KWZero 10

Page 1

Entrevista de Renato Ornato a Jorge Judas

RO — Deixaste um rasto de poesia. Como te sentes?

JJ —Nunca liguei muito à minha poesia. No fundo, tinha-lhe quase desprezo, e irritação, devido à sua vocação de incompletude e insu ficiência. Eram sobras de lucidez vaga, com remates de acutilâncias e o lirismo dos desequilíbrios voluntários. Era experimental. E ser experimental significava dar cabeçadas com força. Se és experimental tens que te auto-provocar, dar a volta, repor o tapete para o tirar de novo. Já não preciso nada disto. Ou antes, preciso precisamente por não precisar. E lá vou cultivando résteas de entusiasmo desconexo.

RO — O seu processo de re-escrita parece um agravamento quan titativo...

JJ — Escrevo para me rever e para que outros me sejam devassadores e interpoladores. Quero ser o refazedor ou o contraditor de obras alheias. O ampliador de qualquer escritor vivo ou morto. Sou, por natureza, o contrário dos poetas que se vão reduzindo, cortando ver sos maravilhosos, até ficarem os inimputáveis, versos feitos para a posteridade, aqueles muito chatos, que se tornam extremamente a

sério e, por isso mesmo, os menos sérios, porque a seriedade mais funda tem uma boa dose de auto-ironia. Nesse tipo de versos o que sucede é uma auto-mutilação. Muitas vezes, prefiro os versos maus, as excrescências juvenis desses poetas, às sobrancerias pretensiosas da maturidade. Também te posso dizer que escrevo para ir mudando o que escrevo, sobretudo as vírgulas. Sou um mau ortografista, um péssimo pontuador. Tenho tudo fora do sítio. Acumulo estilos sobre estilos, como se houvesse camadas de história ou geológicas. Tenho também a mania de que as alterações que fazemos aos poemas que escrevemos são inteiramente espontâneas, para lá do bom e do mau. Os poemas vivem mudando-se, derivando-se, deambulando em variantes, substituições, elisões. São uma forma cinematográfica como os quadros do Picasso. São prática furiosa, hipertextos acasa lando em palimpsestos. Não tenho horror ao conservar as múltiplas versões, mesmo quando são más. Pelo contrário, estas traçam a vida do poema, o seu crescimento, os seus vícios, os seus defeitos. Só assim, o poema é cinematográfico. Os poemas também têm di reito a ir vivendo a vida, e a envelhecer, tornando-se rancorosos, o que não é nada invulgar.

RO — Não achas que isso pode pesar na avaliação pelos outros, na posteridade?

JJ — Estou mais interessado na experiência poética do que em juízos alheios, ou, o que é pior, rejeito a ideia de me constituir como pie doso devoto e zelador puritano da minha obra, que é o que acontece à maioria dos poetas. Toda a obra pede derivação. Ao contrário de

Caeiro, que insiste na oposição entre carpinteirar e florir, eu floresço carpinteirando, ou carpinteiro florescendo. Não há diferença entre a natureza e arte. O meu horto concluso é um local bem aberto, e o poema é, em boa parte, a carpintaria selvagem de um jardim. E quanto à posteridade, ela é sempre sujeita aos caprichos das sucessivas actualidades. É a última coisa com a qual devemos contar.

RO — Dás cada vez mais atenção aos aspectos gráficos dos teus livros...

JJ — Um livro de poesia, sabe-o qualquer um, é aquele que resiste à monotonia gráfica da prosa. É claro que há o ritmo intrínseco, que exige isso, e um namoro com o vazio, a unânime brancura de Mallarmé. A musicalidade na poesia é importantíssima. Eu estudei e pratiquei música e percebi que o poema pode ser polifónico, ex plosivo, dissonante, ou uma pura canção, e que a poesia está longe de estar num beco sem saída. O problema continua a ser o de se olhar só o umbigo, essa tristeza auto-destrutiva dos poetas radicais. Há muito para trasladar vindo das práticas musicais populares ou da música contemporânea, mesmo quando é chatíssima. Há que rejubilá-la. E refrescar a poesia com uma nova complexidade.

RO — E gostas dos teus poemas lidos?

JJ — Não sou insensível ao speach, mas, no meio em que vivo, na cultura europeia, o speach é interno, não é para ser dito a viva voz.

O corpo do europeu tornou-se uma dobra no íntimo. É um sopro interno que murmura vigorosamente para os recessos das entranhas. Além disso, aborrecem-me as leituras de poesia, onde o exibicionismo dos maus poetas concorre à desgarrada com actores que estão em palpos de aranha para interpretarem textos que não entendem. A escrita de poesia é um recitativo soto voce. Vozes debaixo de vozes. Sussurros como no som dos filmes de Fellini. Todo o contrário do diseur em estado de graça.

RO — E achas que a insistência no visual compensa?

JJ — A visualidade sublima o maravilhamento perante as coisas que é próprio do poeta. O poeta tagarela silenciosamente consigo como resposta ao desfrute das presenças. A poesia tem essa van tagem gráfica relativamente à prosa, pois pode colocar páginas a cantar só de olhá-las. Os Pisan Cantos, de Pound, foram influentes nisso, e prometiam muito mais. A poesia visual e a poesia concreta ficaram muito aquém do desejado, e usaram fontes tipográficas que denotavam a ideologia do capitalismo de que pareciam troçar. Alguma da poesia visual é mesmo feia. Mas o visual é indissociável do musical e do lírico. Sinto que o poema hoje tem a possibilidade de ser o tremor do mundo, numa pluralidade de ritmos, de silêncios, de vozes, de estilos, de ecos. Não tem de ir para o bar confrontar-se com a sua impotência. E se se quer ser ético, faça-o a toda a hora, não se abisme em auto-comiseração e ressentimentos.

RO — Há alguns dos teus livros, como o Cicládico Topos, os Desarrumos e as Variações Jorginas onde assumiste a sombra da Luísa Neto Jorge. É uma grande presença feminina num homem?

JJ — Não insistiria nisso É como assinalar a presença do Herberto numa mulher. É claro que a Luísa é o símbolo de uma poética feminina radicada num corpo a libertar-se de todos os entraves, incluindo os clichês feministas, e essa poética não podia deixar de questionar a linguagem e a representação. Estas publicações que fiz são secções de um grande livro homenagem, chamado Geórgicas, onde procuro, com todos os equívocos, responder cabalmente e amorosamente à Luísa e à sua obra. Também vejo as traduções da Luísa como um trabalho tão ou mais sério que a sua poesia, do ponto de vista oficinal e da linguagem. Não todas as traduções, mas algu mas. A das Novas Impressões de África certamente, ou aqueles versos jocosos do Karl Valentim. Uma poeta com a intensidade da Luísa, e o seu cuidado da linguagem, legaram-nos maravilhosas traduções que não posso deixar de ler como um prolongamento menardiano da sua obra. O caso do Roussel traduzido pela Luísa daria panos para mangas. Pode-se comparar com a complexa problematização da tradução em Herberto, a mais radical que conheço, mas de um modo discreto, insistente e fidelizado. Seria interessante fazer um livro de traduções comparadas, como o Pessoa, o Sena, o Cesariny, o Herberto, a Luísa, a LLansol, o Graça Moura, etc.

RO — Tens um livro curioso que é uma homenagem a Marcel Du champ, o Absoluto Acaso.

JJ — É um livro divertido que partiu da minha tradução prévia dos textos da Rose Sélavy, e não o tenho por muito mais que isso. É um livro já antigo, com os defeitos de uma tipografia muito datada, e com piadolas como aquela sobre os Campos, em que coloco no mesmo saco o Duchamp, os concretistas brasileiros, o Álvaro de Campos e um verso do Camões. E depois ponho-me a fazer ecos entre palavras como padastro e cadastro. Ou serão outras palavras? Já não me lembro bem...

RO — Tenho a ideia de que passaste de um período bastante calmo, para uma fase muito agitada e super-produtiva.

JJ — É em parte verdade, mas é uma ilusão. Como andei por fora do falar português durante muitos anos, tenho a sensação que regresso a um idioma que é muito mais rico e que me oferece muito mais possibilidades. Não é tanto o que se fala na rua. A língua portuguesa tem-se enriquecido nos últimos anos com a imperceptível intensidade das experiências literárias e com as traduções, e como sou sensível a isso, a um português mais vasto que é cozinhado, perturbado, abandalhado, reinvestido de sentidos mais arcaicos e integrado em filões mais universais, creio que posso fazer mais, pois trabalho a partir de outros. Não estou no meu cantinho a ver se pareço mais ou menos íntegro, se sou maldito, estou na moda ou se sou original. Nestes últimos dois anos estive numa de pousio. Talvez saia um livro sobre música para o ano que vem... ou um grande poema; há imensa tralha a amadurecer à espera.

RO — E traduções?

JJ — Tenho o Emilio Villa em mãos, mas sou lento. Aquilo é aos bochechos. A sua obra poética começou a ser compilada e editada há poucos anos, com muitas falhas e omissões. Também começou a ser traduzida para inglês. Sendo, à partida, uma escrita poliglota traduzir aquilo torna-se complicado. Publicou avulsamente, caoti camente, estando-se nas tintas para a obra...Os seus três ou quatro poemas em português têm graça porque apontam para um género literário: o de escrever mal num outro idioma que não o seu. Precisamente por isso, é um caso radical do uso dessa língua. É um pouco como os poemas do Picasso escritos em francês. Eu acho que era esse mau francês que a Gertrude Stein não tolerava. O Picasso é outro caso que também se agita na minha oficina tradutória.

EVENTOS E ERNESTO (Jacques Pastiche)

andar com flores ou arbustos junto ao sexo peça instrumental… coçar a carne, eriçar o pelo, afagar os cabelos usar livros para esfregar o corpo, assoar o nariz, untar, cuspir, morder, mastigar, etc. coçar o livro, lamber, morder, beijar o livro, molhá-lo, desfazê-lo, urrar com ele, cheirá-lo, rosnar dedos enterlaçados (sempre) dormir com livros para ter sonhos literários e filosóficos viajar nas direcções erradas nunca começar nunca fingir acabar continuar continuações do que não se sabe considerar tudo sempre a meio aceitar os efeitos dos eventos procedendo a fingidas recusas deformar os limites preservando-os somos parte da fauna do paraíso

serei sempre o que foi e que será o que não se espera que seja a revolução social e a moda na holanda são a mesma coisa (M. V.) a revolução só podemos ser nós a fazê-la já a sabedoria sobrevive à nossa existência mas é outro corpo sabedoria sem alegria é conformismo conhecer coçando o meu corpo é o maior desconhecido a interrogação o se calhar o talvez o não mas o é parecido com é o estado do meu corpo que desvela o mundo e o inacaba a irreverência face à finitude recusar, como Ulisses, o poder da morte e o conformismo de ser imortal o sentido que se auto-decepciona revelando olhar fixamente de soslaio o banquete como arte, a memória como arte, a inacção como arte, o divinizar como arte, o sensacionar como arte, o parecido com arte como arte, o entre tu e eu como arte, a margem de risco como arte, o ignorar que é arte como arte maior

a intimidade de tornar o agora paraíso a tautologia do outro na minha carne o tempo como desmesura e substituição (o sublime, a revolução, a laceração) hoje cicatrizamos entre o vago do mutável e a precisão do momento o outro que encenas como outro é apenas a tua familiaridade com o devir atopia com ternura as inelutáveis guerrilhas do desejo

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.