A Grécia é atravessada pela mácula. E a mácula é constantemente nomeada. Logo no princípio da Ilíada. É um mal que vem de Apolo e que se abate directamente sobre os gregos. A mácula é o tema da tragédia — a Hamartia. Sempre a Hamartia. A hamartia, regra geral, é resolvida em carnificina e crime. A “luz” grega, a harmonia, é construída com a hamartia e a katharsis. O número, o ritmo, o que se intromete para resolver a hamartia sabe que esta regressará sempre. Por isso o grego raramente tem propensão para o paradisíaco. E pela mesma razão Nietszche teve que recorrer à ideia do Eterno Retorno como muleta para aguentar o sofrimento e disfarsar o pessimismo. Este não separa a Hamartia da Harmonia. É o “ritmo da caducidade”. Ou como me diziam o outro dia ao jantar: “a Grécia é uma choldra, sempre foi uma choldra”. O rei D.Carlos dizia que Portugal é uma “piolheira”, o que coincide com o enigma dos piolhos ao qual Homero não soube responder. A Grécia Antiga é também uma piolheira, apesar da luminosidade das praias. Ou sobretudo por causa disso. A mácula não é nada mais do que a imanência, a vida, viral, suja, perturbante, sexuada. O imaculado é o tanático, o corpo penetrado pela espada e pelo fogo. É assim que se tem que ir repensando o nú das estátuas gregas.
É Nausícaa que lhe provoca (a Odisseus, à Grécia) nostalgia de todas as ninfas (que não são ninfas), nessa categorias de compreensão audaciosa, de vocabulário incontrolado, sem telhado, mesmo que o acesso fosse vedado. Damos conta de que o estado de nudez é consequência de sermos naufragos, e de que as estátuas sobram ao naufrágio da história. Há um furor que assiste no desmembramento à morte no poema, que se escreve elíptico em Odisseus. Ao contrário de Hamlet este pensa o conflito da espécie, o seu onde, a sua Penélope, como uma possibilidade “burguesa” de vida, com tachos ao lume e sopas temperadas com segurelha. A criação ideológica, ignora as imagens turbilhonantes. Em Hamlet a elipse é um método de expansão para os quartos onde nos afinamos num tempo inesgotável a matar ratos nos cantos obscuros que afinal são gajos chamados Polónios. A Odisseia restaura-nos ao multiplicar as errâncias pelo mito, e o “ambo” (Lllansol) em particular. Nietzsche não cessou de o desfiar, nessa anedota llansoliana — o “devir da reciprocidade amorosa” em aparente contracorrente com o ser anedota.
Homero não se limita a procurar a história. Mas a história só faz sentido se Odisseus for “o” percursor, a (re)agir sobre os textos para o “ambo”, para o florescer do devir amoroso. As profecias agitam-se sob o fundo de um palimpsesto. Homero continua a interrogar os manifestos que provocam a história onde não se realizam plenamente nem os filósofos, nem os sofistas, com as suas histórias, a soltar criaturas possuintes, embora impotentes.
A profecia é a forma ideal do que convencionamos chamar mitos. Não sei se é um puro empurrar, com a terrível legião de anjos ou perspectivismos, ou se nos desembaraçamos deles com mil cautelas, já que os seus daimones estão aí, para que a visão se faça carne. Mas os textos homéricos, quando os abordamos, destilam pensamento (sofístico? filosófico?), são a figuração que se anticipa ao que nos destina ainda. Não que a haja como algo perliminar (um Logos?), porque há inúmeras palavras e estórias em Homero de figuras acabadas, sem espessura, bidimensionais, à espera de desenvolvimentos, nem que seja aos poucos. Há então em Homero um figurar que é pensamento, que nos faz repensar coisas mil vezes repensadas, um fervilhar de logoi a partir de imagens fortes. Não se trata de ingenuídade, como pretendia Vico, nem de arquétipos, mas de reproduzir uma complexa sabedoria poética, com teias de relações de dissimulacros, a acompanhar figurações e a inventar outras novas que nos surpreendem ainda com velhacarias e maningancias.
É claro que Homero é o cego que inventa as figuras, e o destino da literatura será o de as tornar visíveis a partir de uma propensão igualmente cega, anti-mimética, garantindo a plasticidade do Pseudos. Essa figuração é o metamórfico, e nunca se essencializa. Ele pensa por “conceitos” (por coisas que vai concebendo), porque tudo ali (nos conceitos e fora deles) é movediço, polposo, astuto. Adiante diremos o que é um conceito, fora das redes do mercado e das manhas do espetáculo.
O que é o/um “conceito”? — etimológicamente é o “tomar com”, ou “junto”. É uma captura, uma “capio” (mais tarde captio). Agarrar algo. É predação, no sentido mais básico. Tomar pelas mãos, pelas patas, para uma devoração. Falamos em conceito quando queremos agarrar numa coisa como uma espécie de todo, e ao enunciarmos determinado conceito damos o ar de quem conquistou essa coisa com uma palavra ou a sua definição. Há todo um conjunto de palavras construidas com “capio”: participação, capacidade, percepção, principe (principio), suspeita, recepção, acepção, capacidade, etc. Nas linguas germanicas, o correspondente ao “capio” é o haben (em alemão) e o have (em inglês). Nada mais do que o ter. Mais uma vez, trata-se devoração, que leva, em última análise ao sentido de propriedade — o que eu tenho, o que se tornou meu, uma sensação de defesa territorial. São curiosos os sentidos derivados de captio no vocabulário comum. O italiano dá o exemplo mais claro, como o “capire”, “capere” — perceber é o mesmo que caber. A percepção é um cabimento — o espaço justo. O que faz todo o sentido em expressões como: “não tem cabimento” — como algo que não se ajusta, que é destituído de “conceito”.
Quando nos referimos a arte conceptual pensamos em dois tipos de clichês — o primeiro é o de que é uma arte feita sobretudo com palavras, ou a partir de ideias, regra geral enunciadas verbalmente. O segundo é o da utilização do “mecanismo” do ready-made. O apropriarse de uma coisa e fazê-la caber no território da arte. Este ultimo dispositivo ( refere-o Emilio Villa num artigo de 1954, Noi e la preistoria, A proposito di una scoperta recente ) é prefigurado no homem de Neandertal quando desloca vertebras de baleia percorrendo grandes distâncias para tê-las em sua casa. Diz Villa: “sarà soltanto una intuizione di carattere magico-religioso, o, tenuto conto della fondamentale e semplice organicità del pensiero prelogico, del pensiero preistorico, così difficilmente sezionabile in gradi e in elementi, non sarà magica, o intuita come magica proprio l’idea centrale che rappresenta una vertebra? e cioè, la strutturazione, la continuità, la variazione metrica costante, l’iterazione? il sentimento della vertebra, della catena, del serpente, dell’intreccio, non è forse da considerarsi la fondazione prima, e ultima, del sentimento così detto artistico, della intuizione ritmica?” O Homem de Neandertal foi durante muito tempo visto como alheio ao “sapiens” — hoje em dia prevalece a tese de que houve interacção entre as duas espécies e de que este contribui genéticamente para a nossa espécie.
No sentido moderno o “conceito”, é visto muito menos como um acto de captura, mas antes como uma ossatura, a vertebra da coisa, representação abstracta e sumária. Já não é apenas a captura de algo comestível, mas pressupõe-se que algo foi plenamente assimilado, e de que a forma “essencial” pode ser traduzida ou defenida. Não vale a pena insistir sobre a banalização da palavra conceito no dominio do comércio, da propaganda e da legitimação do que quer que seja (tornando-se particularmente irritante nas artes, na arquitectura e no design). O que hoje chamamos conceito é algo instável, em mutação (em diversas velocidades simultaneas). Deleuze considera a filosofia como o que inventa conceitos. Eu diria que a filosofia é sobretudo o que metamorfoseia conceitos, o que desloca as capturas, o que inventa e inventaria principios.
Por vezes a filosofia gosta de associar, como faz a Sophia de Mello Breyner, a Aletheia ao nu. Ao desnudar. Ao strip-tease. Esquece que o pudor é antropologicamente estruturante na Grécia, quer no corpo, quer nas emoções. O choro de Ulisses cobrindo a face. Ou o “physis kriptesthai philei” de Heraclito. Mesmo traduzindo “heideggerianamente” assim — o “eclodir deseja esquivar-se”. Heraclito, é claro, não vale para todos os gregos. Nem Homero. A Grécia foi sempre pluralista e fractal. Mas o grego também sabe que o nu nunca é suficientemente nu. Não há sequer uma “crença no nu”. Ou antes, pensa a nudez, nos Kouroi, a partir do desnudamento da morte, do que nos é ocultado na vida. É um pouco como o mito sumério da descida de Inanna ao infernos. A nudez vem dessa zona obscura. E é a partir da nudez que nos vem dos mortos que se pode começar a vislumbrar. Como se a morte fosse um ginásio onde se vai continuar a lutar pela vida. Como se soubesse então que a morte é indissociável da vida, como no dito de Heráclito: “vive-se de morrer, morre-se de viver”.
O aparecimento dos kouroi coincide no tempo com o poesia lírica, e com “a escrita, na sua função, própriamente literária” (Colli), com o surgimento da subjectividade, derivada de um uso mais corrente da escrita alfabética. De certa maneira o alfabeto desnuda. Fala-se de uma desieratização grega das estátuas egípcias, embora lenta. Mas a desieratização não explica a nudez. É preciso ler Arquíloco, e perceber que algo se estilhaçou, e o que a sua aventurosa vida guerreira se está a cagar para os senhores para quem trabalha, e que a bela morte da Ilíada é uma treta, e que a certos momentos a cobardia é sábia, e que o humor e a ironia são indispensáveis na vida. Arquíloco ri, e esse é o riso dos kouroi. Assim o nú não me parece um movimento desvelador, mas dissimulador. Ou desvela dissimulando, fazendo entrar a subjectividade e a franqueza no que antes era ritmo, hierarquia, sagrado — constantemente recopiado, repetido, neurótico.
O nú é a divina profanação. O nú durará o que durou a Antologia Grega, incluindo a tradição romana do epigrama. O nú explora uma prega que foi aberta pela Odisseia. E de certa maneira o nú é o que levará à decadência, ao mundo alexandrino de fofocas e intrigas, ao amaneiramento, à feminização — e ao mesmo tempo que o nu gera um ambiente frívolo, ele é acompanhado da tagarelice filosófica, constante, com as suas hipocrisias e oportunismos, até chegarmos ao clichê da Venus de Milo, uma obra habitada por cócegas e comicheiras sexuais. Nos kouroi o movimento é apenas propensão, ou se preferirem, potêncialidade. É um tema filosófico que só será plenamente enunciado por Aristóteles. O que faz a força destas estátuas a que teimamos chamar arcaícas, é que nelas pouco foi dissipado. Elas contêm a energia condensada do que mais tarde será a complexidade da escultura helenística. Se pensarmos nestas esculturas elas são limitadas, caso as reduzamos aquilo que foram no seu contexto. São formas que ganham força graças ao nosso culto “primitivista” e em comparação com a prolixidade helenística, nas suas sacudidelas entropicas/neguentrópicas.
O nú em pintura começou por ser pouco nú. A tridimensionalidade do nú foi essencial, através da escultura. Só quando a pintura assimila a tridimensionalidade, com os seus mecanismos de tromp-l’oeil é que o nú é total. O paradoxo da nossa relação com os gregos é a de que estes tinham em mais estima a pintura do que a escultura. Mas da pintura é raríssimo o que sobrevive. Eu creio que não foi apenas o tempo que deu cabo das pinturas, mas que houve ao longo do tempo uma predisposição para destruir a pintura, porque esta é a menos moral das artes, a mais maculada, a mais indecente. Há um ódio à pintura sempre que uma moral rigída surge, seja em que latitude. Temos que olhar para a Grécia a partir da pintura romana, que se lhe assemelha no essencial, do que a partir dos brancos mármores de belas nádegas e rostos austeros.
A prudência da consciência (quanto ao gerar e contemplar o gerado como uma ambição em arte) é comum — mas a exuberância da vaidade excita para missão inacabavel. Num era o acabas... Os sarilhos vêm para generalidades nos modos de a pensar. Equívoco? Algo contraproducente? Filhos e mais filhos. A Medida sem Medida. Ou uma exuberância suplementar? O debate sobre que é a forma comedida da angústia do pintor parte da angustia desenfreada de Antigona. Quando vemos Rothko ou Van Gogh, pintarem e suicidarem-se, é o fantasma de Antigona que ressurge a pastar as cores sem mansidões. As cores são o insepulto. Nunca se enterram. E os mortos agarram-se a elas antes de caírem no esquecimento. Mais luz, dizia Goethe. Ele que tanto reflectiu sobre a cor. Mais cor, sempre mais cor. Estas são as últimas palavras de um pintor. Toda a sabedoria se condensa em “mais luz, mais cor”. Gostava de pintar as palavras aromatizadas que lhe enviavam amigas de sinagogas longínquas, no festim da Experiência, como eclosão e balbuciamento. Pode haver justificações com caligrafias um tanto ou quanto arabizadas, para a pintura moçárabe? Tudo na pintura recusa a ubiquidade òbvia. Tudo na pintura parte e regressa à cor.
No entanto, para os Umbrais da Loucura me empurram, responde-lhes Antigona. A acção da pintura não se circunscreve ao objecto, com a sua secura , anterior a tanto estoicismo, porque a pintura é pandémica como uma micro-revolução permanente. A pintura não é desmesura. A pintura seca-me o gosto de gostar de tudo na teoria. Mas a pintura é teórica nos seus aspectos climatéricos. E a teoria é pictórica quando dá exemplos em imagens vivas, seja em alegorias, seja na descrição, fenomenológica ou não, de objectos. Platão, Marco Aurélio, etc. Procura, procura-te, procura-nos – repetia a filha de Édipo. Heraclito , diz ele, procurou-se a si mesmo. A resposta ao enigma não é uma generalidade, mas a singularidade de cada um. A resposta ao mito também. A resposta ao mito, que é sempre enigmático, é o que vem vindo em cada vida. “Ao desprocurar-me encontrei-me, e agora é canja”, responde mais ou menos assim Nietzsche. E logo papagueia Picasso, “eu não procuro, encontro”, em mais um pastiche. “É fugindo que nos encontramos”, remata Manuel Vieira rodeado de Homeostéticos. Mas quem lhe disse isto foi a Sibila.
E uma vida sem teoria? Nã. Perde-se qualquer coisa ao mesmo tempo rigoroso e insensato. Teorizar é como ter um falso alter-ego nos festins mascarados da geometria. O teórico (com o seu lirísmo seco) faz chegar os desgostos à Natureza. Põe a generalidade, como um hábito, onde não dá para haver nenhuma generalidade. O Pseudos da Filosofia é sempre o da generalidade, mas é um belo vício, tão antigo quanto os provérbios. Generalidades que assentam como luvas numa data de coisas. O pintor e o escultor são mais honestos. Fingidores que apostam em singularidades, sabendo de antemão que aquilo é apenas aquilo, mas que pode acenar para muito mais sentidos. Anda meio desorientado a escolher formas e representações na sua sem-distância. O seu outro (o seu inconsistente Duplo) é a consequência da epidemia revolucionária. A sua revolução tem carácter afectivo. Nunca saberemos se é para ser levada a sério.
A pintura sendo origináriamente do dominio do não-verbal, continua fratricida, mesmo depois de depostas as tiranias. A agonística e a refutação dos filósofos antigos passa para os pintores. Diz Ad Reinhardt: a primeira palavra do artista é contra a dos outros artistas. E as últimas? O artista continua a refilar, a rivalizar, a intrigar até ao fim? É eternamente do contra? Ou, o agonismo filosófico e artístico são formas sobreabundantes de admiração e desejo de crescer, de ultrapassar, de exceder, fantasmáticamente, o admiravel com algo ainda mais incrível. Fervilhar de angustias de influências, diz o senhor Bloom. A influência dilacera, acrescenta. Torna ruim. É verdade. Mas não há forma de fugir com este rabo a tal seringa. A pintura dota-se de um perímetro de inominável que é colmatado por profecias formuladas visualmente. As pinturas mitológicas de Ticiano continuam a entornar-se sobre nós. É a metáfora fraternal feita poder impartilhável e responsabilidade. Múltiplicidade de opiniões rápidas do “respeitável público”.
As emoções pela Natura mostram que a Natura é cínica. Mas o que na Natura é impúdico não lhe retira a capacidade de dissimulação. Tudo na Artephysis é ao mesmo tempo pudor e pornografia, exibicionismo e recatamento, sobreabundância, escassez e comedimento. Os Gémeos de um outrora aurora no Corpo também geram opinião: internamentos da complexidade e fausto de Nomes — filhos de uma esperança sem atenção com preceitos a eclodir? A «solução» de heteronomizar é a possibilidade de outros usarem essa vontade heteronímica, proporcionamdo-lhes um generoso despotismo ao serviço de insensatos recomeços. É como caçar com outros cães.
A autoria desdobra-se com todos os restos de pseudonomias e heteronomias, mais os supostos anonimatos. Antigona não era morena nem loura nem era perita em técnicas de predação. Porque é que é que gostamos dela ruiva? A sua pele era pálida e uma fonte das emoções e de provocações? O não-ser contribui como meu assistente literário, com o escopro na mão, para mais um insucesso? Estou só, a escrever, nu, ainda mais nu que uma estátua, a escrever para o boneco. E é assim. Sempre assim. Alguma medida ajuda a alguma coisa. Jambicos? Alexandrinos? Hendecassílabos? Mas havia essa sensação de impaciência perante a construção. E Antigona, com o seu cabelo entre o louro e ruivo procurava presentificar-se (a si mesma) pela abundância, enquanto bebe uma caipirinha suicidária. As nádegas e as mamas são paródias da esfericidade do Ser? Antigona exibia-as acompanhadas à concertina pelo não-ser. Ela encenava a carência, hirta, com o crânio esférico e a boca devoradora. Era o que antigamente se chamava em calão estruturalista o grau zero, a palhaçada do nada. Possa a teoria «desfazer» as ditas cujas proporções canónicas.
Nua, num prado, dava uma bela aguarela, para que a pintura refaça na sua condição burguesa. Vestida, num peplum, lembrava no olhar vazio a insuficiência gloriosa dos herois anónimos das guerras do Peleponeso. “Sou contra tudo o que é inteireza ou segurança, como se alvejasse friamente o acabamento”, dizia. Contra Ricardo Reis — não sejas inteiro, fabrica-te numa assembleia de cidadãos querelando. Pela descrição parecia pré-rafaelita excesso e uma exclusão contra qualquer possível identidade. Põe o que não eras no que és. Aumenta-te desinteirando-te. Crescer é fragmentar-se. Neófito, não há Unidade. Vê-se Antigona junto a uma pirâmide a bicudar-se em sólidos pitagóricos perfeitos. Passa o coro em cima de um camelo. Lenine, com um megafone, pergunta-lhe: “que farás?”. Ela responde-lhe, com uma citação do Almada Negreiros: “farei o que não farei”.
É uma velha técnica que confunde os propósitos com os despropósitos. Acompanhá-la com um côro esfíngico, de perfil, parece redundante. Mas é fatal como o destino. A teoria não como generalidade, mas como destruição à la Picasso.
Emocionam-me as ocasiões que propiciam regras e ânimo. Para nos animarmos e desanimarmos. Para substituir as regras. É preciso ter regras para ter que as substituir? A curiosidade passa num cavalo enorme. Um Beduíno monta-o e canta uma opinião mascarando-se de multiplicidade. É fácil justificar o perímetro do ser num hino, diz ele. Sentado num banquinho, Holderlin, num alemão impecável, mistura o inominável com a ubiquidade, numa melodia algo schubertiana. O Beduíno leva-o para uma burla. E Holderlin cita-se: “é onde está o perigo que a malta se safa!”.
O debate da pintura deve ser tragédia? Heterodidactamente a elite monta uma tenda onde está um babuíno que a sodomisa. Ambos geram o contraditório no possível. O autos é o concretizar. A abandonemos então Antigona moribunda ao sol escaldante, ao furor de Apolo. Como Ariadne.
Ouve-se a complexidade das regras no limiar de um festim? A celebração um chinfrim. Chega Dionísios que a cura. Celebra-se uma teoria que tanto pode ser teórica como não. O buda-bode. Antigona torna-se deusa. Antigona pergunta a Dionísios se não pode ter uma «profissão», ou mesmo “ser” uma profissão. A consciência possível é narcisismo mesmo quando isto se passa no mundo subterrâneo: “O mundo subterrâneo invoca o inominável comum.” A curiosidade dos pintores constitui o identico numa saída nocturna onde seduzirá os propósitos. Divinos engodos. Perna de ultimato com molho picante e o amor que te infernizará a vida. Vamos começar: nenhum poema é um lenço em que o ateleta se assoa a falar de Perseu como quem escova os dentes à Origem! ……………………………………………………… ………………………………… ……………………………..
Tal como a cor, amanuenses tocamos nalguns pontos inflamáveis, na pastilha modernista que permite o pastiche post-modernista, nas espinhosas pérolas, nos objectos de uma terrível energia cardíaca. Ou transcrevemos no poema as caracteristicas carrásquicas, percursores anedóticos da guilhotina e revisores-chefes em vida do Pouco. E esfregamo-nos finalmente com os contrários assuntos do destino — somos um mar cercado de feitos fortes bichos.
………………………………………………………………………………………… ………………………….. Passai vós, frouxos que cantais com luxos as ilhas. Devorai os assuntos com a brancura. Até aos quotidianos, tenebrosos calvinistas inconscientes de o serem, animais a roçarem o direito à morte ................................................................
“Símbolos caíam como meteoritos na impotência. Poetas de esquina, ibsenóides, aguardavam apocalipses tecnológicos, ateando a cidade de Ismeno. Os gatos estavam em chamas, espalhando fogos para que a autorganização se inscrevesse inocentemente no planeta.”
Passai, a dizer nomes de deuses bárbaros, ultra-débeis, com os vossos ocultos de lata, anarquistas pós-modernos, a viver em prédios altos com os simbolos a trabalhar num gigante informático! Sois rotineiros, como formigas! Passai vós, cujo tipo é ficar esborrachados no asfalto ou a pensar “somos uns coitadinhos feitos ao bife com direito a retrospectiva de gatas!”. Tendes razão. Passai, débeis, dentro das paisagens, com anseios de força, praticantes de pilates com filhos adultos ao colo. Passai, pois tendes a indecisão do espelho. Passai, inclementes, e percorrei os vales como uma mulher muito mistocrata de tradições incipientes que só cantais a fazer negra e impura. Nos teus olhos a amizade é barulho de banda de garagem ao lado do porsche da aflição — uma dificuldade, um dilúvio de lágrimas. Passai no asco, roçando-vos na dinâmica do estrume, síntese onde deslizam serpentes em toda a maravilha. E deixai-me apalpar as memórias que regressam nos orgasmos da natureza, ò socialistas a toda a brida!
“Houveram de partir às direitas, a aproveitarem-se de tudo loiças nas fuças dos nossos governantes e escancarar-lhes a ideal a fazer de todos parvos! Passai com a cara e esfregar das supostas esquerdas gramam. Passai-a pelos móveis e os seu corpo suave e pálido.”
para cumprirem na conta duras bancária conta num pastiche de a merda que os mortos radicais imóveis que trazem nas tripas do
Nasceram hipotecados, com a terrível energia a mover-se no Desdém. E os cães atiram-selhes às pernas, e o ressentimento fica-lhes sempre a enrouquecer a garganta, preparados para mais assadas de ossadas de cadáveres insepultos. (da acta de um comício pindérico e de uma luta de classes, a apalpar Antigona) Apolo dorme com a pila dorida (e a perna da sindicalista a vangloriar a internacional está pouco dórica). Andou metido com rapazes, fez-lhes cantorias e deu-lhes a provar uma perna de frango assado com piri-piri ………………………………………………………………
O (des-)fundamentar-se como trans-menipeia — as influências levam o questionamento que continua para lá da questão. Há que substituir o Sophos pelo Pseudos, e o filósofo pelo filopseudo (ou o pseudófilo?). O filósofo escolhe a condição de exilado da sabedoria. Considera-a uma busca, no permanente vislumbre das suas entradas. Para Parménides, um sábio, não se pode fugir da sabedoria ou do Ser. Trata-se do puro reconhecimento de algo inextricável e que o pensamento dá constantemente. O caminho do não-ser, da não-sabedoria, é impossível para os Eleáticos. Os filósofos, pelo contrário, são os que fazem incursões num não-ser que não é, nunca foi, nem nunca será. Trata-se de um sofisticado fingimento que permite aprimorar a fraude. Fingir que não se é sábio, entrar no achincalhamento e na dialética. O filósofo opta pelo ar “underdog” para enunciar os seus imperativos “topdog”. Num certo limite a condição de cão, de Antistenes e Diógenes, é a de todo o filósofo que aceita a comédia do filosofar, do deambular, do questionar, do envolover-se em conversas, para acabar numa pseudo-auto-degradação, que é no fundo a nobreza filosófica.
É no cinismo, que a história do nú artistico tem os seus exemplos mais vivos, e que o “feio” e o obsceno irrompem como algo “divino”. A nudez é a falta de pudor. O nú surge inicialmente como algo agonico, como combate no “gymnásio”, onde estão os nús, os combatentes, os que roçam na morte. Toda a exercitação de ginásio é para uma mortalidade vindoura, a guerra, ou o triunfo olimpico. A dialética, e o elenkhos, herdam naturalmente estas ganas de aniquilar o outro, o ad-versário. Para apanhar o ad-versário há que lhe armar ciladas. O interesse da primeira dialética é o do entusiasmo de arrumar ciladas, de as preparar antes da conversa, de sentir a cabeça a aquecer. Será crucial em filosofia ter ódios de estimação e inimigos fidagais.
“Cinzas deixando a expansões o que existe, a refazer as primaveras, a ajudar pelas instigações de Ares. Vento a urrar para lá dos ciclos da natureza com a arte atenta aos desastres guerreiros. Mas as lendas amassam-se com signos, parodiando pela iluminação a meditação. E gostam de chamar à baila, com excitação, o cómico e a multiplicidade das acções.” Juntas soluções na procura do tremor e das pastilhas épicas, deveras elásticas.
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