicionado em termos de leis de proteção à mulher, mas o nosso grande desafio é levar essas mulheres a apropriarem-se dessas leis, em proveito próprio. Por isso, o nosso trabalho tem sido o de sensibilizar, divulgar e informar as mulheres cabo-verdianas dos seus direitos, ajudando-as na construção de um país melhor, pleno de oportunidades para todos os cidadãos”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Contudo, o partido não partilhava dessa opinião. “Para eles, o desenvolvimento de Cabo Verde devia ser global, no entanto, apercebemo-nos que essa ideia estava errada. Constituindo as mulheres mais de metade da população, teria de haver uma força motora que trabalhasse especificamente a sua problemática. Foi assim que nasceu a primeira organização das mulheres em Cabo Verde. O problema que se colocava, relacionava-se com a criação de espaço e afirmação na sociedade. Em Cabo Verde, por exemplo, nem direito a voto tínhamos e havia profissões que estavam vedadas a qualquer participação feminina; ao casar-se, a mulher tinha de usar o apelido do marido; era vista apenas como fator de reprodução, confinada às lides domésticas. Apesar de tudo, já foi percorrido um longo caminho", desabafa.

183


Cabo Verde é atualmente um país de rendimento médio, que está a criar novos alicerces e a abrir-se para o mundo, mas “tudo isso é também resultado da participação das mulheres cabo-verdianas, que são mais de metade da nossa população. Cabral dizia-nos que a emancipação da mulher tem de ser obra e fruto das próprias mulheres e para não pensarmos que os homens iriam trabalhar pelas mulheres ou que iriam querer dar-nos tudo de mão beijada”, confidencia. “A mulher atual, quando comparada com a mulher de 1975, é muito diferente. Hoje temos mulheres em todos os quadrantes da sociedade cabo-verdiana através do seu mérito, temos mulheres aviadoras, mulheres ministras, autarcas e administrativas altamente qualificadas, no entanto, os desafios ainda existem, porque ainda temos a feminização da pobreza, os fenómenos da violência baseada no género, isto apesar da lei de março de 2010, que criminaliza estes atos”, confessa.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Zezinha é da opinião que, nos dias de hoje, a luta deve-se centrar mais na mudança de mentalidades, "porque a sociedade, outrora escravocrata, ainda tem resquícios desse fenómeno triste e longínquo. Apesar das vitórias serem imensas, os desafios ainda são maiores, mas

184

entendo que conseguiremos atingir os nossos objetivos através de políticas, de projetos para a igualdade de géneros, por forma a que possamos construir um país pleno de igualdade.” O desenvolvimento não trouxe apenas aspetos positivos. Conforme salienta, “é evidente que a família cabo-verdiana está extremamente

"Hoje temos mulheres em todos os quadrantes da sociedade caboverdiana através do seu mérito, temos mulheres aviadoras, mulheres ministras, autarcas e administrativas altamente qualificadas" fragilizada. Somos um país de emigração – os homens iam e as mulheres ficavam, mas, a partir de um determinado momento, as mulheres também tiveram necessidade de partir, de


como diz o camarada Pedro Pires, do desenvolvimento. Nós, as mulheres, não podíamos ficar todo o tempo a lavar, a cozinhar e a pilar.

w w w.nosgenti.com

Zezinha Chantre crê que, em primeiro lugar, “os jovens têm de amar o seu país, porque apesar de Cabo Verde não ter ouro, petróleo ou diamantes, tem paz e estabilidade política, que são fundamentais para o crescimento e são precisos manter. Temos de refletir nos valores que cimentaram o posicionamento do cabo-verdiano desde o 5 de julho de 1975 até hoje, para que os mais jovens possam abraçar os desafios que se colocam neste momento à sociedade cabo-verdiana. Temos de ser capazes de elevar o desenvolvimento das nossas ilhas a um patamar mais alto, construindo um país de paz, de harmonia, de mais inclusão social, de mais tolerância, e de menos violência, pois é isso que caracteriza a humanidade”, conclui. 

"A família cabo-verdiana está, neste momento, bastante fragilizada, mas são consequências, como diz o camarada Pedro Pires, do desenvolvimento"

A mulher também precisa de se expandir e de se posicionar no mundo globalizado em que vivemos. Também temos direito a ocupar o nosso lugar neste mundo global”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

emigrar, perdendo o seu papel de educadoras e transmissoras dos valores éticos pelos quais se devem guiar as sociedades equilibradas. A família cabo-verdiana está, neste momento, bastante fragilizada, mas são consequências,

185


186

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Música

Chico Serra

A música

que conquista liberdades

Assistiu ao 25 de abril em Cabo Verde. Recorda que “nessa altura, havia uma grande movimentação, especialmente da juventude. Em 1974, eu tinha 25 anos e

trabalhava na junta autónoma da distribuição de água na cidade do Mindelo. Também fazia parte de um grupo musical, mas havia sempre um certo receio, porque nunca sabíamos quem é que andava atrás de nós. Um grande amigo dos EUA, gravou um disco de música de intervenção e conseguiu fazê-lo chegar até nós. Ouvíamo-lo às escondidas. Só após a independência é que essas músicas começaram a ser transmitidas na rádio." Fruto dessa inspiração, Chico Serra gravou, em 1969, uma morna que passou a ser o tema de abertura da Rádio Libertação, em Guiné-Bissau. Conforme recorda, "antes da independência era extremamente difícil compor algo que fosse contra as ideias do regime, pois, além da censura, havia perseguições. Após da independência, começaram então a aparecer muitas músicas

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

N

a sua adolescência, Cabo Verde era uma colónia do regime, com a presença constante da tropa portuguesa. “À medida que fui crescendo, ouvia falar de política, da guerra na Guiné e da luta de libertação. Em 1966, ouvia, às escondidas, as notícias emitidas pela rádio clandestina e tudo o que se estava a passar, em Bissau. Em 1968, quando fui para a Holanda tocar, o meu empresário, era o responsável pelo PAIGC naquele país, começou a inteirar-me da política e dos ideais da luta de libertação."

w w w.nosgenti.com

Francisco Coelho Pereira Serra nasceu na Praia em 1947. Com apenas dois meses de idade, foi levado pelos pais para o Mindelo, onde ainda hoje reside. Começou a tocar piano precocemente, aos 4 anos, por influência da família, que estava ligada à música. Nunca frequentou conservatórios ou academias: aprendeu a tocar apenas de ouvido, de forma autodidata. O pianista e compositor, foi um dos participantes ativos no movimento de intervenção da música cabo-verdiana.

187


188

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


de intervenção. Lembro-me de uma composição que, apesar de nunca a ter gravado, foi um grande sucesso, pois foi registada em Portugal anos mais tarde”, recorda. Para Chico Serra, a música de intervenção teve muita influência na independência de Cabo Verde. “As pessoas ouviam-na através da Radio Libertação e muitos que a cantavam, nem se apercebiam do que estavam a dizer, no entanto a mensagem passava e moldava e alertava para as injustiças que todos os dias vivíamos”.

Para Chico Serra, “Cabo Verde é hoje um país verdadeiramente democrático, embora ainda haja muito a corrigir. Existe tolerância política e cada um é responsável pelo que diz", contudo, adianta que "a justiça poderia funcionar melhor, de forma mais célere e eficaz, para que os casos mais simples não fiquem eternamente a aguardar a resolução dos mais complexos. Conclui dizendo que "há ainda em Cabo Verde muita influência da herança colonial e da educação que tivemos, mas passados estes 37 anos, voltaria a fazer as mesmas músicas de intervenção com o mesmo prazer, pois o nosso povo merece a liberdade que conquistou”. 

O progresso de Cabo Verde nos últimos 37 anos também trouxe consigo malefícios sociais. O músico adianta que, “gostaria de ver Cabo Verde com fábricas, para dar trabalho aos cidadãos. Os nossos governantes que revejam a lei de investimentos em Cabo Verde, porque quem aqui chega, paga o que quer, sem que haja uma lei que estipule um vencimento mínimo aos cabo-verdianos, que, há semelhança do tempo colonial, também agora são explorados", e adianta que "tem de aparecer investimento para dar trabalho aos jovens. São necessárias mais escolas e formação profissional. Há que definir novas regras e os partidos políticos têm de se alinhar, definindo-as para bem do nosso futuro."

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

O turismo é outro dos grandes potenciais e fonte de receitas de Cabo Verde, "embora as praticas dos operadores turísticos que atuam atualmente no país, não nos favorecem em nada: o turista chega ao hotel, dão-lhe aquela pulseira e oferecem-lhes tudo dentro do espaço. Não há necessidade de saírem dos complexos turísticos. Se viessem cá para fora, encontrariam restaurantes com música ao vivo e com comida cabo-verdiana típica. Ajudavam ao crescimento económico do país e conheciam a nossa cultura tradicional. Cabo Verde precisa da indústria turística para se desenvolver, mas não nos moldes atuais”, lamenta o músico e compositor.

w w w.nosgenti.com

A quando da independência nacional, "dizia-se que Cabo Verde era um país inviável. No entanto, apesar do arquipélago ter crescido, ainda existe o risco de regressão", afirma o músico. “Tem de se investir nos recursos que temos. A pesca é um bom exemplo. As pessoas têm que interiorizar que, para se conseguir qualquer coisa nesta vida, é necessário muito esforço e trabalho. A juventude não pode pensar só em arranjar emprego", diz.

189



E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Testemunho

Germana Gomes

O contributo da independência

para a saúde em Cabo Verde Nascida em 1934 em São Vicente, Germana Gomes ausentou-se da sua ilha para estudar na Escola Primária de São Nicolau. Concluído esse objetivo, voltou a São Vicente, para cursar o liceu até ao 2º ano. De seguida, decidiu terminar os estudos na Praia, tirando o Curso Geral de Enfermagem, terminando-o em 1956 com uma boa classificação. Descobriu assim, sem nunca ter entrado num hospital, que tinha nascido para ser enfermeira.

“O hospital de São Vicente chegava apenas a ter dois ou três médicos. Na ilha de São Nicolau havia apenas um. Os médicos eram em número muito reduzido. Normalmente, havia um médico para cada ilha, mas, a ilha de Maio não tinha médico e na Brava havia um de vez em quando. No Fogo tinha um ou dois, mas não ultrapassava isso”, enumera. "Todas as especialidades eram canalizadas para São Vicente ou para a Praia, onde o pessoal também era escasso e os meios de diagnóstico limitados. Em casos mais urgentes ou quando existiam grandes acidentes, enviava-se os doentes para São Vicente, normalmente de barco. Havia apenas um

w w w.nosgenti.com

tologista, e muitas outras funções para as quais não haviam especialistas.”

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

A

ntes da independência, havia acesso à saúde, mas, como refere a enfermeira Germana Gomes, "não existiam muitas condições para prestar cuidados às pessoas, por falta de recursos e pessoal especializado". Em Cabo Verde, existia apenas um cirurgião que trabalhava em São Vicente, e que se deslocava à Praia todos os anos para fazer cirurgias programadas, havendo, contudo, clínicos gerais que tratavam, por exemplo, apendicites agudas. Conforme conta, “as cirurgias de grande porte eram feitas uma vez por ano. O cirurgião deslocava-se à Praia e estava ali cerca de um mês a fazer as grandes intervenções cirúrgicas, realizando também as funções de outros profissionais da saúde: anestesista, trauma-

191


192

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


“Devido à escassez de médicos em todo o território, inúmeras vezes, para poderem salvar uma vida, tinham de efetuar procedimentos para os quais não estavam preparados”

A independência de Cabo Verde e os frágeis recursos humanos e materiais, impuseram

No início da independência, as doenças transmissíveis, como a hanseníase, a malária e as doenças sexualmente transmissíveis, prevaleciam com taxas muito elevadas devido à insuficiência de serviços de educação para a saúde, às condições de vida das pessoas e ao saneamento básico e saúde ambiental. Além dos dois hospitais que

uma modificação nos setores da vida pública. Apesar de ser um aspeto importante, nessa altura não se podia falar de uma política de saúde. A escassez de hospitais, de médicos e enfermeiros, impediram a prevenção, a proteção e a promoção da saúde, o que confinava o país à pratica da medicina curativa.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Contudo, apesar de todas as limitações, os enfermeiros contribuíram muito para a área da saúde em Cabo Verde. Nos momentos mais difíceis do país, impediram que se perdessem muitas vidas. Exemplos disso foram os anos de fome, em 1940 e 1947, e na época das secas avassaladoras e das epidemias que frequentemente devastavam o país. Os enfermeiros tiveram de lidar com duras provas. Eram transferidos constantemente para diversos lugares sem condições para poderem manter a famí lia, o que fazia com que muitos tivesses de abandonar os lares e partirem sozinhos. Devido à escassez de médicos em todo o território, inúmeras vezes, para poderem salvar uma vida, tinham de efetuar procedimentos para os quais não estavam preparados. Assumiam então as funções de médicos, especialistas, administrativos, técnicos de farmácia, entre outros, que, se por um lado lhes conferia alguma autonomia, por outro, podiam levar, profissional e legalmente, a situações complexas.

w w w.nosgenti.com

médico cirurgião, que também exercia traumatologia e anestesia. Acabei por aprender muito com ele. Na década de 70 e antes da independência, eu era a única pessoa a fazer as anestesias. Só mais tarde começaram a chegar especialistas cubanos”, confidencia. "Antes da independência, praticamente não havia um serviço de saúde. Havia uma medicina curativa, mas a medicina preventiva era muito limitada", recorda.

193


NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

havia na Praia e no Mindelo, os 27 postos de saúde eram, muitas vezes, instalados em casas alugadas, sem as mínimas condições, num mau estado de conservação e sem os equipamentos necessários. Em todo o país existiam 13 médicos, dos quais 11 eram nacionais, além de 140 enfermeiros auxiliares e gerais. Também haviam alguns agentes sanitários que tinham o objetivo de erradicar do país a malária e controlar a dengue e a febre amarela.

194

A experiente enfermeira confessa que, “até certo ponto, pode-se dizer que houve uma mudança rápida após a independência, porque começaram a chegar vários especialistas, vários cirurgiões e anestesistas de Cuba e de Cabo Verde que, entretanto lá se encontravam a estudar”. No campo da saúde, nos primeiros anos de independência nacional, registou-se uma grande cooperação com a Cuba. Os profissionais cubanos, juntamente com alguns portugueses, foram dos primeiros a chegar. Posteriormente, começaram a surgir bolsas para os cabo-verdianos, algo que antes não existia, para fazerem cursos em Portugal, Cuba e Brasil. Mais

tarde começaram a regressar ao país, o que contribuiu para as melhorias registadas na área da saúde. Ao longo destes 37 anos de independência, Germana Gomes é da opinião que a saúde cabo-verdiana evoluiu, a ponto de deixar de ser uma saúde primária, tornando-se uma saúde que promove a melhoria de vida e o bem-estar dos cabo-verdianos. Conforme diz, "existe atualmente uma saúde preventiva que funciona. Antes, não se falava na



prevenção; apenas se dava atenção à medicina curativa. Hoje em dia, já há uma grande preocupação ao nível da medicina preventiva", e adiante que, "atualmente é raro encontrar uma criança que não tenha as vacinas todas: a poliomielite, o sarampo, a difteria, a tosse convulsa. Hoje, praticamente, erradicámos essas doenças de Cabo Verde. A mortalidade infantil aumentava todos os anos e os partos eram, na sua maioria, difíceis e sem acompanhamento médico ou de técnicos de enfermagem. Demos um salto muito grande na saúde. É sem dúvida, um dos grandes ganhos da independência”, e acrescenta, “embora ainda não estejamos satisfeitos, nem tenhamos tudo. Há ainda uma caminhada longa a percorrer. Temos muitas saídas para o estrangeiro, sobretudo para Portugal”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com

Sendo Cabo Verde, antes e no início da independência, comparável a um país subdesenvolvido, Germana Gomes associa o aumento da esperança de vida dos cabo-verdianos, à melhoria da saúde, pois atualmente há uma taxa bastante elevada de idosos na faixa etária dos 70 e 80 anos. Também morriam mais

196

crianças no passado, sobretudo, na época quente das chuvas. Morriam de doenças diarreicas, respiratórias agudas, avitaminoses, doenças nutricionais, febre tifoide,

“Hoje já não temos aquela taxa enorme de analfabetismo que havia antes, e isso repercute-se na saúde” pneumonia, sarampo, desidratação, entre outras. Havia igualmente uma taxa elevada de óbitos em crianças. "Apenas quando as crianças já estavam muito mal é que os pais as levavam ao hospital, só que nessa altura nós já não tínhamos muito a fazer. Por isso, a educação é um fator muito importante na área da saúde. Quanto menos analfabetos tivermos, melhor. Hoje já não temos aquela taxa enorme de analfabetismo que havia antes, e isso repercute-se na saúde”, refere. Uma das grandes preocupações atuais ao nível da saúde é o aumento dos casos de SIDA em Cabo Verde. O problema está, segundo a enfermeira, “no comportamento e na educação, sobretudo na camada jovem. Há muita liberdade na juventude. Não é falta de informação, porque a informação transmite-se regularmente nas escolas; fazem-se palestras e os meios de comunicação social frequentemente abortam esta temática. Só não está informado quem não quer. Toda a gente sabe que a SIDA mata. Toda a gente sabe quais são os meios de transmissão, contudo, a juventude não presta atenção” e conclui dizendo, “um meio para se chegar a esses jovens é a existência de programas de educação em todas as escolas, direcionados especificamente para a saúde”. Após a independência, Germana Gomes passou para o ramo do ensino da enfermagem, "uma vocação que desconhecia". Para a enfermeira, não pode haver uma dissociação das duas vocações. Conforme diz, “gostei de tudo. Costumo dizer que nasci para


w w w.nosgenti.com

Atualmente, os médicos e enfermeiros estão cada vez mais especializados, contudo, a enfermeira pensa que no passado havia muito mais interesse do pessoal de enfermagem em aprender. “Hoje há uma ânsia extrema em ganhar dinheiro e não há a preocupação de ver o doente como um ser humano que precisa de apoio e de carinho. A maioria das pessoas que se candidatam ao curso de enfermagem vão há procura de uma profissão. É por isso que eu digo aos estudantes de enfermagem que, temos de acarinhar as pessoas e tentar sempre compreendê-las." 

No entanto, para Germana Gomes, atualmente nem tudo é positivo. Conforme refere, "há uma perda de valores na classe profissional dos enfermeiros da atualidade. Eu fui professora de quase todos os enfermeiros que estão no hospital. Formei 450 enfermeiros, mas há coisas que não me agradam. Quando oiço o que dizem e vejo o que fazem, sinto uma frustração. Antes éramos poucos no hospital, mas dedicávamo-nos muito mais aos doentes do que agora. Havia um sentido de missão. Hoje em dia, apenas há um sentido do dinheiro. Não tínhamos preocupação com as horas de saída, ao contrário de hoje. Sinto-me triste por já não ser como era.” Se atualmente tivesse de sugerir alguma mudança comportamental na classe dos enfermeiros em Cabo Verde, as sugestões “seriam de natureza ética. O aspeto humano é fundamental e eu costumava dizer isso aos meus alunos. Não é só dar uma in-

jeção e um comprimido ao doente”. O calor humano e o interesse pela pessoa, é meio caminho para a cura", e conclui que, "quando uma pessoa se queixa, entra a parte humana, que muitas vezes vale muito mais para o doente que a parte técnica. No último curso de enfermagem em que estive presente, apareceram quase mil candidatos, quase todos em busca apenas de um emprego. É isso o que está a acontecer”, reclama, “o doente é visto como um objeto, um número.”

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

ser enfermeira. Vivi quase toda a minha vida no hospital e agora que já lá não estou, sinto que não sou a mesma pessoa”.

197


198

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


199

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


200

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Opinião

André Brito

As novas gerações

e as perspetivas futuras

outros. O nível de vida mudou. Atualmente, Cabo Verde é um país bem estruturado e organizado”, e continua dizendo que, "antes da independência, aprendiam a história de Portugal e sabiam-na toda. No entanto, apesar de terem nascido em Cabo Verde, não sabiam a sua própria história. Hoje em dia, qualquer jovem e criança já sabe cantar o hino nacional e já conhece os heróis nacionais que lutaram por nós.” André Brito declara que “cabe-nos a nós, jovens, ser um pouco mais atrevidos e mais extrovertidos na divulgação da nossa história e cultura ímpares.”

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

S

abendo o estudante que o dia 5 de julho de 1975 marcou a independência de Cabo Verde, momento que “se afirmou no mundo como república, como nação com uma cultura muito rica”, André Brito revela que, conforme lhe confidenciou a sua mãe, “antes da independência, Cabo Verde era um país como qualquer outra colónia. Estava um pouco parado. O povo não tinha liberdade de expressão. Porém, atualmente é o oposto. Há uma enorme liberdade em todos aspetos – de expressão, economia, entre

w w w.nosgenti.com

Como jovem estudante cabo-verdiano, André Brito orgulha-se do clima de paz e estabilidade que prospera em Cabo Verde, o que o leva a sonhar com um futuro melhor para o seu país, apesar de todos os desafios que os cabo-verdianos enfrentam. Refere-se a Cabo Verde como “ouro sobre o azul do mar, apesar de não ter ouro nem petróleo”. A riqueza que possui está, segundo André Brito, “na intelectualidade das pessoas”, incitando assim todos os jovens a explorar e a se inspirarem nas suas riquezas.

201


202

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


André Brito admite também que, apesar dos políticos estarem a trabalhar, “ainda há grandes operações que os cabo-verdianos gostariam que acontecessem. Caso um político não esteja a cumprir o que prometeu, certamente que o povo vai agir, porque há meios legais para isso. O povo tem voz e exige dos políticos”. Segundo o estudante, os cabo-verdianos não pedem demais do governo, nem são ambiciosos; simplesmente exigem o que está ao seu alcance e o que acreditam que o governo tem a obrigação de lhes facultar. Apesar de realizarem-se inúmeras conferências e debates sobre a problemática juvenil em Cabo Verde, a crise de valo-

Como jovem que é, André Brito, convive diariamente com os problemas que preocupam a juventude cabo-verdiana. André Brito gostaria que existisse um projeto estratégico para a juventude, onde “o governo fosse mais sensível e aberto aos problemas juvenis, ouvindo o que os jovens têm a dizer", e adianta que, "há grandes projetos elaborados nas universidades que deveriam ser analisados e implementados, pois dariam um grande contributo à sociedade”. Conforme relata, “o Ministério da Cultura já começou a trabalhar nesse sentido, mas é preciso mais. Alguns jovens estão a ter reconhecimento e apoio em outros países, apoio que aqui não encontraram.”

“É difícil resgatar os valores de antigamente, mas acredito que, se os libertarmos, traremos algo de novo para a pátria cabo-verdiana.”

w w w.nosgenti.com

Embora em Cabo Verde as diferenças de classe social não se evidenciem tanto quanto em outros países, um jovem pobre que venha do interior, apesar de todo o seu esforço, “tem certas limitações, até na forma de tratamento, mesmo quando chega à universidade." Esta situação que é recorrente nos dias de hoje, não tem razão de ser, uma vez que, conforme refere, "se repararmos, os nossos ministros são pessoas que vieram de uma classe pobre e temos bons jovens cabo-verdianos com boas capacidades que precisam do apoio do governo para terem mais possibilidades de progredirem".

Para o jovem, esta falta de valores a que se assiste na juventude atual, está relacionada com a globalização que, conforme refere, "tem o lado positivo e negativo". Conforme explica André Brito, “os países mais ricos querem vender cada vez mais o que é deles – é o mundo do capitalismo e da economia neoliberal. E nós, que somos de países mais pobres, estamos a entrar nesse consumismo excessivo. É difícil resgatar os valores de antigamente, mas acredito que, se os libertarmos, traremos algo de novo para a pátria cabo-verdiana. Apesar de sermos um país pobre, temos orgulho no nosso país onde os pais, sempre passaram e continuarão a passar aos filhos, esse amor incondicional a Cabo Verde”.

Como jovens cidadãos que levam o país além-fronteiras, utilizam a cultura, a arte, o desporto e a música como veículos para dar a conhecer as potencialidades de Cabo Verde. Como afirma André Brito, “o mais incrível é que, em todo o mundo, há sempre um cabo-verdiano a representar Cabo Verde, a destacar-se e a conseguir o seu espaço nas artes”.

res está a intensificar-se. “Os jovens querem mais bens materiais, querem ter carros de luxo, querem ter uma boa casa e isso acaba por pôr em causa os valores que sempre identificaram Cabo Verde no mundo: gente simpática e educada. Existe uma crise de valores, mas estamos a tentar resgatá-los”, e espera que daqui a 37 anos possa ver Cabo Verde melhor, mais avançado, onde "os valores que estamos a tentar resgatar estejam mais firmes e enraizados na juventude"

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

“temos bons jovens caboverdianos com boas capacidades que precisam do apoio do governo para terem mais possibilidades de progredirem”

203



E/W: Luís Neves / Diana Lopes | F: Pedro Matos

Testemunho

Nha Balila

Independência nacional

uma visão única e singular

Foi para Angola e, em 1953, partiu para São Tomé à procura de algo melhor nas roças do café e do cacau, já que, conforme refere, "o analfabetismo não dava para sonhar mais alto". No entanto, conforme recorda, "vivia-se em S. Tomé uma autêntica escravatura". Balila apresenta no corpo as marcas dos chicotes e das catanas que, teimosamente, todos os dias a fazem recordar desses tempos difíceis. Fez duas safras até perceberem que não via quase nada. Nessa altura já não a deixaram embarcar.“ A minha cegueira surgiu na sequência de um acidente de trabalho em São Tomé e Príncipe. Enquanto capinava, o líquido de uma árvore “malgós”, que significa amargo, acertou-me no olho direito e rapidamente propagou-se para o olho esquerdo. Como sequência, perdi a minha visão. Era a minha terceira aventura pelas terras são-tomenses”, lamenta.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

N

ha Balila relembra Cabo Verde antes da independência, como sendo “mais seguro, mais sério, cheio de dignidade. O velho, o adulto, o jovem e o adolescente, tinham muito respeito.” No entanto, não foi fácil viver nesse tempo. “Em 1947, passei muita fome”, conta. ”Havia fome, mortes, bichos nos pés, na cabeça, nas costas, nem me lembro de tomar um banho. Não me lembro de haver conquistas entre jovens – menina/ rapaz. Em 1947, eu ainda estava no interior. Saí de lá no princípio de 1948 e fui para a cidade da Praia. Quando cheguei, andava em cima de gente morta por causa da fome. Na Gamboa, onde está a estátua de Amí lcar Cabral, havia uma vala para enterrar os mortos. Ninguém se reconhecia. No tempo da fome, de 1947 até 1949, as pessoas foram para Timor, Brasil, Angola e S. Tomé.”

w w w.nosgenti.com

Isidora Semedo Correia, mais conhecida por Nha Balila, filha de um alfaiate e uma camponesa, Raimundo e Paulina, nasceu na Serra da Malagueta (interior de Santiago) no ano de 1929. Balila define-se como “uma invisual que nunca se sente isolada”, já que tem marcado a sua presença na sociedade caboverdiana. Com voz ativa nas estações de rádio e televisão, Nha Balila continua a lutar para a consagração dos direitos da mulher e a passar a mensagem, sobretudo aos jovens de Cabo Verde, que devem ter mais amor à pátria do que a outro país qualquer.

205


206

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com


Em 1981, formou um agrupamento denominado “Bali Pena” (Valeu a Pena), que marcava presença nas festas tradicionais de Santiago. No entanto, apesar de alguns sucessos, em 1991, Bali Pena terminou a sua carreira, alegadamente devido a conf litos partidários entre os seus elementos. Por essa razão Nha Balila, ainda hoje, apela para que a cultura esteja apartada da política.

Balila pertence ao PAICV, partido que governou o país durante muito tempo como partido único, todavia pensa que “um partido único com 15 anos, se não fica coxo anda de muletas. Tem de haver mais que um partido, pois sem luta, não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver independência e sem independência não pode haver democracia”.

Formou então um novo grupo de batuque, denominado “Artistas Portadores de Def iciência”. Autora de dezenas de composições, das quais de destacam “Capina Padja”, “Dentro di alguém qui é alguém”, “Minino Nobu na mom”, “Minininhas adolescentes”, Nha Balila diz que se sente mais inspirada à noite, altura em que elabora as suas composições musicais. Em 2006 lançou um CD que esgotou rapidamente.

Apesar de considerar que a independência beneficiou Cabo Verde, Nha Balila afirma que “o comportamento das pessoas era melhor em tempos anteriores", e dá como exemplo o facto de "antigamente os homens e jovens reuniam-se com a enxada, a pá e a picareta para trabalharem juntos na cons-

Também apoia a terceira idade com angariação de dádivas e as crianças carenciada, com a recolha e distribuição de materiais escolares, vestuário, bolas e bonecos. “De futuro, espero que os cegos passem a ver e os que têm olhos vejam mais de que os cegos”, conclui. 

w w w.nosgenti.com

A mulher do povo conta que, nessa altura, “como era atrevida, entrava sempre na política, embora tal não fosse permitido pelo antigo regime". Começo por brincadeira a ir às escondidas às reuniões políticas. "Eu ia para todos os lugares, mas no dia 28 de junho de 1975, saí de casa e tive um acidente. Por isso, passei o 5 de julho no hospital. Quando a bandeira portuguesa desceu e subiu a cabo-verdiana eu ainda estava no hospital”, recorda com muita emoção. “Era triste e alegre, tudo ao mesmo tempo, um momento de amor e de paz".

Nha Balila gostaria de ver o futuro de Cabo Verde de uma forma digna, respeitosa, dinâmica e sem discriminação. Diz que “os homens devem pensar na paz, na dignidade, na fé e na esperança. Só assim é que vão conseguir alcançar os seus objetivos. O homem hoje em dia, só quer trabalhar por interesse e por inveja. Quer ter casa e carro sem muitas vezes ter posses para tal. Tem de aprender a controlar-se melhor.”

Em Cabo Verde, já cega, dedicou-se à luta pela independência do país. Guardava panf letos contra o colonialismo debaixo da cama, mesmo quando as autoridades a avisavam para não se envolver na política. Contudo, foi no dia 5 de julho de 1975, com a independência, que Nha Balila afirma ter nascido. Conforme declara: “eu acredito na independência”.

trução da casa do amigo – hoje eu faço contigo, amanhã tu fazes comigo. Atualmente nenhum jovem quer trabalhar. Só querem desavenças e problemas”. Confessa também que “a educação na famí lia era melhor do que é hoje, pois atualmente, os pais perderam a autoridade nos filhos" Contudo, ao nível da educação escolar, houve grandes progressos. Conforme relembra, "antes da independência, quem ia mais à escola eram os filhos dos ricos e dos portugueses, enquanto que hoje, todas as crianças vão para a escola e se instruem”.

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

Apesar de não ter esmorecido, Nha Balila tinha visto mais guerra em S. Tomé. "Quinze dias de guerra", lembra, “incluindo corpos de roceiros por causa do massacre de Batepá, em 1953."Em 1954, conheceu as ilhas do Equador e anos depois regressou a casa. Voltaria a emigrar em 1963 e 1966, pois, conforme confessa, “o país não tinha grandes condições económicas para alimentar os seus filhos, dadas as sucessivas calamidades, motivadas pela falta de chuva”.

207


208

NÓS GENTI 4 CABO VERDE

w w w.nosgenti.com




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.