NÓS GENTI - Nº3

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www.nosgenti.com Edição 3 - Junho ‘12

Propriedade: Palanca Média Produções | Cabo Verde: 750$00 - Portugal: 7,00 Euros - Resto do Mundo: 9,00 Euros | Email: info@nosgenti.com | www.nosgenti.com

Revista Nós Genti | Edição 3 - Junho 2012 | Vera Duarte: Por grandes causas, pela vida e pelas pessoas

Vera Duarte

Por grandes causas, pela vida e pelas pessoas Ilha do Fogo

Cinco séculos a renascer das cinzas A emblemática Festa da Bandeira Renascer o cultivo do café

Ilha de Santo Antão A descoberta de um exotismo peculiar Ainda tanto por descobrir

Sidónio Monteiro Zelo na dedicação à causa pública

Leão Lopes Criatividade, interiorização pessoal e firmes ideais

Tarrafal de Santiago História, geografia e visão sociológica




Nesta edição

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Vera Duarte Por grandes causas, pela vida e pelas pessoas

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Editorial

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Ilha do Fogo

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Ilha do Fogo

18

Ilha do Fogo

30

Henrique Pires

36

Sidónio Monteiro

46

José Silva

64

Ilha de Santo Antão

70

Santo Antão

84

Amadeu Cruz

Mais além que o mar Cinco séculos a renascer das cinzas Um desenvolvimento singular A emblemática Festa da Bandeira Festa das Bandeiras: tradição e devoção Zelo na dedicação à causa pública Renascer o cultivo do café no concelho dos Mosteiros A descoberta de um exotismo peculiar Memórias de um viajante Apostar nas políticas económicas e de crescimento

128 94

Leão Lopes Criatividade, interiorização pessoal e firmes ideais Orlando Delgado

Ribeira Grande: um concelho em permanente evolução

104

Vera Almeida

112

Cordas do Sol

116

Jorge Martins

120

Olhares

142

Malaquias Costa

138

Osvaldo Costa

142

Tarrafal de Santiago

142

João Domingos Barros

142

Tarrafal Azul

“Priorizar a mudança de mentalidades” Resgatar a música tradicional de Santo Antão Investir mais nas artes cénicas Pormenores do quotidiano Paixão pela música tradicional Otimizar meios e recursos para melhor servir o país História, geografia e visão sociológica Tarrafal, um município recheado de potencialidades Poema de Silvino Lopes Évora

Fotografias de Arquivo: Instituto do Arquivo Histórico Nacional (Museu de Documentos Especiais)

Ficha Técnica NÓS GENTI EDIÇÃO Nº 3 | PROPRIEDADE: Palanca Média Produções - Rua 5 de Julho, nº70 - 3º Andar - Plateau - Praia - Cabo Verde (Tel. +238 2619860) | email: info@nosgenti.com | www.nosgenti.com | DIRECTOR: Luís Neves WRITER: Pedro Matos, Diana Lopes | CONSELHO EDITORIAL: Silvino Évora, Luís Neves, Tereza Teixeira, Júlio Rodrigues, Carlos Medina, Isabel Santos, Cândida Barros | PRODUÇÃO: Cândida Barros | PUBLICIDADE: Admilton Santos FOTOGRAFIA E EDIÇÃO DE IMAGEM: Pedro Matos | PAGINAÇÃO E PRÉ-IMPRESSÃO: Visioncast - Interactive Solutions, Lda PT | WEB e REDES SOCIAIS: Anabela Duarte | TIRAGEM: 5.000 exemplares | PREÇO DE CAPA: 750$00 (Cabo Verde) - 7 Euros (Portugal) - 9 Euros (Resto do Mundo) | Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais. | Número de Registo: 1/2012

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Editorial

Mais além que o mar

P

ara editar este número da Nós Genti, tive a oportunidade de percorrer o triângulo formado pelas ilhas de Santiago, Fogo e Santo Antão, onde pude comprovar a minha já forte convicção da força e querer dos cabo-verdianos. Em todas elas, pude sentir a profunda preocupação com a vida e as perspetivas sociais com que se lida o dia a dia. Independentemente da sua condição social, estas gentes marcam uma diferença no modo de enfrentar a vida. O realismo com que encaram os problemas que os afetam, faz com que coloquem em primeiro lugar a melhoria dos recursos, em prol do bem-estar coletivo. O isolamento das ilhas, que tinha no mar um entrave ao conhecimento, já não impede que a informação e a experiência circule, de ilha em ilha, e destas para o resto do mundo. Observei a complementaridade das valências individuais de cada uma das ilhas, que contribuem, de forma simultânea e coletiva, para o bem-estar de todos os cabo-verdianos. Senti dos foguenses uma grande autoestima e calor humano, a que não deve ser indiferente a força do seu vulcão, sempre omnipresente no espírito e no espaço. Dos tarrafalenses, experimentei os valores da igualdade, quiçá transmitidos pela Cadeia do Tarrafal e o que ela significa para a história de todos os povos. Finalmente, dos santantonenses pude apreciar a resistência e a força do seu trabalho, tão bem caracterizado na imponência da sua ilha. São gente de crença e de grande religiosidade, onde através da fé e da confiança inabaláveis, vão construindo, dia após dia, um futuro melhor para si e seus descendentes. Dos autarcas que entrevistei, senti a convicção de que o mais importante, não são as cores político-partidárias, mas sim o empenho e a convicção firme de servir as suas comunidades e o seu país. Pude ainda testemunhar que é através da escrita, da música e das artes, expressas por alguns dos maiores interpretes da comunidade, que este povo traduz e magistralmente manifesta, os sentimentos que lhes percorrem o íntimo da sua alma. Por fim a morabeza com que nos acolheram. É um denominador comum a todas as ilhas, a todo um povo, que mesmo nas dificuldades, muitas delas históricas, têm sempre uma palavra de carinho e amabilidade, que se expressa nas conversas que agora vos damos a conhecer.

Luís Neves


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Ilha do Fogo

Cinco séculos a renascer das cinzas 4


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O documento mais antigo que se conhece sobre a Ilha do Fogo é a Carta Régia

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de 3 de Dezembro de 1460, pela qual D. Afonso V doou ao Infante D. Fernando, seu irmão, os Açores, a Madeira e as cinco ilhas de Cabo Verde então conhecidas, nomeadamente Sal, Boa Vista, Maio, Santiago e Fogo. O documento, por duas vezes que refere Sam Jacob e Fellipe (Santiago e o Fogo), que por se terem achado a 1 de Maio, dia daqueles santos, ficaram com os seus nomes. Mais tarde, a Ilha de São Filipe, mudaria a sua designação para a atual Ilha do Fogo.


E

m 1462, por ordem do infante D. Fernando, começa o povoamento da ilha de Santiago, mas as origens do povoamento do Fogo estão envoltas em grande incerteza. A primeira notícia da ilha, encontra-se num documento de 1503, onde refere que são arrendados os direitos reais dela, juntamente com os de Santiago. Aí aparece mencionado pela pela primeira vez, a mudança de nome de São Filipe para Fogo. Este arrendamento faz deduzir que a ilha começara a produzir, mas o documento não especifica quais os produtos. Os seus primeiros habitantes foram gentes oriundas da Ribeira Grande (atuais ruínas da Cidade Velha), vila que já se havia constituído em Santiago. Estes ocupantes iniciais, fruto dos privilégios obtidos, estavam autorizados a utilizar escravos oriundos da Guiné no trabalho necessário ao povoamento da ilha. Gente de Santiago e muitos negros cativos seriam assim os primeiros habitantes da ilha do Fogo. A vila de São Filipe foi fundada logo nos primeiros anos da ocupação.

Segundo o autor J. Lopes de Lima, em livro publicado em 1844, “houve no ano de 1680 um terramoto tal em toda a ilha, seguido de tamanha explosão de lavas, que alguns proprietários, cujas fazendas ficaram destruídas, aterrados de tal calamidade, passaram a estabelecer-se na ilha da Brava, até então mal povoada por casais de negros libertos de Santiago e do Fogo. E foi desde então que a Brava começou a prosperar e a declinar a importância do Fogo”. Assolada por várias calamidades, erupções e ataques de corsários (a que as desmanteladas defesas não opunham qualquer resistência), a ilha do Fogo assistia ao declínio da sua população que, fruto da esterilidade dos solos e da prepotência dos sargentos-mores - cargo ocupado por déspotas sem escrúpulos, que apenas cuidavam de enriquecer - cada vez se encontrava mais pobre. Em 1774 abateu-se sobre o arquipélago uma das maiores fomes de que há notícia. São Nicolau, Maio e Fogo foram especial-

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Em meados do século XVI, a ilha teria já uma vida social desenvolvida. Cristãos-novos e gente de influência ligada aos negócios do algodão e à comercialização de escravos. No entanto, o Fogo nunca se conseguiu desenvolver de forma comparável a Santiago. Enquanto que na capital, dominada pelos seus morgados rurais, havia centenas de trapiches para moer cana e fabricar açúcar e aguardente, tanques de água para a rega que alimentavam a produção de milho e algodão, o Fogo via estagnado o comércio e a navegação. Não se ia buscar o algodão que produzia, interditou-se a venda de panos de algodão e de cavalos a estrangeiros, o vinho produzido nas suas íngremes encostas não era comercializado, e até as defesas militares da ilha estavam desmanteladas, não resistindo a alguns ataques de piratas que, de forma fugaz, invadiam a ilha.

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Nos primeiro anos do século XVI encontram-se povoadas apenas as ilhas de Santiago e do Fogo. Foi à sombra de Santiago, que a ilha do Fogo se começou a desenvolver. A cultura do algodão foi a causa principal do seu incremento. Em 1513 já a ilha tinha o seu próprio capitão, e estava dividida entre alguns grandes proprietários. Doada a capitania ao conde de Penela, em 1528, nela se compreendem terras agrícolas e terrenos bravios, que o capitão poderia aproveitar como quisesse, “em criação de gado e algodões”. Esta era, sem dúvida, a única cultura importante na ilha. Em 1532 foi nomeado um “feitor dos tratos dos algodões no Fogo”, trocando-se estes por escravos da Guiné.

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mente flageladas: tudo seco - morria o gado sem pastagens, os fazendeiros desfaziam-se dos seus escravos em troca de comida, o governo mandava carregamentos de milho para acudir aos famintos, mas eram tantas as vítimas que não havia quem enterrasse os mortos. Este quadro de miséria, haveria de repetir-se frequentemente. Nos finais do século XVIII, a ilha de Santiago, a mais próspera e importante do arquipélago, estava num total abandono. O Fogo não era indiferente a este abandono e encontrava-se totalmente em declínio. A “antiga” vila de São Filipe, que datava do início da colonização, tornara-se numa povoação importante, superando mesmo a Vila da Praia, apesar de ser esta a capital do arquipélago. Tinha algumas boas construções, com casas caiadas e coberturas de telha, entre as quais se contavam oito igrejas. Por trás, ficavam as hortas e, no interior da ilha, as fazendas dos seus habitantes, que lá residiam a maior parte do ano. No conjunto, a ilha do Fogo, entrava no mesmo quadro de abandono, ao qual mergulhara todo o arquipélago.

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O Fogo padecera de grandes secas e fomes, as quais haviam dizimado a sua população. Em meados do

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século VXIII, dos 13.000 habitantes que a compunham, em apenas três anos, viu padecerem dois terços. Em 1774, depois de grandes fomes, a sua população ficou reduzida a 5700 pessoas. Mas essa população rapidamente se recompunha, chegando no princípio do século XIX a umas 13.000 pessoas e em 1831 a 16.000, as quais, fruto da fome que se seguiu, voltaram a ficar reduzidas a 6.000 almas por volta de 1834. O geólogo Saint-Claire Deville, que visitou o Fogo no decurso de uma viagem científica em 1842, descreve São Filipe como “um miserável amontoado de pobres casas”. A ilha, outrora mais próspera, estava em grande decadência por causa das mortandades provocadas pelas fomes e pela emigração. “Grande parte das casas da cidade está em ruínas e conta-se apenas um número exíguo onde reina algum conforto”. Numa ilha que desempenhou um papel primordial na vida do arquipélago, pois se seguia a Santiago pela antiguidade da sua colonização e, pela população e importância económica, surpreende a ausência completa de vestígios materiais deste passado histórico. Nada resta em São Filipe das suas velhas igrejas ou ermidas, dos sobrados dos seus morgados, ou dos baluartes que a defendiam. Quase todas



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as casas têm um ar gasto, sem no entanto serem velhas, e muitas se arruínam mais pelo abandono do que pela idade.

mo móveis. Esta influência fazia-se sentir em toda a vida do arquipélago. Ainda hoje, é rara a família que não tenha um parente emigrado nos Estados Unidos.

Compensado a sua pobreza, as ilhas de Cabo Verde ficam situadas numa das grandes rotas marítimas do mundo. Nas relações comerciais com o estrangeiro, os Estados Unidos ocupavam o primeiro lugar em meados do século passado. Duas casas americanas se tinham especializado tradicionalmente neste comércio, fazendo uma vez por ano, com os seus navios, o giro de todas as ilhas. Tanto na importação como na exportação, a bandeira americana ocupava, de longe, o primeiro lugar, com mais de um terço dos navios, quase o dobro dos portugueses ou ingleses. Os Estados Unidos proviam as ilhas das suas principais necessidades, chegando mesmo a acudir-lhes caridosamente nos anos de esterilidade, com o fornecimento de manteiga, queijo, farinha de trigo, bolacha, arroz, etc., mas também roupas e até mes-

Atualmente apenas se pode conjeturar o papel desempenhado pelo Fogo no conjunto destas relações. Produzia milho e feijão, destinados essencialmente a Portugal, Madeira e Canárias. Exportava porcos para Santiago, de onde recebia essencialmente açúcar, aguardente e milho, e panos para a Guiné, de onde tinham vindo os seus escravos negros. Se no valor da exportação ficava o Fogo muito abaixo das ilhas salineiras e de Santiago, que, além da sua dimensão e capacidade produtiva, era a mais visitada pelos navios, onde ficava a capital e por onde se fazia o principal comércio, figurava em primeiro lugar entre as ilhas exclusivamente agrícolas, exportando o dobro de São Nicolau e cinco vezes mais do que Santo Antão, a última das três a povoar-se e a desenvolver-se. 




E: Luís Neves | W: Diana Lopes

História

Ilha do Fogo

Um desenvolvimento singular

Foi, provavelmente, no final do século XV que a ilha do Fogo começaria a ser povoada e explorada por moradores de Santiago – europeus, sobretudo naturais de Portugal, Espanha e Itália – e por africanos e escravos da Costa da Guiné, sabendo-se também que as casas eram construídas de forma rústica e os recursos em água, conhecidos no início do século XVI, eram escassos.

As donatarias foram a primeira forma político-administrativa introduzida em Cabo Verde, em que cada donatário tinha a incumbência de prestar contas ao rei de Portugal. Desta forma, com o sistema de Capitanias, instituiu-se nas Colónias uma administração excessivamente descentrali-

O ano 1460 é marcado pelo documento mais antigo referente à ilha do Fogo (Carta Régia de 13 de dezembro de 1460), sendo essa a data mais provável do seu descobrimento. Todavia, a origem exata do seu povoamento que se encontra envolta num grande mistério, pois várias são as datas apoiadas por diversos historiadores, sem que cheguem a um consenso.

Em 1493, Fogo tinha por capitão, Fernão Gomes e, em 1528, a capitania da ilha foi doada ao conde de Penela. O Capitão da ilha tinha de aproveitar os terrenos baldios para a colheita do algodão que, provavelmente já crescia espontaneamente. É possível que, na ilha do Fogo, a produção do algodão tenha superado a da ilha de Santiago. Esta produção destinava-se à exportação e ao artefacto de panos-de-terra, que deveriam alimentar o resgate de escravos na vizinha costa africana. A técnica do fabrico de panos era dominada pelos escravos, em teares semelhantes aos utilizados no Continente, mas com padrões visuais desenvolvidos no arquipélago. Os escravos assumiram um papel tão relevante, que nem o clero dispensava os seus serviços. O trabalho dos escravos era a força motriz da economia agrícola, sendo-lhe facultado um dia para encontrarem os meios de subsistência diária e os outros seis dias para tornarem produtivas as terras do amo.

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A

ilha do Fogo é, em extensão, a quarta do arquipélago, com uma superfície de 476km2, estando localizada entre as ilhas de Santiago e Brava. A sua proximidade em relação à ilha de Santiago e as potencialidades agrícolas exploradas nos primórdios do povoamento de Cabo Verde fizeram desta, uma das primeiras ilhas de ocupação permanente.

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Sendo uma das dez ilhas de Cabo Verde e a segunda do arquipélago a ser povoada, foi denominada inicialmente por ilha de São Filipe. Contudo, a notoriedade do seu imponente vulcão tornou-se um dos símbolos mais representativos da ilha, dando origem ao nome que prevalece atualmente: Ilha do Fogo.

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zada que contrariou os próprios interesses da Metrópole, pois tornou difícil controlar tanto o pagamento de todos os impostos como as diversas atividade dos donatários e colonos. Os donatários recebiam as capitanias não como proprietários, mas como administradores. As capitanias eram hereditárias, indivisíveis, intransferíveis e inalienáveis, sendo os donatários quem deveria arcar com as despesas da colonização. A Capitania Hereditária tinha como objetivo acelerar a colonização efetiva de Cabo Verde, transferindo para particulares os encargos da colonização. Portugal atraía os interesses de alguns nobres portugueses a Cabo Verde, dando-lhes direitos e poderes sobre a terra e transformando-os em donatários das capitanias, com a Carta de Doação a estipular a concessão da capitania ao donatário. Mais tarde, em1592, o Governo Português, através do Regimento Geral, definiu as bases da nova administração. Em vez de uma autoridade que representava diretamente o poder real – Governo-geral (Governador), a colónia passou a ter, a partir daí, uma sede do Governo português. O governador-geral era auxiliado por três funcionários, também designados pelo próprio rei: o ouvidor-mor, responsável pela aplicação da justiça em toda a colónia; o provedor-mor, responsável por todos os negócios da Fazenda Real - arrecadação dos tributos e impostos - e o capitão-mor, que cuidava da defesa do litoral. Teoricamente, a administração passou a ser centralizada nas mãos desses quatro funcionários reais: o governador, o ouvidor, o provedor e o capitão-mor. Na prática, isso demorou a ser implantado, principalmente pela extensão de terra e da costa e o consequente isolamento das povoações dispersas pelo território, acrescido das dificuldades de comunicação e transporte. Durante muito tempo, alguns donatários relacionaram-se diretamente com a Coroa, ignorando a presença do próprio governador-geral. Por outro lado, inúmeras vezes, o monarca fez o mesmo.

A primeira erupção vulcânica registada, aconteceu em 1500, no entanto, foi em 1680 que outra erupção, com o respetivo terremoto, foi tão violenta que levou os colonos a fugir e a estabelecer-se na ilha Brava, precedidos pelos escravos libertos de Santiago e do Fogo. A população destas ilhas aumentou consideravelmente devido às vantagens concedidas aos rendeiros desde 1504, sendo a sua importância impulsionada pela agricultura, em que os colonos se dedicavam, especialmente, ao cultivo do algodão. No entanto, três anos de seca levaram a muitas mortes devido a doenças, pragas, fome, mortandade de gado e secura da vegetação, de 1609 a 1611. Entre os homens mais importantes do Fogo, evidenciaram-se Fernão Gomes (capitão da ilha por volta de 1516), o bacharel Martim Mendes, João Fernandes, Rodrigo de Vilharam, Fernando Soares, Martim Miguel, Fructos de Gois, todos eles grandes proprietários e possuidores de grandes

1460-1470

1480

1504

1510-1513

Primeiros povoadores da Ilha de S. Filipe. A ilha começou a ser explorada por moradores de Santiago (europeus naturais de Portugal, Itália e Espanha) e por africanos e escravos trazidos da Guiné. A Ilha do Fogo foi a segunda ilha de Cabo Verde a ser povoada.

Fala-se da edificação do segundo templo paroquial em Cabo Verde, dedicado a São Filipe, na ilha do Fogo.

O mais antigo documento do século XVI respeitante ao Fogo tem a data de 1504. Trata-se de um contrato de arrendamento, o que significa que o Fogo já albergava, no seu interior, um núcleo populacional, económico e socialmente organizado.

Criação da capitania da Ilha do Fogo. O primeiro capitão-donatário foi Fernão Gomes.

1500 Erupção vulcânica, a primeira de que se tem notícia escrita.

1515 Já se faz referência aos “juizes” da Ilha do Fogo, o que significaria que já existia uma Câmara.


terrenos na ilha, que permitiram um progresso mais rápido pelos carregamentos que fizeram de escravos da Guiné. A ocupação do Fogo com escravos, em 1533, era bastante notória pois o cultivo extensivo do algodão, anteriormente introduzido, exigia muita mão-de-obra escrava para as lavouras. É interessante notar que, nessa altura, os habitantes do Fogo tinham a obrigação de cultivar algodoeiros e proceder à criação gado, sendo-lhes vedado vender, trocar ou repartir as suas terras. Só a partir de 1528, é que a ilha do Fogo passaria a ter certos privilégios, semelhantes aos de Santiago, constituídos na primeira legislação administrativa para os moradores, obtendo assim uma autonomia relativa em relação a Santiago. Ainda assim, a Capitania do Fogo dependia económica e financeiramente da Capitania de Santiago, o que, em momentos de crise económica, podia significar uma maior centralização do poder, levando a se reivindicar, conflituosamente, maior autonomia e capacidade de decisão, bem como outras exigências que podiam visar a melhoria das condições de vida dos moradores ou podiam, na realidade, ser impertinentes.

é a ilha do Fogo que mais sente os efeitos da crise, por ser uma dependência de Santiago. Por isso surgem, em meados do século XVII, tentativas de autonomização administrativa da ilha e a nomeação de algumas autoridades locais, solicitadas pelo Capitão-mor António da Fonseca Ornelas. Essas solicitações foram declinadas pelo governo sediado na Ribeira Grande, pois queriam ter pessoas ao seu encargo para controlarem melhor a comercialização do algodão e o fabrico de panos. No final do século XVIII, período de crise sem precedentes, o Fogo encontra-se numa situação de extrema precariedade, porque, por não haver embarcações, havia falta de comércio; o algodão - produto principal da ilha – não tinha saída e, visto que os direitos resultantes da comercialização eram pagos em Santiago, não haviam receitas. Nesta altura, Fonseca Ornelas pediu que os seus ordenados fossem pagos pelos cofres da Ribeira Grande e solicitou autorização para nomear capitães e oficiais da terra, algo que competia ao Governador, sendo-lhe tudo concedido.

No entanto, como era em Santiago que se concentrava uma maior riqueza, em bens, propriedades e potencialidades, o seu acesso direto aos mercados tornava-se facilitado, tanto em relação à costa africana, fronteira ao arquipélago, como do Reino. Considerando que os moradores do Fogo eram obrigados a exportar os seus produtos e mercadorias para Santiago, que, por sua vez, os reexportava, a sua economia praticamente não tinha receitas, causando prejuízo aos funcionários. A crise económica, iniciada no final do século XVI com a concorrência dos franceses e ingleses, vai-se agravando a partir da segunda metade do século XVII, atingindo o seu auge no século XIX. Apesar de afetar todo o arquipélago, 1522 Título Carta do rei para o almoxarife da ilha do Fogo sobre os ornamentos da igreja da dita ilha.

Vasconcelos, Conde de Penela.

do Fogo por 3 anos, com 30.000 réis de ordenado.

1530 Duarte Fernandes inicia as suas funções no cargo de feitor dos algodões da ilha do Fogo.

1528 A capitania do Fogo foi entregue em regime de donatário ao Conde de Penela. Mercê da capitania do Fogo a D. João de Meneses de

Contudo, em 1657, a venda de cavalos a estrangeiros ainda não era permitida. Na medida em que a pretensão de vender cavalos a estrangeiros fora sempre recusada, apesar de pedidos insistentes, uma alteração na lei só seria autoriza-

1532 Título Alvará de mercê a Jorge Correia, cavaleiro da casa, de feitor do trato dos algodões na ilha

1533 Criação da Diocese de S. Tiago de Cabo Verde. A Igreja esteve presente desde o nascimento de Cabo Verde e cooperou na formação sócio-religiosa do seu povo, quer em Santiago quer no Fogo.

1538 Alvará de D. João III concedendo licença ao Conde de Penela, primo do rei e vedor da sua fazenda, capitão da ilha do Fogo.

1541 Construção da capela de Pombal na freguesia de São Lourenço do Pico, ilha de Fogo.


da numa situação de extrema necessidade e quando deixassem de existir alternativas imediatas. Isto sucedeu em 1672, sendo finalmente permitido aos moradores do Fogo - por falta de comércio, pobreza e inexistência de frutos na ilha - venderem alguns cavalos. A situação económica degradou-se a ponto do governo central de Lisboa, em 1698, conceder excecionalmente aos moradores do Fogo o envio de uma sumaca (embarcação ligeira do Brasil para transportes) à Guiné com géneros da terra a fim de resgatar escravos - algo nunca antes realizado nessa ilha. Desconhecido é o facto da solução encontrada ser de carácter permanente ou pontual, considerando a extrema aflição que se fazia sentir. Em 1655, dá-se um terrível ataque de piratas holandeses à ilha do Fogo, auxiliados por alguns portugueses renegados conhecedores

da ilha, com alguma negligência das autoridades militares locais. O saque durou quatro dias e surpreendeu a indefesa população, causando inúmeros prejuízos financeiros e danos materiais. Várias mulheres e crianças foram aprisionadas em troca de muitos bens, nomeadamente fazendas. As igrejas foram desprovidas de todo o ouro, prata, ornamentos, sinos, bem como de tudo o que nelas havia, incluindo imagens. As tentativas de obter auxílio em Santiago fracassaram devido aos ventos e correntes contrárias. Quando a ajuda chegou da Ribeira Grande, já os piratas holandeses se encontravam em alto mar, tendo inutilizado, temporariamente, a artilharia e levado toda a pólvora e munições que se encontravam armazenadas em casa do almoxarife, local onde se encontravam todos os instrumentos de guerra.

1572

1580

Séc. XVI

1609-1611

Num documento relativo à sustentação do clero, sabe-se que S. Filipe tinha 150 fogos e S. Lourenço 90 (que se pode avaliar em 2500 almas, sem contar os menores). Portanto, existiam já duas paróquias/freguesias na Ilha do Fogo.

A Ilha do Fogo enfrenta Filipe II de Espanha. Através da tradição oral é comum ouvir-se que durante o domínio Filipino em Portugal, a Ilha do Fogo foi o único lugar onde a bandeira dos Filipes (de Castela-Espanha) nunca chegou a ser hasteada.

Apresenta-se a Ilha do Fogo como grande produtora de algodão, com fabrico artesanal de panos, produção agrícola, gado, criação de cavalos... muitos navios estrangeiros por ali passavam... comércio ativo, sobretudo com a Costa da Guiné, onde, em troca, adquiria-se mão-de-obra escrava para as lavouras.

Três anos de seca, muitas mortes pela fome, doenças, pragas, mortandade de gado, as árvores secaram...

1676 Realização de obras de fortificação em São Filipe da ilha do Fogo.


A situação da ilha era miserável, por isso, o Concelho Ultramarino respondeu positivamente a quase todas as sugestões ou solicitações do Governador, do Ouvidor ou dos Vereadores do Município local. Esse desejo e vontade manifestados demonstram o interesse de implementar a solução, ainda que aparente, dos problemas acarretados pela ação demolidora do saque de 1655. Porém, persiste a dúvida se todas as decisões enunciadas foram, na realidade, implementadas, visto que, muitas vezes, existe pouca sintonia entre elas. Presentemente, a ilha do Fogo está dividida em três concelhos: São Filipe (capital da ilha), Mosteiros e Santa Catarina. São Filipe foi durante muitos anos o centro administrativo da ilha, crescendo social e economicamente. O concelho dos Mosteiros foi criado depois da independência

do Fogo, com uma identidade própria e diversidade característica, onde se produz o café do Fogo. O concelho de Santa Catarina tem como sede Cova Figueira e está situado relativamente perto do vulcão do Fogo, onde fica Chã das Caldeiras, localizada praticamente em cima do vulcão e onde se produz o famoso Vinho do Fogo. Com um terreno fértil e apropriado para diferentes culturas, Chã das Caldeiras produz hortaliças e frutas, entre as quais uvas, marmelos, melancias, romãs e figos. Este primitivo vulcão, ainda ativo, teve a última erupção em 1995 e a cratera de Chã das Caldeiras possui uma comunidade com características físicas muito particulares descendentes de um francês de apelido Montrond, os habitantes apresentam pele e olhos claros com cabelos crespos e loiros.

Séc. XVII

1799

1917

1941-1943 e 1947-1948

É neste século que começou o povoamento dos Mosteiros.

Erupção vulcânica na ilha do Fogo.

Séc. XVII

1815

Foi desenterrada a Bandeira de S. Filipe pelo grupo recreativo Sete-Estrelas. Retomou-se o ritual das Festas.

Abrandamento da economia, decadência, crise grave até à penúria. Conflitos com o poder central de Santiago, reivindicação de mais autonomia e acesso direto ao mercado.

Cova Figueira conta já 132 fogos, 703 habitantes.

Últimas grandes crises e fomes em Cabo Verde. No Fogo, a ilha mais castigada, perdeu entre 1940 e 1950, 6.200 habitantes, 27% da sua população.

1922

1816, 1847 e 1852 Erupções vulcânicas na ilha do Fogo.

12 de Julho de 1922. Elevação da antiga Vila de S.Filipe à categoria de Cidade.

1951 Nova erupção vulcânica, após quase 100 anos de repouso.


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W: Diana Lopes | F: Pedro Matos

Tradição

Ilha do Fogo

A emblemática Festa da Bandeira Produto da fusão de celebrações portuguesas com ritos dos escravos oriundos da Costa de África, a Bandeira é hoje uma festividade profano-religiosa muito apreciada em todo o arquipélago, sendo definida pelos moradores como uma comemoração realizada em homenagem a um santo, geralmente de grande aceitação popular - S. António, S. Pedro,

Não sendo uma festa puramente religiosa (cristã), também não é puramente profana (pagã), visto que nela essas designações se misturam. Todavia, possui um sentido quase ou totalmente religioso para as pessoas, visto que nutrem pelo santo um sentimento de devoção e respeito, reconhecendo que a sua superioridade pode ser de ajuda nos momentos difíceis. Cada famí lia escolhe o

Atualmente, ainda se reconhecem alguns elementos trazidos pelos portugueses. Em Portugal, a partir de finais do século XVI, existiram organizações religiosas denominadas Bandeiras, mas existem outros sinais da presença portuguesa na festa da Bandeira, como os vestígios da cavalaria medieval, juramento da bandeira, cavalhadas (apanhar argolinhas suspensas numa corda, mostrando a perícia dos cavaleiros) e a celebração do santo da igreja, chegada às ilhas através dos portugueses.

No entanto, a festividade assumiu as suas próprias características ao ser introduzida no Fogo, devido ao contato cultural entre europeus e africanos. Exemplo disso é a utilização de uma bandeira e um pilão. Tornou-se assim uma festa tradicional pois está patente a transmissão de atividades, gostos ou crenças, que se perpetua de geração em geração. Além disso, é uma festa popular, porque pertence ao povo, sendo usada e promovida por ele.

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esconhecendo-se a data exata do início da comemoração da Bandeira na ilha do Fogo, pelas suas características, é muito provável que remonte aos primeiros moradores, talvez tendo sido também festejada na ilha de Santiago, de onde provieram os moradores “nobres”.

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S. Paulo, S. Paulinho, S. Sebastião, entre outros.

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santo que a vai proteger, segundo o seu significado e papel específico, confiando nele a sua vida. Como agradecimento e reconhecimento, festejam-lhe a Bandeira, vendo-os como intermediários. É através da festa da Bandeira que aproveitam para agradecer e entrar em comunhão com Deus, em vez de lhe pedirem ou agradecerem diretamente.

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Posteriormente ao pedido, é feita a promessa, com a intenção de serem acudidos, podendo oferecer um sacrifício animal, milho ou xerém, acender velas, rezar uma missa, tomar a Bandeira e festejá-la no ano seguinte – uma grande responsabilidade moral, religiosa e económica pois é necessário ter muitas posses para custear uma festa desta natureza. É esse acreditar que faz com que a festividade da Bandeira não seja esquecida, tanto no campo como na cidade, e respeite o calendário de festividades dos santos de grande popularidade em todo o arquipélago. A festa de S. Filipe é de grande importância, sendo também uma festa civil, porque o Município comemora no dia 1 de maio, dia de S. Filipe, o descobrimento da ilha. É a festa mais representativa, pois reúne os emigrantes que vêm dos EUA, tornando-se também um percurso turístico.

Tanto na ilha do Fogo como na de Santiago, as capelanias privadas foram instituídas por grandes proprietários possuidores de escravos, que nos testamentos criavam capelas e organizavam grandes festas pela expiação dos pecados, por vezes com a libertação de escravos após a morte dos donos. Como festejar a Bandeira exigia grandes posses - sobretudo na organização dos festejos, alimentação dos convidados, entre outros compromissos - e os mais humildes também queriam estabelecer compromissos com os santos, fazer as suas promessas e festejar, os donos das Bandeiras criaram as Bandeiras de praia, que acompanhavam a Bandeira grande na procissão e na praia de Boqueirão. Contudo, as festas são realizadas nas casas dos respetivos donos. Na noite de Canizade – três dias antes do dia do santo – os canizades percorrem todas as casas onde residem as “praias”. Nasceu assim, na ilha do Fogo, a tradição das Bandeiras assumirem a duplicidade de Bandeira grande e Bandeira de praia, também denominadas por Bandeira do sobrado e Bandeira de rendeiro, ref letindo a sociedade da ilha. A Bandeira grande ficou reservada ao sobrado, festejada pela classe mais abastada e de destaque social, sendo o cen-


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tro da festa. Todavia, a população de condição modesta pode organizar festas espontâneas denominadas “tirar a Bandeira”, que consistem numa reunião simples com os vizinhos e uma refeição à volta de um santo do qual se obteve alguma graça, juntamente com o proferimento de uma ladainha.

cípio - que passou a coincidir com as tradicionais festas de S. Filipe, a fim de reforçar a dimensão nacional destes eventos e fazer com que estas festividades se transformem num produto turístico de maior qualidade, ganhando, de ano para ano, projeção internacional.

Nos últimos anos, após a independência nacional, a Câmara Municipal e os festeiros têm vindo a enriquecer e inovar o programa das atividades culturais, desportivas e recreativas para comemorar o dia do Muni-

Entre a última semana de abril e o 1º de maio, os dois programas das festas misturam o ritmo do tambor, a música e os coros das coladeiras, as cavalhadas em provas de velocidade e perícia, futebol e outras moda-


O sucesso de qualquer projecto depende sempre da forma como o abordamos The success of any project always depends on how we approach

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lidades de salão, combates de galos, corridas de barco, desfiles de motas, atletismo, missa, procissão e um almoço tradicional, juntamente com fogo-de-artifício. Os cinco dias consecutivos de baile popular contam com a participação de grandes artistas nacionais e estrangeiros que, de ano para ano, atraem a atenção de centenas de emigrantes, muitos turistas e cabo-verdianos de outras ilhas, fazendo da cidade de São Filipe um dos maiores palcos de animação cultural e desportiva do país. Assim, de janeiro a agosto, consoante as localidades, são comemoradas as festas, que, embora se realizem em diferentes datas, começam sempre com o ritual do pilão, sendo público e constituindo um verdadeiro espetáculo de música, dança e ritmo. À volta do pilão, encontram-se geralmente três mulheres a pilar milho num compasso

ritmado, com intervenientes que compõem uma verdadeira orquestra de percussão, com canções e tambores ao ritmo do pilão, juntamente com batidas de dois paus no seu rebordo, que acompanham o ritmo. Nesses dias dedicados aos preparativos da festa, faz-se ainda a matança de animais, também sob o ritmo dos tambores, dos cânticos e de um certo ritual, enquanto os foguetes fazem a festa. Na véspera do dia da grande festa, a Bandeira sai da casa do festeiro para ser transportada à Igreja Matriz por um cavaleiro, que se faz acompanhar de outros cavaleiros vestidos a rigor, com casaco preto, laços sobre as camisas brancas e uma faixa vermelha sobre o cinto. O dia da festividade começa na alvorada do dia reunindo as pessoas. A meio da manhã, os cavaleiros juntam-se e saem pelas ruas da cidade, fazem corridas no Alto de S. Pedro e seguem, em marcha solene, com a bandeira desfraldada, em direção ao local onde em tempos existia um castelo, que seria do primeiro festeiro de S. Filipe. Chegados ali, todos fazem parte do cortejo, comem bolos, bebem e recebem grinaldas de f lores. Depois, dirigem-se para a casa da bandeira de Praia, e daí seguem para a Praia de Boqueirão, onde fazem algumas corridas e molham os pés dos cavalos nas águas do mar, para augurarem boas águas para o ano seguinte. Da casa do festeiro, à qual regressam após o almoço na Praia de Boqueirão, vão para a Igreja Matriz onde é celebrada uma missa. Na Igreja, enfeitada com novos adereços, o Santo é colocado no altar adornado com f lores e fitas vermelhas e brancas. Depois da Bandeira ser é abençoada pelo padre, procede-se à celebração da cerimónia religiosa. No regresso à casa do festeiro, o Santo Padroeiro é transportado em procissão pelas ruas da cidade, com cânticos religiosos e o rufar dos tambores. Os cavaleiros fazem mais uma corrida no Alto de S. Pedro, segundo uma regra antiga, em que quem leva a Bandeira corre em primeiro lugar e só depois lhe sucedem os outros cavaleiros, guardando sempre uma certa distância entre cada corrida. É então servido o almoço tradicional - xerém, carne de bode, couve,


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mandioca, entre outros pratos - aos cavaleiros e aos convidados.

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À tarde, as cavalgadas no Alto de S. Pedro constituem o último ponto dessa festa, reunindo milhares de espetadores. Assinalado o toque dos tambores, os cavaleiros correm desenfreados na pista, tanto para a apanha das argolinhas e grinaldas, como para demonstrarem a sua habilidade, através do que chamam corrida das rosas, em que os cavaleiros correm dois a dois, de mãos dadas. No fim, as argolas e as grinaldas, apanhadas com uma vara ou com a cabeça, são entregues à mesa do Júri, sob o toque especial dos tambores e o aplauso dos espectadores, onde são distribuídos prémios e louvores aos vencedores. Seguidamente, a Bandeira é enrolada e entregue na mesa do Júri, onde se encontram altas individualidades da ilha para se proceder à entrega da mesma ao novo festeiro. Caso não apareçam candidatos à Bandeira, esta é enterrada na

Igreja, voltando a sair apenas quando aparecer quem ofereça o seu resgate, no prazo de quarenta e oito horas. Existe a lenda que, certa vez, a Bandeira foi enterrada com o agouro de que quem a tomasse e fizesse a festa, morreria. Por tal montivo, não houve festejos durante muito tempo, até que um grupo de sete jovens desafiou esse agouro e tomou a Bandeira, que passou, desde então, a ser festejada. À noite, em casa do festeiro, é costume haver bailes, com violas e violinos a acompanharem, até à meia-noite, quando os foguetes são lançados em memória daqueles que adquiriram a Bandeira, sendo que, antigamente, também era habitual acenderem-se fogueiras para as pessoas saltarem sobre elas com um pouco de sal ou um ovo nas mãos, a fim de conhecerem o futuro ou o que aconteceria no ano seguinte – uma superstição popular. 



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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Associativismo

Henrique Pires

Festa das Bandeiras

Tradição e Devoção A Casa das Bandeiras foi fundada em 2002. Nestes dez anos de atividade, os seus membros têm-se empenhado por manter viva a Festa da Bandeira, esse evento cultural ímpar e tradicional da ilha do Fogo. A recuperação do edifício que aloja a associação, foi uma das várias obras realizadas em prol dos costumes e tradições da ilha. Manter viva a tradição e apostar nas obras de solidariedade social para benefício dos mais desfavorecidos, são os objetivos futuros da AMIBANDEIRA.

Em 1974, um natural do fogo, que se encontrava emigrado nos Estados Unidos onde exercia advo-

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Até 1974, este grupo de amigos do Fogo, nunca deixou de cumprir a tradição, e a bandeira nunca foi enterrada. Conforme descreve Henrique Pires, a Festa da Bandeira, era “celebrada essencialmente pelos sobrados e seus convidados: as famílias mais importantes da ilha. Os tamboreiros e o povo, que na altura eram chamados de pessoas do quintal, não tinham autorização de entrar na casa dos senhores dos sobrados, festejando-a apenas no quintal das casas dos mais abastados”.

Durante muito tempo, celebrou-se São Filipe com a “bandeira enterrada, isto é, com a bandeira depositada na igreja. Mas, em 1917, apareceu um grupo de pessoas que lutou contra o colonialismo no Fogo, e que resolveram levantar da igreja a bandeira. Como o primeiro de maio passou a celebrar o dia do trabalhador, esse grupo resolveu levantar a Bandeira, precisamente nessa data simbólica”, conta Henrique Pires.

O grupo que se intitulava Sete Estrelos, era encabeçado por Aníbal Henriques. Este homem, com uma imensa paixão pela tradição e cultura da ilha do Fogo, deixou um legado documental muito importante para a reconstrução histórica dos costumes e tradições da ilha.

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onforme relata Henrique Pires, fundador da Casa das Bandeiras e membro da direção a associação AMIBANDEIRA, “a festa das bandeiras de São Filipe, não era a maior festa da bandeira da ilha. Contudo, com o passar dos anos, foi ganhando prestigio, até que ofuscou por completo a festa de São João, que era uma festividade com alguma importância no panorama das festas religiosas da ilha.”

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Desde que tenha capacidade económica para organizar a festa, qualquer pessoa pode tomar a bandeira. Há famílias que assumem esta responsabilidade, há pessoas singulares que tomam a bandeira e há inclusive associações que se comprometem em organizar as festividades. “Este ano, a título de exemplo, a festa foi organizada pela associação de médicos do Fogo, que juntou os médicos residentes na ilha, a outros que se encontram radicados noutras ilhas ou mesmo no estrangeiro”, relembra Henrique Pires.

Aníbal Henriques - Fundador do grupo Sete Estrelos

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cacia e que tinha uma posição resistente quanto à independência de Cabo Verde, tomou a bandeira. Quando se apercebeu que a independência nacional iria ser um facto consumado, pediu a um primo residente no Fogo, para entregar a bandeira na igreja. Este primo, de nome Francisco Barbosa, mais conhecido por Chico Nha Nha, que tinha sido cavaleiro durante muitos anos, falou com os amigos, muitos deles que já se tinham instalado e feito vida na cidade da Praia, para não se levar a bandeira à igreja.

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Tal como Henrique Pires recorda, “conseguiram arranjar 150 contos, e fizeram a festa. A partir dessa altura, entre grupos de amigos, empresas públicas e privadas e também alguns particulares, a bandeira nunca mais regressou à igreja e todos os anos a festa de São Filipe anima o Fogo, com a presença de milhares de pessoas provenientes de outras ilhas e da diáspora.” Para as gentes de São Filipe, a Festa da Bandeira é um acontecimento grandioso. No entanto, tal como refere Henrique Pires, “é um evento que necessita de muitos apoios para ser realizado. Felizmente, a Câmara Municipal tem sido um importante aliado na preservação da tradição da Festa da Bandeira, pois suporta muitos dos encargos a ela associados.”

Para além da procissão em honra de São Filipe, da música e dança, a Festa da Bandeira tem ainda dois momentos altos e muito significativos na cultura da ilha: o cotchi midjo e a corrida de cavalos. Conforme explica Henrique Pires, “o cotchi midjo, “é o ato mais importante da festa. É com este milho batido ininterruptamente durante dois dias, que se prepara o xerém de milho, que é a base para o banquete da festa. A corrida de cavalos, ou a corrida da grinalda é outra tradição antiga dos festejos. Contudo, segundo este mem-



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bro da organização, “a corrida de cavalos está a passar por uma fase um tanto descuidada quando comparada às de outrora, em que os cavaleiros se vestiam a rigor. Antigamente, os cavaleiros que participavam na Festa da Bandeira de São Filipe, eram essencialmente pessoas de posses das famílias importantes da ilha. Havia ainda a corrida de prémio, com os cavalos todos a competirem ao mesmo tempo. Será um objetivo recuperar esta tradição nas edições futuras”, afirma.

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A tomada da bandeira traz grande prestígio a quem se responsabiliza pela organização da festa. Uns fazem-no por devoção religiosa, outros simplesmente por quererem participar, de forma direta, nas tradições da sua terra natal. Até 2015, já estão encontrados os futuros organizadores deste acontecimento único a nível nacional e que consegue agregar, todos os anos, mais de três mil pessoas na cidade de São Filipe. Por forma a alavancar ainda mais este grandioso acontecimento cultural de todos os foguenses, a AMIBANDEIRA prepara-se para alterar os seus

estatutos sociais, transformando-se em Fundação de Utilidade Pública. Tal como refere Henrique Pires, “com a passagem da AMIBANDEIRA a Fundação de Interesse Público poderemos intervir em projetos mais abrangentes e que, certamente, contribuirão para o desenvolvimento e bem-estar das nossas gentes.” A AMIBANDEIRA, em associação com um grupo de médicos radicados nos Estados Unidos, fundaram o movimento Mais Saúde Para o Fogo e que, frequentemente, coopera com as populações mais pobres da ilha, facultando consultas gratuitas e promovendo o bem-estar das suas populações. A transformação da associação em Fundação, permitirá assim “alargar o leque da nossa intervenção social. Há já a ideia de estendermos estas iniciativas a mais áreas, tais como o ensino”, conclui. Para o futuro, Henrique Pires gostaria que todos os foguenses continuassem a apoiar a Casa das Bandeiras, enaltecendo cada vez mais a tradição popular da ilha, contribuindo assim para o desenvolvimento social e económico do Fogo, pois conforme diz “as suas gentes merecem”.



E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Personalidade

Sidónio Monteiro

Zelo na dedicação à causa pública Nasceu nos Mosteiros, na ilha do Fogo. Do seu pai, herdou a visão estratégica e proativa pela qual se viria a pautar ao longo da sua carreira profissional e política. Médico, membro findador da Juventude Africana de Amílcar Cabral, deputado, ministro e líder parlamentar do PAICV, Sidónio Monteiro é um homem que não esconde o amor à terra que o viu nascer, e pela qual, se empenha em fazer crescer.

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pós ter completado o liceu na cidade da Praia, inicia-se nos movimentos de libertação nacional, razão que o leva a adiar o seu tão ansiado curso de medicina. Após a Independência, obtém uma bolsa de estudo para se formar fora do país, onde participa ativamente nos movimentos estudantis, como responsável pela organização de estudantes da Guiné e Cabo Verde.

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Terminado o curso, regressa a Cabo Verde, onde, já na qualidade de médico, dá as primeiras consultas, primeiro no Fogo e depois em Santiago. Após este período inicial, volta a sair do país para se especializar em urologia. Apesar da grande paixão pela sua atividade profissional, nunca se desligou da política. Foi membro da direção da Juventude Africana Amílcar Cabral - a organização da juventude do PAIGC - a quem coube a missão de mobilizar jovens em torno dos objetivos programáticos do partido. Foi líder parlamentar do PAICV, e de 2003 a 2010 assumiu o cargo de ministro em várias pastas. Desde as últimas eleições

que se ocupa, como deputado pela emigração, da representação pelo círculo das Américas. Com Aristides Lima, é dos deputados mais antigos do nosso parlamento.

Os primeiros anos de médico Começou por exercer medicina na ilha do Fogo. Após a Independência, o número de médicos que em Cabo Verde exerciam, era extremamente reduzido. Conforme refere, “eu faço parte da primeira leva de jovens cabo-verdianos que foram enviados para formação no exterior. Após o nosso regresso, já formados, o país começou a registar avanços significativos no seu desenvolvimento. Na área da saúde, este avanço, foi extraordinariamente notório”, e dá como exemplo, a grande taxa de mortalidade infantil, que, a par do predomínio de doenças infetocontagiosas, “criavam enormes debilidades às populações, e que acabavam por absorver o reduzido número de médicos que na altura Cabo Verde possuía. Como éramos poucos, muitas vezes, até os enfermeiros tinham de fazer o nosso papel, dando consultas e fazendo triagens”, recorda.



Desses primeiros anos, recorda o fervor revolucionário com que todos se empenhavam pela causa pública. “O sentimento de então era que, após a nossa formação, teríamos que participar na reconstrução nacional. Tudo isso nos motivava, e apesar dos fracos recursos do país e das dificuldades ao nível do financiamento do sistema de saúde, sentíamo-nos empenhados nesse objetivo”, diz.

"eu faço parte da primeira leva de jovens cabo-verdianos que foram enviados para formação no exterior" No entanto, este número reduzido de profissionais médicos, aliado aos escassos recursos de meios, obrigava-os, muitas vezes, a terem que desempenhar tarefas para as quais não estavam preparados. “Certa vez, por falta de anestesista, e deparando-me com uma situação de emergência, tive que fazer uma cesariana apenas com anestesia local. Isso hoje é impensável”, e adianta, “é claro que o trabalho do médico é compensado fundamentalmente, não pela parte material, mas essencialmente pela parte emocional com que exerce o seu trabalho e todas essas dificuldades apenas nos enriqueceram mais”.

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O desenvolvimento da saúde na Ilha do Fogo

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Sidónio Monteiro é da opinião que, “o trabalho efetuado pelos médicos de hoje, não é igual ao efetuado pelos médicos antigamente, pois as condições e o grau de exigência dos cabo-verdianos, é atualmente mais elevada, fruto do aumento da sua qualidade de vida”. Apesar da população do Fogo não ter aumentado substancialmente - devido essencialmente aos fenómenos de emigração interna e para o exterior - o número atual de profissionais da saúde é bastante superior ao de outros tempos. Têm sido feitos grandes investimentos públicos com a construção de dois novos centros de saúde e um moderno hospital, assim como com a modernização dos equipamentos hospitalares. Estes investimentos acabam por se traduzir em melhorias significativas nas condições de trabalho do pessoal da saúde, e na qualidade dos serviços prestados à população.

Estes investimentos têm contribuído para o aumento significativo da esperança de vida dos cabo-verdianos, mas não só. Conforme diz Sidónio Monteiro, “o aumento da esperança de vida deve-se essencialmente ao desenvolvimento do país como um todo. O aumento da qualidade da água, o acesso mais facilitado aos bens de primeira necessidade, o acesso à formação, a melhoria das vias de comunicação, entre outros, traduzem-se numa melhoria da vida das populações”, afirma. Essa melhoria, acaba por abrir novas perspetivas a Cabo Verde, contribuindo de forma significativa para a redução da taxa de mortalidade infantil do país. Fruto do trabalho de prevenção que tem vindo a ser feito ao longo dos anos, foram erradicadas várias doenças que limitavam a esperança de vida dos cabo-verdianos, tais como a paralisia infantil. Outro exemplo, foi a erradicação da lepra, que era uma doença que proliferava, especialmente na Ilha do Fogo. O próprio centro que se dedicava ao controlo e combate da lepra em Cabo Verde - e que estava precisamente localizado no Fogo - deixou de existir. Esta patologia era essencialmente derivada das más condições higiénico-sanitárias que havia na altura. Conforme recorda, “confrontávamo-nos com


"as condições e o grau de exigência dos cabo-verdianos, é atualmente mais elevada, fruto do aumento da sua qualidade de vida"

Ao nível de equipamentos portuários, há também reivindicações para a melhoria das

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Os investimentos ao nível dos acessos foram extremamente importantes para a melhoria da qualidade de vida das populações. Atualmente, no Fogo, estão em curso grandes investimentos na melhoria da rede de estradas, quer através da construção de novas vias, quer melhorando as já existentes. Tal facilita a mobilidade entre as populações, contribuindo de forma significativa para a economia local, o que

Contudo, conforme Sidónio Monteiro salienta, “ao nível das acessibilidades há ainda muito trabalho a realizar”, e dá como exemplo os Mosteiros, que “devido às difíceis condições de acessibilidade, permitiu que as suas gentes desenvolvessem uma identidade muito própria. Antigamente, as pessoas - muitas das quais com grande poder económico proveniente da cultura do café e da forte produção agrícola que ainda hoje regista - acabaram por, em determinados momentos, reivindicar a sua autonomia, através da criação do concelho dos Mosteiros e da criação de um aeródromo.” A importância dos Mosteiros na economia local era tal, que uma das condições que essas pessoas influentes impunham, é que o avião aterrasse em primeiro lugar nos Mosteiros e só depois em São Filipe.

Investir no desenvolvimento do Fogo

em última análise, permite a melhoria da qualidade de vida de todos os foguenses.

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grandes taxas de febre tifóide, precisamente devido à contaminação da água que muitas zonas consumiam. Era água armazenada das chuvas ou das ribeiras, que não era tratada. Hoje essas situações estão completamente ultrapassadas.”

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atuais condições. Conforme recorda, “desde sempre que os Mosteiros tiveram uma infraestrutura marítima. Lembro-me de nos meus tempos de estudante, usar o porto dos Mosteiros nas minhas deslocações. Os proprietários abastados das terras dos Mosteiros usavam botes enormes - chamados de lambotes para o transporte de mercadorias de outros pontos

"o futuro da ilha do Fogo, terá que passar pelo desenvolvimento da agricultura"

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da ilha onde tinham propriedades. Havia igualmente alguns armadores residentes nos Mosteiros que faziam viagens marítimas entre as ilhas, o que nos mostra, do ponto de vista histórico, o porquê de os mosteirenses continuarem a reivindicar o seu porto e o seu aeroporto”.

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Para a economia cabo-verdiana, muito tem contribuído o empreendedorismo dos foguenses. Apesar das dificuldades cíclicas, especialmente com as secas, o Fogo sempre contribuiu para o desenvolvimento nacional, especialmente através da agricultura e pecuária. Tem a particularidade de ter grandes quantidades de água subterrânea, da qual neste momento, apenas se utilizam 6% dos recursos. Contudo, existe uma condicionante muito grande ao nível destas reservas, que é o facto das mesmas estarem localizadas ao nível do mar. Conforme explica, “há atualmente um grande investimento em tecnologia de perfuração, com furos que podem atingir mais de 800 metros, por forma a se obter água a um nível mais elevado, evitando desta forma a bombagem e os custos a ela associados”. Desde os primórdios da ilha, embora já sem grande peso na economia atual, a cultura do algodão desempenhou um papel importante. Raramente se fala disso, no entanto, e tal como refere Sidónio Montei-


Conforme argumenta Sidónio Monteiro, “o futuro da ilha do Fogo, terá que passar pelo desenvolvi-

O turismo como fonte de riqueza Ainda outra área que pode ser fortemente explorada é a do setor do turismo. O Fogo acolhe um dos ex-líbris de Cabo Verde, que é precisamente o vulcão e a zona de Chã das Caldeiras. Conforme observa Sidónio Monteiro, “não existem muitas Chãs das Caldeiras por esse mundo o que me leva a acreditar que, com uma boa promoção de Chã das Caldeiras e do vulcão da ilha do Fogo, teríamos capacidade para atrair inúmeros turistas”, e justifica que “para a sustentabilidade turística de Cabo Verde, o turismo balnear não é suficiente, até porque este tipo de turismo, é de mais baixa rentabilidade económica,

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Outra vantagem do Fogo é a fertilidade dos seus solos. Com a introdução das novas tecnologias de irrigação, nomeadamente através dos processos de irrigação gota-a-gota, podemos obter produtividades bastantes elevadas. Este facto, por si só, justifica os investimentos que estão a ser feitos na captação de água através de furos artesianos. Já no passado se tinham feito alguns investimentos nesta área, nomeadamente através da construção de reservatórios, mas os beneficiários de tais tecnologias eram residuais. Com este novo processo, pretende-se alargar os benefícios a outros pontos da ilha e com isso beneficiar um maior número de populações.

Este desenvolvimento agrícola no Fogo, visa não só o abastecimento nacional, como pretende servir de alavanca para o renascimento de alguns setores muito particulares - como é o caso do café - capazes de serem exportados para outros mercados internacionais.

Nos Mosteiros, por ser uma zona com um microclima específico, podemos ainda encontrar o cultivo do café. Devido a esta especificidade climatérica, a zona também possibilita o cultivo e o desenvolvimento de várias espécies de frutos mediterrânicos, como a laranja, a uva, o pêssego, a maçã entre outros, que embora em poucas quantidades, também contribuem para a economia local.

mento da agricultura”, e continua afirmando que, “atualmente temos a produção do café, onde já há projetos concretos com investidores holandeses, os quais pretendem introduzir novas técnicas de produção e transformação, que esperamos sejam motivo para o impulsionar da atividade. Há ainda o vinho, que em parceria com investidores italianos, também contribui para a economia da ilha.”

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ro, “mesmo na minha família, além de se cultivar o algodão, também o transformavam. Havia um tear com o qual se faziam panos e outros trabalhos ligados à tecelagem”.

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pois de uma maneira geral, é praticado pela classe média dos países mais desenvolvidos. Por seu lado, o turismo de montanha, é mais seletivo, o que permite maiores receitas ao país. Veja-se o caso de Lanzarote, que apostou neste tipo de turismo específico e altamente compensatório. Atualmente não suporta mais turistas que aqueles que recebe ao ano.

Como já recebe cerca de dois milhões de turistas, a sua capacidade hoteleira encontra-se esgotada. Penso que seria uma boa oportunidade se Cabo Verde conseguisse captar alguns desses turistas. Contudo, há que ter condições para os receber”, e termina dizendo que, “resolvidas essas questões, penso que a Ilha do Fogo tem muito a ganhar no futuro.”

O governante Sidónio Monteiro possui uma carreira política invejável, o que só é possível com convicções ideológicas muito fortes. Hoje em dia está investido da função de servir as comunidades cabo-verdianas na diáspora. Reconhece que “é uma experiência interessante e gratificante”, e justifica que, o facto de durante muito tempo, ter trabalhado como médico ligado à assistência social, tem-lhe sido muito útil nos vários cargos políticos que tem desempenhado. “Durante o meu período como deputado, usava a minha experiência de médico por forma a encontrar alternativas para ajudar as pessoas nos seus problemas sociais. Por sorte minha, quando fui chamado ao governo, foi para me dedicar, em grande parte, aos problemas sociais ao nível do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social. Atualmente como deputado pela emigração, também não sinto muito a diferença comparativamente ao papel que, ao longo dos anos, já vinha a desempenhar”, afirma. Sidónio Monteiro, já tinha experiência nestas temáticas. Foi um dos elementos que montou um ministério até aí inexistente - o Ministério das Comunidades - o qual encabeçou como ministro durante mais de um ano. Sobre as suas novas funções como deputado da emigração, admite que “pode haver uma dupla leitura, com uns a defenderem que o deputado devia estar junto da emigração e com outros a defenderem o contrário”, no entanto sustenta que “este deputado deve estar onde se decidem os problemas, podendo influenciar as decisões que são tomadas. Este tem sido o meu papel, por forma a que, o trabalho alinhavado enquanto ministro, possa agora ser desenvolvido e concretizado, pois considero-o muito importante para o futuro das comunidades fora do país.” Para minimizar alguns dos condicionamentos impostos pela distância física entre o local onde são tomadas as decisões e o ponto onde essas comunidades se encontram, o deputado observa que, “tem-se


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"Temos que continuar a trabalhar por forma a melhorar as desigualdades sociais e isso deve ser motivo de preocupação de qualquer governo" apostado fortemente nas novas tecnologias, fazendo-se recurso a webtv’s e linhas telefónicas diretas

e gratuitas. Inclusive, através do portal porton de nos ilha, muitos dos nossos emigrantes conseguem obter, de forma imediata, variada documentação, tais como certidões de nascimentos e outro tipo de documentos.” Contudo, admite que há ainda muito a fazer, e que, “existem algumas deficiências, contra as quais estamos a trabalhar - nomeadamente, alguma demora na emissão dos passaportes dos nossos emigrantes nos Estados Unidos - mas que a curto prazo serão ultrapassadas”, afirma. Apesar de todo o crescimento económico e social de Cabo Verde nos últimos anos e ser um exemplo de boa governação em África, Sidónio Monteiro é da opinião que, “Cabo Verde ainda não atingiu a maturidade política e democrática”. Conforme justifica, “apesar de termos dado passos significativos na qualidade da governação e na implementação democrática, há ainda muito trabalho que tem de ser melhorado, sobretudo no que diz respeito a um dos aspetos fundamentais da democracia: a possibilidade de todos poderem ter acesso aos bens e serviços de igual forma. Enquanto não pudermos ainda dar esse tipo de acesso igualitário, penso que não podemos afirmar que a democracia esteja enraizada, pois a democracia não se refere apenas à liberdade de expressão ou à transparência dos processos governativos, tem também a ver com a parte distributiva. Temos que continuar a trabalhar por forma a melhorar as desigualdades sociais e isso deve ser motivo de preocupação de qualquer governo” e termina afirmando que “a diminuição do nível de desigualdade social, é, aliás, uma das prioridades do atual governo.”

Desejos futuros para a o Fogo Como foguense, Sidónio Monteiro tem o desejo que se continue a apostar na educação e formação, pois como refere, “quando fui pela primeira vez para o Ministério do Trabalho, disse para mim mesmo que, se a minha passagem por aquele órgão governativo me possibilitasse a criação de um centro de formação profissional na Ilha do Fogo - isto relativamente aos projetos específicos para a ilha - eu já me dava por satisfeito. O foguense, de uma maneira geral, é um empreendedor nato. Pela sua capacidade e brio, sendo-lhes dada a possibilidade de terem vias de comunicação, água e energia, conseguem certamente um nível de desenvolvimento aceitável e esse será o meu maior desejo para o Fogo: que se continue a apostar na formação, pois tudo o resto será uma consequência desse investimento.”


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E: Luís Neves | W: Diana Lopes | F: Pedro Matos

Empreendedores

José Silva

Resnascer o cultivo do café

no concelho dos Mosteiros

Contudo, uma nova esperança para o setor, proveniente de um consorcio holandês e cabo-verdiano, parece surgir em prol do desenvolvimento desta atividade com muitos anos de tradição. Investir nas áreas pós-colheita, através da modernização de meios, será uma prioridade a curto prazo. A substituição das plantas velhas é o passo seguinte. Conforme refere o agrónomo, “pretendemos introduzir 200 mil novas plantas nos próximos anos, que serão entregues, a título gratuito. Os proprietários só têm de aderir ao projeto, disponibilizar o terreno e deixarem-nos fazer todo o trabalho de levantamento de condi-

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café da ilha do Fogo, sempre foi considerado de excelente qualidade. No tempo colonial, ganhou prémios e medalhas. Era considerado o melhor café do império. No entanto, com o passar dos anos, o investimento neste setor foi decaindo, o que fez com que o seu cultivo, deixasse de ser rentável. Conforme diz José Silva, “o setor precisa urgentemente de investimentos, pois a par da idade de algumas plantas, faltam investimentos na correção dos solos e na modernização dos equipamentos de transformação e embalagem”.

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Exemplo de empreendedorismo e competência, José Silva, jovem agrónomo natural do Fogo, desde cedo se interessou pela planta do café, cultivada tradicionalmente nos Mosteiros, e que ainda hoje muito tem a oferecer a Cabo Verde. Formado em engenharia agrónoma pelo Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, José Silva sente-se orgulhoso e motivado, por poder contribuir para o renascer de uma indústria, que até à pouco tempo, encontrava-se estagnada e em vias de desaparecer.

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ção de algumas máquinas novas. Penso que será um marco e uma viragem para a produção do café na ilha do Fogo”, refere José Silva. Há igualmente projetos para a instalação de máquinas nas zonas altas de produção, o que contribuirá, de forma significativa, para a redução de custos. O processo permite ganhar tempo, o que significa ganhar dinheiro. Tal como explica o engenheiro agrónomo, “o processo que se pretende implementar nas zonas produtivas das montanhas, consiste na introdução de máquinas ecológicas que reduzem o consumo de água a partir do momento em que a colheita é feita e, imediatamente, fazem a debulha do café, o que o torna de melhor qualidade. Nesse aspeto, acho que estamos no bom caminho.” A formação é uma outra aposta do projeto. Produtores e futuros colaboradores, em parceria com especialistas brasileiros, receberão formação sobre os novos equipamentos e a melhor forma de os rentabilizar.

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ções do solo, para que as plantas se possam fixar corretamente. Com estas medidas, pensamos ter, dentro de 10 a 20 anos, melhorias significativas ao nível da produção.”

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Desde 1999, que existe uma associação de produtores de café na ilha do Fogo. O objetivo é a defesa dos interesses comuns e a valorização do produto. A associação conta com mais de 100 elementos, com uma produção média anual de 50 toneladas. O processo, é ainda muito artesanal, o que faz com que, por falta de articulação entre os diversos produtores, o preço final do produto seja elevado. “Todo o processamento é feito numa base rudimentar, caseira, tornando o resultado final muito dispendioso. No entanto, estamos numa fase de transição e modernização, com a instala-

"Com estas medidas, pensamos ter, dentro de 10 a 20 anos, melhorias significativas ao nível da produção."

A mudança de mentalidades é, contudo, um dos maiores desafios que o projeto de modernização enfrenta. A maioria dos produtores, são pessoas com alguma idade, que vêm a rentabilidade do projeto como algo que “já não é para o seu tempo”. Se a este pormenor, acrescentarmos o facto de muitos dos seus herdeiros não se interessarem pela atividade, verificamos que poderá vir a registar-se um problema de continuidade, con-


proprietários têm 50, 60 anos, preferem manter as plantas velhas para não terem nenhuma despesa, mesmo que a produção seja residual, pois acham que demora demasiado tempo a tirarem rentabilidade das novas. Por isso é que a replantação tem de ser feita de uma forma gradual, eliminando as plantas velhas e substituindo-as pelas novas, evitando-se assim quebras de produção. Ao substituirmos as plantas velhas por novas, mantemos a sustentabilidade do sistema e deixamos uma herança às gerações mais novas.” A produção de café, na ilha do Fogo, concentra-se essencialmente nas zonas altas dos Monteiros, onde o terreno é mais fértil e a produção é maior. Essas áreas poderão eventualmente ser alargadas para as zonas mais baixas do concelho, desde que haja disponibilidade de água para a irrigação. Segundo José Silva, “esse é o maior desafio relativo à expansão das áreas de cultivo. Juntamente com o ministério da agricultura, vamos tentar fazer uma experiência e ver até que ponto é rentável ter cafeeiros irrigados”. O sucesso desta experiên-

Elevar o café ao patamar de outros produtos agrícolas, tal como o vinho, que cresceu valorizado pelo apoio dos seus produtores e das entidades locais, é um dos objetivos de José Silva. Criar uma verdadeira indústria do café, “onde se introduza valor acrescentado ao produto, realizando todas as etapas da cadeia produtiva - deste o cultivo até à exportação do produto acabado - é o grande objetivo do projeto, pois impulsionará o setor, criará emprego e riqueza para toda a ilha do Fogo”.

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"hoje em dia, com a crise de emprego, os jovens têm de procurar cá dentro soluções que lhes deem alguma garantia, e a agricultura, sobretudo aqui no Fogo, possui novas potencialidades"

O futuro da atividade passa pela captação de jovens produtores. Apesar de ser um desafio, José Silva está confiante no sucesso da iniciativa, pois conforme refere, “hoje em dia, com a crise de emprego, os jovens têm de procurar cá dentro soluções que lhes dêem alguma garantia, e a agricultura, sobretudo aqui no Fogo, possui novas potencialidades, quer seja no domino das agroindústrias, quer na pecuária ou no agroturismo. Para que os jovens mudem essa mentalidade e passem de uma agricultura de subsistência para uma agricultura empresarial, terá de haver algum trabalho de sensibilização e motivação a par com alguns apoios técnicos e financeiros”.

O tempo decorrido entre a plantação e o momento em que se começa a colher os primeiros bagos, é também um dos problemas para o desenvolvimento desta atividade. Conforme explica o técnico, “desde que as sementes são colocadas em viveiro, até que se atinja um nível rentável de produção, poderá demorar até 20 anos. Como os

cia será determinante para os objetivos de produção futuros, em que, das atuais 50 toneladas, se pretende passar para as 300 toneladas ano.

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tudo, conforme refere José Silva, “aos poucos, a maioria vai aderindo à ideia, porque o projeto foi desenvolvido a pensar neles eles. Todos ficam a ganhar.”

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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Artigo de Capa

Vera Duarte

Por grandes causas, pela vida e pelas pessoas Nasceu no Mindelo, na ilha de São Vicente, onde captou as bases que viriam a formar a sua enérgica personalidade. Desde cedo se rendeu ao ambiente cultural emanado pela apaixonante ilha. Menina querida de São Vicente, parte para Lisboa com 15 anos de idade com o propósito de completar o 6º e 7º ano de escolaridade e depois o curso de direito. Os seus horizontes eram já mais largos que os que a sua vista conseguia alcançar.

"as emoções de dar voz às preocupações e condições da Mulher na nossa sociedade, foram fundamentais para o trabalho que viria a desenvolver."

O seu pai, um conceituado comerciante do Mindelo, tinha uma atração natural pela música e sempre que podia, reunia em casa amigos e músicos de toda a ilha, para com eles tocar guitarra ou piano. “Em nossa casa, tocaram nomes como Chico Serra, Cesária Évora, Celina Pereira, entre muitos outros. Como

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Igreja, ele ia muitas vezes assistir às nossas brincadeiras. Talvez tenha sido dos primeiros a despertar em mim o fascínio pelas letras”, confidencia.

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a infância guarda ternas recordações das tardes de domingo passadas na Praça Nova a ouvir tocar as bandas no coreto. As idas à praia da Matiota que já não existe - deixavam-na extasiada de felicidade. Aluna do liceu Gil Eanes, vivia a agitação da Rua de Lisboa e da marginal com especial encanto. Como vivia na Rua da Luz, tinha a Pracinha da Igreja à porta de casa, e era lá que ia brincar ao fim da tarde. Foi precisamente aí que começou a tomar contacto com alguns dos nossos maiores nomes da literatura. Conforme recorda, “sempre que visitava São Vicente, Jorge Barbosa - que na altura era já um homem com alguma idade e de porte imponente - hospedava-se numa casa que ficava no início da rua onde eu morava. Então, quando eu e os meus irmãos íamos brincar na Pracinha da

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além da guitarra o meu pai também tocava piano, depois das aulas, íamos para a escola de piano da Dona Bibi e da Dona Lili aprender a tocar por pauta”, lembra Vera Duarte. Foi uma infância rica em experiências culturais que iriam marcar de forma significativa a sua personalidade futura.

Dar voz à Mulher Cabo-verdiana

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O lado cultural da vida, é de facto o lado que mais apaixona a autora. Conforme diz, “é atualmente ao que me sinto mais apegada, pois passei um grande período da minha vida profissional ligada à magistratura e aos Direitos Humanos, atividades apaixonantes e que me motivaram grandemente”, no entanto, não esquece a sorte de em casa dos seus pais haver um ambiente ligado às artes, o que fez com que desde cedo descobrisse que através da poesia poderia expressar uma outra faceta da sua intervenção, precisamente o seu empenho por causas, nomeadamente as relacionadas com a violência contra as mulheres. Foi talvez a primeira grande causa pela qual lutou. Esse sentimento, foi-lhe despertado através de uma tia, “que sofria de maus tratos por parte do marido e que apesar

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da indiferença da sociedade de então, esta situação acabou por despertar em mim a necessidade de lutar contra esse flagelo da violência contra a Mulher”, confidencia. Até porque ela rebeldou-se e divorciou-se numa época em que as mulheres quase não se atreviam a tal.

"o simples facto de aqueles nomes da literatura terem expressado o seu apreço pela minha escrita, marcou-me profundamente para o resto da vida" Foi com base no combate à violência contra a Mulher, que Vera Duarte começou a formar uma opinião ativa ligada à emancipação feminina. Apesar dos seus primeiros poemas serem de caráter mais místico, a essência da luta pelos direitos das mulheres já lá se encontrava presente. Depois, e fruto de um processo de amadurecimento das causas pelas quais acreditava, escreveu com a preocupação de haver uma voz de pensamento feminino na literatura cabo-verdiana. Conforme comenta, a sua escrita fluí sempre que vê e sente que algo a emociona, “e as emoções de dar voz às preocupações e condições da Mulher na nossa sociedade, foram fundamentais para o trabalho que viria a desenvolver.” A literatura claridosa, um dos expoentes de glória dos nossos escritores, foi órfã em termos de vozes femininas, por isso, para a escritora, poder contribuir para a literatura cabo-verdiana associada à causa de dar voz à condição da Mulher na sociedade, foi motivo de grande orgulho e alegria. Iniciou-se anónima na participação em concursos literários, e através destes, começou a ganhar coragem para se expor e assumir publicamente as suas motivações e convicções. Um dos pontos mais marcantes da sua carreira literária, foi a participação, em 1976, num concurso promovido por Manecas Duarte, no âmbito das comemorações do primeiro aniversário da Independência Nacional. Nesse concurso, obteve


Mas nem só de literatura é feita a vida de Vera Duarte. O seu notável trabalho no campo da defesa dos direitos das mulheres, quer ao nível nacional, quer internacionalmente, marcaram o seu percurso profissional. Conforme diz, viveu “numa época propícia a este tipo de movimentos, no entanto, houve uma circunstância que foi determinante para o empenhamento pela causa das Mulheres, pois em criança, quer pela minha forma de estar e maneira de ser, questionava contrapondo ideias e pensamentos que me pareciam os mais justos. Todos diziam que eu havia de ser advogada. Lembro-me que na minha sala da 4ª classe - tinha eu então apenas dez anos de idade - quando a professora perguntou à turma o que cada um queria ser quando fosse grande - apenas eu respondi que queria ser advogada. Não era uma profissão vulgar, muito menos para uma criança daquela idade.” O certo é que foi para Lisboa e tirou o

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A luta pelos Direitos da Mulher

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uma menção honrosa, o que, para a escritora, no meio de uma comunidade literária feita apenas de homens, foi motivo de grande orgulho. Conforme recorda, “nesse concurso, Osvaldo Osório e Arménio Vieira, ficaram nos primeiros lugares, e depois apareci eu com uma menção honrosa, o que foi um feito extraordinário tendo em conta o escasso envolvimento das mulheres na literatura cabo-verdiana até aquela altura. Logo de seguida, recebi uma carta de Luandino Vieira a dar-me os parabéns e a expressar o seu interesse pela minha escrita. Luís Romano também me incitou e Arnaldo França - que é o veterano das letras cabo-verdianas - incentivou-me a escrever, e a não cometer o erro de outros autores que ficam à espera demasiado tempo para se lançarem. Eu ainda hoje agradeço esse conselho”, e conclui, “na altura, tinha apenas 21 anos, e o simples facto de aqueles nomes da literatura terem expressado o seu apreço pela minha escrita, marcou-me profundamente para o resto da vida”.

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Africana dos Direitos dos Homens e dos povos, CADHP, em que fui a primeira mulher a integrar esse órgão”, refere. Numa reunião realizada no Togo, e no papel de comissária da CADHP, Vera Duarte organizou um seminário onde propõe que a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos fosse completada com um protocolo adicional que incluísse especificamente os direitos da Mulher. A proposta foi aceite e endossada para a Comissão Africana que a adotou. É então criada uma comissão que incluía, entre outras organizações, membros da Comissão Internacional de Juristas, o que culminou com a aprovação do protocolo adicional à Carta Africana sobre os Direitos da Mulher, que entrou em vigor, no dia 25 de novembro de 2005, precisamente no Dia Internacional da Violência Contra as Mulheres.

"Uma das minhas maiores alegrias, enquanto ativista pelos Direitos Humanos da Mulher, foi quando fiz parte da Comissão Africana dos Direitos dos Homens e dos povos, CADHP, em que fui a primeira mulher a integrar esse órgão"

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curso de direito, o que fez dela a primeira mulher em Cabo Verde a exercer a magistratura. “Foi uma época muito interessante, pois apanhei em Lisboa o 25 de Abril de 1974, participei nos movimentos estudantis e contribuí para as lutas clandestinas, o que de certa forma, me motivou para as outras lutas que mais tarde viria a travar pelas causas sociais”, observa.

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Para Vera Duarte, a Mulher foi sempre uma causa prioritária. A agressão, a submissão e as tradições culturais degradantes foram as primeiras causas que a motivaram a iniciar a luta pelos direitos femininos. O direito e o exercício da magistratura (quando regressou a Cabo Verde após a sua formação, foi Procuradora da República e depois exerceu funções de juíza conselheira no Supremo Tribunal de Justiça), foram fatores que a ajudaram a tomar consciência e um conhecimento mais aprofundado da condição das Mulheres no mundo e em particular em Cabo Verde. Pouco a pouco, foi convidada a participar em organizações internacionais com interesses comuns pela problemática da Mulher. Tornou-se membro da Comissão Internacional de Juristas - que se empenhava na luta pela primazia do direito e da lei - foi membro da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, e ativista de várias outras organizações internacionais e nacionais ligadas aos Direitos Humanos. “A minha maneira de ser e de sentir, aliadas à minha carreira profissional, permitiram-me trabalhar nesta área, pela qual tenho um afeto muito pessoal, que é o das causas sociais, e em particular, as causas da Mulher. Uma das minhas maiores alegrias, enquanto ativista pelos Direitos Humanos da Mulher, foi quando fiz parte da Comissão

Conforme salienta, “esse momento foi bastante importante, pois representava a concretização e o reconhecimento de tudo o que eu acreditava.” Cabo Verde tornou-se independente em 1975, precisamente a meio da década que as Nações Unidas dedicaram aos Direitos da Mulher. Para Vera Duarte, “esta é uma coincidência interessante”, pois conforme nota, “tivemos um líder - Amílcar Cabral - que escreveu o que de mais belo se pode dizer em relação à Mulher. Cabral foi um homem



multifacetado, que a par da luta pela independência da Guiné e Cabo Verde, tinha uma sensibilidade fora do comum para as questões culturais. Como ele mesmo costumava dizer, a luta de libertação foi um ato de cultura, que na sua perspetiva foi elevado ao seu expoente máximo através das peças literárias por ele dedicadas à Mulher. Em 1956, a quando da redação dos primeiros estatutos do PAIGC, Amílcar Cabral referiu a igualdade do Homem e da Mulher. Só mais tarde, em 1979, as Nações Unidas aprovaram a convenção para a eliminação de todas as formas de descriminação contra as Mulheres, o que nos evidencia de forma clara como Amílcar Cabral era um homem à frente do seu tempo. Os seus discursos mais bonitos e marcantes foram redigidos quando falava das Mulheres ao exortar o Homem a trata-las com respeito e dignidade. À Mulher, exorta-a a fazer-se respeitar pelo trabalho e dignidade”, salienta.

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Para Vera Duarte, “essa confluência de fatores, foi fundamental para se atingirem os resultados atuais. As pessoas que vieram da luta pela libertação nacional, já tinham uma predisposição para a problemática da igualdade e equidade de género. Desde sempre que, as mulheres cabo-verdianas quer trabalhassem nas frentes de alta intensidade de mão-de-obra, quer se tratassem das que ficavam a cuidar dos filhos quando os homens emigravam, passando pelas mulheres da classe média, tais como professoras e enfermeiras - estiveram recetivas à mensagem da sua emancipação”, diz.

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No entanto, a questão das quotas da mulher na representação parlamentar nunca foi, para Vera Duarte, uma questão primordial na luta da emancipação. Apesar de terem-se travado algumas lutas na Assembleia Nacional para uma participação mais expressiva da representatividade da Mulher (inicialmente apenas havia uma mulher no parlamento), gradualmente foi-se aumentando essa representação e atualmente atingimos a maior quota de sempre. Contudo, “a maior preocupação inicial foi desenvolver um trabalho de base, que permitisse a participação gradual da Mulher na

sociedade, mas de forma estruturada e sustentável, nomeadamente com a alfabetização e formação, a introdução de legislação que ajudasse à mudança de mentalidades e que criasse mecanismos de proteção no campo laboral. Atualmente, após esse trabalho, já se atingiu um patamar bastante elevado de empoderamento da Mulher na nossa sociedade”, e acrescenta que, “Cabo Verde teve dos primeiros governos paritários de África. Tive o privilégio de integrar um governo formado por mais ministras que ministros. Éramos oito ministras e mais sete ministros encabeçados pelo Primeiro Ministro, Doutor José Maria Neves. É um exemplo do patamar atingido e para a sociedade civil é um claro sinal do que foi feito pela Mulher em Cabo Verde”, conclui. Vera Duarte é da opinião que “as sociedades africanas estão ainda numa fase bastante conflituosas, e que as mulheres no exercício do poder podem ajudar a diminuir drasticamente o nível de conflitualidade destas. O facto delas terem filhos e os acarinhar ainda no ventre materno, faz com que exerça uma maior resistência à opção por resolver os problemas pelo recurso às armas. Contudo, não partilho da opinião que as mulheres estejam mais capacitadas para as questões da governação, penso sim que o Homem e a Mulher se complementam, também para estas mesmas questões.

"Tive o privilégio de integrar um governo formado por mais ministras que ministros"


A história mostra-nos que os governos que integram mulheres, têm uma postura mais pró-ativa, apaziguadora e mais informal. As mulheres têm um sentido mais prático dos problemas, são mais pragmáticas nas suas ações, o que possibilita que obtenham mais resultados, em muito menos tempo.” Para a defensora dos Direitos da Mulher, “essa complementaridade deve ser incentivada a bem das sociedades”.

A responsabilidade da formação de bases Vera Duarte fez igualmente parte da governação do nosso país, ao assumir, durante um período, o cargo de Ministra da Educação e Ensino Superior. Para a ex-governante, “ser ministro de qualquer governo é um projeto de continuidade, pois quem chega ao cargo, tem por missão continuar o trabalho anterior, iniciar novas atividades e deixar o caminho preparado para quem vier a seguir”. Conforme reconhece, “por vezes há processos que, dada a sua complexidade, são difíceis de terminar num só mandato. Há contudo outros, que dadas as suas dificuldades, quando os terminamos, dão-nos uma satisfação especial”, e aponta o caso das salas de recurso para as crianças com Necessidades Educativas Especiais - um projeto iniciado durante o seu mandato. Recorda que, “ainda há dias, visitei a primeira sala de recurso para crianças portadoras de dificiências que inaugurámos em São Vicente a quando do meu mandato como Ministra da Educação, e fiquei bastante emocionada por ver que aquele projeto vingou e a sala é um contributo para o bem-estar dessas crianças especiais. Atualmente há salas de recurso no Fogo, no Sal e na Praia, e ver que elas contribuem para o conforto e o acompanhamento das nossas crianças é algo que me deixa bastante satisfeita e que me faz pensar que, apesar das dificuldades por que passámos para a sua implementação, os resultados obtidos superam em larga escala o esforço despendido.” Ainda antes de assumir a liderança do Ministério da Educação, Vera Duarte desempenhou funções como Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos e Cidadania. Nessa altura, a Comissão fez uma recomendação ao governo para o currículo escolar cabo-verdiano adotar a disciplina de Educação para a Cidadania, onde poderiam ser abordados todos os temas ligados à educação cívica dos alunos. Conforme diz, “tivemos a sorte do governo de então ter aceite a proposta e ini-

ciar o projeto de revisão curricular, que viria a culminar, por sorte minha, durante o meu mandato, da sua aprovação com a inclusão desta importante disciplina. Para mim foi uma alegria imensa e um privilégio poder ter contribuído com algo tão significativo para a formação de cidadãos mais conscientes, respeitadores e interventivos para o desenvolvimento do país.” Também ao nível do ensino superior, durante o seu mandato se registaram avanços muito importantes. Enquanto Ministra da Educação, Vera


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Duarte autorizou a abertura da UNISantiago, a primeira e até ao momento a única universidade a estar presente no interior do país, que conforme refere, “abriu a possibilidade de muitos alunos fazerem os seus estudos superiores sem terem de ir para Praia ou Mindelo”.

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Conforme recorda, “antigamente apenas uma pequena elite da sociedade tinha acesso à educação. Atualmente, embora ainda hajam assimetrias - nomeadamente ao nível económico - no que se refere à educação, esse fosso entre o povo e as elites foi substancialmente diminuído. O acesso ao ensino primário foi conseguido na totalidade e relativamente ao ensino secundário tem-se feito um esforço grandioso para que haja uma cobertura integral do território. Atualmente há escolas secundárias nos pontos mais remotos do país. Todos os jovens em idade escolar, têm uma escola secundária praticamente ao pé de casa. Longe vão os dias, em que para irem para a escola, os nossos pais tinham que acordar às quatro horas da manhã, para ás sete, depois de terem andado durante três horas, poderem ter uma aula. No que respeita ao ensino, temos evoluído muito.”

Atual problemática da delinquência juvenil No entanto, nem tudo são sucessos. O desenvolvimento que o país regista nos últimos anos, tem arrastado consigo muitos problemas de ordem social. Ultimamente, temos assistido ao crescimento da delinquência juvenil, da grande criminalidade, que têm no desemprego, uma causa comum. Para Vera Duarte, “estes problemas que atingem Cabo Verde, são no fundo, os mesmos que atingem a maior parte dos países no resto do mundo. Todos os países se queixam que a juventude está mais desagregada”. Um dos maiores flagelos mundiais no comportamento da juventude atual é a problemática da droga. Conforme refere, “a droga é a grande causadora de destruição individual e da desagregação do núcleo familiar. Os efeitos deste flagelo são devastadores. Não só para a pessoa que utiliza as drogas, que acaba por se autodestruir, como cria em seu redor, nomeadamente ao nível familiar, uma série de ruturas sociais expressas através da angustia e até de algum estigma”. O regresso forçado de muitos cabo-verdianos emigrados - ou dos filhos desses emigrantes, pois


dade ao qual a sociedade não estava habituada, com muita crueldade e desumanidade o que faz com que as populações andem bastante chocadas com este fenómeno social”, e sugere que “uma atividade no meio rural talvez seja a melhor saída para a sua reintegração e a normalização social”. No entanto, também admite que “muitos destes jovens não aceitam este tipo de trabalho, o que complica ainda mais a situação.”

Cabo Verde como referência democrática

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Alcançar os objetivos propostos, lutando contra as dificuldades da sociedade cabo-verdiana, tem servido para o fortalecimento democrático do país. Este esforço tem sido reconhecido internacionalmente, afirmando-se Cabo Verde como um exemplo de sucesso democrático no panorama africano atual. Vera Duarte considera que, “devido às difíceis condições de sobrevivência que existiram

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muitos deles são jovens de uma segunda geração - que não se adaptaram à sociedade que os acolheu, enveredando muitas vezes pelo caminho da marginalidade, é também um dos graves problemas que a sociedade atual tem de enfrentar. Para a jurista, “Cabo Verde vê-se com dois problemas: as pessoas que ao regressarem não tem trabalho; e o problema de ainda trazerem um historial de delinquência, com o qual o país tem de lidar. Têm-se criado algumas estruturas sociais que contribuem para a reintegração desses jovens, sobretudo na Brava e no Fogo, contudo, muitos deles preferem voltar para o país que os expulsou, o que faz com que estes jovens vivam situações muito conflituosas, o que irremediavelmente os conduz a ainda mais problemas. É uma situação social muito complicada, tanto mais que o país não tem possibilidade de proporcionar trabalho a todos eles”, e adianta que”muitos destes jovens trouxeram para Cabo Verde um tipo de criminali-

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durante muitos anos, as pessoas habituaram-se à solidariedade social. Numa mesma família podemos encontrar um médico, um servente, um professor ou um analfabeto. O certo é que as pessoas acabam por se sentar todas à mesma mesa, e dialogam e trocam ideias entre si, sendo as opiniões de cada um, respeitadas de igual forma”, e adianta que, “este aspeto acabou por gerar uma sociedade que é essencialmente democrática. Há ilhas que vivem a vida político-partidária com extrema leveza e isso faz com que a sociedade cabo-verdiana não se deixe dominar pela influência dos partidos políticos, torna-a uma sociedade democrática no pleno sentido da palavra. Não tenho dúvidas que no dia em que um dos partidos quiser tomar medidas mais radicais, as pessoas simplesmente não as irão aceitar”, e aponta o exemplo das últimas eleições presidenciais, em que “mesmo dentro dos próprios partidos políticos, há opções distintas. O facto de Cabo Verde ser um país pequeno, sem grandes conflitos internos, faz com que as pessoas interajam mais facilmente e consolidem de forma efetiva a nossa democracia. O nosso país é sem dúvida um exemplo da democracia em África e isto deve deixar-nos orgulhosos”, conclui.

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A espiritualidade dos ilhéus

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Apesar dos problemas e desafios que a sociedade cabo-verdiana enfrenta nos dias de hoje, a insularidade - essa constante da vida quotidiana - promove muitos aspetos positivos na personalidade dos ilhéus. Vera Duarte partilha da opinião que “é quase impossível encontrar um ilhéu que não tenha uma dimensão espiritual marcada, pois o facto de viver cercado pelo mar, ter consciência da finitude, e deparar-se com uma envolvência propícia à criação de mitos, torna marcante a sua dimensão espiritual”, e adianta que, “muitas vezes, face a essa finitude, a única fonte de energia é a sua dimensão interior. Essa consciência da interioridade espiritual, ajuda a tornar mais leve a vida nas ilhas”, diz. Para a escritora, “uma das grandes manifestações da dimensão da espiritualidade dos cabo-verdiano é sem dúvida a música, a literatura e a poesia.” Conforme observa, “num país que ainda não atingiu os 500 mil habitantes, é de facto impressionante a quantidade de pessoas que encontramos a escrever poesia, a fazer música e a expressarem-se através de alguma forma de arte. Estou convencida que escrevo poesia porque vivo nas ilhas.

"no dia em que um dos partidos quiser tomar medidas mais radicais, as pessoas simplesmente não as irão aceitar" O mar é a minha maior fonte de inspiração, por isso, é fácil estar em constante introspeção”. É talvez o fruto desta espiritualidade que faz mover a mulher, a governante, a magistrada, a poetisa. O ciclo repete-se e Vera Duarte volta a encontrar tempo para a sua paixão literária. Fruto de um percurso iniciado alguns anos atrás quando se encontrou com as professoras brasileiras Simone Caputo Gomes e Carmen Lúcia Tindó, Vera Duarte tem desenvolvido algumas atividades literárias no Brasil e brevemente irá lançar pela editora Nandyala da professora Íris Amâncio a obra “A Candidata”, que venceu em 2003 o prestigiado Prémio Sonangol da Literatura e posteriormente o livro “O Arquipélago da Paixão” com o poeta Wilmar Silva. Encontra-se ainda, a trabalhar num livro de crónicas de sua autoria, em parceria com a professora Christina Bielinski. Está neste momento a escrever um conto para uma obra coletiva em homenagem à escritora Clarice Lispector. Para breve, podemos ainda contar com mais um novo livro de poesia, que nos brindará, uma vez mais, com o seu característico espírito livre e apaixonado - por grandes causas, pela vida e pelas pessoas. 


Vera Duarte

A escritora Em reconhecimento da sua actividade profissional, cultural e cívica foi distinguida, entre outros: condecorada com a medalha Ordem do Vulcão pelo Presidente da República de Cabo Verde, no âmbito do 35.º aniversário da independência nacional (2010), condecorada com a medalha de Mérito Cultural pelo Primeiro Ministro de Cabo Verde no âmbito do 30º Aniversário da Independência de Cabo Verde (2005), a distinção Divas de Cabo Verde (2008), o Prémio Norte-Sul de Direitos Humanos, do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa (1995), a distinção Máxima em pioneirismo feminino (1995) e foi incluída no The World Who´s Who of Woman (1984 e 1986) e no International Register of profiles (1985).

2008 - Premio Divas de Cabo Verde pelo dia internacional da mulher; Medalha de Mérito Cultural pelo 30.º Aniversário da Independência, Praia, Cabo Verde; Prémio SONANGOL de Literatura, Luanda, Angola. 2001 - Prémio Tchicaya U Tam´si de Poesia Africana, Asilah, Marrocos. 1995 - Prémio Norte-Sul dos Direitos Humanos, Centro Norte-Sul do Conseil d´Europe, Lisboa, Portugal. 1995 - Distinção Máxima em Pioneirismo Feminino, Lisboa, Portugal; Inclusão no The World Who´s Who of Women; Inclusão no International Register of Profiles. 1984 - Inclusão no The World Who´s Who of Women; 1.º Prémio em Concurso Nacional de Poesia. 1976 - Menção Honrosa em Concurso Nacional de Poesia.

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Livros Publicados

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Como escritora, estreou-se na publicação com a obra poética Amanha Amadrugada (1993), a que se seguiram O Arquipélago da Paixão (poesia, 2001), A Candidata (Ficção, 2004), Preces e Súplicas ou os Cânticos da Desesperança (poesia, 2005), Construindo a Utopia - temas e conferência sobre direitos humanos (ensaio, 2007). Tem também variada colaboração em prosa e poesia em jornais, revistas e obras colectivas nacionais e internacionais. Destas cabe destacar entre outras: Across the Atlantic: An Anthology of Cape Verdean Literature (poesia, 1988), Cabo Verde, Insularidade e Literatura (prosa, 1998), Vozes da Cultura Cabo-Verdiana (prosa, 1998), Mirabilis de Veias ao Sol (poesia, 1998), Antologia da poesia feminina dos PALOP (poesia, 1998), Palavra de Poeta (prosa, 1999), Na Liberdade (poesia, 2004), Tchuba na Desert (contos, 2006), Destino de Bai (poesia, 2008) e Portuguesia Contraantologia (poesia, 2009). A sua obra tem sido objecto de estudos e teses de Mestrado e Doutoramento em Universidades Estrangeiras, nomeadamente na Universidade de São Paulo, Brasil.

Com a sua obra de estreia na escrita de ficção recebeu em 2003 o Prémio Sonangol de Literatura (Angola). Em 2001 o conjunto da sua obra poética foi distinguido com o Prémio Tchicaya U Tam´si de Poesia Africana (Marrocos). Em 1981 conquistou o 1º Prémio no Concurso Nacional de Poesia (Cabo Verde). E em 1976 obteve Menção Honrosa no Concurso Nacional de Poesia em Comemoração da Independência Nacional.

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Ainda tanto por descobrir

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Santo Antão

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W: Diana Lopes | F: Pedro Matos

História

Ilha de Santo Antão A descoberta de um exotismo peculiar A ilha mais a norte de Cabo Verde é marcada pela altivez das suas montanhas e pelos seus profundos vales, ostentando distintos contrastes paisagísticos. Sendo a segunda maior ilha do arquipélago, com uma área total de 779 Km2, a ilha de Santo Antão é detentora de uma variada gastronomia e da famosa aguardente de cana-de-açúcar, o inconfundível “grogue”, reconhecido além-fronteiras.

A criação de um lugar de vigário, em 1589, traz suspeitas de indícios da presença humana na ilha, possivelmente iniciada desde o final do século XVI, mostrando que Santo Antão foi povoado muito tempo depois da sua descoberta - setenta a cem anos depois - provavelmente,

As doações constituíram um sistema económico-jurídico transportado para os territórios africanos, refletindo uma das raízes medievais da colonização portuguesa dos séculos XV e XVI e possuindo, em regra, um carácter hereditário. O regime das doações concedia aos donatários amplos poderes económicos, jurídicos e administrativos. Os donatários usufruíam o direito de poderem explorar madeiras, corais, pescaria, moinhos de mão e pastos; jurisdição do cível e do crime, excetuando as penas de morte e de talhamento de membros, que eram apenas competências do Rei.

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com escravos provenientes da Costa Africana e europeus - embora estes em número mairs reduzido - e com mestiços oriundos de outras ilhas já então povoadas, nomeadamente as de Santiago e do Fogo.

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O

descobrimento da ilha de Santo Antão é desconhecido, mas sendo simultâneo ao das ilhas vizinhas - São Nicolau, Santa Luzia e São Vicente - e considerando a data de doação da ilha, a sua descoberta é, certamente, anterior a 1465. Segundo a tradição oral, a ilha foi encontrada no dia 17 de Janeiro de 1462, dia de Santo Antão. Visto que na altura era hábito atribuir ao lugar descoberto o nome do santo do calendário religioso, é bem provável que a data esteja correta.

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radores corajosos enfrentaram-nos, resultando numa morte e em muitos feridos de ambos os lados. Saindo vitorioso, o povo prendeu o Capitão-mor e os dois oficiais. A rebelião do povo contra as autoridades da ilha obrigou o Rei a adotar algumas medidas de precaução, ordenando ao Governador que colocasse um capaz morador da ilha, como feitor de Santo Antão. O crescimento progressivo de revoltas prende-se também pelo facto de, ainda nessa altura, a população de Santo Antão viver num estado de servidão lamentável, chegando a ser excluída de empregos públicos, civis e militares, o que já não se verificava em muitas das outras ilhas do país. Quanto à organização administrativa, como aconteceu nas outras ilhas, o sistema de doações precipitou uma política administrativa que obedeceu ao estabelecimento do sistema de Donatarias concedidas a Capitães Donatários na ilha de Santo Antão, estando durante mais de dois séculos, 1548-1759, na posse de donatários que usufruíam de direitos de exploração económica. À coroa era reservada, no entanto, a correção e domínio de todas as rendas, foros e direitos.

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Em 1759, a ilha foi novamente entregue à Coroa, depois de ter passado por diversas vicissitudes, inclusive ser vendida aos ingleses por um dos donatários, D. João de Mascarenhas, filho do IV Conde de Santa Cruz, na altura em Inglaterra. Todavia, os ingleses foram expulsos antes de se fixarem na ilha, ficando a mesma na posse da Coroa Portuguesa. O processo que se mostrou mais eficaz para a colonização das ilhas cabo-verdianas, consistiu, no entanto, na instituição de capitanias.

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No último quartel do século XIX, à semelhança do que vinha a acontecer nas outras ilhas do arquipélago, o clima de instabilidade social agravou-se, culminou em verdadeiras revoltas populares cujas dimensões causaram preocupação às instituições judiciais. Não encontrando justiça imediata em D. João V, o povo de Santo Antão resolveu ir contra os excessos do Capitão-mor Francisco Lima de Melo, fazendo justiça pelas próprias mãos. A favor do Capitão-mor estavam os oficiais da justiça e milícia. Porém, dirigidos por José Barranco, os mo-

A escravatura moderna foi uma instituição socioeconómica em que o senhor tinha todo o direito sobre os escravos. O escravo não possuía personalidade jurídica, sendo tratado como um objeto, apenas com obrigações e sem quaiquer direitos. No entanto, ao pedido de liberdade, o Rei respondeu com o decreto de janeiro de 1780, denomindado de “Lei do Ventre Livre”, em que todos os filhos de escravos passaram ao estado de livres. A partir de 1858, os escravos existentes passaram ao regime de trabalho servil por 20 anos, findos os quais eram considerados livres. Desta forma, a população da ilha teve uma evolução bastante significativa.


Os primeiros sintomas deste declínio foram a decadência económica e comercial com o exterior, a desagregação das estruturas morgadio-senhoriais e a intensificação da conflitualidade social, agravados pelas crises cíclicas da seca e das colheitas, levando a um longo período de depressão económica, o que despoletava ódio, motins e revoltas. Em relação à ilha de Santo Antão, a situação de fome era tão dramática que redu-

A revolta de 1886 foi um sinal explícito do descontentamento de uma sociedade rural ameaçada nas suas bases económicas, na organização social e no poder político, que caracterizou todo o território nacional nos anos difíceis de implantação do liberalismo em Portugal, que viria, no caso de Santo Antão, a culminar com uma grande revolta despoletada em 1894. Embora não tenham havido vítimas mortais, o número

A prolongada crise económica acentuou-se ao longo do século, provocando grandes alterações nas estruturas sociais, com o empobrecimento dos proprietários das ilhas no geral e da massa camponesa em particular.

A crise agrícola, a fome e a instabilidade política explicam o crescente descontentamento em relação à administração, assim como a persistência das revoltas ocorridas em Santo Antão e em Cabo Verde em geral. A intensificação da conflitualidade social, agravada pelas crises periódicas da seca, foram os principais sintomas do declínio do antigo regime colonial, estabelecido em Cabo Verde. A irreversibilidade da decadência resultava, não só do avolumar das contradições internas, como das mudanças do ambiente internacional, que pressionavam no sentido da transformação dos regimes coloniais e às quais o arquipélago não podia fugir.

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ziu a metade a sua população entre 1831 e 1833. Dos vinte mil habitantes que tinha, apenas onze mil sobreviveram ao ano de 1832.

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Nesse mesmo século, Santo Antão possuía terrenos férteis, sempre irrigados com bastante água, nos quais eram produzidos uma grande diversidade de produtos – cereais e legumes, plantas farináceas, frutíferas, pastagens, além de plantas tintureiras como o anil, o dragoeiro e a urzela que muito contribuíram para o desenvolvimento económico da ilha. Contudo, o clima inóspito trazia, por vezes, maus anos agrícolas provocados pela seca e pelas cheias decorrentes das chuvas torrenciais que muitas vezes punham em perigo a produção agrícola.

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de feridos foi relativamente alto, pois, ao que tudo indica, foi intenso o uso de armas de arremesso, além de ter havido tiroteio de pistola.

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Cada uma dessas rebeliões sociais teve o seu carácter específico e apresentou o seu grau de complexidade. A revolta de Paúl, Santo Antão (1894), em que mais de mil pessoas partiram de várias freguesias do Paúl e marcharam sobre Ribeira Grande, tendo-a ocupado durante cinco dias (a Praça do Concelho, a Câmara Municipal e várias repartições públicas), serviu para protestarem contra injustiças e vexames a que estavam submetidos e contra a sobrecarga da contribuição predial.

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Foi nesse clima de instabilidade e insegurança que Santo Antão entrou no século XX. Contudo, esse século trouxe uma nova época. A monarquia portuguesa aproximava-se do seu termo e a República anunciava-se - situação que se repercutia no ultramar, como no caso de Cabo Verde, onde há muito se aspirava uma mudança de regime, na expectativa de uma melhoria das condições de vida. Após 1975, ano em que as ilhas de Cabo Verde ascenderam à independência nacional, os habitantes pretendiam combater as injustiças

sociais no setor agrícola, setor esse carente de regulamentação. Surgiu então a lei de base da reforma agrária. Contudo, o projeto fracassou devido à elevada oposição da população rural, particularmente na ilha de Santo Antão, onde despoletaram, no conselho da Ribeira Grande, desentendimentos populares. Atualmente, a ilha Santo Antão está dividida em três concelhos – Paúl, Porto Novo e Ribeira Grande – e contém sete freguesias – Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Livramento, Santo Crucifixo, São Pedro Apóstolo, Santo António das Pombas, São João Baptista e Santo André. A agricultura e a pecuária possuem, presentemente, um peso relevante na economia da ilha que alberga uma gastronomia muito variada, sendo uma das receitas tradicionais a caldeirada de cabrito com feijão. A doçaria, também muito rica, fabrica o bolo de mel como uma das maiores especialidades. A aguardente de cana-de-açúcar que aqui se confeciona é também uma referência, sendo considerado o melhor ”grogue” de Cabo Verde, devido à bebida alcoólica ser ainda fabricada por métodos artesanais, num pequeno moinho mecânico movido a força animal e a fogo de lenha.


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W/F: Pedro Matos

Viagens

Santo Antão

Memórias de um viajante

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O Porto Novo tem vida própria, a que não é alheio o facto de acolher o porto marítimo, essencial ao desenvolvimento de Santo Antão. A azáfama das pessoas que aqui vivem e trabalham, apenas é quebrada com o calor do meio-dia. O comércio e os serviços estão na base da economia do concelho, o mais extenso dos três que formam a ilha. Contrariamente ao lado Norte, com os seus vales verdejantes, o concelho de Porto Novo mostra-se árido e agreste, o que dificulta a fixação das populações no seu interior. Confia nas praias de areia branca, tão ao

É no Porto Novo que encontramos o monumento nacional aos que partem para a diáspora na esperança de encontrar vida melhor. A mulher, que com a mão direita acena o lenço da saudade e que com a esquerda conforta e afaga o filho que fica, simboliza o sofrimento de um povo que desde sempre partiu, na esperança de vida melhor, deixando para trás os que mais ama.

A viagem é tranquila. “Sorte”, dizem alguns. O som cadenciado do motor do Tuninha, embala-nos ao sabor das ondas. Vem-me à memória a história que ouvi contar. Diz-se que antigamente, pela calada da noite, homens corajosos nos seus pequenos botes a remos, atravessavam este mar profundo e traiçoeiro, transportando para o Mindelo, a tão apreciada aguardente de cana-de-açúcar (o grogue) de Santo Antão, fugindo assim à imposição da lei seca e aos altos impostos que tinham que pagar - sempre elevados para quem vive do trabalho artesanal. Entretanto, já se distingue Porto Novo, estrategicamente posicionado como a “porta de entrada” para a ilha.

gosto dos turistas europeus, o futuro do seu desenvolvimento. Há que trabalhar as acessibilidades para esse lado da ilha, ainda recôndita e misteriosa para quem a visita.

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Tuninha está pronto para zarpar. Ao longe, em todo o seu esplendor, vislumbra-se a majestosa e imponente ilha de Santo Antão. Parece que está já ali, mas conforme se ouve dizer no convés, “são 45 minutos sempre a navegar”. Hoje, a ondulação está serena, e sabe bem sentir a brisa da manhã, misturada com o cheiro a mar, mar de canal, como gostam de lhe chamar.

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A estrada nova que liga o Porto Novo ao outro lado da ilha, parece-me convidativa. Dizem-me que “aproximou as pessoas e encurtou a ilha”. Talvez no regresso. Por agora, quero sentir o coração de Santo Antão. Vou pela estrada antiga, aquela que ziguezagueia a montanha e que expõe a verdadeira essência destas gentes. Tal como era de esperar, não me arrependo. A grandiosidade da paisagem, resigna-nos à humilde condição de meros mortais. Na íngreme subida, posso apreciar a pozolana, ainda hoje utilizada em muitas das construções da ilha.

seus vales largos e fartos, aproveitados quase na totalidade para a plantação de cana-de-açúcar, inhame, milho, feijão, batata doce, couve e outras hortícolas.

Lá no alto, onde a aridez se junta ao verde, podemos admirar ao longe as povoações de Chã de Pedra e Corda. Ao olharmos o horizonte, temos a sensação de estarmos em outro qualquer país que não Cabo Verde. A vegetação frondosa, com pinheiros, eucaliptos, acácias e algumas figueiras, fazem-nos esquecer a esterilidade que deixámos para trás. Estes íngremes cumes, formam uma barreira natural que aprisiona as parcas nuvens atlânticas, impedindo-as de chegarem ao outro lado da ilha.

A vida corre serena por aqui. Dispersas pelas encostas, as casas - feitas de seixos minuciosamente trabalhados e que se encaixam na perfeição - vivem o presente, mas guardam memórias passadas. Memórias de tempos difíceis, de sofrimentos guardados e de consciências amargas, de para quem a vida nunca foi fácil.

Descoberta por volta de 1460, a ilha de Santo Antão é das poucas no arquipélago onde ainda chove, o que contribui significativamente para a riqueza dos seus solos. Os seus grandes picos montanhosos, muitos deles com mais de mil metros de altitude, alternam com os

Deixo-me levar pelos vales da Ribeira Grande e do Paúl, onde o tempo parece não passar. Entendo agora todo o potencial turístico que frequentemente ouço enumerar. Haverá poucos destinos perto da Europa, onde ainda se pode encontrar a genuinidade da natureza, onde coexistem bananeiras e coqueiros, fruta-pão e papaias, amendoeiras e acácias.

Começo a descer a sinuosa estrada “velha”. Interrogo-me como podem cruzar ali dois automóveis. Conduzir nestas estradas de alta montanha, muitas delas esculpidas na própria rocha, é algo a que os santantonenses acham natural. Aqui não pode haver pressa de chegar. Uma distração significa o fim... do percurso e da vida. Aprecio, ao longe, a cidade da Ribeira Grande, ali mesmo no cruzamento de várias outras ribeiras. O movi-


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mento é contrastante com o que deixei para trás, lá no alto da montanha. As pessoas nos seus afazeres diários, os veículos a circular, os edifícios públicos, os bancos, o comércio, e as escolas, dão vida a esta cidade contornada por montes verdes e mar azul. É afinal o centro do concelho, porta de partida para as povoações vizinhas. Aqui habita vinte e cinco por cento da população do concelho, com as restantes dispersas por quatro freguesias. Aqui se situa, fruto da cooperação luxemburguesa, o hospital regional de Santo Antão. Aqui fervilha a vida do norte da ilha.

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Viro à esquerda, em direção à Ponta do Sol. A estrada à beira-mar é repousante e permite apreciar o contraste das montanhas, com o anil do mar. Ao longe, avista-se a outrora pista de aterragem, que permitia a ligação aérea de Santo Antão às outras ilhas. Dizem-me que se encontra desativada devido a um acidente, ocorrido em 1998, onde perderam a vida todos os dezoito ocupantes do pequeno avião. Imagino como deve ser preciso ser corajoso para sobrevoar estas cordilheiras montanhosas, com muitos dos seus picos a rasgar os céus. Espero

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que um dia a reativem. Irá, certamente, impulsionar a economia da região. Chego ao ponto mais a norte do arquipélago. A Ponta do Sol, com o seu casario disperso e que mantém a traça colonial portuguesa, é uma vila aconchegante, que alberga toda a parte administrativa do concelho da Ribeira Grande. O largo do município, com os Paços do Concelho e a igreja de Ponta do Sol, convivem lado a lado, partilhando o magnifico jardim, com inúmeras palmeiras, tamareiras e coqueiros. Da câmara municipal sai uma rua, anormalmente larga para os padrões da região, que segue em direção ao mar. Guio-me por ela para chegar à comunidade piscatória de Ponta do Sol. Ao fundo a imensidão do atlântico. Os barcos estão em terra. Amanhã será outra campanha árdua. Por agora é tempo de amanhar o peixe e remendar as redes. A câmara municipal, o tribunal, as finanças, a cadeia, os correios e o centro de saúde do concelho - onde outrora trabalhou como médico o então exilado Dr. Agostinho Neto - fazem de Ponta do Sol uma vila acolhedora,


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que começa agora a despontar para os benefícios do turismo. Pesca desportiva, mergulho e montanhismo alinham-se para apoiar no desenvolvimento de Ponta do Sol e do concelho da Ribeira Grande. A tarde vai a meio. Convidam-me para visitar, ali bem próximo, as Fontainhas. Prometem-me uma paisagem deslumbrante e muita aventura. Ao começar a subir a íngreme montanha, numa estrada que me parece impossível percorrer, percebo o porquê. Enormes penhascos despontam do oceano. A estrada parece-me ficar cada vez mais estreita, o que me leva a questionar se o carro, não terá também ele, se contraído. Estamos a centenas de metros acima do nível do mar, num fio de terra a que chamam de estrada. Lá longe, nas minhas costas, Ponta do Sol não passa de um pequeno e seguro porto de abrigo no meio do oceano. Subo lenta e cuidadosamente as escarpas da montanha. Os seixos soltos dão a sensação que irão desabar a qualquer momento. Curva após curva, penhasco após penhasco, até que finalmente, deparo-me com o presépio vivo de Santo Antão: as Fontainhas. É autentica poesia na natureza. Aprecio a paisagem de cortar a respiração, mas acima de tudo, aprecio a garra desta gente, que nos mais inóspitos montes, com o suor dos seus rostos, com a determinação da sua alma, e com o engenho do querer, moldaram a paisagem agreste e aparentemente intransponível, para dela tirarem o sustento dos seus filhos. Os socalcos das Fontainhas, representam o espírito dos cabo-verdianos, que todos os dias lutam contra as adversidades da natureza. Custa-me abandonar este local. Algo de magnético e transcendente mantém-me o olhar preso a esta fascinante aldeia e às suas gentes. Mas o sol está a começar a pôr-se e são horas de regressar. Estava cumprida a promessa: aventura e deslumbramento. Para passar a noite, sugerem-me Pedracin Village, um local paradisíaco, situado em Boca de Coruja, em pleno vale da Ribeira Grande. Não era exagero, é realmente o paraíso na terra. Ladeado por encostas íngremes de montanhas rochosas, encontrei um hotel rural, exemplarmente mantido e administrado pelo amigo Jopan, que recriou, em plena encosta da montanha, a tradição das habitações de antigamente. Com quartos modernos e confortáveis, um serviço de qualidade irrepreensível e um ambiente familiar típico das gentes de Santo Antão, Pedracin Village é o exemplo perfeito do empreendedorismo e da visão que se espera para toda a região: aproveitar as condições naturais e ímpares destas ilhas, proporcionando aos seus visitantes serviços de qualidade.

Deleito-me com a gastronomia típica da região. Os sabores da comida natural, fazem-me recordar tempos de infância. O peixe fresco, o cabrito ou o marisco. A dificuldade é escolher. Para sobremesa, o doce de papaia acompanhado por queijo de cabra feito no Porto Novo, ou o pudim de coco, que é uma das especialidades do arquipélago. Passo o resto do serão à beira da piscina, a saborear um grogue velho e a ouvir os Corda do Sol, um reconhecido agrupamento musical daqui de Santo Antão. Não me posso esquecer de amanhã ver como ainda há quem produza o grogue da forma tradicional, com o trapiche - como por aqui se chama - a ser alimentado pela força de uma junta de bois!


O dia amanhece calmo e tranquilo, como toda a paisagem envolvente de Pedracin. Dois dias na ilha são pouco, para o muito que há para explorar e conhecer. A cachupa - prato tradicional cabo-verdiano feito de milho, feijão, carne de porco e peixe variado - estava divinal. Iria reconfortar o estômago até à hora do almoço. Próximo destino? O Paúl, esse frondoso vale, porventura o mais verdejante de Cabo Verde. A entrada para esta bonita localidade é feita pela avenida marginal. A sua praia rochosa é muito apreciada pelos adeptos dos desportos radicais, que nas suas ondas bem formadas, praticam surf e bodyboard. O centro acolhe a remodelada câmara municipal e a praça do município. O busto do português João Baptista Oliveira, permanece intocável, lembrando tempos de outrora. Como é bonita a Vila das Pombas, a cortar a foz da ribeira do Paúl!

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O vale da ribeira é extremamente pronunciado, tendo as suas encostas sido aproveitadas para a agricultura, recorrendo-se às técnicas dos socalcos e de sistemas

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de levadas para a irrigação. É extremamente fértil, produzindo cana-de-açúcar, mandioca, banana, papaia e muitas outras variedades de frutos tropicais. Aprecio a paisagem fértil, sempre pincelada por árvores de fruta-pão, coqueiros e papaieiras. É neste vale que vejo pela primeira vez um dragoeiro, a árvore liliácea rara e símbolo nacional de Cabo Verde. Por todo o vale, vejo trapiches em plena atividade. Lembrei-me que está na altura de visitar a fábrica de grogue, que ainda o produz da maneira tradicional. A cana-de-açúcar, quando está madura, é recolhida das encostas íngremes de Santo Antão. Distribuídas por fardos, são transportadas muitas vezes à cabeça das mulheres, que as depositam na velhas destilarias. Tradicionalmente, usava-se a força dos animais para esmagar as canas e recolher a preciosa calda, de cor esverdeada. Atualmente, pequenos motores realizam esta operação, no entanto, há ainda quem trabalhe de forma tradicional, e os bois são importantes aliados na produção deste bem, que contribui significativamente para a economia da região. A calda de cana é armazena-


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da durante algum tempo em pipas, enquanto fermenta. Só depois deste processo é que se inicia a destilação. Dos alambiques tradicionais, aquecidos a lenha, sai então o famoso grogue de Santo Antão, bebida forte e espirituosa, tão apreciada por nacionais e estrangeiros. É desta aguardente de cana que se faz os não menos famosos ponches e licores de Santo Antão. O dia já vai longo. Resolvo voltar à Vila das Pombas para apanhar a estrada que me levará até Janela - uma pequena e simpática aldeia a norte do concelho do Paúl - e depois de volta a Porto Novo. Olho uma última vez este magnífico e produtivo vale, com as sua gente laboriosa e empenhada, e prometo um dia voltar. Apanho a estrada nova, a tal que aproximou as pessoas e encurtou a ilha. É sem dúvida uma obra merecida e que está a contribuir de forma decisiva para a melho-

ria das condições de vida das populações. É uma via moderna, segura e de grande beleza paisagística. Dois túneis escavados no coração da montanha, separam a parte norte do sul da ilha. Quarenta minutos nos separam agora do Porto Novo. Regresso novamente às paisagens áridas, entrecortadas por montes vulcânicos despidos de vegetação. Ao longe Santa Luzia, ali ao pé São Vicente e pelo meio, o mar, essa fonte de vida, de agruras e esperança, sempre omnipresente na alma dos cabo-verdianos. Tenho de voltar um dia, tenho de voltar um dia! O pensamento não me sai da cabeça, e de regresso ao barco com destino a São Vicente, olho para Santo Antão e vejo que ele continua ali, imponente e majestoso, mas agora para mim, muito mais bonito e pleno de significado. Vou voltar um dia. 


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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Municípios

Amadeu Cruz

Apostar nas políticas económicas e de crescimento Formado em economia pela Universidade Nova de Lisboa, Amadeu Cruz é pragmático quanto ao futuro da sua terra natal, a qual preside desde 2004. Santo Antão é a segunda maior ilha do país e a cidade de Porto Novo, o seu maior centro urbano. Apostar no ensino e na formação qualificada dos jovens tem sido a sua grande prioridade. O investimento empresarial, as infraestruturas e a promoção da inclusão social, serão as suas apostas futuras.

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Como caracteriza o tecido humano do seu município? É um concelho jovem, com apenas vinte por cento de pessoas idosas com mais de 65 anos. Porto Novo é o único município de Santo Antão que continua a crescer em termos demográficos. Ao contrário de outras ilhas do país, há aqui uma ligeira prevalência do sexo masculino. Temos cerca de cinquenta e um por cento de homens. Penso que tal se deve ao facto de, numa determinada fase, ter havido mais emigração de mulheres para Itália, França e Espanha.

Paralelamente à agricultura, a pastorícia e as pescas (Porto Novo acolhe o principal banco de pesca do país), também contribuem para o desenvolvimento económico do concelho. Contudo, na cidade do Porto Novo vive-se essencialmente dos serviços e da tradição portuária. O seu porto marítimo é passagem obrigatória de todos os produtos que entram e saem da ilha.

Mais de metade da população do Porto Novo, concentra-se na cidade. Apesar disso, a parte rural do concelho apresenta-se com grande força e pujança, quer pela tradição e vigor económico do passado, quer pela perseverança e empenho no presente.

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esde sempre considerada como o “celeiro do país”, Santo Antão baseia a sua economia na exploração agrícola. A agricultura de sequeiro, com grande enfoque na produção de milho, feijão, batata e hortícolas, compete com a agricultura de regadio, com especial destaque para a produção de cana sacarina, de onde se produz o grogue, o principal produto da região.

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E qual o nível de qualificação dos seus munícipes? O nível de qualificação dos nossos jovens cresceu muito nestes últimos anos. Possuímos dois estabelecimentos de ensino secundário - sendo um deles uma escola técnica - que servem uma população escolar de aproximadamente quatro mil pessoas. O nosso principal investimento, que embora não sendo visível é fundamental para o futuro de Santo Antão e de Cabo Verde, tem sido no setor da educação. É um investimento que a sociedade não vê, mas é um investimento que dará frutos no desenvolvimento futuro do Porto Novo. Há que criar as bases para que os nossos jovens tenham uma expectativa positiva em relação ao seu bem-estar futuro, à felicidade pessoal e à satisfação coletiva da sociedade.

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Temos feito um esforço muito grande no setor da educação, disponibilizando os apoios possíveis, dentro da atual conjuntura financeira da câmara municipal, por forma aos jovens terem acesso às redes de ensino. Destacaria o pré-escolar, com uma rede alargada de jardins

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“Há que criar as bases para que os nossos jovens tenham uma expectativa positiva em relação ao seu bem-estar futuro” de infância, o que permite que as crianças em meio rural tenham iguais oportunidades às que vivem na cidade. Ao nível do ensino técnico-profissional, mantemos parcerias com escolas em Portugal da mesma forma que, em relação ao ensino superior, temos ajudado muitos jovens a concluírem os seus estudos, quer aqui em Cabo Verde, quer no exterior. E no campo da saúde? O facto do hospital regional se encontrar no outro lado da ilha é uma condicionante para a qualidade dos serviços de saúde prestado pelo Porto Novo? De forma alguma. O hospital do Porto Novo, em conjunto com a rede de prestação de cuidados primários de saúde que se encontram distribuídos pelo concelho, está ao nível da média nacional. Tem havido nestes últimos anos uma avanço extraordinário nos indicadores de saúde no país, e o Porto Novo segue esta tendência. Registou-se também um aumento da esperança de vida da população, para certa de 76 anos, o que é bem elucidativo dos avanços que temos vindo a registar. Para isso, contribui o elevado grau de cobertura do abastecimento de água que o município possui. Houve também grandes melhorias ao nível do saneamento. Estes dois fatores juntos, propiciam condições para a melhoria dos indicadores de saúde da nossa população. Ao nível dos investimentos empresariais, que trazem riqueza para toda a ilha, o que é que está a ser feito? A esse nível, temos ainda que vencer alguns preconceitos relativos ao investimento privado, que é crucial para o desenvolvimento das nações em todo o mundo e aqui não somos exceção. Em Cabo Verde, pelo menos em alguns segmentos da nossa economia, há ainda complexos em relação a este assunto. Este


Quais os tipos de indústria transformadoras de suporte à agricultura, que existem em Santo Antão e em particular no Porto Novo?

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Apesar de não ser uma área onde a câmara municipal possa intervir diretamente, temos feito um esforço para contribuir para a elimi-

nação destas barreiras políticas, ideológicas e culturais, e que muitas vezes se entrepõem ao investimento produtivo. Estes dois fatores contribuem ainda para as taxas de desemprego que registamos. Sem investimento, não existe emprego, e gera-se a pobreza e a exclusão. Por isso, enquanto cidadão com responsabilidades governativas, trabalho para que haja educação e investimento. A partir destes dois pontos-chave, será então possível construir a justiça social, a promoção da inclusão, o bem-estar e a felicidade das pessoas.

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problema coloca-se independentemente de onde vier o investimento: se for por via de investidores externos, levanta-se a questão da venda das terras - que tem um valor político muito forte devido à elevada carga de populismo e ideias preconcebidas com o prejuízo que isto acarreta - se for por nível do investimento interno, temos um problema cultural enraizado na sociedade, com os constrangimentos que nos impomos a nós mesmos. Isto cria algumas dificuldades na perceção da importância das empresas na sociedade cabo-verdiana.

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A principal indústria, embora ainda de base artesanal, é a produção do grogue a partir da cana-de-açúcar, que é o principal produto de cultivo. No entanto, aqui em Porto Novo, há também o cultivo de hortícolas e frutícolas, daí haverem algumas pequenas unidades de transformação de concentrados de sumos. Há ainda a produção de licores e de compotas.

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Acha que Santo Antão estará capacitado para receber outro tipo de indústrias, que não as agroalimentares, contribuindo assim para a economia da ilha? Claro que está. A prova é a presença em Porto Novo de indústrias de transformação de matérias primas, tais como a fábrica de cimento de pozolana, uma rocha bastante abundante aqui no concelho. Mas há potencial para a instalação de outras indústrias. Apenas depende das opções do desenvolvimento do país, nomeadamente das políticas de industrialização de Cabo Verde.

E que outras indústrias se poderiam aqui instalar? A indústria têxtil, por exemplo, que poderia encontrar aqui em Santo Antão um espaço privilegiado. Possuímos recursos humanos capacitados, com formação profissional em várias áreas e que, associados ás condições endógenas da ilha, às boas acessibilidades, à disponibilidade territorial e às infraestruturas de telecomunicações e energia, seriam uma mais-valia para qualquer projeto industrial que aqui se pretendesse fixar. Contudo, temos ainda que transformar estas vantagens em excelências competitivas, por forma a que os investidores se sintam atraídos a investir em Cabo Verde. E o turismo? É um complemento válido em Santo Antão? Regista-se já um incremento na procura de Santo Antão como um destino turístico. Temos a presença regular de turistas provenien-


tes do centro da Europa que procuram essencialmente uma oferta diferenciada, mais virada para a natureza. Santo Antão pode oferecer essa diferenciação. Não concorrendo diretamente com outros destinos internos - mais vocacionados para o turismo balnear - é singular na oferta de um turismo alternativo, que privilegia a natureza e o contacto direto com as populações, etnografia e cultura. As melhorias que estão a ser feitas ao nível do porto marítimo darão um contributo a essa captação turística? Sem dúvida. Apesar de o porto marítimo, em termos de profundidade e dimensão, não ter as condições necessárias para receber cruzeiros de grande porte, pode acolher passageiros que nos visitem em navios de menor envergadura. No entanto, as melhorias que estão a ser realizadas ao nível do porto marítimo, não irão dispensar a necessidade do aeroporto. Se quisermos oferecer os nossos serviços turísti-

cos diretamente aos mercados emissores, necessitamos de um aeroporto capaz de receber voos de médio curso, provenientes da Europa e da costa de África. Sendo o Porto Novo a “porta de entrada e saída” da ilha, qual é a importância dos avultados investimentos que estão a ser realizados no seu porto marítimo? É essencial para o futuro do Porto Novo e de todo Santo Antão. Com as obras agora em curso, que incluem a construção de um terminal de passageiros, o Porto Novo ficará com excelentes condições para o tráfego de passageiros. Será talvez dos melhores terminais portuários do país. Em relação à carga, o porto não terá as dimensões que seriam ideais para uma exploração comercial de larga escala, no entanto, possuirá um terminal de contentores que estará à altura das necessidades do município


e de toda a ilha. Será um porto que poderá servir de alternativa ao Porto Grande, caso haja necessidade de tal. É contudo necessário que haja uma articulação forte entre o porto de São Vicente e o de Santo Antão, tanto ao nível internacional de tráfego de cargas, como ao nível doméstico. A par deste grande investimento, que outras melhorias estão pensadas para o concelho? Precisamos de fixar as pessoas à terra, para que em conjunto a possamos desenvolver. Para isso, são necessárias políticas urbanísticas sólidas, planos para a implementação das redes viárias, de esgotos, de abastecimento de água e eletricidade, em consonância com todos os outros serviços de apoio ao desenvolvimento económico. Este tem sido o nosso esforço nestes oito anos à frente dos destinos de Porto Novo.

muitos desses setores. Apesar de não termos essa competência, penso que deveríamos, de alguma forma, poder começar a apoiar diretamente os agentes económicos nesses setores chave da nossa economia, disponibilizando, por exemplo, os serviços de veterinária para os produtores animais, uma central de importação de fatores de produção - tais como sementes, utensílios e artefactos agrícolas - para a comunidade de agricultores da região, entre outras ações que permitam impulsionar a atividade económica do concelho. Temos falado muito de economia. E a cultura? Descreva-nos algumas das atividades culturais da ilha. A ilha de Santo Antão possui uma cultura muito variada. Do lado do Porto Novo, destacam-se as festas de São João, uma das maiores manifestações culturais do país.

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Esta festa, induz diversas manifestações artísticas e culturais. Desde o artesanato, à música, passando pelas danças tradicionais de Kola San Jon. Tem a particularidade de a imagem do Santo não ficar na cidade do Porto Novo, mas sim, na igreja de São João Baptista, situada na localidade de Ribeira das Patas, que fica a cerca de 20 quilómetros da cidade. O Santo é trazido para a cidade a 23 de junho e regressa a 25. Todo o percurso é feito a pé, numa grande peregrinação, normalmente com mais de 5 mil pessoas. Ao longo do percurso, surgem os tambores, a música e as danças.

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Reconhecemos, no entanto, que há pobreza na nossa sociedade, daí o facto de termos de continuar a investir ainda mais nos aspetos sociais. Precisamos de continuar a investir na reabilitação e requalificação habitacional. Mais do que construir casas de raiz, a nossa grande aposta será a reabilitação e a requalificação das habitações existentes, dotando-as de melhores condições. Temos também que modernizar os nossos setores produtivos, nomeadamente a agricultura, a pecuária e as pescas. Temos que combater a estagnação que se instalou em

A produção de grogue, também está associada a uma manifestação cultural muito forte: o Kolá Boi, que é um tipo de canção de trabalho das gentes de Santo Antão. Existem ainda as festas tradicionais do casamento e do batismo, com forte participação da música tradicional do interior da ilha. Paralelamente, temos a produção do queijo tradicional que encerra também uma componente cultural muito grande. O teatro encontra-se bem representado com o grupo Juventude e Marcha, que é uma referência nacional do nosso teatro popular. Também acolhemos o grupo musical Cordas do Sol, que no ano passado foi considerado o melhor grupo musical de Cabo Verde, e que se preocupa em divulgar a tradição oral da nossa ilha.


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jetarmos o nosso futuro. As gentes de Santo Antão desde sempre que têm tido uma participação muito ativa na construção da nacionalidade cabo-verdiana, na construção do Estado cabo-verdiano e na promoção da liberdade e da democracia em Cabo Verde.

Martinho Nobre de Melo

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Um aspeto interessante relativamente à cultura, é que uma grande parte dos claridosos tinha aqui residência. É o caso de Baltazar Lopes, que apesar de ser originário de São Nicolau, tinha aqui uma casa. Foi em Santo Antão que terá escrito a maior parte das suas obras. Martinho Nobre de Melo, que foi o único cabo-verdiano que concorreu à presidência da república portuguesa ainda antes do Estado Novo, é oriundo do Porto Novo, mais concretamente da Ribeira das Patas. Há muitos exemplos de cabo-verdianos ligados à cultura que são naturais de Santo Antão.

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Se recuarmos no tempo, verificamos que os santantonenses tiveram uma participação ativa na implementação da república em Portugal. Grandes generais do exército português, ainda no tempo colonial, eram provenientes de Santo Antão. A Independência de Cabo Verde, contou com uma participação ativa dos santantonenses. Uma grande parte dos primeiros membros dos governos pós-independência são originários de Santo Antão. Estivemos na origem das primeiras revoltas contra a existência do partido único, com as primeiras manifestações a surgirem aqui em Santo Antão por volta de 1977. Em 1981 fizemos a revolução da Ribeira Grande, com a reivindicação da reforma agrária, sempre promovendo a liberdade. Tal facto é motivo de grande orgulho para as nossas gentes, o que permite que utilizemos as glórias do passado para pro-

Como político que é, e com uma tarefa governativa importante, acha que o poder institucional hoje em Cabo Verde, tem o peso e o reconhecimento suficientes para que o futuro democrático do país se mantenha? Não vejo nenhum perigo para a democracia cabo-verdiana. É uma democracia sólida, com alternância política e multipartidária. Há uma livre expressão das convicções e das vontades políticas, por isso, acredito que a democracia em Cabo Verde é cada vez mais firme e não corre qualquer perigo. Não devemos estar muito longe das democracias mais avançadas. O poder é exercido no quadro democrático através do reconhecimento da liberdade política e de pensamento. O governo é respeitado no contexto internacional, defendendo os interesses do país, e colocando as pessoas em primeiro lugar. Apesar de pertencer a um partido da oposição, posso afirmar que o governo não nos envergonha no contexto internacional. Penso que, quer no partido agora no governo, quer no maior partido da oposição, existem quadros suficientes de reconhecida capacidade, preparados para governar o país. O facto de termos, atualmente, em Cabo Verde, um presidente da república proveniente de uma área política distinta da do governo, é prova da nossa consolidação democrática. Se nos mantivermos fieis a estes princípios e se os dirigentes cabo-verdianos continuarem nesta linha de humildade, serenidade e respeito pela diferença, penso que a nossa democracia continuará a ser um exemplo em todo o continente. 

“(...) posso afirmar que o governo não nos envergonha no contexto internacional.”


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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Municípios

Orlando Delgado

Ribeira Grande um concelho em permanente evolução Formado em engenharia civil pela Universidade de Coimbra, Orlando Rocha Delgado, sempre teve por objetivo contribuir para o desenvolvimento da ilha onde nasceu e se criou. Em toda a sua carreira profissional, viu-se sempre envolvido em projetos relacionados com o desenvolvimento e o bemestar socioeconómico dos ribeira-grandenses. Foi coordenador do Gabinete Técnico Intermunicipal de Santo Antão e, desde 2005, assume o cargo de presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande.

Estas duas cidades albergam 25% da população da ilha. O mesmo é dizer que, 75% das pessoas vivem no interior dos vales ou nos planaltos de Santo Antão. É uma população essencialmente rural, dedicada fundamentalmente à agricultura, à suinicultura e à pecuá-

ria. Estes três eixos de desenvolvimento, absorvem mais de 75% da sua população.

Com uma população jovem (dados do último censo apontam para uma percentagem de 60% da população com idade inferir a 25 anos), a Ribeira Grande, é exemplo a nível nacional, da importância que os pais atribuem à qualificação dos seus filhos. Conforme recorda o atual presidente da câmara, “antigamente para se estudar, tinha que se ir a São Vicente, pois não havia liceus em Santo Antão. O primeiro liceu apenas começou a funcionar em 1988, mas já nessa altura, no período das férias, o barco navegava cheio de jovens que iam estudar na ilha vizinha”, daí que, para os

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Qualificação, uma referência a nível nacional

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A

Ribeira Grande é um concelho com aproximadamente 20 mil habitantes, disperso por 184 localidades. Conforme refere Orlando Delgado, “há uma grande dispersão da população. Temos duas cidades: a cidade de Ponta do Sol e a cidade da Ribeira Grande. A primeira desempenha essencialmente tarefas administrativas, embora possua uma valência piscatória muito grande, ao passo que a cidade da Ribeira Grande é essencialmente comercial. “

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santantonenses, a qualificação dos seus recursos humanos seja motivo de grande orgulho. Talvez este seja um dos motivos para encontrarmos tantos técnicos oriundos de Santo Antão, um pouco por todas as áreas de direção e governação do país.

“há locais, como por exemplo nas Fontainhas, cuja escola, por falta de alunos, este ano nem chegou a abrir”

É necessário crescer em termos populacionais

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Fruto do trabalho desenvolvido nos anos oitenta e noventa ao nível da planificação maternoinfantil, a atual taxa de mortalidade infantil em Santo Antão é praticamente inexistente. No entanto, o número de nascimentos tem vindo a cair drasticamente. Segundo dados de 2010, a Ribeira Grande perdeu, nos últimos anos, quase 3 mil pessoas. Conforme refere Orlando Delgado, “há locais, como por exemplo nas Fontainhas, cuja escola, por falta de alunos, este ano nem chegou a abrir”, e adianta que, “contrariamente à evolução que se verifica a nível nacional, na Ribeira Grande tem havido um decréscimo da população. Tem-se tendência a justificar esta diminuição da população, com facto de muitos jovens saírem de Santo Antão para estudarem noutras ilhas. Diz-se ainda que muitos outros vão para o Sal e Boa Vista à procura de emprego. O certo é

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que, quando se analisa os dados, verificamos que, é sobretudo na faixa etária inferior à dos 14 anos que a maior parte das perdas se regista. Segundo os últimos dados, e para esta faixa etária, perdemos quase 3200 jovens. Tal facto demonstra-nos que é a taxa de natalidade que tem vindo a diminuir. Teremos que repensar e debater os mecanismos ao nosso dispor, por forma a que a Ribeira Grande possa também crescer em termos populacionais”, adianta. A gestão dos recursos financeiros Relativamente à gestão dos recursos disponíveis para o desenvolvimento da região, o autarca adianta que “sobretudo nos últimos anos da década de noventa e início de dois mil, a cooperação holandesa - que fez um grande


por forma a que a Ribeira Grande possa também crescer em termos populacionais”

A coleta de taxas e impostos, é outra das fonte de receitas do município, no entanto, conforme adianta Orlando Delgado, “esta é uma fonte quase que irrisória tendo em conta o montante dos capitais investidos, pois tratando-se a Ribeira Grande de um concelho rural, os impostos são bastante reduzidos.” O Imposto Único sobre o Património, juntamente com

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os mecanismos ao nosso dispor,

Outro dos parceiros para o fomento do desenvolvimento é o governo, através da participação direta em grandes projetos de infraestruturação, tais como a construção de estradas, de hospitais e outros equipamentos públicos.

“Teremos que repensar e debater

beira Grande. Em 1994 tínhamos uma taxa de cobertura elétrica na ordem dos 10% e atualmente, apesar da grande dispersão populacional, estamos com 95% do nosso concelho eletrificado. Tal permitiu fixar as populações nas suas localidades, potenciando desta forma o desenvolvimento das mesmas”, afirma.

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investimento na modernização agrícola e nas melhoria das infraestruturas de rega, conservação de solos e reflorestação - e a cooperação luxemburguesa - que investiu, sobretudo em infraestruturas de desenvolvimento social, a começar pela eletrificação - constituíram os grandes motores do desenvolvimento da Ri-

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prazo, impulsionar a economia da ilha. Numa parceria com a cooperação luxemburguesa, encontra-se atualmente em construção um centro agroindustrial, o qual permitirá dar um cunho semi-industrial a essa produção. Ao nível das localidades, existem ainda várias associações - as associações de desenvolvimento comunitário - que procuram captar associados capazes de dar esse salto qualitativo, fundamental para o futuro do setor.

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Contudo, e conforme refere o autarca, “é sem dúvida na agricultura, na pecuária e nas pescas que a Ribeira Grande tem que apostar, apesar de nas pescas possuirmos ainda muitas limitações, pois não possuímos um porto de pesca e sem esse equipamento não poderemos transformar essa atividade num modelo semi-industrial. Temos que nos cingir a uma pesca artesanal, baseada em botes que não se podem afastar muito da costa, reduzindo-nos desta forma a uma pesca essencialmente de subsistência”, e remata afirmando que, “o porto de pesca é uma necessidade do concelho. Tal permitir-nos-ia dar um salto qualitativo em termos de industrialização, contribuindo decisivamente para a diversificação e desenvolvimento económico da classe. Penso que seja o momento certo para se investir nessa infraestrutura, que traria grande desenvolvimento ao concelho da Ribeira Grande”.

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as taxas municipais, contribuem aproximadamente para 15% do orçamento do município. Os acordos que a câmara municipal mantém no quadro das geminações, também dão um contributo ao orçamento camarário. Conforme refere o governante, “a Ribeira Grande tem parcerias com municípios em Portugal, os quais têm prestado grande apoio ao nível do transporte escolar, na capacitação da nossa corporação de bombeiros e na sustentabilidade das unidades sanitárias de base.” Setores que aguardam oportunidade Há, no entanto, setores que apesar das excelentes condições para a sua implementação, estão ainda em fase embrionária. A indústria de transformação agroalimentar, com a produção de doces e licores - os quais já possuem um peso significativo na economia do concelho - é uma das áreas que promete, a curto

A saúde e a educação Relativamente à saúde, a Ribeira Grande é um concelho bem equipado. Possui um hospital regional, postos sanitários distribuídos por várias freguesias e, a um nível mais local, possui uma rede de unidades sanitárias de base, estas diretamente da responsabilidade da Câmara Municipal. Para o atual presidente da câmara, “há uma grande consciencialização por parte das populações para as questões relacionadas com a saúde. Não é por acaso que, apesar de Cabo Verde, ao longo da sua história, já ter sofrido algumas epidemias, a Ribeira Grande tem-se mantido imune. Possui inclusivamente estruturas que fazem o acompanhamento e monitorização permanente das populações”, que é precisamente o caso da própria Câmara Municipal e das delegações de saúde. Existem equipas permanentes nas quatro freguesias do concelho, que se encar-



evolução bastante positiva nesta área”. Para o futuro, a Câmara Municipal da Ribeira Grande está apostada em implementar o ensino superior na região, “uma vez que mais de 46% dos alunos que estão a estudar no ensino superior em São Vicente, são alunos de Santo Antão”, refere o seu presidente. A cultura e o desporto “Na Câmara Municipal temos dado grande importância às questões culturais, pois acreditamos que o desenvolvimento não passa apenas pelo betão. É importante investirmos nas pessoas e naquilo que é a nossa identidade enquanto povo”, afirma Orlando Delgado, e adianta que, “tem sido feito um esforço para a valorizar, apoiando, sempre que possível, alguns artistas do concelho.” Todos os anos, a Câmara Municipal da Ribeira Grande realiza o festival internacional sete luas, sete sóis que, como evento internacional que é, pretende ser uma oportunidade para os jovens mostrarem o seu valor no meio musical. Conforme refere o autarca, “com alguma frequência apoiamos o lançamento de livros, a gravação de discos e outras iniciativas culturais diretamente ligadas à região”.

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Ao nível do desporto, a Câmara Municipal da Ribeira Grande concretizou há pouco tempo um sonho antigo: o da construção do estádio desportivo municipal. Tem igualmente realizado, um pouco por todo o concelho, investimentos significativos na construção de placas desportivas para as suas populações.

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regam de monitorizar todas as questões relacionadas com o saneamento, as águas estagnadas, a produção e eliminação de lixo urbano e as condições de criação e abate de animais em áreas rurais. Na educação, a taxa de abandono escolar na Ribeira Grande é muito reduzida. Conforme salienta o autarca, “ao nível do ensino pré-escolar e ensino básico, possuímos uma cobertura muito boa do concelho. As escolas são recentes e há um permanente investimento na reconstrução das mais antigas. Possuímos dois liceus devidamente equipados que satisfazem as necessidades da população, pelo que consideramos que tem havido uma

Presente e futuro Orlando Delgado sente-se um homem orgulhoso com o trabalho que tem vindo a desempenhar à frente dos destinos da Ribeira Grande. “Ao longo destes dois mandatos, sempre afirmei que ficaria satisfeito se conseguisse

“É importante investirmos nas pessoas e naquilo que é a nossa identidade enquanto povo”


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dotar de melhores condições de vida as populações que sirvo. Consegui-o em quatro áreas fundamentais, nomeadamente, a habitação, o fornecimento de água, o saneamento e a energia. Em relação à habitação, penso que as famílias da Ribeira Grande têm hoje condições de habitação que eram inimagináveis há algum tempo. Em termos de ligações domésticas à rede pública de água, estamos atualmente com uma taxa de cobertura de 90%, o que é um feito histórico a nível nacional. No saneamento, conseguimos implementar aproximadamente 70% da rede, mas já temos planos para aumentar significativamente este número nos próximos anos. Finalmente na energia, onde conseguimos que cada família tivesse acesso à iluminação da rede eléctica”.

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Para o futuro, o autarca aposta no empreendedorismo e na criação de emprego, sobretudo nas camadas mais jovens da população.

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As parcerias público-privadas, são também um dos seus desafios. Conforme diz, “apesar de termos vindo a desenvolver algum trabalho de fundo nesta área, achamos que temos de continuar a fazer mais, pois apesar de não ser um trabalho da inteira responsabilidade da Câmara Municipal - há outras entidades vocacionadas para este tipo de investimentos - queremos continuar a manter a nossa colaboração nesta área importante da sustentabilidade futura da Ribeira Grande”. No entanto, e conforme afirma, “existem muitas outras áreas que carecem de melhorias e intervenções, tais como a requalificação urbana e a questão das acessibilidades a muitas regiões do concelho, por isso, temos ainda muito trabalho pela frente, mas sempre com um único propósito: a melhoria das condições de vida e do bem-estar das gentes da Ribeira Grande e da ilha de Santo Antão”.


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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Municípios

Vera Almeira

“Priorizar

a mudança de mentalidades“

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A terminar o seu primeiro mandato à frente dos destinos do município do Paúl, Vera Helena Pires Almeida da Cruz é uma mulher confiante no futuro do concelho. Apesar das debilidades intrínsecas do município, Vera Almeira está confiante que as políticas adotadas pela sua gestão, contribuirão de forma significativa para o desenvolvimento do município.

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Quando se candidatou, em 2008, à presidência da Câmara Municipal do Paúl, apresentou um programa ao eleitorado. Considera que cumpriu todos os objetivos propostos?

tendo em muitos casos, feito muito mais do que inicialmente prevíamos fazer.

Na íntegra. Apesar de nunca me ter guiado pela plataforma eleitoral para exercer a minha ação governativa, tenho plena consciência que a cumpri, e até mesmo, em alguns dos seus pontos, a ultrapassei. Sabia exatamente o que tinha que fazer, pois já tinha identificado todas as áreas que necessitavam de intervenção imediata, por isso não me preocupei em utilizar a plataforma como uma espécie de guião. Curiosamente, ainda há pouco tempo, na preparação da nova plataforma eleitoral para este ano, analisei as de 2004 e 2008, e constatei que as tínhamos cumprido na íntegra,

A questão da habitação social. Logo no início do mandato, já tínhamos um plano municipal para esta problemática. Entre a reabilitação e a construção, prevíamos atingir a meta das 80 a 100 casas. No final deste mandato, e apenas três anos volvidos, conseguimos intervir em 400 fogos, o que é quase um milagre. O nosso empenho foi tal, que, ao longo destes três anos, nunca tivemos a curiosidade de contabilizar o número de intervenções que vínhamos a realizar, pelo que, termos atingido esta cifra de 400 habitações, foi uma agradável surpresa.

Quais os grandes desafios com que se deparou?


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Que outros projetos a deixam satisfeita com o desempenho da sua governação? Um deles foi a construção de um gabinete de apoio à mulher. Foi um desafio pessoal. Acabou por ser o meu primeiro projeto. A quando da minha primeira deslocação à Praia, logo após ter sido empossada como Presidente da Câmara do Paúl, levei em mãos este projeto e assim que propus uma parceria com o Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade do Género, fui surpreendentemente defrontada com o facto de a Galiza pretender financiar um projeto nesta área. O projeto tinha por objetivo estudar a implementação de políticas locais com a perspetiva de género. Ao iniciarmos os trabalhos para a execução do projeto, tivemos que fazer um diagnóstico pormenorizado sobre os desequilíbrios e estereótipos existentes à volta da questão género, no seio da população.

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A compilação de todas essas informações, forneceu-nos um instrumento importantíssimo, do qual resultou o Plano Municipal para a Igualdade de Género. Até ao momento, este é o único plano

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do tipo existente em Cabo Verde. Tem-nos permitido trabalhar, acima de tudo, a mentalidade das pessoas. A nossa primeira preocupação na implementação do projeto, foi atuar ao nível da autoes-

“No final deste mandato, e apenas três anos volvidos, conseguimos intervir em 400 fogos, o que é quase um milagre.” tima da população - principalmente das mulheres, que tinham uma autoestima muito baixa - por isso, em vez do Gabinete de Apoio à Mulher, decidimos alargar o âmbito da nossa intervenção e implementámos o Gabinete para a Promoção da Igualdade de Género, que envolve também o ho-


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sete moradias construídas de raiz e dez reabilitações. Seria impossível realizar esta obra com base nas receitas municipais. Também reabilitámos o ancoradouro de Penedo de Janela - uma zona fundamentalmente piscatória - com o apoio de uma ONG dinamarquesa. A plataforma eleitoral apresentada resulta das minhas convicções, pois encarei-a como um desafio pessoal. Além disso, acredito na viabilidade do Paúl, apesar de ter a noção que o município depende, em mais de 70%, do Fundo de Financiamento Municipal. É suposto conseguirmos arrecadar os restantes 30% com fundos próprios, mas ainda não temos essa capacidade. Quais são as principais atividades económicas do Paúl?

mem, o que nos possibilitou atingir os resultados esperados, mas de forma mais simples e rápida. Hoje temos um gabinete que funciona muito bem e que tem vindo a desempenhar um importante papel na igualdade de género, aqui no concelho do Paúl.

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Qual o peso da participação dos munícipes, por via das obrigações fiscais, para a realização desses projetos?

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O Paúl vive essencialmente da agricultura. Mas se por ventura, algo não corre como o esperado, como por exemplo prolongados períodos de seca, os agricultores são os primeiros a dizer que não têm possibilidades de pagar a décima, ou que apenas a pagam se for de forma parcelada. Há ainda quem peça a avaliação dos prédios urbanos e rústicos por acharem que o valor dos impostos é muito elevado. Não entendem que, sem essas pequenas contribuições, não temos possibilidade de sobreviver. Todos os dias temos pedidos de auxílios para a compra de medicamentos, para a reabilitação das casas, para a escola, transportes, propinas, kits escolares…. enfim, um cem número de coisas, muitas das quais precisam de respostas imediatas. Há, por isso, todo um trabalho de sensibilização que

Não é possível fazer todas estas obras e projetos no âmbito das contribuições fiscais. Para se ter uma noção, num ano conseguimos arrecadar, de uma forma faseada ao longo do ano, cerca de 8 mil contos em impostos e taxas. Por aqui se vê que seria impossível, por essa via, concretizar todos estes programas.

“acredito na viabilidade do Paúl,

Como fazem para conseguir o resto das verbas necessárias?

município depende, em mais de

Temos uma relação institucional muito forte, e não me refiro a relações entre a comunidade internacional e o Estado. Dou um exemplo: conseguimos reabilitar, com o apoio da cooperação portuguesa, a construção de um bairro social com

70%, do Fundo de Financiamento

apesar de ter a noção que o

Municipal”


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temos de fazer, por forma a que as populações entendam o nosso papel na governação e contribuam, na media do possível, para a sustentabilidade do bem comum.

por sua vez, sensibilizam as populações para os problemas do álcool. Registámos com satisfação já os primeiros resultados, com a diminuição desta problemática no concelho.

Quais são as grandes debilidades do seu concelho?

Que medidas estão a ser tomadas para diminuir esse número de desempregados?

Um dos grandes problemas com que nos deparamos é o desemprego. As pessoas dependem das frentes de alta intensidade de mão-de-obra e nem sempre é possível obterem trabalho nessa atividade. Há ainda a mentalidade que só se é empregado quando se trabalha para o Estado. Se por ventura trabalharem numa outra atividade, consideram-se desempregados. As pessoas ainda têm uma mentalidade muito assistencialista, com medo de arriscarem.

Antes de qualquer ação sobre a economia, temos que tentar mudar a mentalidade das pessoas. As pessoas têm que entender que a Câmara Municipal não pode ser o “chefe de família” de 1656 famílias. Há que incentivar as pessoas a integrarem a economia local, a tornarem-se proativas, a fomentarem a sua própria profissão e a acabarem, de uma vez por todas, com a ideia que tem de ser a autarquia a dar proteção social em tudo o que pretendam realizar.

Possuímos ainda um fenómeno social preocupante: o alcoolismo. No âmbito do plano para a Promoção da Igualdade de Género, estamos a conseguir reduzir este flagelo. Através da formação de formadores locais, conseguimos que eles formassem mais de 90 agentes comunitários que,

No entanto, para as pessoas serem autossuficientes, têm que ter formação e algum tipo de especialização, nas áreas em que pretendam operar. Será que as pessoas estão preparadas para poderem atingir o patamar de autossuficiência?


O problema é que essa temporização não é compatível com as necessidades atuais das pessoas. A solução que encontrámos, foi desenvolver ações de formação, em simultâneo com as ajudas pontuais, que de forma constante nos são solicitadas. Dedicamo-nos em especial à juventude, para que no futuro não fiquem tão condicionados como estão atualmente os seus pais. Este não é um desafio apenas do Município do Paúl, é um desafio nacional. Entendemos que o problema da autoestima seja fundamental para a resolução desta dificuldade. As pessoas têm que se valorizar, sentirem-se úteis nas tarefas que desempenham, por mais insignificantes que possam parecer, pois só dessa

“As pessoas têm que se valorizar, sentirem-se úteis nas tarefas que desempenham, por mais insignificantes que possam parecer”

Precisamos de ter um gabinete técnico devidamente equipado, para a implementação do PDM e dos Planos Detalhados. Precisamos igualmente de avançar definitivamente com o desenvolvimento turístico no Paúl. Em parceria com a cooperação espanhola, precisamos trabalhar a reabilitação dos caminhos vicinais, que são estratégicos para a expansão turista da região. Como somos um município essencialmente agrícola, esperamos poder vir a investir ainda mais nas nossas comunidades rurais, continuando a insistir na estratégia de priorizar a mudança da mentalidade das pessoas. Se quisermos apostar no turismo de habitação, como é nossa intenção, teremos que ter pessoas capazes de intervir proativamente no fomento da atividade agrícola, e esta mudança de algumas mentalidades, mostra-se essencial, para levarmos a bom porto estes nossos intentos. Queremos continuar a apostar na formação profissional, com especial atenção na área agrícola, pois não há uma grande apetência por parte das camadas mais jovens para continuar a desenvolver a atividade. Queremos continuar a fomentar o empreendedorismo. Inclusive, temos planos aprovados e financiados para o incentivo do empreendedorismo nas escolas e na criação de microempresas familiares. Estes programas vão ser fundamentais para as pessoas deixarem de depender das frentes de alta intensidade de mão de obra como forma de obterem os seus rendimentos. Finalmente a questão da habitação. Iremos continuar a apostar na reconstrução e construção de novas habitações sociais. Apesar de termos recuperado cerca de 400 fogos, ainda continuamos com um défice habitacional muito elevado. Para nós, esta é uma prioridade de base, pois mexe com todo o resto. Sem uma habitação condigna, é difícil pedirmos às pessoas para atingirem os objetivos a que nos propomos, em prol do crescimento e do desenvolvimento do concelho. 

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A falta de pessoas qualificadas para desempenharem determinadas tarefas, não será um condicionamento para um país que pretende manter as suas taxas de crescimento? Não seria melhor temporizar mais estes objetivos, em prol de uma solidificação das bases, para elevar as competências das pessoas?

Quais os grandes desafios futuros para o Paúl?

Temos realizado várias ações de formação, através de parcerias que mantemos com a ADEI e com a Câmara do Comércio do Barlavento. Temos também realizado palestras em todas as comunidades, por forma a que as pessoas elevem a sua autoestima e se engajem no seu desenvolvimento pessoal.

forma se poderá criar uma unidade nacional em torno do desenvolvimento comum.

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Por ainda não se encontrarem preparadas para, de forma autónoma, atingirem esse patamar, é que estamos a trabalhar na melhoria da sua autoestima. No meu entender, a autoestima pessoal é uma condição essencial para o sucesso futuro.

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Música

Cordas do Sol

Resgatar a música tradicional

de Santo Antão

Com um começo ingénuo e genuíno, lançaram o primeiro disco em 2000, obtendo uma aderência fenomenal. Dois anos depois, o sucesso foi reconfirmado, através de um segundo disco mais bem elaborado tecnicamente e

Depois de uma paragem estratégica de quase três anos, o projeto foi relançado com uma reformulação profunda da banda, dando origem ao terceiro disco, no final de 2009, com mais vozes, percussões e instrumentos semiacústicos. Em 2014, surgirá o próximo disco, com todas as características particulares desta banda originária de Santo Antão.

que não era um projeto da obra do acaso. No ano seguinte, o grupo Cordas do Sol conquistou nomeações, troféus e muitos concertos. Conforme Arlindo Évora afirma, “a banda consolidou-se e a estratégia de palco melhorou significativamente, com muita disciplina, esforço e a dedicação de todos”.

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riginários de uma vila onde não havia luz elétrica depois da meia-noite, foi à lua, ao silêncio e ao encanto do ambiente em redor, que um grupo de jovens amantes da música encontrou a sua inspiração inicial. “Era depois da meia-noite que aquele lugar se transformava num sítio poético; sentarmo-nos naquela praça e começarmos a tocar guitarra e cavaquinho, tornava-se algo único e mágico”, recorda Arlindo Évora.

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Referência incontornável da música cabo-verdiana pelos títulos que ganhou, o grupo Cordas do Sol persiste em ser bem-sucedido desde 1995. Resultado da evolução do formato da música tradicional, é um grupo de características únicas e genuínas que retrata a vida quotidiana das pessoas ao som de instrumentos acústicos, inspirado em temas e géneros musicais de Santo Antão, num ritmo mais contemporâneo. Elemento integrante do grupo “Cordas do Sol” desde a sua fundação, Arlindo Évora orgulha-se da singularidade excecional e inimitável que a música do grupo transmite através da sua simplicidade.

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Numa fase de profissionalização do projeto, com editora e agência de espetáculos próprias, a banda realiza o sonho de atingir o patamar seguinte. “A ideia de nos profissionalizarmos é, pura e simplesmente, melhorar a qualidade, a organização e a gestão. A genialidade vai continuar e tenho a certeza que não vamos dececionar as pessoas que nos têm acompanhado”, refere o músico.

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Atualmente, em Cabo Verde, há uma geração que está a fazer uma música de mistura, de fusão e de qualidade. Contudo, face às novas tecnologias e recursos que a música eletrónica utiliza, é notório que a música acústica de boa qualidade “veio para ficar”. Arlindo Évora explica esse fenómeno, afirmando que “a música acústica tem mais alma, identidade e possui uma dimensão universal, cabendo aos músicos a criatividade e habilidade para que não se repita a receita do tradicional. O segredo está em não complicar muito, porque a música não tem de ser difícil para ser apreciada.” As guitarras, o cavaquinho, as percussões e as vozes dão vida ao grupo. No entanto, a presen-

ça de instrumentos mais rústicos e antigos, como o banjo, também estará contemplada, juntamente com duetos e participações especiais de músicos experientes que os dominam. Segundo Arlindo Évora, é importante valorizar esses géneros antigos e recuperar esse património histórico da música cabo-verdiana dos anos 60 e 70, dando-lhe um toque contemporâneo, para que a nova geração, não só não o esqueça, como também se identifique com ele. Uma das principais características que marca o grupo Cordas do Sol é a utilização do “sotaque genuíno de Santo Antão e que já não tem uso”. Tal como refere Arlindo Évora, “é necessário recuperar essa herança linguística junto de pessoas de mais idade para a oferecer às gerações mais jovens. Pontualmente, fruto das tradições mais remotas da ilha, as músicas possuem um carácter interventivo, no entanto, a banda aposta preferencialmente na temática e no conteúdo. “Esforçamo-nos para levar informação e pedagogia às pessoas, porque queremos que aprendam sempre algo em cada tema”, menciona. 


O sucesso de qualquer projecto depende sempre da forma como o abordamos The success of any project always depends on how we approach

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Teatro

Jorge Martins

Investir mais

nas artes cénicas

Elementos fundadores e participantes do Mindelact, fizeram também parte do seu corpo diretivo. “O Mindelact veio trazer mais ânimo, mais conforto e mais dinamismo para o teatro cabo-verdiano, havendo vários intercâmbios com diversos atores de diferentes companhias de teatro”, refere Jorge Martins. Acredita também que a existência de mais grupos de teatro em Cabo Verde seria gratificante, porque haveria uma concorrência forte e saudável que ajudaria a aperfeiçoar a qualidade e a forma de intervenção dos atores. Por isso, incentiva os grupos de artes cénicas a prosseguir.

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niciaram em recintos abertos, mas rapidamente passaram a utilizar palcos de renome. Como afirma Jorge Martins, “é no palco do dia-a-dia que gostamos mais de atuar. Observarmos as pessoas representar no seu quotidiano e depois transmitimo-lo para o palco.” Entre peças clássicas cómicas, trágicas ou dramáticas, não só o imaginário embeleza o trabalho, como todos o elementos do grupo pesquisam e investigam, com muito rigor, a vivência sociocultural das pessoas de Santo Antão em particular e de Cabo Verde em geral.

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Pioneiro na ilha de Santo Antão, o grupo Juventude em Marcha foi formado em 1984, tornando-se o mais ativo de Cabo Verde. Criado pelo presidente e fundador Jorge Martins, mestre em Ciências Sociais, o grupo contava no início com mais de trinta elementos de todas as faixas etárias, adquirindo um papel notório na cultura cabo-verdiana e reconhecimento a nível internacional. Atualmente, o grupo possui uma escola de formação contínua, que recruta muitas crianças e jovens através de uma seleção criteriosa.

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“Deviam dar oportunidade aos mais jovens, com outras ideias, para tentar mudar o rumo dos acontecimentos, com a contínua colaboração das pessoas mais experientes. Devíamos ter esses profissionais como conselheiros, dando a voz e a vez aos que estão sedentos de darem a sua contribuição. Seria fundamental que esses jovens pudessem ter essa oportunidade”, alerta o ator. No entanto, também é necessário da parte dos jovens um espírito de liderança, pois é notório o seu receio de tomar uma ação decisiva. “Sou ator, encenador, diretor de atores, faço quase tudo, inclusivamente na parte de construção de cenários; tento trabalhar na indumentária do grupo e nos adereços. Tenho de estar sempre presente, porque os jovens não querem assumir a liderança; têm medo de agir e de decidir”, critica Jorge Martins, construtivamente, para chamar a atenção dos jovens.

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Apesar de lutarem contra vários desafios, um dos maiores é encontrar um espaço para desenvolver a atividade

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“ Deviam dar oportunidade aos mais jovens, com outras ideias, para tentar mudar o rumo dos acontecimentos, com a contínua colaboração das pessoas mais experientes.” teatral que albergue a grande multidão de espetadores, sem ser necessário recorrer sistematicamente à repetição das peças. Contudo, mesmo sem as condições ideais, o grupo consegue sobreviver. “O segredo reside na nossa determinação, na nossa vontade de querer produzir, querer elevar a nossa cultura, e de preservar os seus valores”, confidencia Jorge Martins.


Contudo, “os apoios dos patrocinadores são praticamente nulos”, refere. É com a simplificação e o investimento nas produções e indumentária que o grupo tem criado os espetáculos. “Também temos recorrido a créditos bancários. Com as receitas dos espetáculos, pagamos as dívidas e investimos na produção seguinte. O grupo tem sobrevivido, basicamente, com as receitas dos espetáculos”, acrescenta. Sendo uma profissão exigente e repleta de renúncias pessoais, a satisfação plena do ator está na interpretação fidedigna da sua personagem, levando ao público uma representação perfeita da mensagem que se pretende transmitir. Embora o dom natural seja importante e intrínseco a cada um individualmente, o trabalho de entrega do ator é essencial, visto que “se for necessário sofrer, mostrar muito sentimento, muita dor, chorar, nós vivemos as cenas e sentimos que, nesse momento,

“O segredo reside na nossa determinação, na nossa vontade de querer produzir, de querer elevar a nossa cultura, preservar esses valores.”

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Presentemente, o grande sonho que o grupo Juventude em Marcha ambiciona alcançar, depois de ter sido convidado a representar repetidas vezes na Europa e na América, é atuar no continente africano, mais concretamente em Moçambique, devido há existência de grandes companhias de teatro que lá se encontram. Embora essa vontade ainda não tenha sido satisfeita e trazendo a profissão de ator inúmeros sacrifícios, “um famoso provérbio diz que água mole em pedra dura tanto bate até que fura e nós, como cidadãos cabo-verdianos, teremos muito a sacrificar, mas seremos condignamente recompensados com a afirmação da nossa identidade”, termina. 

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estamos a sofrer. Se for para rir, esse papel tem de ser realizado com total naturalidade como se a personagem que estamos a desempenhar, existisse. Saímos do real para o imaginário, mas esse imaginário é como se fosse real, porque retratamos a realidade nua e crua das pessoas”, explica Jorge Martins.

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Olhares


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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Entrevista

Leão Lopes

Criatividade, interiorização pessoal e firmes ideais

Nos domínios da arte e da cultura, em que disciplinas se sente mais confortável? Se eu tivesse que me definir, talvez me definisse como um criador que atua em espaços disciplinares variados, derivados da minha experiência de vida, da minha formação académica, da minha preparação intelectual e da

Talvez este país, este povo e os desafios que se nos colocam no quotidiano, que me levam a reagir com os instrumentos e os conhecimentos que tenho e que se expressam nos domínios da área cultural ou artística. Penso que a minha motivação, talvez seja a própria vida e o privilégio de a viver como a vivo, de uma forma intensa, mas atenta, tentando de alguma forma compreender os sinais e os proble-

mas - sejam os sociais ou de outra natureza. Depois atuo sem grandes programações. Sou um homem de ação. Prefiro agir a planificar a prazo. O meu quotidiano reflete precisamente esta forma de agir.

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É um dos expoentes máximos da expressão cultural contemporânea de Cabo Verde. O que é que mais o estimula no seu processo criativo?

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Nasceu em Santo Antão em 1948. Doutorado pela Universidade de Rennes II, França, e diplomado em pintura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, é membro fundador do Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura (M_EIA), onde desempenha as funções de reitor. Tem desenvolvido, ao longo dos anos, uma intensa atividade nos domínios da criação artística que passam pela literatura, as artes plásticas, o design e o cinema. Assina a primeira longa-metragem cabo-verdiana com o filme “Ilhéu de Contenda”. Autor e realizador de inúmeros documentários, dos quais se destacam “Bitu” e, mais recentemente, “S. Tomé - Os Últimos Contratados”, desempenhou ainda os cargos de Deputado Nacional e de Ministro da Cultura.

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minha curiosidade em relação ao que pode motivar o meu trabalho.

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Nunca vesti a farda de escritor ou de artista plástico. Para mim a arte é ampla, e encontra-se sustentada por várias disciplinas de expressão artística, independentemente da sua especificidade. Abordo a arte, não no plural, mas única e exclusivamente no singular. Os suportes que melhor me permitem expressar, independentemente da área, são os que no momento elejo. As tecnologias podem direcionar o resultado do meu trabalho, mas o processo criativo recorre sempre aos mesmos instrumentos criativos, quer a nível estético, quer conceptualmente. Por isso, não me inibo muito, nem expresso muita preocupação em me definir como pintor, cineasta ou escritor. Há determinado tipo de impulsos que no momento me podem direcionar para me expressar numa ou noutra área. Ás vezes, penso em cinema. Apesar de estarmos num país que não facilita a realização como cineasta, eu não tenho angústias quanto a me expressar através dos audiovisuais, pois todos os projetos cinematográficos se iniciam com um processo de criação. Depois passam por várias disciplinas

conceptuais, sobretudo a escrita. A partir da ideia, o processo caminha pela escrita até depois passar por outras disciplinas, como as tecnologias, e finalmente obtermos um produto cinematográfico. Sabendo que esse produto pode ser mais difícil de concretizar em Cabo Verde, não me vou angustiar por isso. Eu

"Nunca vesti a farda de escritor ou de artista plástico. Para mim a arte é ampla, e encontra-se sustentada por várias disciplinas de expressão artística, independentemente da sua especificidade." posso escrever e rapidamente transformar um projeto de cinema, numa história escrita, ou num objeto literário. Se quiser continuar no domínio visual, posso transformá-lo num objeto plástico.


É essencialmente uma construção que parte da espontaneidade. Nunca procurei um estilo de escrita. No entanto, identifico-me com uma determinada escrita, que eventualmente é a minha. Naturalmente quando se escreve e tem-se pretensão a que outro leia, gostamos que a escrita, de certa maneira, toque de alguma forma quem leia.

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Nunca tive o sofrimento de muitos colegas, que não conseguem realizar as suas obras por

Podemos afirmar que o seu género de escrita é cativante e estimula a imaginação dos leitores. Esta forma de escrever é inspirada numa ideia preestabelecida ou é fruto da espontaneidade?

Dou o exemplo do meu filme “Ilhéu de Contenda”, que levou muitos anos a preparar e que ninguém acreditava ser possível de realizar em Cabo Verde. Eu costumava dizer aos produtores, em ar irónico, para não se cansarem muito, pois se não o fizéssemos em cinema, fazíamo-lo em banda desenhada. Tendo a possibilidade de me exprimir noutras linguagens, então essas angústias resolvem-se com alguma facilidade.

falta de condições. Contudo, também admito que tive a sorte de ter tido uma educação privilegiada. Na minha geração pode-se encontrar mestres que nos prepararam para uma autonomia criativa, o que aliado a conhecimentos e práticas tecnológicas diversas, nos proporcionam a possibilidade de nos tornarmos versáteis em relação às nossas produções.

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"Nunca tive o sofrimento de muitos colegas, que não conseguem realizar as suas obras por falta de condições."

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Procuro escrever de forma a que eu entenda o que quero dizer. Se eu não entender muito bem o que quero dizer, é suposto que o leitor também não o entenda. Mas não é um tipo de escrita consciente, trabalhada, com regras de estilo, ou colada nesta ou naquela linguagem literária, neste ou naquele autor.

Se tivesse que eleger uma das suas obras literárias à qual se tenha sentido, na sua conceção, preso de forma apaixonada, qual escolheria? Eu escrevo pouco, por isso é uma pergunta difícil. Tudo o que escrevo é feito com muito

Tenho alguma dificuldade em pensar nas coisas que faço. Não costumo dedicar grande tempo de reflexão em torno do que faço. Faço, e ás vezes até esqueço que o fiz. Frequentemente, dou conta que recorro muito à minha infância. Não sei bem porquê. Tenho boas memórias de infância. Talvez seja por isso que, de forma inconsciente, tenho o impulso de confirmar essas memórias. Tenho muito presente essa vivência da juventude, daí a necessidade de a contar, de forma espontânea, nem que seja só para mim.

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Tal não terá sido, consequência de uma boa juventude, ou talvez da necessidade de reconhecer que a melhor fase da nossa vida é quando somos crianças e jovens, quando procuramos o novo, o sonho e a paixão?

"Tenho alguma dificuldade em pensar nas coisas que faço. Não costumo dedicar grande tempo de reflexão em torno do que faço. Faço, e ás vezes até esqueço que o fiz."

gozo, pois não tenho obrigações. Até hoje só tive a obrigação de escrever a tal tese. As outras coisas são feitas por puro prazer. Na escrita, eu estou muito próximo da infância e da juventude, e talvez por essa razão, qualquer dos meus objetos literários me tenham dado imenso prazer de realizar. Acho que todas as minhas peças literárias se entrecruzam, como se todas elas fizessem parte da mesma obra.

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Quem escreve, tem de ser, antes de mais, leitor… e se possível, bom leitor. Desta forma, acabamos por ser o resultado de tudo o que lemos. Pessoalmente, não tenho bem a consciência estética da minha escrita. Recordo-me de um doutoramento que fiz em França, onde na parte da defesa, estava presente um professor de uma universidade italiana e que fazia parte do júri. A determinada altura, ele diz para a sala que não se lembrava de ter lido uma tese com tanto prazer. O facto é que eu não tinha a consciência de ter escrito uma tese que dava gosto ao leitor. É censo comum que uma tese é uma coisa chata, muito científica, mas conforme referiu o dito professor, o estilo que utilizei na escrita daquele documento, foi para ele como se estivesse a ler um guião de um filme. Eu não tinha essa consciência, o que ilustra que a articulação de toda a minha abordagem científica, do percurso da minha investigação e pesquisa, acabou por passar para este meu estilo.

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Lembro-me que há uns anos, saiu uma prova nacional de português para o ensino, com um determinado texto, onde não aparecia o autor. Os meus colegas começaram a especular sobre de quem seria o texto, até que, facilmente, chegaram a mim. Eu na altura nem sabia que o texto tinha saído numa prova nacional. Não foi por causa do estilo da escrita, mas sim, por causa do tema. Era um tema da nossa infância, o que acabou por despertar a memória desses colegas, e, dadas as vivências conjuntas, facilmente chegaram até mim. A escrita e outras áreas da expressão, possibilita-nos desenterrar as memórias que não são apenas dos autores, mas que pertencem a uma geração e isso é fascinante.

Santo Antão é referenciado inúmeras vezes nas suas obras. Quais as razões que o levam a escrever tantas vezes sobre esta ilha, e em particular sobre o Porto Novo? As minhas referencias a Santo Antão, não são sobre a ilha, mas sim sobre vivências passadas na ilha. É essencialmente sobre o que Santo Antão desperta em mim. Podem ser memórias, emoções ou fantasias. Os meus contos infantis são um exemplo disto. Eu só poderia localizá-los em Santo Antão, pois foi precisamente lá que a minha maneira de ser foi formada. Por isso é natural que a ilha assuma um papel omnipresente nesses meus trabalhos. No entanto, não me inibo em relação a nenhum outro espaço vivencial, onde a minha experiência como pessoa me tenha marcado. O espaço serve apenas de referência. Normalmente não tenho muita apetência para a descrição dos cenários. Penso que é mais importante o que sai de dentro do cenário, que o cenário em si. E que vivências foram essas que o motivam a recorrer frequentemente a Santo Antão? Possivelmente terá a ver com o tempo da infância, e a forma com que o contexto nos acolheu, educou e conduziu. Tem a ver com as pessoas comuns que me influenciaram e que deixaram marcas na minha formação como pessoa. São memórias fortes que acabam por ser recorrentes. Lembro-me de uma vivência,

"O espaço serve apenas de referência. Normalmente não tenho muita apetência para a descrição dos cenários. Penso que é mais importante o que sai de dentro do cenário, que o cenário em si. " alargada a todos os meninos, que se traduz nas brincadeiras, nas relações com os nossos pais e que são, por fim, a base da nossa personalidade.


A proposta dos claridosos era de tal forma forte, que ainda hoje a podemos vivenciar e identificar tudo o que conformou os seus propósitos. A própria obra dos claridosos não se esgotou na literatura. Eu próprio defendo em

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No campo musical, as mornas do B.Léza, que foram um dos produtos do movimento - até porque ele era um dos do grupo - contêm todos os seus pressupostos estéticos. O que reparamos hoje em dia, é que, setenta anos depois, esta composição, com o sucesso que todo conhecemos, ainda é uma das nossas melhores expressões culturais. Na literatura, mesmo autores consagrados, têm produções que muitos desconhecem. Manuel Lopes, por exemplo, tem contos de uma atualidade que ainda hoje nos impressiona. Lembro-me de um conto dele intitulado “O Galo Cantou na Baía”, que quando o li, fui de imediato falar com ele e

Estamos numa fase interessante. É uma fase pretensamente de rutura com toda a herança legada da fase claridosa. Eu próprio devo fazer parte deste momento de rutura. No entanto, penso que desta rutura, também deverão fazer parte os claridosos, pois são ainda a grande referência da escrita cabo-verdiana, embora tematicamente ultrapassados. Na altura, havia uma proposta estética clara. Duvido que a geração contemporânea tenha essa lucidez estética com o que pretende deixar como marco para o futuro.

tese, que o movimento claridoso arrastou outras disciplinas e que deixou marcas noutras áreas, devido exatamente à sua forte proposta estética. Não sei se hoje o estamos a conseguir tão bem como eles o conseguiram, daí que a sua presença ainda seja muito forte.

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Na sua opinião, como se caracteriza o atual panorama da literatura cabo-verdiana?

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rá do que pretendemos desenhar para o futuro do país, mas acredito que ainda temos a possibilidade de formatar o nosso futuro em função do que quisermos dele fazer. Costumo pensar que, mesmo nos dias de hoje, é possível visitar Santo Antão e viajarmos para dentro de nós e descobrirmo-nos um pouco, tal como as nossas gerações anteriores se descobriram. Cabo Verde ainda nos oferece esse privilégio, no entanto, temos que saber gerir todo o impacto do que nos chega de fora, assim como os apelos à alienação de determinados valores e potencialidades que ainda encerramos em nós. Pelo facto de vivermos em ilhas e termos essa história cultural interessante, devemos preservar este manancial criativo e imaginário, de inestimável valor. Para tal, basta que estejamos atentos ao que o arquipélago tem para nos oferecer, e dele podemos absorver.

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comentei que o conto parecia um cenário de cinema, ao que ele me respondeu que, de facto, tinha utilizado a linguagem cinematográfica de campo contracampo. Foi buscar uma área para a literatura. Não conheço um autor cabo-verdiano atual com esse tipo de recurso. Além de ser muito curioso é também muito interessante. O Aurélio Gonçalves, por exemplo, servia-se da pintura. Há todo um património dessa geração que ainda está para ser trabalhado e compreendido.

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Acredita que, pelo facto de vivermos num mundo globalizado, mais consumista e totalmente desatento aos sentimentos da alma, faz com que os artistas cabo-verdianos tenham perdido um pouco da interioridade com a qual nos espantaram durante vários anos? É inquestionavelmente uma consequência dos tempos. O mundo está em constante transformação e Cabo Verde, fazendo parte do mundo, também. No entanto, penso que continuamos com alguns privilégios. Apesar da facilidade de comunicação dos dias de hoje, perdemos a liberdade de gerir inteligentemente o consumo de tudo o que nos chega de fora. Depende-

Tem, certamente, projetos na área da cultura. O que é que podemos esperar para os tempos mais próximos? Normalmente a minha vida é muito preenchida no dia-a-dia. Tenho sempre muita coisa encadeada, mas nunca faço planos para este ou aquele projeto em particular. Como não tenho obrigações e não trabalho com encomendas, posso gerir a produção dos meus trabalhos à medida que deles vou sentindo falta. Tenho o

"temos que saber gerir todo o impacto do que nos chega de fora, assim como os apelos à alienação de determinados valores e potencialidades que ainda encerramos emnós" privilégio de ser absolutamente livre na minha produção, o que me permite fazer várias coisas em simultâneo e que acabam por sair, sem grandes compromissos.


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Em termos pessoais, foi uma experiência bastante interessante... aprendi muito. Contudo, a determinado momento, foi assustador. Dei conta que, num concelho de ministros - onde há pessoas com as sua fraquezas, com as suas frustrações, as suas preparações, com os seus ideais e valores - o destino das pessoas pode ser desenhado para o bem ou para o mal. Assustou-me, pois apesar de sempre bem-intencionados, acabamos por decidir sobre o futuro de um povo que nos elegeu e pelo qual decidimos, sem os estarmos a ouvir, naquele preciso momento. Apesar de serem tomadas decisões, e de todas elas serem bem-intencionadas, podem-se revelar como más decisões para o futuro. No dia em que percebi que estava a desempenhar o papel de decisor de todo um futuro de um povo, senti-me atemorizado. No entanto, foi uma oportunidade de aprendizagem da natureza humana, da forma como investimos nas nossas convicções e às vezes da irracionalidade da sua defesa, perante as convicções de outrem. Falou muito em memórias. Realizou, à relativamente pouco tempo, um filme relacionado com a comunidade cabo-verdiana que se encontra um pouco esquecida em São Tomé. O que o levou a contar essa história?

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Precisamente a história daquela gente, que é também a nossa história, expressa no drama da emigração. Fui convidado a conhecer São Tomé e apenas aceitei o convite com a condição de poder vir a conhecer esta nossa comunidade lá residente. No regresso, percebi imediatamente que havia de voltar para fazer esse filme.

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Foi doloroso fazer esse filme. Uma emigração com aquelas características, onde as pessoas foram enganadas, tiradas do seu lugar e empurradas pelo drama da existência, foi um ato de extrema violência. Uma vez lá chegadas, descobrirem que tinham sido enganadas e que não havia retorno. Deve ter sido algo muito duro. É algo que me toca profundamente. Fale-nos um pouco da sua passagem pela governação, em que se viu envolvido nas questões políticas de orientação de um país.

Creio que, a partir dessa experiência, adquiri o privilégio de poder observar e analisar dos dois lados. Tenho o privilégio de ter tido uma experiência alongada, também do outro lado do poder, o que, associado a essa experiência governativa, me possibilita analisar e por vezes melhorar os meus pontos de vista em relação à vida, aos problemas e aos fenómenos culturais. Tento usar esse conhecimento no meu dia-a-dia. Acredita que hoje a política está a atravessar uma crise ideológica? Penso que sim. Quando os ideais começam a ficar vazios de sentido, isso reflete-se não só na cultura política, como no desempenho do político. As causas estão hoje muito confusas em relação aos seus próprios valores. A noção do coletivo, já não é a mesma de antigamente. No início da Independência, a nossa causa era sem dúvida Cabo Verde, este povo, e o país como um todo. Atualmente assistimos a várias causas a tentarem-se conciliar entre si, para tentarem construirem o país de hoje e muitas vezes essas causas até são individualistas ou pertença de um grupo restrito. Tudo isso perturba e põe em causa os ideais mais tradicionais, ou se quiserem, os mais nobres.


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No caso cabo-verdiano, acabamos por ser diluídos na dinâmica deste mundo sem causas, e sem grandes ideais. Eu, à semelhança um pouco da minha geração, considero-me um homem de ideais. São os ideais e os valores que nos foram transmitidos pelos nossos pais. Se na política não pudermos sentir estes ideais, receio que poderemos estar a construir um país anómalo, o que é assustador. Quando não conseguimos identificar de forma clara as estratégias políticas, as políticas públicas de alguns setores mais sensíveis - nomeadamente ao nível social e económico - e não nos revermos nesses ideais, então podemos sair fragilizados e temos tendência para nos deixarmos “ir na enxurrada”. Isso é preocupante. No meu ponto de vista, e no contexto atual das opções políticas que Cabo Verde tem vindo recentemente a tomar, estas não traduzem o que o povo, de alguma forma, espera e reclama. Penso que deveríamos ter a capacidade de traduzir o contexto global em que vivemos, mas sem nunca nos esquecermos de obter respostas em função das características específicas de um país, como são as de Cabo Verde.

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Acha que esse desinteresse globalizado tem a ver com o facto de a sociedade ser mais materialista e menos humanista? É possível mudar esta forma de agir?

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Temos mesmo que a mudar. Conforme dizia António Gedeão, “o mundo está em perpetuo movimento”, e essas fórmulas esgotam-se no momento em que nos deixarmos de identificar com a nossa história e com determinados caminhos que já estão esgotados. Nessa altura, o ciclo passa para outro estágio de amadurecimento e de transformação. A experiência artística, de alguma forma ajuda-nos a compreender esses processos. A própria humanidade, os fenómenos económicos, sociais e políticos do mundo, provocam as suas próprias ruturas internas. Só assim podemos criar a dinâmica de evolução e inovação. Creio que a humanidade vive da renovação de si própria e a política pode ser a disciplina que deveria ter visão para esses fenómenos, antecipando e preparando a rutura, que mais tarde ou mais cedo, será inevitável.

Atualmente, e falo de Cabo Verde, estamos tão distraídos a consumir o que nos chega de fora com tanta facilidade, que acabamos por nos fragilizar em relação ao que nos está a transformar. Não nos estamos a preparar, nem sequer a antecipar essa rutura, provocando-a no momento que nos for mais conveniente, o que num país economicamente tão fragilizado como Cabo Verde, acaba por ser de alguma forma uma irresponsabilidade. Temos de ser mais criativos, mais conscienciosos, por forma a antecipar os fenómenos que podem ser drásticos, principalmente os de ordem económica, que mexem com a existência básica deste povo. Atribuí essa incapacidade de antecipar a inevitável rutura à qualidade dos políticos ou ao seu desinteresse pela causa comum? Não é pela qualidade dos políticos, mais sim, pela falta de qualidade das pessoas que vão para a política. Penso que não seja por falta de vontade, mas o certo é que hoje em dia qualquer pessoa pode estar na política. Agora temos que questionar: será que essa pessoa tem qualidades para estar na política? No meu entender, para se ser político tem que se ter sentido de missão e ter causa, caso contrário é uma profissão como outra qualquer. Infelizmente nem sempre isso acontece.

"para se ser político tem que se ter sentido de missão e ter causa, caso contrário é uma profissão como outra qualquer" Em que é que isso pode afetar o futuro do país? Veja-se o caso da nossa juventude. Como sou reitor numa universidade de artes, é um caso que conheço bem, pois convivo com ela todos os dias. Posso afirmar que os jovens cabo-verdianos estão a viver um tempo “sem norte”. Tudo se lhes apresenta muito cinzento. Penso


Qual o seu maior desejo para Cabo Verde?

Como é que o resultado do investimento Que seja um país de uma boa referência para todos nós, proporcionando-nos uma existência criativa no ensino se traduz nestes resultados? e serena, e que acima de tudo, se consiga realizar Eventualmente, teremos que analisar os ou- em pleno. 

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tros fenómenos sociais que vieram interferir na formatação desses jovens. Há uma série de novos apelos que não existiam antigamente. Tal como costumo dizer, todos nós descendemos do mesmo tipo de família. Cabo Verde é um país construído da pobreza, onde as pessoas tiveram de usar de criatividade para algumas das soluções dos seus problemas. Isso não mudou muito, o que mudou foi a permeabilidade e o imperativo de Cabo Verde se inserir no mundo. Este fenómeno tem que ser interpretado pela política e tem que se encontrar uma resposta nas próprias políticas. O certo é que nem sempre estamos a acertar nas medidas e estratégias no combate a estes problemas específicos da nossa sociedade atual.

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que chegam já fragilizados por todo um sistema que está enraizado. Encontram-se despidos de um pensamento próprio. É nossa obrigação mudar esse abstracionismo. Contudo, não é nas poucas horas que passam nas universidades que se consegue suprir essa lacuna, pois esse pensamento formata-se e consubstancia-se antes, nomeadamente no período da adolescência. O nosso sistema educativo tem merecido grandes investimentos, mas os resultados da massificação deste sistema estão à vista. Penso que não foram devidamente ponderados a seu tempo. Estamos a produzir uma geração angustiada e frustrada. Os recentes fenómenos sociais de violência, alcoolismo e de utilização de drogas por parte da nossa juventude, são provas disso mesmo.

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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Música

Malaquias Costa

Paixão

pela música tradicional

Malaquias Costa, aprendeu com os grandes mestres. “Era vizinho do Muchim do Monte - para mim o melhor violinista que Cabo Verde já teve. Aprendi com ele os primeiros acordes no violino. Depois conheci o B.Léza, que também vivia ali perto. Passava os dias na casa dele. O B.Léza marcou-me pela sua genialidade. Era um dos

Com dez anos de idade, “Malacas” - como por todos é conhecido - vai viver para São Vicente, terra de músicos e de compositores, e aprimora-se nas suas capacidades musicais. A adolescência, passa-a entre o trabalho de ajudante numa loja comercial do Mindelo, e os ensaios numa viola de dez cordas. “Como na altura se ganhava pouco, com a música sempre podia completar um pouco mais o parco orçamento disponível”, confidencia. São Vicente vivia na altura os seus tempos de glória. O movimento centrava-se em torno do Porto Grande. A

expoentes máximos da composição e da execução na guitarra. Tenho orgulho em poder afirmar que fui aluno do B.Léza. Mais tarde, toquei com o Luís Rendall, famoso compositor e exímio solista. Foi um mestre. Para o acompanhar, era preciso ser um excelente executante, pois os solos que ele fazia, não estavam ao alcance de qualquer um.”

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a casa dos seus pais, na Ribeira do Corvo, Malaquias António Costa cedo se habituou à presença dos instrumentos musicais. O seu pai, que também tocava, deixava-os propositadamente à sua disposição. “Tinha na altura os meus cinco ou seis anos, e aquele ambiente com os amigos do meu pai, reunidos à noite a tocar, despertava-me um fascínio imenso. Ao outro dia, costumava praticar sozinho, tentando reproduzir o que tinha ouvido na noite anterior. Era algo de mágico!”, relembra.

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Malaquias Costa nasceu em 1926 em Santo Antão. A música desde sempre o fascinou. Aprendeu-a com os grandes mestres da composição cabo-verdianos e orgulha-se de ter sido aluno de B.Léza. Figura de destaque das noites do Mindelo, “Malacas” animou as noites dos bares e restaurantes da moda em São Vicente. Acompanhou nomes como Manuel de Novas e Cesária Évora. É um dos grandes violinistas do panorama musical cabo-verdiano.

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Novamente em São Vicente, resolveu que era altura de formar o seu próprio grupo musical. A sua formação preferida eram os quartetos. “Sempre gostei de quartetos. Duas guitarras, um cavaquinho e o violino. Raramente usávamos precursão, mas se por ventura a utilizávamos, era sempre de uma forma muito discreta. Recorríamos apenas a chocalhos tocados muito suavemente”.

“naquela altura, como havia pouco dinheiro, os que queriam emigrar metiam-se nos barcos e saíam clandestinamente” O grupo rapidamente ganha fama e torna-se figura de destaque nas noites mindelenses. Tocam em todos os bares e restaurantes da moda. Tocou com grandes nomes da música cabo-verdiana, tais como Celina Pereira, Ângela Maria, Mité Costa, Arlinda Santos, Lena Ferro, Sãozinha Fonseca entre outros. “Normalmente, quando elas passavam por aqui por São Vicente, e queriam gravar um ou dois temas na Rádio Barlavento, era o meu grupo que as acompanhava”, conta “Malacas”.

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ele chegavam barcos provenientes de todos os cantos do mundo. Conforme relembra, “havia sempre navios de carga e de passageiros que paravam em São Vicente, para abastecer de óleo ou carvão. Esse movimento, dava vida à cidade. Foi uma época marcante.”

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Talvez fruto da riqueza que observava entrar pelo Porto Grande, Malaquias Costa, então com 19 anos, decide abandonar São Vicente num desses barcos que todos os dias via partir. Conforme conta, “naquela altura, como havia pouco dinheiro, os que queriam emigrar metiam-se nos barcos e saíam clandestinamente. Davam o “salto”, como se costumava então dizer. Umas vezes tinham sucesso, mas outras vezes, sofriam muito e tinham de regressar. Fiz parte do grupo destes últimos. Para azar meu, resolvi fugir num barco cata-vento. Passei mal. Fui a viagem toda muito quieto, porque com o vento, havia sempre muito cascalho pelo ar. Se eu me mexesse muito, apanhava com o cascalho todo em cima. Viajei horas intermináveis num espaço onde mal cabia sentado. Fui sem destino. Ia para onde fosse o barco. Onde ele parasse, eu lá me havia de arranjar. Fiquei pela ilha do Sal.”, relembra.

Malaquias Costa também acompanhou Bana, Ildo Lobo e Manuel Novais, contudo o nome que mais recordações lhe trás é o de Cesária Évora. Conforme conta, “to-


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“se me estivesse a sentir bem, nem me lembrava de ir a casa. Vadiei um bocado na minha juventude, mas nunca me meti em problemas. As regras eram para se cumprir.”

Em relação às mornas e coladeiras que atualmente se compõem, é perentório ao afirmar que, “muitas delas têm perdido alguma da alma de antigamente”, e dá o

Nas noites de serenata, a sua paixão pela música era tal que, conforme diz, “se me estivesse a sentir bem, nem me lembrava de ir a casa. Vadiei um bocado na minha juventude, mas nunca me meti em problemas. As regras eram para se cumprir. Entretanto apaixonei-me pela minha mulher, e cheguei mesmo a compor umas três mornas, as quais lhe dediquei.” Infelizmente, essas melodias, com o passar dos anos, foram-se apagando da memória de Malaquias Costa, que apenas teve a oportunidade de registar uma, e que para sempre ficou gravada no disco Noites de Mindelo. Intitulada Cabo Verde, viria a ser um grande sucesso em França.

Com a música, Malaquias Costa percorreu o mundo. Portugal, Estados Unidos, Brasil, Alemanha, França entre muitos outros. Com Orlando Pantera e Voginha, participou na peça coreográfica “Historia da dúvida”, da portuguesa Clara Andermatt.

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car com a Cize foi uma experiência muito enriquecedora. Muitas vezes estava em casa a preparar-me para me deitar, e tocavam à porta em grande alarido, a dizerem que estava um grupo de gente importante no Grémio que gostaria muito de ouvir a Cesária a cantar. Como eu sabia por onde ela andava, ia-a chamar. Apanhávamos o Franck Cavaquim e o resto dos músicos em Monte Sossego e avançávamos para o Grémio. Depois era a noite toda a acompanhá-la”, recorda.

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exemplo das coladeiras que, “têm influencias de outros ritmos africanos que não os tradicionais. As mornas e coladeiras de antigamente, traziam muita vida a São Vicente. Vinham pessoas de longe só para ouvir a nossa música. Não havia barco que não parasse para escutar as serenatas à moda antiga. Atualmente, com a música eletrónica e os ritmos modernos, as pessoas já não prestam tanta atenção à música e a cidade ressente-se disso”, desabafa.

Malaquias Costa, o “Malacas”, é um homem feliz, pois tal como refere, “vivi em pleno a minha paixão pela música. Nasci numa ribeirinha pequena em Santo Antão, que tinha sempre água, por isso nunca me faltou comida na mesa. Fiz amigos em toda a parte e nunca me dei mal com ninguém, tenho uma família que me ama e que eu adoro, e no final, é isso que conta. Por isso, quando tiver que partir, vou feliz.” 


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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Instituição

Osvaldino Costa

Otimizar meios e recursos

para melhor servir o país O Serviço Nacional de Proteção Civil nasceu em Cabo Verde há dez anos, fruto da necessidade do país possuir uma organização capaz de coordenar e responder de forma eficaz, a casos de emergência ou catástrofes naturais em território nacional. Através do seu presidente interino, Osvaldino Costa, ficamos agora a conhecer este organismo, que desempenha um papel fundamental na prevenção e socorro a situações de acidentes graves, catástrofes naturais ou outras calamidades.

Aprovada recentemente, a Lei de Base da Proteção Civil, passará a incluir os bombeiros na sua estrutura organizacional. Atualmente, encontra-se em fase de estruturação a orgânica de funcionamento da instituição, que passará a ser denominada por Serviço Nacional de Proteção Civil e Bombeiros. Este organismo, será também responsável pela implementação de cinco novos comandos regionais. Segundo o seu presidente, “em Santiago, existirá um comando na Praia e outro em Santa Catarina. Estes comandos serão ainda responsáveis

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quando a situação é de maior envergadura, aí entra em funcionamento o Serviço Nacional, que coordena todo o sistema de emergência a nível nacional”.

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tualmente, a Proteção Civil em Cabo Verde, encontra-se em fase de restruturação interna, por forma a melhorar, quer ao nível operacional, quer em termos de coordenação e planeamento, os serviços prestados às populações. Ao nível nacional, o serviço é coordenado pelo Serviço Nacional de Proteção Civil, que tem sede permanente na capital do país. Ao nível regional, existem núcleos municipais, coordenados pelos presidentes das câmaras dos vários municípios. Conforme refere Osvaldino Costa, presidente interino do Serviço Nacional de Proteção Civil, “quando as situações de emergência ocorrem ao nível local, é o presidente da câmara o responsável pelos procedimentos da Proteção Civil;

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pela coordenarão das operações para a ilha do Maio. Outro comando ficará instalado no Fogo e abrangerá a ilha da Brava. O comando de São Vicente, ficará responsável por São Nicolau e Santo Antão. Existirá ainda um quinto comando, localizado no Sal, que responderá também pela Boa Vista”.

Também os recursos técnicos operacionais são uma preocupação. Conforme menciona Osvaldino Costa, “tendo em conta o perfil económico do país, tivemos que identificar os recursos privados, que em situações de emergência, podem ser utilizados. Sem o

A necessidade de organizar a estrutura em comandos polivalentes, deve-se essencialmente aos limitados recursos financeiros da organização. Conforme refere Osvaldino Costa, “a falta de recursos financeiros faz com que não possamos ter um grande número de efetivos, o que nos levou, a apostar na formação de agentes de proteção civil, que por seu turno, recrutarão voluntários para a organização”. Esta falta de recursos humanos, faz com que, em casos de necessidade pontuais, a Proteção Civil recorra a efetivos de outras estruturas e organizações. “Por exemplo, onde há a presença de militares, como em São Vicente, Santiago e Sal, estes podem atuar como um reforço significativo da estrutura. Nos locais onde não há presença militar, existem os serviços de saúde, a polícia nacional, os bombeiros locais e algumas estruturas na base do voluntariado, que poderão dar o seu contributo”, explica o atual presidente.

“a falta de recursos financeiros faz com que não possamos ter um grande número de efetivos, o que nos levou, a apostar na formação de agentes de proteção civil” apoio destas entidades, dificilmente a Proteção Civil teria meios capazes para enfrentar uma situação de catástrofe de grande envergadura. Numa situação dessas, teríamos que fazer a mobilização de recursos a nível internacional, tal como aconteceu em 1995 a quando da erupção na ilha do Fogo”, e adianta que, “existem protocolos de cooperação que podem ser acionados esporadicamente. Dentro do quadro da Comunidade


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Económica dos Estados da África do Oeste (CEDEAO), que permitem o intercâmbio de conhecimentos entre as várias Proteções Civis membros”. Ao longo dos últimos anos, a Proteção Civil tem vindo a delegar muitas das suas funções aos municípios, que ficam assim responsáveis pela coordenação de meios e recursos

humanos nas diversas regiões do território. Está-se também a investir na formação dos bombeiros e nos agentes de Proteção Civil municipais, assim como, na criação de uma Escola Nacional de Proteção Civil e Bombeiros, pois tal como justifica Osvaldino Costa, “existe a necessidade de formar formadores, que irão por seu turno integrar os vários centros municipais, distribuídos pelo país”. Dada a sua localização geográfica, Cabo Verde apresenta algumas especificidades relativamente aos riscos de emergência e catástrofe. Tal como descreve o presidente interino do organismo, “têm sido identificadas algumas áreas de maior risco, como, por exemplo, na ilha do Fogo, com o seu vulcão ainda ativo. Há também alguns registos de pequenos sismos na ilha de Santo Antão.

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“a preparação é a chave para o sucesso de qualquer ação da Proteção Civil, daí a nossa insistência nestas ações de simulacros”

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Em 2009 tivemos uma epidemia de dengue, para a qual foi mobilizada quase a totalidade da população nacional. Ainda em 2009, tivemos que lidar com chuvas violentas em São Nicolau, as quais provocaram a perda de algumas vidas humanas”, e adianta que, “há ainda outros pontos que registam elevada propensão para emergências: a zona de São Domingos, que antigamente não assinalava qualquer tipo de problemas, depois da construção do novo liceu, passou a ser um ponto negro na nossa avaliação, com a ocorrência de inúmeros atropelamentos. Há ainda algumas outras situações em Santo Antão, que devido ao acidentado do terreno, propicia que alguns turistas mais descuidados, ao fazerem as suas caminhadas pela montanha, acabem muitas vezes por se perder”.


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Por forma a que haja uma eficaz intervenção em caso de necessidade, a Proteção Civil, em articulação com outras organizações nacionais e internacionais, realiza regularmente ações de simulacros. Rotinar alguns dos procedimentos, mantendo as pessoas formadas e aptas para qualquer eventualidade, são o objetivos principais destes exercícios. Conforme diz Osvaldino Costa, “a preparação é a chave para o sucesso de qualquer ação da Proteção Civil, daí a nossa insistência nestas ações de simulacros. Temos também feito algum trabalho de sensibilização junto das populações, contudo, muito há ainda a ser feito, para que as pes-

soas se sintam parte do sistema, e que, em situações de emergência, saibam que ações devem tomar”. Tirar partido dos recursos, otimizando meios e procedimentos, é o desafio a que o Serviço Nacional de Proteção Civil e Bombeiros se propõe para o futuro. Apostar na sensibilização de populações, formação de quadros e melhoria dos equipamentos disponíveis, serão algumas das apostas imediatas de um organismo que vê no serviço de voluntariado, a plataforma para a sustentabilidade futura desta instituição, que se quer de todos os cabo-verdianos. 



W: Silvino Évora | F: Pedro Matos

Concelhias

Tarrafal de Santiago

História,

geografia e visão sociológica Localização Geográfica e seu enquadramento no espaço

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Tendo como suporte uma superfície de cerca de 991 km2, Santiago constitui a maior ilha do arquipélago de Cabo Verde. É nesta ilha que o Concelho do Tarrafal encontra o seu suporte, estando na zona setentrional da mesma. Ocupa, assim, uma superfície de cerca de 121 km2, tendo, assim, uma população de cerca de 17.784 habitantes, fazendo fé no Censo de 2000. Mais de um terço deste nú-

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mero da população vive em Chão Bom, que conta com várias escolas primárias, uma escola secundária, alguns jardins infantis, entre eles o de Cruz Vermelha, que fica na entrada das imediações do Ex-Campo de Concentração do Tarrafal. Chão Bom, das zonas mais populosas do Concelho do Tarrafal, continua a ser consequente com a


200 metros, abraçando o Monte Graciosa, que serve de protecção à Cidade do Tarrafal; as zonas sub-húmidas do interior, que abarcam sobretudo as terras de maior altitude do interior do Concelho. Localizado na parte norte da Ilha de Santiago, o Concelho do Tarrafal é abrangido pelos ventos húmidos do Nordeste. Porém, as características marcadas por um relevo pouco acentuado torna-o num dos concelhos mais áridos da ilha onde se encontra inserido.

sua história, sendo uma das regiões mais pobres do concelho, carente em quase tudo aquilo de que precisa para a sobrevivência da sua população. A queda do parque de produção agrícola de Colonato veio agudizar, ainda mais, o problema, desafiando a própria estabilidade alimentar e económica de dezenas de famílias de Chão Bom. As ofertas culturais são, quase, reduzidas a nada, não contando a região como nenhuma biblioteca de fôlego, nenhum cinema, nenhum parque de diversão, nem mesmo uma capela para que os fiéis possam colocar as suas preocupações nos ouvidos de Deus. Com uma topografia variada, o Concelho do Tarrafal estende-se entre duas grandes maças de montanhas: a Sul, as montanhas que compõem a Serra Malagueta, que alcançam 1063 metros de altitude; e a Norte, o Monte Graciosa, com cerca de 642 metros de altura. Em termos climáticos, Tarrafal de Santiago, à semelhança do que se passa no resto do país, assinala-se por duas estações com marcações acentuadas: o tempo das águas e o da seca ou das brisas. Num olhar marcadamente geográfico, o Concelho do Tarrafal de Santiago sinaliza-se pela existência de uma zona árida que se estende sobre o litoral, alcançando uma altitude média de 200 metros; um lençol semi-árido que cobre a faixa sub-litorânea, atingindo também uma altitude média de

Tarrafal de Santiago: Visão História Compreender a História imanente ao Concelho do Tarrafal implica que se conheça os fluxos e contra-fluxos que marcaram, de forma indelével, a divisão administrativa de Cabo Verde, com particular realce para a Ilha de Santiago. Isso leva-nos a debruçar sobre a própria história política de Cabo Verde que nos fornece elementos catalisadores, como a compreensão da faixa territorial que cobre o Concelho do Tarrafal e a sua geografia política no período Colonial, recolocando-o no mapa da Ilha de Santiago como parte do Concelho de Santa Catarina; a importância que a Vila de Mangue ganha numa atmosfera de sucessivas mudanças da sede do Concelho (ora nos Picos, ora em Achada Falcão), precipitando, assim, a sua transferência para a então Vila do Tarrafal nos finais do século XIX. Desde logo, considera-se o facto do Concelho de Santa Catarina ter sido criado, em 1834, englobando, na altura, as freguesias de São Miguel Arcanjo,


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São Salvador do Mundo, Santa Catarina e Santo Amaro Abade. A separação do Tarrafal com Santa Catarina deu-se na segunda metade do século XIX, passando o primeiro Concelho a albergar as freguesias de Santo Amaro Abade e São Miguel Arcanjo, tendo a então Vila do Tarrafal como a sua sede. Este quadro administrativo se estende até 1997, quando, formalmente, São Miguel assumiu os seus próprios destinos, impondo um desmembramento do então Concelho, passando a registar-se, desde então, o Concelho do Tarrafal e o Concelho de São Miguel Arcanjo.

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Tarrafal, o concelho mais nortenho da ilha de Santiago, sobrevive à base das actividades agropecuárias e das remessas dos emigrantes, que desempenham um papel de extrema importância no dia-a-dia da população local. A pesca constitui também um outro indicador forte de sobrevivência das famílias locais, havendo um número considerável de homens que vivem dessa actividade e mulheres que vivem da venda dos pescados. Falar do Concelho do Tarrafal, acentuando sobretudo a sua dimensão histórica, implica, antes de tudo, conhecer o percurso do regime salazarista, que, açambarcando a opinião da maioria, encaminhou uma massa humana para o Campo de Concentração do Tarrafal por o considerar dos lugares mais inóspitos de Cabo Verde. Hoje, transformado em Museu de Resistência, o edifício que albergava

os desterrados guarda a trágica memória da luta contra o fascismo. O Concelho do Tarrafal, tal como as outras partes de Cabo Verde, conheceu um desenvolvimento acentuado durante os anos 90, prolongando-se para o novo século. O surgimento de novos bairros, o movimento do êxodo rural e as movimentações dos cidadãos entre a diáspora e o concelho têm sido desafios para Tarrafal. Daí a necessidade de encontrar respostas adequadas aos problemas que se apresentam. Uma delas passa pela promoção do conhecimento. Isto porque, a educação, a cultura e o conhecimento constituem as grandes chaves para desencravar o desenvolvimento das amarras da pobreza. O êxodo rural precipitou uma expansão de Chão Bom que, cada vez mais, assume as características próprias de uma Vila. O tecido urbano está a conhecer um processo de integração profunda, havendo registo de uma mobilização grande das populações do interior sul do Concelho, provocando a expansão de Chão Bom nas latitudes Norte-Sul-Este-Oeste. O desenvolvimento do turismo é uma promessa das autoridades locais e nacionais, mas constitui um grande desafio para o Concelho, que deve preparar as suas populações para uma possibilidade de alteração do seu tecido e estruturas sociais.


Mercado de Trabalho, Pobreza e Ambiente O emprego constitui um grande desafio à população do Tarrafal, mormente para os cidadãos que vivem em Chão Bom. A pouca instrução académica que marca o percurso de vida de muitos filhos desse lugar faz com que, em muitas ocasiões, se registe uma troca simétrica de actividades virtualmente benéficas (como o cultivo do conhecimento) com outras actividades menos boa, como o consumo abusivo das bebidas alcoólicas. Neste sentido, faz-se necessário promover uma alteração do quadro, dando alternativas aos jovens. O

O desemprego, o baixo nível de instrução académica, as condições de habitação, o elevado número de famílias monoparentais com mulheres à chefia, evidenciam uma situação de pobreza, situando o Concelho na faixa dos mais pobres de Cabo Verde. A falta de alternativas de emprego obrigou a que muitas mulheres se enveredassem para o caminho da extracção de inertes, acabando, assim, por degradar o ambiente. Por aqui, também, está-se a prestar um mau serviço ao turismo enquanto motor de desenvolvimento do concelho porque as praias de Tarrafal vão perdendo importância turística, complicando ainda mais o tecido económico de um concelho que tem nas actividades ligadas ao turismo a sua esperança de desencravamento económico. 

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Chão Bom tem beneficiado desta dinâmica, contando com grupos como Associação Cívica de Chão Bom, Escola de Futebol Tó, Associação das Batucadeiras de Cabeça Carreira, Grupo Futebolístico Real Júnior. Desde há cerca de cinco anos, os jovens de Chão Bom tem estado a organizar, anualmente, um conjunto de actividades, conhecido como ‘Chão Bom em Movimento’, que agrega actividades culturais, desportivos, cívicos e de promoção do conhecimento. A primeira edição aconteceu, em 2008, e de lá para cá não mais se parou.

A agricultura tem sido uma aliada das famílias tarrafalenses na fuga ao desemprego, promovendo, assim, o autoemprego. Porém, regista-se a necessidade de uma melhor formação para que se tire melhor proveito do segmento da agricultura. A transformação dos produtos agrícolas, a rentabilização da água, o melhoramento da produção agrícola e animal, são factores que poderão contribuir para o empoderamento das famílias cuja actividade económica se estriba na agricultura e criação de gado.

A população de Chão Bom, maioritariamente jovem, contava então com 46,8% da população com menos de 15 anos de idade, 46,3% da população com idades entre 15 a 64 anos, o que mostra ser uma sociedade marcadamente jovial. Tendo feito um percurso no ramo do associativismo, Tarrafal conta actualmente com mais de duas dezenas de associações com vocação comunitária e agro-pecuária. Há um número significativo de jovens, sobretudo filhos de agricultores e pescadores, que se reúnem em associações juvenis, grupos desportivos, recreativos e culturais, procurando dar vida e dinâmica ao concelho.

ensino e a formação técnica e profissional surgem como caminho adequado para orientar os jovens sem uma linha profissional, promovendo, assim, o autoemprego, na medida em que as poucas empresas que ali existem são praticamente revestidas de características de microempresas ou unidades empresariais de natureza familiar.

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Demografia e Visão Sociocultural: Um concelho em crescimento O Censo de 2000 situava a população do Tarrafal na fasquia de aproximadamente 18 mil habitantes, com uma percentagem de indivíduos do sexo feminino consideravelmente superior aos do sexo masculino. Cerca de 3900 famílias serviriam, então, de suporte à integração dos tarrafalenses numa base coesa de harmonização. Cerca de sete mil indivíduos viviam então em Chão Bom, a localidade escolhida pelo regime de Salazar para emprestar o nome a uma parte considerável da história da liberdade no espaço lusófono.

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E: Luís Neves | W/F: Pedro Matos

Municípios

João Domingos Barros

Tarrafal

Um município recheado de potencialidades

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José Domingos Barros, encontra-se há 12 anos à frente dos destinos da terra que o viu nascer. Cumpre este ano o seu último mandato como Presidente da Câmara Municipal do Tarrafal. Economista de profissão, foi quadro do Ministério das Finanças, com uma passagem posterior pela Cabo Verde Telecom. Considera que, quer pela sua história quer pelas valências naturais e geográficas, o Tarrafal é um município que tem ainda muito a dar ao país.

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alar do Tarrafal de Santiago, é falar não apenas da história de Cabo Verde, mas da história dos povos lusófonos. É no Tarrafal que podemos encontrar os vestígios da antiga prisão colonial, e que constitui um símbolo vivo da presença do antigo regime colonial português. Conforme refere João Domingos Barros, “este campo prisional, é património não só de Cabo Verde, mas também de todos os povos lusófonos e mesmo do mundo. Como tal, pretendemos preserva-lo e valoriza-lo enquanto história, pois trata-se de um marco para os PALOP. Estiveram aqui encarceradas muitas pessoas que lutaram, no âmbito dos movimentos de libertação nacionais (com especial destaque para angolanos,

guineenses e cabo-verdianos), contra o regime fascista instalado, e essas memórias têm de ser preservadas.” Cabo Verde e o resto dos PALOP, têm a consciência do valor histórico que este símbolo do antigo regime colonial representa. Para o autarca, “tem sido feito um esforço substancial para dar uma vida própria a este património, quer por parte do governo, quer ao nível do município. Apesar de os recursos não serem grandes, têm sido feitos esforços, nomeadamente pela parte portuguesa e cabo-verdiana, para a preservação deste património. Atualmente, tem-se estado a trabalhar para o tentar inscrever na lista de Patrimónios Mundiais da UNESCO.”


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O campo de concentração do Tarrafal regista inúmeras visitas ao longo do ano. Centenas de estudantes, investigadores, turistas ou simples curiosos, visitam este património histórico e cultural, no entanto, conforme refere João Barros, “infelizmente, os documentos de consulta que aqui estão, são ainda muito incipientes face aos que existem em Portugal, daí que muitos deles saiam um pouco dececionados das visitas. Contudo, têm a possibilidade de presenciar o espaço físico, o que por si só é bem revelador das dificuldades dos que por aqui passaram.” Por se tratar de um importante marco da história dos povos de língua oficial portuguesa e do mundo, o ainda atual presidente da câmara em funções, acredita que este património possa vir a ser melhor rentabilizado, e que os frutos dessa capitalização possam vir a ser colocados ao serviço do Tarrafal e de Cabo Verde. Mas o Tarrafal não se encerra no antigo campo de concentração. A expressão cultural dos tarrafalenses sempre teve grande projeção no panorama artístico do país. Aqui nasceram nomes importantes

da música e das artes. Conforme recorda João Domingos, “ é natural do Tarrafal, o atual ministro da cultura Mário Lúcio - artista multifacetado e que muito tem contribuído para o fomento cultural do país - a par de muitos outros, como, por exemplo, o José Manuel Soares, o Princezito, ou o Beto Dias”.

“tem sido feito um esforço substancial para dar uma vida própria a este património, quer por parte do governo, quer ao nível do município” Com os seus 18 mil habitantes, sempre que possível, o município tenta promover a cultura das suas gentes, seja na música (com a realização de espetáculos a quando das festas no município),


Ainda no domínio da dinamização cultural, o Tarrafal revela-se como um município extremamente ativo. A par das feiras de artesanato, é realizada a Feira das Comunidades, em que as gentes limítrofes à zona urbana, podem expor o que produzem. Conforme diz o autarca, “o intuito destas iniciativas é dar a conhecer às pessoas que nos visitam, o que de melhor temos para oferecer, facilitando assim a criação de riqueza às nossas comunidades rurais, e em última análise, a todo o município”.

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A diversidade da oferta cultural e de lazer, fazem do Tarrafal um dos destinos preferidos das gentes de Santiago. As suas praias, as povoações mais tradicionais - das quais se destacam ainda alguns focos da presença dos Rebelados - o seu artesanato típico (com o Centro de Artes e Ofícios de Trás dos Montes e a sua mostra permanente de olaria, cestaria e panaria), e a música tradicional - da qual se destacam as batucadeiras de Ribeira da Prata e Chã Bom - fazem as delícias dos seus visitantes.

na literatura (através de feiras e alguns apoios ao lançamentos de novas publicações), ou em muitas outras áreas de expressão cultural, como o artesanato e as artes plásticas. Conforme refere João Barros, “patrocinamos muitos autores, para que possam trazer à luz do dia as suas obras, contribuindo assim para o enriquecimento cultural do Tarrafal, e do país em geral. Com este objetivo, concebemos um espaço destinado a todas estas iniciativas culturais, ao transformarmos o antigo Mercado do Tarrafal, no atual Mercado de Artesanato e Cultura, com uma mostra permanente, uma sala de formação para música, teatro e dança, e um pequeno auditório com capacidade para 300 pessoas. Este equipamento, tem servido para

que os artistas locais, apresentem ao público o seu trabalho”, acrescentando que “este espaço tem-se revelado extremamente importante na dinamização da vida cultural do município.”

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“patrocinamos muitos autores, para que possam trazer à luz do dia as suas obras, contribuindo assim para o enriquecimento cultural do Tarrafal”

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Contudo, a aposta na educação, foi a grande prioridade do autarca nestes doze anos de governação. Conforme recorda, “quando cheguei ao Tarrafal, encontrei um município que fazia parte da lista dos três mais pobres do país. O diagnóstico que fiz, é que essa pobreza tinha muito a ver com o atraso na educação e formação. Essa foi a minha grande aposta, por forma a podermos ter jovens

Devido à sua privilegiada localização geográfica, o Tarrafal possui excelentes condições para investimentos no setor turístico, no entanto, conforme refere, “o modelo de exploração turística para o Tarrafal, tem forçosamente que ser diferente do praticado na Boa Vista ou no Sal, que são modelos que não criam riqueza às comunidades. Os grandes empreendimentos turísticos que se têm vindo

Outros setores com grandes potencialidades de exploração no Tarrafal, são o agroturismo, as pescas, a agricultura e a pecuária. Conforme relata, “há investidores com projetos aprovados nestas áreas, mas que, devido à crise mundial que atualmente se vive, suspenderam o arranque dos respetivos projetos, o que fez com que tivéssemos de desacelerar os processos que pretendíamos di-

João Domingos Barros, é da opinião que a solução para as altas taxas de desemprego que se verificam no Tarrafal, à semelhança do que acontece um pouco por todo o país, passa, em grande parte pela forma como os municípios negoceiam a entrada de investidores no país. Para o autarca, “os investimentos devem dar prioridade à criação de emprego”, e adianta que, “há setores, com grandes investimentos externos, que não geram riquezas”, e exemplifica com o caso do turismo.

a desenvolver nessas ilhas, são autónomos. Importam as batatas, os legumes, o peixe e a carne que consomem. A riqueza gerada pela sua exploração fica nos países de origem e Cabo Verde não lucra nada com isso. Quando se diz que o país cresceu 7% ao ano, temos que questionar onde ficou essa riqueza. Não queremos esse tipo de turismo para o Tarrafal. Preferimos um modelo em que as pessoas possam sair dos hotéis para consumirem na comunidade”, e conclui que, “as comunidades têm que fazer parte do processo, contribuindo através do fornecimento de produtos ligados à agricultura, à pecuária ou às pescas, pois têm capacidade e conhecimentos para o fazerem”.

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com capacidade de intervenção, preparados para enfrentar o mercado de trabalho”, e lembra que, a quando da sua candidatura à Câmara Municipal, “não havia uma mulher com formação superior para integrar a lista. Hoje em dia, esse problema já não se coloca. Temos muitos quadros que se formaram através da Câmara Municipal e que diariamente contribuem para o desenvolvimento do município e do país. O Tarrafal deve ter enviado para Portugal, para completarem as suas formações profissionais e superiores, mais de mil alunos ao longo destes últimos anos. Foi nitidamente uma aposta ganha”, conclui.

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“quando cheguei ao Tarrafal, encontrei um município que fazia parte da lista dos três mais pobres do país”

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namizar”, no entanto, acredita que, “assim que as condições macroeconómicas melhorarem, esses projetos de investimento deverão retomar o seu normal desenvolvimento”, afirma.

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“se não houverem pessoas capacitadas para manterem esses grandes investimentos, iremos ficar dependentes do exterior, e isso é mau para as populações, pois não gera empregos”

Para o autarca, “todos os grandes investimentos, só têm sentido, depois de resolvida a questão da educação”, pois como adianta, “se não houverem pessoas capacitadas para manterem esses grandes investimentos, iremos ficar dependentes do exterior, e isso é mau para as populações, pois não gera empregos, o que em última análise é prejudicial para o país, que despende recursos que poderiam ser aproveitados internamente”. Por isso, o autarca defende que, “em primeiro lugar devem estar as pessoas e só depois as infraestruturas”.

no tempo que servi as populações, mas para os que me sucederem, muito há ainda a fazer.”

João Barros, é da opinião que, “nas decisões que envolvam compromissos de longo prazo e que abranjam grandes quantidades de recursos, deveríamos ouvir todas as forças políticas e económicas do país, incluindo as populações. Isto para dizer que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. É preciso desenvolver de forma gradual. Considero que desenvolvi o que tinha para desenvolver

Durante os seus três mandatos, o Tarrafal saiu da cauda do desenvolvimento, ocupando atualmente um patamar intermédio. Foi o primeiro município de Santiago a ter uma rede elétrica de cobertura total e tornou-se num dos municípios onde o abastecimento de água às populações se encontra acima da média nacional. Em termos urbanísticos, João Barros é perentório ao afirmar que, “em San-


Ao seu sucessor, João Domingos Barros pede que “respeite o património coletivo - que é de todos - e que respeite os tarrafalenses, trabalhando apenas em prol do desenvolvimento dos seus munícipes e deste maravilhoso país, que é Cabo Verde.” 

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Em jeito de balanço final destes doze anos de governação, João Domingos Barros afirma que, “foi uma experiencia pessoal gratificante. Aprendi a fazer a gestão da coisa pública, e pude compreender que os cabo-verdianos ainda têm muito a aprender. É preciso fazer política com mais ciência e não apenas a copiar o que se faz lá fora. Acho que temos políticos a mais para o número de pessoas que gerimos, e há administração a mais para a economia societária que estamos a servir. O nosso Parlamento tem 72 deputados, temos um governo com 20 membros, temos 22 municípios. Se juntarmos a isto tudo os funcionários públicos, penso que possuímos uma estrutura despropositada, para gerir apenas 500 mil pessoas. É altura de começarmos a pensar na reforma política e administrativa do nosso país, por forma a se gastar menos dinheiro captado por via dos impostos, com a classe política e administrativa.”

Para o autarca, “Cabo Verde é visto como um país que faz bom uso dos recursos provenientes da comunidade internacional, no entanto, tal não quer dizer que não hajam falhas, apenas revela que cometemos menos falhas que os outros. Talvez tenha um pouco a ver com a nossa história e maneira de estar perante a vida: fomos educados a aprender a viver com pouco. Nestes anos que estive à frente dos destinos do município, através do recurso a créditos bancários, podia ter feito muitos mais investimentos, mas criaria infraestruturas que no atual momento não são prioritárias, por isso os evitei. Possuímos um município não endividado. Penso que as políticas sociais devem ser feitas com as receitas correntes, pois têm que ser implementadas no dia-a-dia. O recurso a créditos bancários só é justificável na criação de infraestruturas geradoras de rendimentos que contribuam para o desenvolvimento atual, e não para um futuro longínquo.”

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tiago, é voz corrente, dizer-se que o Tarrafal será a cidade do futuro. Conseguimos encontrar um ponto de equilíbrio entre a pressão na procura de lotes de construção e a planificação. Conseguimos controlar a construção clandestina, que é prática que atualmente já não existe no município”.

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Tarrafal Azul olho para a bandeira do meu país, vejo o mar olho para o céu, vejo estrelas rutilantes vejo-me mergulhado num azul infinito a sombra da fresca noite que tranquiliza os dias deste país de marinheiros sobre estas pedras suspensas no infinito oceano vejo a lindíssima áurea azul da identidade a morte do infinito nas bocas do oceano atlântico a sépia estridente cor azul que entre choque estridente e transparência roga a tenacidade de um povo-ilhéu de cima dos braços rechonchudos de monte graciosa vejo o olhar salivante do mar de tarrafal o olhar carnudo que come as águas degusta o azul cristalino, baixando às profundezas do mar abraço esta cor azul como se fosse meu veleiro que navega na costa norte de santiago, navega sorridente briga com o sol, matérias do sorriso navega para encontrar a terra que já tem sulca para se encontrar nas faixas da nossa bandeira navego na contradição dos ventos contrario esta maré seca que me quer afogar neste azul infinito e eterno que preenche o sonho procuro a origem de pecados que não cometi dos sonhos que se estrebucham nas ruas da minha aldeia

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solto o meu olhar para o tecto do céu também procuro o ponto onde o mar morre em profundeza vejo que nunca o mundo pariu tanto azul como em tarrafal nunca o azul foi tão intenso como neste chão bom

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no azul do tarrafal vejo um anjo que se perdeu nos meus olhos por ser infinito que em mim afogou a sua dor e a sua angústia e no oceano me mergulho desesperadamente para calar toda a inveja que debaixo deste sol perdura para me tornar eterno quando na poesia encontro a minha existência. Poema de Silvino Lopes Évora



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Propriedade: Palanca Média Produções | Cabo Verde: 750$00 - Portugal: 7,00 Euros - Resto do Mundo: 9,00 Euros | Email: info@nosgenti.com | www.nosgenti.com

Revista Nós Genti | Edição 3 - Junho 2012 | Vera Duarte: Por grandes causas, pela vida e pelas pessoas

Vera Duarte

Por grandes causas, pela vida e pelas pessoas Ilha do Fogo

Cinco séculos a renascer das cinzas A emblemática Festa da Bandeira Renascer o cultivo do café

Ilha de Santo Antão A descoberta de um exotismo peculiar Ainda tanto por descobrir

Sidónio Monteiro Zelo na dedicação à causa pública

Leão Lopes Criatividade, interiorização pessoal e firmes ideais

Tarrafal de Santiago História, geografia e visão sociológica


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