Tratado matemático psicanalítico

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TRATADO matemático psicanalítico

Renato Ornato WA F B O OKS


© Waf Books 2015 © Renato Ornato 2015


TRATADO

R e n a t o O r n a t o

m a t e m á ti c o psicanalítico


1. O Uno, sabemo-lo bem, entredevora-se com multiplicidades que o ornamentam.



2. O Si enrola-se no sono como uma serpente. A serpente desperta-se e alarga os seus campos semanticos.



3. Temos constatado que as analogias sĂŁo irmĂŁs no crime e primas na docilidade.



4. A casa forma-se como um embriĂŁo. A cidade forma-se como um super-embriĂŁo. E o mundo?



5. A cidade celeste ĂŠ um asilo de luxo para o pensamento conceptual, sendo ao mesmo tempo uma embriologia para os exilados.



6. Os sonhos desfazem o contrato social permanente. Sonhar é ser insurrecto sem que ninguém dê por isso. Somos profundamente insurrectos involuntáriamente.



7. As presas vingam-se no sono porque foram incorporadas pelo predador. 8. O Ego é um predador do Inconsciente e do super-ego. A tarefa da consciência é a de des-introjectar (ou desdomesticar) as formatações do super-ego que ao mesmo tempo barram e estruturam o inconsciênte.



9. Desintrojecta-se a amada no amador à força de tanto confrontar. 10. A entrada num crime Ê sempre colectiva.



11. São as bifurcações entre o ego e o super-ego que engendram a consciencia moral em resposta ao sentimento de catástrofe que parece o Isso. 12. Geometriza-se o desejo com a culpabilidade. Esta só pode ser aplacada com mais desejo.



13. A sobreabundância de desejos distancia-se da solidariedade que visa conservar algo ou conquistar pequenos pervilÊgios.



14. O que a solidariedade traz de maravilhoso é o facto de sermos participantes numa espécie de mesmo corpo. É o que faz dela algo divino. 15. Tudo é mais importante do que o que julgas que és. E no entanto tu também és tudo.



16. Todo o juramento engendra a sensação de que é e não é arbitrário. 17. A sexualidade anda nos sonhos a brincar com o fogo. 18. São os sonhos morfogéneses, mesmo quando desvanescem?



19. O trabalho de análise é no fundo o de dar alguma estabilidade ao que vem do fluxo dos sonhos, isto é, fazer com que o acto de dormir não seja totalmente inútil e inconsistente. 20. Cria-se a sensação de que as obras de arte são algo como um pai, quando a beleza e arte são o que nos salva das reverências da moral. 21. O sacrilégio e a transgressão, são, na maioria das vezes, parte do processo de santificação, ou servem para assegurar o status quo.



22. A obra de arte funciona como algo que é uma fuga ao estado de guerra total que é o mundo, como se fosse uma catástrofe virtual mascarada de paz. 23. Todos os factos são guerreiros. A construção de defesas é a construção de objectos. No fluxo guerreiro das coisas os objectos são excepções destinadas a serem destruídas pelas sucessivas catástrofes do tempo. 24. Os favores do acaso são afins à desordem.



25. A nova guerra é total e veio para ficar. A velocidade assim o exige. A globalização fez com que o estado de guerra invadisse todas as àreas da actividade humana. A nova guerra é muito mais complexa e demasiado brutal. Ela aumenta a complexidade ao mesmo tempo que suprime essa complexidade. É uma perturbação que se glocaliza em cada indivíduo que por sua vez entra em guerra consigo mesmo, pondo em polvorosa o metabolismo normal do pensamento.



26. O corpo paterno é o património. O património é o que nos é dado a introjectar. Ao mesmo tempo somos incapazes de assimilar esse corpo paterno e de o formalizar. A desmesura do património, ou do corpo paterno, gera sucessivas crises de identidade. Temos simultaneamente um excesso de introjecções e uma incapacidade em dar uma identidade, ou alguma imagem, a algo incompleto, mal-formado e indigesto. Chamamos a isto baixa cultura e crise de valores.



27. Há que militar na epi-cultura, ou alta cultura. O preço a pagar é a quase total incompreensão e um sentimento corrspondente de alienação. 28. O corpo do deus somos nós. Cada um à sua maneira, e todos ao mesmo tempo.



29. Julgo que o livre arbítrio é o que nos permite escapar a todos os ardis e a toda a opressão. Muitas vezes é uma fuga aos double binds, ou um salto para fora do labirinto. Outras vezes consiste apenas em cultivar o seu jardim, mesmo que este jardim seja uma guerra de si para si. O nosso corpo é o suporte mais precioso do livre arbítrio.



30. O grande equívoco do hinduísmo e do budismo é o de não serem explicitos quanto ao facto de o Dharma ser sempre um estado de guerra. A impermanência resulta de uma guerra permanente. A energia do absoluto é a do impeto guerreiro. Buda viu a velhice, a morte e a doença, mas não viu com clareza a guerra subjacente a estes estados.



31. O tempo é guerra e o ser é guerra. Por isso o não-ser é encarado como possibilidade de paz e repouso. Toda a ontologia é uma máquina de guerra aberta. Todo o budismo é uma máquina de pacificação ingénua com resultados surpreendentes que inverte a essencialização do hinduísmo deruivada do abuso de analogias. 32. Uma obra de arte pode ser uma pura queda e uma recusa em fazer escolhas, como pretende Cage?



33. As obras de arte que prefiro são aquelas que se opõe ao que hoje chamamos tecnologia, no sentido corrente do termo. A arte será uma tékné alogos? 34. O artista introjecta os seus pais a foder, em lances de dados que jamais abolirão o acaso. É a cena omnipresente na arte.



35. Todo o conceito, no seu espaço originário, é uma luta sexual, cheia de variantes internas — ele prossegue um caminho tendencialmente agressivo, que se traduz como coisa palrante. É um processo de devoração mutúa, canibal, que permite a passagem do ser combinatório para o ser-para-o-que-vier. 36. A maioria da arte actual é sobre assassinato e incesto. Ela procura encenar-se em adivinhas. O tema predominante dessas adivinhas, como o viu Batarda, são os bicos.



37. A teoria em festa, sendo derivada do luto, é predominantemente um coito. 38. Os artistas são feiticeiros que desenvolvem para um público cenas primitivas antes secretas. É neste aspecto que a arte também é política.



39. As teorias morrem, passado um certo tempo, mas baralham as cartas antes de desaparecerem, de um modo re-finado. 40. Uma teoria ĂŠ uma aposta pessoal que se substitui a qualquer fraternidade.



41. A iniciação necessita de alteridade para que haja renascimento. 42. A repetição é o protótipo do traumatismo do nascimento. Mas também é através da repetição que o pneuma regressa ao tempo que antecede todos os traumas e todas as pulsões.



43. A paranoia é a única resposta corrente à sensação de ainda não termos nascido para nós mesmos. 44. O mundo é angustia existencial, como uma mãe exterior que não nos retém. Todo o mundo, toda a mãe, é algo por explorar, por penetrar. 45. Teoremas sádicos dirigidos contra a vida.



46. Crescer consiste em descobrir equivalentes simbólicos, ou jogos de linguagem, que dêem conta das catástrofes subjacentes e irreversíveis. 47. A memória nasce no corpo materno e é um regresso hipnótico a esse corpo. É uma coisa que não está diante de nós e que faz da experiencia do presente uma experiencia do diferido.



48. A mama é a imagem que subsiste da pregnância original, mesmo depois de qualquer génese. A mama é a imagem crucial de qualquer fenomenologia ou topologia. Chupar é o acto original do qual toda a aprendizagem e toda a praxis são subsequentes. Uma teoria geral do corpo da mãe é indissociável de uma teoria das formas, como o viu Freud.



49. Dizer os nossos pernsamentos é uma forma de excavação, o que em latim se diz foedere. Exploração da caverna para saír à luz, sempre de gatas. 50. Mesmo a matemática é na origem um corpo materno.



51. Todo o jogo é feito numa caverna. A finalidade do jogo é perpétuar-se. Todo o desfecho de um jogo é um fracasso, mesmo na vitória. 52. O facto da humanidade ter começado por habitar cavernas faz com que toda a estilização implique algo de labirintico.



53. A emissão verbal é indissociável das pinturas paleolíticas. Essas pinturas são pré-romanescas ou mitológicas. Não são imagens puras. Nunca há imagens, pese o que pese qualquer formalismo, que sejam separáveis da fala: As imagens falantes dirigem-se para o extase ou para o silêncio.



54. Os actos da consciencia elementar são sempre retorcidos, estreitos, rastejantes, ondulantes, cheios de pregas — deslocamo-nos como intrusos no que julgamos familiar até encontrarmos a tal cena pictórica onde através de imagens de animais vislumbramos a força bruta de onde tudo emana.



55. Sai-se à luz do dia pelo buraco do cu. Saímos impregnados de temas mitológicos, essencialmente labirínticos. A mitologia está bizarramente repleta de explicações, de interpretações. Sai-se para experimentar a dor, o prazer, o cheiro e a pele. Trazemos já as imagens dos sonhos e os ruídos do corpo da mãe, assim como a anseadade desta. A anseadade e a angustia, antes de serem espectativas, são fenómenos sonoros ligados aos terrores nocturnos e à estreiteza uterina. A mãe transmite o seu terror nocturno ao embrião sem se dar conta. O traumatismo do nascimento é só um acrescento aos traumatismos sonoros que o precedem. Por isso a angustia é essencialmente aperto. O estado embrionário não é um paraíso, mas um limbo e uma espectativa. É a espera de vir à luz.



56. Alguem disse que o Logos é a pista de dança de Ariadne. O logos é dança no labirinto. Dança serpentina, hipnótica. A relação entre o Logos e a Carne é de predação. Para se fazer carne o Logos tem que devorá-la ou fazer-se devorar. O que dá no mesmo. No final da dança, o Logos e a Carne identicos.



57. Introduzir a sabedoria na caverna é favorecer a fuga. É fugindo que nos encontramos. Encontramonos e confrontamo-nos na sequência de vários equívocos e escapadelas. Encontramos a sabedoria, não no sonho, mas na interpretação equívoca do sonho. Escrevemos no cavernoso. Rasgamos antigos pactos. Propiciamonos. 58. Desembaraça-te do obcessivo, porque este é o obstáculo, mesmo que unifique.



59. Nascimento, foda, morte — estabilidade do Nada. Dir-se-ia que só se vê nada, ou o nada, por espelhos e em enigmas: Vê-se o Nada como labirinto. Nada através de espelhos. Nada enigmático, obscuro. 60. Os sonhos respondem ao excesso de sentido como um acrescento de sentido do sem-sentido. Fazem ferver metáforas no seu caldeirão.



61. Todo o Ser sob o céu do Nada se renova no coito e na queda. Vício recircular e no entanto irreversível e bifurcante. 62. O verbo ser salva os herois de caírem na armadilha do nada semantico. Eles divagam fálicos, como se tentassem escrever a sua vaga-bundagem. Andam entre o 0 e o 1, entre a (an)amnésia do Ser e a recordação do Uno entredevorante, entre a picha e o cu.



63. O Ser é paradoxal como o Zero: é memória e anti-memória. A rememoração do Ser é esquecimento das coisas, do pormenor, das singularidades, do que se emancipa e autonomiza. Por isso só a desessencialização do Ser permite uma articulação das coisas com essa máquina de guerra ao mesmo templo plena e vazia que as gera. 64. Em tudo o que se move se geram redes.



65. Hermes é a criatura fálica que permite o comércio, o riso, as transições, a polifonia dos sentidos, as codificações secretas. As horas de Hermes são a alvorada e o crepusculo, os momentos em que o dia faz amor com a noite. 66. Hermes é o deus dos caminhos, da errância, das bifurcações e trifurcações. Do ponto de vista hermético, todas as frases têm pelo menos três sentidos. É Hermes que abre todas as portas de todas as linguas. É Hermes que confunde, babeliza e faz saír a linguagem do seu conforto reprimido e repressivo.



67. É o adjectivo que empurra para os acontecimentos e que propicia o entusiasmo. 68. Os herois homéricos arrastam os seus adjectivos propulsores sob a forma de epitetos. È o que os faz mover e lhes dá ligeireza e força.



69. Todo o caminhar, todo o vagar, vem acompanhado de um espectro verbal oriundo de algo materno. Acrescentaria, sumério, egípcio, hindu, grego, etc. 70. Porque a vida vem misericordiosamente de um deus inexistente. É um vazio engravidante. Toda a significação informulada busca a sua ciência e as suas metáforas, que são sempre de predação, sexo e repouso: comer, amar, dormir.



71. O verbo ser é algo maternal que não nos leva a sítio nenhum. O Adjectivo envolve-nos num meio ambiente que nos abraça e climatiza. 72. Para onde vai a memória e a consciência daqueles que morrem? Fica disseminada no mundo? Divide-se. Reside nos objectos que deixam? Resiste? Incarna?



73. Nós somos feitos para que certos temas se desenvolvam e continuem a tecer espaços semanticos de resistência ao informe — mais do que neguentropia ou pura informação. Esses campos processuais entram inclusivé nos sonhos dos outros. O que interessa é aperfeiçoar a qualidade da existência.



74. Catástrofe ontogénica como descida aos infernos — inversão do nada que se espelha e espalha no sono e no esquecimento. 75. Há certos espaços semanticos que se põe a dormir à sombra da experiência.



76. A delinquência é a origem topológica da politica. 77. Não conseguimos perceber se somos continuos ou descontinuos, mas estamos receptivos à ideia de que somos quer um continuo no descontinuo quanto um descontinuo no continuo.



78. A libidinização da história melhora a consciencia de que somos corpos. 79. O superego é o drama do emprego. O superego socorre-se quase sempre da analogia e das generalidades. É necessária uma nova teoria da analogia para des-introjectar e re-libinalizar a consciencia com uma grande prega nessa prega super-egoíca.



80. Antepassados unidos nos « logoi arquétipicos ». 81. Duas serpentes copulando é outra imagem do Logos. Tirésias dá-se conta da dinamica que as faz copular. Serpentes fálicas que se disputam. Mordem a cauda uma da outra ou entrelaçam-se. Devoram-se incessantemente sem se devorarem. Dupla serpente ouroborica. Vagina heraclitiana onde habita o fogo eterno.



82. A ontologia é a aporia. Pensar o não-ser, como Górgias, desfaz falsos jogos de linguagem. A ontologia é o buraco que permite a introjecção de vários tipos de moral que convidam mais à passividade do que à acção. 83. O que é um jogo de linguagem? Quase sempre um acto de comer, de engolir, palrando. O conceito em si é etimologicamente uma deglutição, um acto de predação, de captura.



84. A rigidez da erecção não é própria dos cadáveres. Os mortos invejam as erecções dos vivos. 85. Há no exebicionismo filosófico algo fálico. As palavras tornam-se tesas e duras como estátuas. Medusismo.



86. A afectividade desvia a aspiração à monumentalidade. É uma forma de crescer horizontalmente em vez de verticalmente, abandonando o complexo de Estilita. 87. Os organismos realizam-se complicando-se e morrem por inadequação.



88. O mundo da analogia é um mundo erecto, na genitalização, que leva à ontologia, de onde se entra e se sai com um travo a morte. 89. Toda a a analogia é um tecido de enganos, cuja trama é verdadeira. 90. A métis de Medeia é terrivel.



91. A afectividade da polis é púbica, e não rapada. A afectividade pode devir poder político se este tornar perverso polimórfico. 92. Curar é reordenar o que foi hereditáriamente transmitido. A saúde é a aceitação de uma tradução que não é assombrada por muitas lacunas. O sucesso de uma cura mede-se pela beleza dessa tradução e a sua capacidade de encantamento.



93. Eros em acção : pregas no espaço-tempo. Colagens. A função fisiológica de Eros é activar as catástrofes que levam à unificação, enquanto Thanatos é um instinto de desiquilibrio organico que lava à desagregação. O que Thanatos divide o Eros pode reparar, até que Thanatos triunfe através de um ponto de não-retorno. Toda a cura é assim um processo erótico.



94. Quebras, rupturas, separações, pulverizações — para que Eros possa agir é necessária a acção solicitadora de Thanatos, que permite a variação e o enriquecimento, assim como as demais singularidades. 95. Excitar, apesar das pregnancias do Inferno, para uma concretização do paradisíaco. O que é o mesmo que suscitar uma reacção erótica que contrarie, grosso modo, o principio da realidade.



96. O livre arbitrio dos homens é o sentido erótico da realidade desmascarada (nua). 97. Reabrir os grandes olhos sob as máscaras que dissimulam o nossos corpo que é o mundo. Não se trata de abolir os contornos do nosso corpo, mas de experimentar a sensação de que os contornos que nos separam fazem parte da nossa unidade com os processos do mundo.



98. Devemos dar-nos conta de que a insigificancia da fraternidade deve ser substituída pela de co-laboração. Somos co-habitantes de um corpo maior cuja erótica se revéla nas divergências e no prazer da experimentação. 99. O Logos, excitado, está cronicamente unido na divindade.



100. Larva significa máscara ou espectro. A evolução será larvar e mascarada ou não será. Larvatus prodeo, avanço de formas mascarando-se de outras formas. Larvas complexas, por um lado mais estáveis, e por outro mais borbulhantes. 101. A forma imatura atrai a entropia local e a neguentropia geral.



102. Enquanto os animais se submetem às metamorfoses, a gramática cede perante o medo. 103. No estado larvar, metamórfico e dissimulante, a sexualidade apodera-se da sua consciencia.



104. Uma “persona” é sempre uma formação em transformação, capturando e apropriando-se de outras formas, de outras personalidades. É algo que não se pode identificar senão como processo, num reconhecimento desgrenhado e despido de qualquer essencia. 105. A forma interior é o informe da exterior e vice-versa.



106. ApĂłlogo borbulhoso do Logos. 107. Adivinhar como um passo pleno e sismogrĂĄfico que nĂŁo explica: apenas entorna a sua voz sobre o devir dos acontecimentos.



108. A situação arquétipica da consciencia supõe sempre a predação e a dissimulação. 109. Nalgumas tragédias o oráculo é o caçador principal.



110. Não ser visto é desistir de ser memorável. Ser visto é aceder ao não existir. A imortalidade é o espectral, para sempre, mesmo num universo morto ou moribundo, abandonado pela consciencia. Ser-se visto é facilitar a predação por um outro. Na luta de formas somos perviligiados para ser devorados a partir do momento em que somos vistos.



111. Passar do informe à Forma é a ambição dos espectros.



112. O ego é o grande predador, sempre atarefado em relações publicas sexuadas. 113. O meu reino é a possibilidade da multiplicidade dos mundos. 114. Logos fractal e fenixológico.



115. Mostrar as coisas caçadas é a função da memória. Os trofeus e o terror. 116. O desejo de ver faz emergir, desenvolver e destruir formas que estavam ocultas. Desvelamento digital do genital. Adivinhar que activa as catástrofes. Devir que solicita as suas sortes. Explicações que fazem implodir ou explodir.



117. O superego é um empréstimo que sugere que algo tem que ser devolvido a qualquer momento. Segundo o superego temos que nos merecer. Como um mártir tem que se merecer. Rivalidade com deus ou os deuses. São sempre eles que se emprestam. Não há nada emprestado, nem nada a merecer a partir do momento em que nos reconhecemos deuses no fluxo das coisas. Nada foi emprestado porque tudo é transitório. A propriedade não existe senão como uma ficção aceite por várias partes.



118. Aceder à existência é provocar inimigos. Serse um eu é ser reconhecido como existente, classificado para entrar em guerra. Toda a autoria é uma entrada numa guerra. Visão do mundo destrutiva e combativa. Apascentar somas de destruições, como dizia Picasso. È a estabilidade da guerra que garante a autoria. Ou como escreveu Ad Reinhardt: “a primeira palavra de um artista é contra outro artista”. Irromper para sobreviver. Maldizer para sobreviver à viva vista.



119. Dionísio, o deus maluco, anda a demolir e despedaçar para que uma ordem estagnada dê lugar a outra ordem menos repressiva. Toda a ordem estagna se não houver um fluxo permanente que a vá limpando com mutações e a vá des-reprimindo.



120. Uma casa é uma defesa onde os conflitos se tornam endopsiquícos. Uma casa é um convite à neurose. A guerra exterior é internalizada nas casas. Guerras intestinas entre os diversos eus. Tornar explícita a guerra, aceitá-la como um benefício, saber lidar com ela, eis a sabedoria. A casa é sobretudo instabilidade embriologica. Vivê-la é canibalizar no amor e desfazer-se da possessividade.



121. Ser contra o postulado da imbecilidade das coisas. 122. A liberdade ĂŠ o exosqueleto dos invertebrados.



123. Os compromissos entre a terra e o ar tĂŞm tendencia a imobilizar-nos. HĂĄ que caminhar e fazer as Ă rvores caminhar. 124. A terra impregna-se do animal. O animal ĂŠ uma pregnancia que se emancipou parcialmente da terra.



125. O assassinato e o suicidio são estados sobreexcitados que se correspondem e que têm por base narrativas inflaccionadas pelo super-ego. Entre o dever moral e o desespero de condições. É o que nos exigem e o que nos exigimos que leva ao crime. A guerra, por exemplo, é um mandato livre para assassinar qualquer adversário, sem escrupulos nenhuns. A guerra é o suicidio legitimado. Todas as guerras estão antecipadamente perdidas pelos seus vencedores.



126. Uma queda a partir de certo limite, desde que seja semanticamente aceitável, afigura-se verdadeira. A analogia parece levar-nos para uma linguagem anterior a qualquer queda. Mas a linguagem é o que está sempre a caír sem que se dê por isso e sem que caia efectivamente.



127. Excitação manducatória da linguagem — a linguagem é o que introjecta. Festim que nos devora, incorporação que nos expropria. Por isso a linguagem contem sempre o seu negativo e torna indissociáveis os contrários, gerando paradoxos. Há que comer. Come-se para sobreviver. E no comer há uma negação (e supressão) do outro, aparentemente subtil (ou brutal), mas concreta. A supressão manducatória é a negatividade. A negatividade, mesmo antes da lógica ser formalizada, é subjacente à linguagem. A linguagem é manducação fictícia. Por isso falar e comer são indissociáveis. O banquete é o espaço de manducação reciproca. A entrecanibalização dos participantes é paradísiaca. O banquete é também combate — quem fala mais ou quem come mais? Eis o combate! O exibicionismo dos banqueteantes faz com que a igualdade dos que estão à mesa passe a ser uma manobra de poder.



128. A arbitrariedade dos signos e das significações, alimenta-se dela própria. Comida incendiária.



129. Cinematográficamente, os objectos põe-se a flamejar. 130. A digestão é feita com o fogo do corpo.



131. A atitude de Cristo é a de deixar-se ser comido para unificar os homens. É uma proposta surrealista. 132. Ainda que seja brusca, irregular e contraditória a linguagem formata as excepções de estabilidade no fluxo devorante da matéria.



133. A escrita de Deus (os livros ditos “revelados” ou inspirados) surge como um corpo imunológico, como um corpus que permite a sobrevivência em situações difíceis. A escrita é uma imunologia, tal como a leitura.



134. No próprio acto de ler ou escrever o Logos transforma-nos, isto é, faz-se Carne, mudando não só as nossas vidas como as dos outros que nos rodeiam.



135. È a confusão das linguas que nos permite dizer a verdade. È a linguagem estirando-se para além dos usos convenientes que permite não só sobreviver, como ultrapassar os limites naturalmente impostos à humanidade.



136. Os comentarios que desentranham as energias latentes nos textos tornam-se as ferramentas das revelaçþes superiores.



137. A geometria é por si só uma profecia e uma poética. A geometria é capaz de acções e atracções mágicas. 138. A fisica canta aos deuses um cantico novo, numa poética controlada pela geometria.



139. Tornar novo é não só acolher as formas recorrentes (as geometrias básicas) como as desviantes, excitando — fazer retornar, avançar, recapitular. Revolução revisionista. Liberalização burlesca. Multiplicidades de derivas locais.



140. Libertar-se de todas as rememorações pessoais, de todas as anamnéses, para absorver e recriar a Doxa das formas passadas que possam reviver, ser sincretizadas, abduzidas. Deformações desejadas pelo espaço-tempo.



141. Predizer contra as previsões. Contradivinhar. 142. O riso é a reação que nos abre para o relaxamento, sacudindo do simbólico tudo o que é utilitário ou funcional.



143. Quais são as reacções fisiológicas de des-sublimação? È o riso a mãe delas?



144. O sentido da história está na maximização do uso das funções do corpo — na consciencia, na elasticidade, na expressividade, na elegância. 145. A negação origina-se na carne, na cama.



146. O meu reino não está ao nivel deste mundo, mas mistura-se com ele. Paralogismo. Pseudo-política. Tradução desbragada. 147. O mestre das tenebras é um espectro verbal encadeando o mundo. Descondensar, espairecer, tornar-se uma creatura romanesca de milhões de possibilidades.



148. A eternidade é uma capacidade e possibilidade virtual exequível. 149. « Logos Apophantikos », o que diz calandose. Nos gestos, nas imagens, nos modos de tocar e de cheirar.



150. O paradoxo é uma racionalidade que retorce a racionalidade e a re-funda. Triunfa-se sobre os paradoxos com o post-paradoxal. Triunfa-se sobre as aparências e os double-binds com injuncções postparadoxais. 151. Humilhei-me através das técnicas do imaginário e encontrei as libertações.



152. Vamos onde os argumentos descontrolados nos levam. 153. Os lapsos da filosofia fazem progredir as linguagens. A filosofia é uma errância fecunda, uma prega que desintrojecta depois de muito abstraír. O que interessa na filosofia não são os conceitos, mas como esses se projectam para fora de si mesmos abrindo o corpo e vislumbrando vidas novas.



154. Nem tudo se identifica a tudo, mas há um retorno predador do passado que não é fantasmático. Se há um passado que retem o reprimido também há um passado de irreprimível que está a fazer-se oportuno. As sobreimpressões de Llansol dão conta disso. O irreprimível vive no corpo de cada um. Este é o meu corpo, este é o irreprimível, abusai-o, fazei delo o que quiserdes. Este é o meu corpo, para que surja todo o prazer do mundo. 155. Depois de todas as transgressões apenas temos que relaxar, porque todas as possibilidades estão ao nosso dispor e o entusiasmo continua por aqui.



156. A minha identidade é a minha pluralidade. A minha identidade não é minha: é despossessão, dissimulação, paralogismo, afasia, solecismo, sentido sem-origem, balbuciamento, trifurcação, desembaraço, ligeireza, riso comovido, entrega a multiplicar-se. Descarregar e singularizar sem se arreigar no identitário. Constituir, pulverizar seminalmente.



157. O universo é um defeito numa falta. Há que inverter o moralismo gnóstico: è devido às imprefeições cósmicas que o paradisíaco é possível. Cosmogonias trapalhonas. Universos atrapalhados. Impureza purificadora e gloriosa. Inversão do introjectivo a partir do introjectivo. Metáforas a fremer nas coisas. A libertação como pura consciência de que a liberdade está no constrangimento. Principio da realidade esvaziando-se na plenitude. Propensão sem anseadade. Perpétua espontaneidade.




e aqui finda este tratadelo de Renato Ornato Terminado em Junho de 2015 & publicado pelos Waf Books sรณ em 2018



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