Fellini no funchal1

Page 1

FELLINI no FUNCHAL pedro proenรงa


© Pedro Proença, 2018 © Waf Books, 2018


FELLINI no FUNCHAL pedro proenรงa

waf

books


Deus estรก farto de jogar aos dados.






Há uma dose de banalidade em tornar as autobiografias dos outros nas nossas. Nesse ano a confusão tornava-se confissão. Punha tudo no scanner. Rebuscava gavetas para associar as coisas mais díspares. Encenava herbários. Atirava os meus provérbios e os meus aforismos para esses ajuntamentos de lixinhos heraclitianos. Começava finalmente a ver com precisão. Há um detelhe que não chega a ser microscópico e que é acessível na próximidade, a olho nu. Os míopes como eu são melhores nisso. O scanner foi a minha forma de extase e de meditação. Ver os outros ainda mais perto, a partir de uma superfície que vai avançando.











Aprende-se que há outras perspectivas para além do clássico ponto de fuga ocidental. O scanner obriga-nos a ter pontos de fuga em toda a parte. Quanto maior a distância, maior a deformação elíptica. A ida súbita para o Funchal, em preparatório de exposição, deu-me a entender que o detalhe gerado no scanner é acompanhado de um “chiaroscuro”, que é de algum modo parente de Caravaggio. A ausência de objectos na minha casa leva-me a interessar-me pelos objectos alheios. Cada casa é um museu. As casas são autobiografias involuntárias. Os objectos têm propensão a serem ready-mades, curiosidades, imagens onde se depositam afectos e memórias de passagem.




Tinha à disposição, no quarto, um projector. Vi vários filmes do César Monteiro. Vi o Silvestre, e recordei a Maria de Medeiros com quem vi o filme afim do César, o Perceval Le Gaulois. Depois cantarolamos durante vários dias a melodia mediavalista que perpassava o Perceval. O livro do Fellini estava algures numa estante da galeria. Existimos no que fazemos. Existimos no que apropriamos. Existimos no que recordamos. Existimos, muitas vezes também, no que não fazemos. Que se vão deixando fazer. Revolver. Encontrar instrumentos. Voyeurismo do oculto, do fechado. Os dialectos do amor geram novas formas de vida.





Um prólogo ou prelúdio que se abre para o que nos antecede e o que nos possa suceder. Vou sendo, intermitentemente, não os outros, mas o que diluídamente se inscreve no devir dos outros. Fellini de passagem pelo Funchal? O Fernando Brito diz-me que o John Wayne tinha um barco que passou no Funchal de cujas torneiras só saía Whiskye. A exposição acabou por se chamar “naughty abstractions” e aparentemente nada teve a ver com estas imagens. Inflama essas abstracções uma febre tantrica. As figuras geométricas estão impregnadas de sexo. O sexo é o veículo mais rápido e puro para o Absoluto. Aqui é Karl Blossefeldt e Man Ray que auguram o geométrico tornando claro que o pitagorismo é erótico.











É a fidelidade a um cinema de sussurros ampliados que contamina a confissão de culpas bastante desculpáveis. Perante a desmesura do Universo e a sua crueldade tudo é desculpável? O não saber o quê, o avançar apesar do indeterminado a fora. O despropósito a pedir improvisação. Orson Welles e Fellini propõem o cinema como fraude. Mesmo, e sobretudo, o documentário é fraude. O saber-se que uma camera nos filma é uma fraude no mostrar-se a ela. A montagem complenenta a farsa. O som e a musica distorsem, introduzindo emoções complementares. O cinema mudo tinha défice de montagem sonora. A lição do César Monteiro é essa. No fundo, a Branca de Neve do César diz-nos que o cinema é sobretudo um folhetim radiofónico. A passagem para o sonoro tende a livrar-nos das imagens.




O resultado só pode ser uma paródia involuntária. O canibalismo das imagens alheias tem aspectos rabelesianos. Essas imagens olham-nos sabendo que seremos os que vão morrer, como os gladiadores no circo. Os mortos são espectadores que nos aguardam. Todo o espectador é um espectro à espera de ser ainda mais espectro. Sou um péssimo contador de histórias, isto é, um mau entertainer de jantaradas. No entanto insisto em escrever romances. Estas são imagens afins às da Llansol, colecionadora de coisinhas que as usava para os seus romances. Chegaram-me dois objectos dela como herança: uma chavena partida com duendes e uma ave (egípcia) minúscula. Os onjectos envelhecidos e danificados têm a vantagem de noticiarem a fragilidade e caducidade das coisas. São involuntários moralistas.





Por isso o Grande Vidro de Duchamp é um avanço sobre qualquer museologia e fetichisação dos ready-made. Os museus estão condenados à erosão. Qualquer glória, mesmo a de deus, tem apenas a relevância de uma breve fulguração. Muitas fotografias desbotam mesmo antes de começarmos a envelhecer. O destino que estava escrito na face desfigura-se. As manchas encobrem o autobiográfico. Temos que inventar-nos de novo, outra vez, entre atribuladas projecções.







O pensamento deflagra nas sobrancelhas. Quando fiz esta imagem ainda se usavam telefones com frequência. Este livro foi acabado dia 5 de Abril de 2018 e é dedicado à Rita com amor e palavras doces tudo forte. As imagens contiuarão grávidas de quem as poetize e em tempos carreiristas o importante é poetar.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.